5.

O sínodo

– HOUVE UMA REAÇÃO.

Lorenzo Baldisseri é um homem dócil e calmo. E, neste estádio da nossa conversa, o cardeal escolhe as palavras ainda mais lentamente, com uma extrema prudência. Leva algum tempo até dizer, a propósito do sínodo sobre a família:

– Houve uma reação.

Oiço Baldisseri tocar piano. Também leva tempo, ao contrário de tantos pianistas que correm sem cessar. É calmo quando interpreta os compositores de que gosta, Vittorio Monti, Erik Satie, Claude Debussy ou Frédéric Chopin. E gosto muito do seu ritmo, nomeadamente nas peças onde se distingue, como a Danza Española, de Enrique Granados, ou a Ave Maria, de Giulio Caccini.

No seu imenso gabinete, no Vaticano, cardeal mandou instalar o seu piano de meia-cauda que arrastou atrás de si, por todo o lado, desde Miami, onde o comprou, quando era núncio no Haiti. É um piano viajante que visitou o Paraguai, a Índia, o Nepal e viveu nove anos no Brasil!

– Toco piano das 20 às 23 horas, todas as noites, neste gabinete. Não posso passar sem isso. Aqui, no Vaticano, chamam-me o pianista de Deus! – Acrescenta, divertido.

Um cardeal que toca piano sozinho, à noite, neste palácio deserto do Vaticano: a imagem encanta-me. Baldisseri oferece-me uma caixa com três CD, editados pela Libreria Editrice Vaticana. A sua.

– Também dou concertos. Toquei para o papa Bento XVI, na sua residência de verão de Castel Gandolfo. Mas ele é alemão, gosta de Mozart! Eu sou italiano: sou romântico!

Aos 78 anos, o cardeal-músico, para conservar a sua maneira de tocar, e a sua destreza, toca todos os dias e em toda a parte, no escritório, em sua casa ou em férias.

– Até toquei para o papa Francisco. Foi um desafio. Porque ele não gosta nada de música!

BALDISSERI É UM DOS HOMENS DE CONFIANÇA de Francisco. A seguir à sua eleição, para a qual ele contribuiu ao ser secretário do conclave, o novo papa encarregou o bispo de italiano de preparar um sínodo extraordinário sobre a família, em 2014-2015, e depois sobre a juventude, em 2018. E foi criado cardeal de imediato para o investir da autoridade necessária.

Um sínodo convocado pelo papa é um momento importante para a Igreja. Reunir os cardeais e inúmeros bispos em assembleia é o momento de debater questões de fundo e de doutrina. A família é um deles, mais sensível do que outros.

Francisco sabia, desde o início, que para fazer aceitar as suas ideias, e não ser rude para com os cardeais rígidos, nomeados na sua maioria por João Paulo II e Bento XVI, teria de mostrar diplomacia. Baldisseri é um núncio, formado na escola dos diplomatas – a grande, a de Casaroli e Silvestrini, e não a mais recente, e muito desacreditada hoje em dia, de Sodano e Bertone.

– Trabalhei num espírito de abertura. O nosso modelo era o concílio Vaticano II: fazer viver o debate, apelar a leigos e intelectuais, inaugurar um novo método, uma nova abordagem. Era, aliás, o estilo de Francisco: um papa da América Latina, aberto, acessível, que se comporta como um simples bispo.

Era suficientemente experiente? Foi imprudente?

– Era novo em folha, é verdade. Aprendi tudo organizando este primeiro sínodo. Não tínhamos nenhum tabu, nenhuma reserva. Todas as questões estavam em aberto. Escaldantes! Estava tudo sobre a mesa: o celibato dos padres, a homossexualidade, a comunhão dos casais divorciados, a ordenação das mulheres… Abrimos todos os debates simultaneamente.

Rodeado por uma pequena equipa sensível, alegre e sorridente, com que me cruzo em parte nas instalações do secretariado do Sínodo – os arcebispos Bruno Forte, Péter Erdö e Fabio Fabene, todos promovidos de então para cá pelo papa – Lorenzo Baldisseri construiu uma verdadeira máquina de guerra ao serviço de Francisco.

Desde o início, o grupo de Baldisseri trabalha com os cardeais mais abertos e mais gay-friendly: o alemão Walter Kasper, chefe de fila dos liberais do Vaticano, que foi encarregado de redigir o relatório preparatório, bem como o austríaco Christoph Schönborn e o hondurenho Óscar Maradiaga, amigo pessoal do papa.

– A nossa linha, no fundo, era a de Kasper. Mas o que era igualmente importante, era o método. O papa quis abrir as portas e as janelas. Era necessário que o debate ocorresse em todo o lado, nas conferências episcopais, nas dioceses, entre os crentes. O povo de Deus devia escolher – conta-me Baldisseri.

Este método é inédito. E que rutura em relação a João Paulo II, que foi o arquétipo do «control freak», ou a Bento XVI, que se recusava a abrir este tipo de debates por princípio e por medo. Ao delegar na base a preparação do sínodo, ao lançar uma ampla consulta em trinta e oito perguntas nos quatro cantos do mundo, Francisco pensa poder mudar a situação. Quer repor a Igreja em movimento. Ao fazê-lo, tenciona sobretudo contornar a cúria e os cardeais que ocupam os cargos, os quais, habituados à teocracia absoluta e à infalibilidade papal, se aperceberam de imediato da armadilha.

– Mudámos os hábitos, é verdade. O que surpreendeu foi o método – explica-me, prudentemente, o cardeal.

O grupo de Baldisseri vai depressa, é certo. Confiante, temerário talvez, Walter Kasper revela publicamente, antes mesmo do sínodo, que as «uniões homossexuais, se forem vividas de uma forma estável e responsável, são respeitáveis». Respeitáveis? Esta mera palavra constitui já, só por si, uma revelação.

A partir dessa imensa consulta no terreno, o secretário do sínodo prepara um texto preliminar que os cardeais discutirão em seguida.

– O apelo ao debate foi ouvido. As respostas chegaram em massa, de todo o lado, em todas as línguas. As conferências episcopais responderam; os peritos responderam; muitos indivíduos responderam também – alegra-se Baldisseri.

Cerca de quinze padres são mobilizados de urgência para lerem todas essas notas, essas cartas chegadas aos milhares, uma enchente inesperada, uma vaga sem precedentes. É preciso tratar também as respostas provenientes das 114 conferências episcopais e de cerca de 800 associações católicas, em inúmeras línguas. Paralelamente, vários escribas (entre os quais pelo menos um homossexual, que conheci) são mobilizados para escrever os primeiros esboços de um texto que virá a ser, um ano depois, a célebre exortação apostólica: Amoris Laetitia.

Uma frase é acrescentada deliberadamente nesse rascunho: «Os homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã». Outra é uma referência explícita à SIDA: «Sem negarmos as problemáticas morais ligadas às uniões sexuais, tomamos nota de que existem casos em que o apoio mútuo até ao sacrifício constitui uma ajuda preciosa para a vida dos parceiros».

– Francisco vinha aqui todas as semanas – conta-me Baldisseri. – Presidia pessoalmente às sessões em que debatíamos as propostas.

PORQUE É QUE FRANCISCO decidiu mexer nas questões de família e de moral sexual? Para além do cardeal Baldisseri, e de alguns dos seus colaboradores, interroguei sobre este ponto dezenas de cardeais, bispos e núncios, em Roma e numa trintena de países, opositores ou apoiantes de Francisco, partidários do sínodo ou refratários: essas conversas permitem-me expor o plano secreto do papa e a batalha inimaginável que, em breve, se vai travar entre duas fações homossexualizadas da Igreja.

Desde o início do seu pontificado, o papa adverte a cúria, tanto em relação aos assuntos financeiros como aos sexuais: «Somos todos pecadores, mas não somos todos corrompidos. Os pecadores devem ser aceites, mas não os corrompidos». Pretende denunciar as vidas duplas e prega uma tolerância zero.

Mais ainda do que os tradicionalistas e os conservadores, Francisco detesta acima de tudo, como vimos, os rígidos hipócritas. Porquê continuar a opor-se ao sacramento para os divorciados que voltam a casar quando são tantos os padres que vivem em concubinato com uma mulher na América Latina e em África? Porquê continuar a odiar os homossexuais quando são tão maioritários entre os cardeais e à sua volta, no Vaticano? Como reformar a cúria, atolada na negação e na mentira, quando um número insano de cardeais e a maioria dos secretários de Estado, desde 1980, praticam uma vida incompatível (três em quatro, segundo as suas informações)? Se já vai sendo hora de arrumar a casa, como dizem, por onde começar quando a Igreja está à beira do abismo em virtude da sua obsolescência programada?

Quando Francisco ouve os seus opositores, esses cardeais rígidos que encadeiam os discursos conservadores e homófobos e publicam textos contra o seu liberalismo sexual – pessoas como Raymond Burke, Carlo Caffarra, Joachim Meisner, Gerhard Ludwig Müller, Walter Brandmüller, Mauro Piacenza, Velasio De Paolis, Tarcisio Bertone, George Pell, Angelo Bagnasco, Antonio Cañizares, Kurt Koch, Paul Josef Cordes, Willem Eijk, Joseph Levada, Marc Ouellet, Antonio Rouco Varela, Juan Luis Cipriani, Juan Sandoval Íñiguez, Norberto Rivera, Javier Errázuriz, Angelo Scola, Camillo Ruini, Robert Sarah e tantos outros – não pode deixar de ficar estupefacto. Como ousam? Pensa o santo padre, que está bem informado pelos seus próximos acerca desta paróquia incrível.

Francisco está exasperado, sobretudo, com os casos de abusos sexuais –aos milhares, na verdade, às dezenas de milhar – que infetam a Igreja católica em todo o mundo. Todas as semanas, são apresentadas novas queixas, bispos são acusados ou inculpados, padres são condenados e os escândalos sucedem-se aos escândalos. Em mais de 80% das situações, esses casos estão relacionados com abusos homossexuais – muito raramente heterossexuais.

Na América Latina, os episcopados estão altamente comprometidos e são suspeitos, da parte da imprensa ou de vítimas, de terem frequentemente minorado os factos, tanto no México (Norberto Rivera e Juan Sandoval Íñiguez), como no Peru (Juan Luis Cipriani). No Chile, o escândalo é tal que o conjunto dos bispos do país tem de demitir-se, enquanto a maior parte dos núncios e prelados, começando pelos cardeais Javier Errázuriz e Ricardo Ezzati, é posta em causa por ignorar alegações de abuso sexual. Em todo o lado, a Igreja é criticada, ao mais alto nível, pela forma como gere o abuso sexual: na Áustria (Hans Hermann Groër), na Escócia e na Irlanda (Keith O’Brien, Sean Brady), em França (Philippe Barbarin), na Bélgica (Godfried Danneels) e assim sucessivamente, nos Estados Unidos, na Alemanha, etc. Na Austrália, é o «ministro» da Economia do Vaticano, George Pell, que é, ele próprio, acusado, e por fim condenado, em Melbourne. Dezenas de cardeais são denunciados pelo nome na imprensa ou convocados pela justiça por terem dado cobertura, pela sua inércia ou hipocrisia, aos delitos cometidos por padres, quando não são eles pessoalmente acusados de tais atos. Em Itália, os casos do mesmo género multiplicam-se também, implicando dezenas de bispos e vários cardeais, apesar de a imprensa da península ter ainda, estranhamente, uma espécie de contenção quanto a revelá-los. Mas o papa e os que lhe são próximos sabem bem que o dique vai acabar por ceder, inclusive em Itália.

Durante uma conversa informal, em Roma, o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, descreve-me a propagação inimaginável dos processos de abusos sexuais. O homem é perito em duplicidade de linguagem; é um ratzingeriano que parece defender o papa Francisco. Todavia, os números que o quebequense evoca comigo são assustadores. Pinta uma Igreja que, literalmente, está a explodir. Segundo ele, todas as paróquias do mundo, todas as conferências episcopais, todas as dioceses estariam sujas. O quadro que Ouellet me traça é aterrador: a Igreja parece um Titanic a afundar-se, enquanto a orquestra continua a tocar. «É unstoppable», dir-me-á, gelado de pavor, um dos colaboradores gays de Ouellet, que também entrevistei. (Num segundo «memo», Mons. Viganò denunciará o círculo próximo homossexual de Marc Ouellet.)

Em matéria de abusos sexuais, Francisco já não tem, portanto, a intenção, como foi durante muito tempo a linha de João Paulo II e dos seus braços direitos, Angelo Sodano e Stanislaw Dziwisz, de fechar os olhos, ou como foi a tendência de Bento XVI, de mostrar indulgência. Pelo menos é o que afirma publicamente.

A sua análise é, sobretudo, diferente da de Joseph Ratzinger e do seu adjunto, o cardeal Tarcisio Bertone, que faziam desta questão um problema intrinsecamente homossexual. Segundo os peritos do Vaticano e as confidências de dois dos seus colaboradores próximos, que entrevistei, o papa Francisco pensaria, pelo contrário, que a causa profunda dos abusos sexuais se encontraria na «rigidez» de fachada que esconde uma vida dupla e, infelizmente, talvez também no celibato dos padres. O santo padre acharia que os cardeais e bispos que dão cobertura aos abusos sexuais o fazem menos para apoiar os pedófilos do que por terem medo. Temem que as suas inclinações homossexuais fossem reveladas se rebentasse um escândalo ou houvesse um processo. E assim, uma nova regra de No Armário do Vaticano, a sexta e uma das essenciais deste livro, pode ser formulada nestes termos: Por detrás da maioria dos casos de abusos sexuais, encontram-se padres e bispos que protegeram os agressores em virtude da sua própria homossexualidade e por medo de que esta pudesse ser revelada em caso de escândalo. A cultura do segredo, que era necessária para manter o silêncio sobre a forte prevalência da homossexualidade na Igreja, permitiu que os abusos sexuais fossem escondidos e os predadores agissem.

Por todas estas razões, Francisco compreendeu que os abusos sexuais não são um epifenómeno – e também não são esses «mexericos do momento» de que falava o cardeal Angelo Sodano: são a crise mais grave que a instituição enfrenta desde o grande cisma. O papa vaticina mesmo que a história apenas começou: na hora das redes sociais e do VatiLeaks, no tempo da libertação da palavra e da jurisdição das sociedades modernas – sem falar do efeito Spotlight –, a Igreja é uma Torre de Pisa que ameaça desmoronar-se. É preciso reconstruir tudo, mudar tudo; ou correr o risco de ver desaparecer uma religião. Eis a filosofia subjacente ao sínodo de 2014.

ASSIM, FRANCISCO ESCOLHE FALAR. Começa a denunciar – e com que regularidade! –, quando das missas matinais de Santa Marta, de conferências improvisadas no avião ou por ocasião de encontros simbólicos, a hipocrisia das «vidas ocultas e muitas vezes dissolutas» dos membros da cúria romana.

Já evocou as quinze «doenças curiais»: sem os nomear, apontou o dedo aos cardeais e bispos romanos que estão em «alzheimer espiritual»; criticou a sua «esquizofrenia existencial», a sua «maledicência», a sua «corrupção» e o nível de vida desses «bispos de aeroportos». Pela primeira vez na história da Igreja, as críticas não provêm dos inimigos do catolicismo, dos panfletários voltairianos e outros «catalicofóbicos»: emanam do santo padre em pessoa. É nisso que é preciso compreender todo o alcance da «revolução» de Francisco.

O papa também quer agir. Quer «derrubar o muro», segundo a expressão de um dos seus colaboradores. E vai fazê-lo mediante os símbolos, os atos e graças ao instrumento do conclave. Começa por riscar, de uma penada, da lista dos futuros cardeais todos os arcebispos, núncios e bispos comprometidos sob João Paulo II e Bento XVI. O palácio de Castel Gandolfo, a residência de verão do papa onde se falou que se desenrolariam serões animados no tempo de João Paulo II, será aberto aos turistas e, a longo prazo, vendido.

Quanto à questão homossexual, inicia um longo trabalho pedagógico. Aqui, trata-se de distinguir, de uma forma nova e fundamental para a Igreja, por um lado, os crimes que são a pedofilia, os abusos ou agressões de menores com menos de quinze anos, bem como os atos sem consentimento ou no âmbito de uma situação de autoridade (catecismo, confissão, seminários, etc.); e, por outro, as práticas homossexuais legítimas entre adultos que expressam o seu consentimento. Também vira a página do debate sobre o preservativo colocando a tónica na «obrigação de tratar».

Mas que fazer perante a crise das vocações, para não falar dessas centenas de padres que, todos os anos, pedem para ser reduzidos ao estado laical para poderem casar? Não seria a hora de refletir sobre as apostas futuras, as questões deixadas em suspenso durante demasiado tempo, e sair da teoria para responder às situações concretas? É esse o sentido do sínodo. Ao fazê-lo, o papa sabe que está a pisar ovos.

– Francisco viu bem o obstáculo. Pela sua função, está numa situação de responsabilidade. Governa. Logo, levou o tempo necessário, ouviu todos os pontos de vista – explica-me o cardeal Lorenzo Baldisseri.

Os textos que chegam dos episcopados são espantosos. Os primeiros, tornado públicos na Alemanha, na Suíça e na Áustria, não têm volta a dar pela Igreja. O catolicismo romano aparece desligado da vida real; a doutrina já não tem qualquer sentido para milhões de famílias reconstruídas; os fiéis já não compreendem de modo algum a posição de Roma quanto à contraceção, o preservativo, as uniões de facto, o celibato dos padres e, para uma boa parte, a homossexualidade.

O «cérebro» do sínodo, o cardeal Walter Kasper, que acompanha de perto o debate alemão, alegra-se por as suas ideias serem validadas no terreno. Está demasiado seguro de si mesmo? O papa confia demasiado nele? A verdade é que o texto preparatório retoma a linha Kasper e propõe repensar a posição da Igreja sobre os sacramentos aos divorciados e sobre a homossexualidade. Agora, o Vaticano está pronto a reconhecer «qualidades» no concubinato dos jovens, nos divorciados que casaram de novo e nas uniões de facto homossexuais.

Foi então que houve, segundo a expressão de Baldisseri, «uma reação». Tornado público, o texto encontra-se de imediato sob o fogo das críticas da ala conservadora do colégio dos cardeais, tendo à cabeça o americano Raymond Burke.

Os tradicionalistas opõem-se ferozmente aos documentos distribuídos e alguns, como o cardeal sul-africano Wilfrid Napier, não hesitam em afirmar que, caso se reconhecessem as pessoas em «situações irregulares», isso desembocaria inevitavelmente na legitimação da poligamia. Outros cardeais africanos ou brasileiros alertam o papa, por razões estratégicas, contra todo o abrandamento das posições da Igreja por causa da concorrência dos movimentos evangélicos protestantes, muito conservadores e que vão de vento em popa.

Todos esses prelados se dizem, claro, abertos ao debate e dispostos a acrescentar notas de pé de página e codicilos onde for necessário. Mas o seu mantra secreto não é mais do que a fórmula célebre, citada tão frequentemente, do príncipe de Lampedusa em O Leopardo: «Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude». Francisco denunciará aliás, sem os nomear, os «corações empedernidos» que «querem que tudo fique como antes».

Discretamente, cinco cardeais ultraconservadores (os «usual suspects» Raymond Burke, Ludwig Müller, Carlo Caffarra, Walter Brandmüller e Velasio de Paolis) participam justamente numa obra em defesa do casamento tradicional, publicada nos Estados Unidos pela editora católica Ignatius. Tencionam mandá-la distribuir a todos os participantes do sínodo – antes de Baldisseri mandar apreender o panfleto! A ala conservadora grita que está a ser alvo de censura! O sínodo já está a transformar-se numa farsa.

Desde a primeira assembleia, os pontos litigiosos relacionados com a comunhão dos divorciados que tornaram a casar e a homossexualidade são alvo de debates amargos que obrigam o papa a rever o seu texto. Em alguns dias, o documento é alterado, edulcorado, e a posição sobre a homossexualidade tornada muitíssimo mais rígida. Todavia, até mesmo esta nova versão light é rejeitada pelos padres sinodais quando da votação final.

O ataque ao texto é tão forte, tão duro, que se torna evidente que o próprio papa é visado através dele. O seu método, o seu estilo, as suas ideias, são rejeitados por uma parte do colégio dos cardeais. Os mais «rígidos», os mais tradicionais, os mais misóginos rebelam-se. Aqueles que têm a «inclinação» mais forte? Com efeito, é significativo que esta guerra entre conservadores e liberais se trave às avessas na questão gay. Logo, é necessário ser contraintuitivo para a decifrar. Mais significativo ainda é o facto de muitos dos líderes da fronda anti-Francisco terem uma via dupla. Esses homossexuais escondidos, cheios de contradições e de homofobia interiorizada, revoltar-se-iam então por ódio a si próprios ou para evitar serem desmascarados? O santo padre está de tal modo exasperado que ataca precisamente os cardeais no seu calcanhar de Aquiles: a sua vida íntima escondida por detrás do seu excesso de conservantismo.

É o que James Alison, um padre inglês abertamente gay, muito respeitado pelos seus escritos teológicos sobre o tema, resume com uma fórmula mais subtil do que parece, quando o interrogo em várias ocasiões, em Madrid:

– É a desforra do armário! É a vingança do armário!

O padre Alison resume, à sua maneira, a situação: os cardeais homossexuais «no armário» desencadearam a guerra contra Francisco que incentivaria a saída dos gays do «armário»!

Luigi Gioia, um monge beneditino italiano, que foi um dos responsáveis da Universidade dos beneditinos Sant’Anselmo em Roma, dá-me uma outra chave de leitura do que se passou em Roma:

– Para um homossexual, a Igreja aparece como uma estrutura estável. É uma das razões que explicam, em minha opinião, o facto de inúmeros homossexuais terem escolhido o sacerdócio. Ora, quando precisas de te esconder, também tens necessidade, para te sentires em segurança, de que o teu contexto não se altere. Queres que a estrutura onde te refugiaste seja estável e protetora; e, depois, podes navegar livremente dentro dela. Ora, Francisco, ao querer reformá-la, tornou a estrutura instável para os padres homossexuais que se encontram no armário. É isso que explica a sua violenta reação e o seu ódio para com ele. Têm medo.

O principal artesão e testemunha do sínodo, o cardeal Baldisseri resume-me pelo seu lado, e mais factualmente, a situação depois da batalha:

– Houve consenso quanto a tudo. Menos em relação aos três pontos sensíveis.

Na realidade, uma maioria «liberal» surgiu do sínodo, mas o quórum necessário para a aprovação dos artigos controversos, que exige dois terços dos votos, não foi atingido. Por conseguinte, três parágrafos, entre sessenta e dois, foram rejeitados – os mais emblemáticos. O papa não teve quórum. O projeto revolucionário de Francisco sobre a família e a homossexualidade passou à história.

FRANCISCO PERDEU UMA BATALHA, mas não perdeu a guerra. Dizer que ficou descontente com a sua derrota no sínodo é um eufemismo. Esse homem autoritário, mas franco, fica ofendido com o bloqueio dos cardeais conservadores da cúria. A sua hipocrisia, o seu jogo duplo, a sua ingratidão, revoltam-no. Essas manobras de bastidores, esse complô, esse método expressamente contrário às leis da cúria – é de mais. Aos seus colaboradores, Francisco afirma, em privado, que não tenciona ceder. Vai bater-se e desencadear a contraofensiva.

– É um teimoso. Um teimoso obstinado – diz-me um monsignore que o conhece bem.

A reação do sumo pontífice vai desenrolar-se em tempos diferentes. Para começar, pode preparar o segundo sínodo, previsto para o ano seguinte, o que lhe dá tempo para se organizar. Em seguida, decide realizar uma campanha de grande amplitude em prol das suas propostas, a partir do fim de 2014, para vencer a batalha das ideias. Quer transformar uma derrota em vitória.

Esta guerra será, em grande medida, secreta, ao invés da precedente, que se queria participativa e consultiva. Apanhado pela armadilha da democratização, Francisco decide mostrar à sua oposição que é um monarca absoluto numa teocracia cesarista!

– Francisco é rancoroso. É vingativo. É autoritário. É um jesuíta: nunca quer perder! – Resume um núncio que lhe é hostil.

Francisco dispõe de três alavancas eficazes para reagir. A curto prazo, pode tentar favorecer um debate mais moderno por todo o mundo através de uma ação sobre os episcopados e as opiniões públicas católicas – é a nova missão que confia a Baldisseri e à sua equipa. A médio prazo, castigar os cardeais que o humilharam, a começar por Gerhard Ludwig Müller, o responsável pela doutrina da Igreja. A longo prazo, alterar a composição do colégio dos cardeais, criando bispos favoráveis às suas reformas e, considerando o limite de idade, afastar naturalmente, pouco a pouco, a sua oposição – é a arma suprema, aquela que só o sumo pontífice pode usar.

Astuto e assumindo o comando, Francisco vai passar à ofensiva utilizando as três técnicas em simultâneo com uma velocidade e, dizem os seus opositores, uma veemência extraordinária.

O trabalho de «preparação» do segundo sínodo, previsto para outubro de 2015, é lançado. Na verdade, é uma verdadeira máquina de guerra que se põe em movimento, em cinco continentes. É Henrique V na véspera da batalha de Azincourt. Francisco tem um reino como teatro: «Não somos um tirano, mas um rei cristão. A nossa cólera está submetida à nossa delicadeza». Há delicadeza; mas ainda há mais cólera.

PUDE ACOMPANHAR ESTA OFENSIVA em inúmeros países, onde pude medir até que ponto os episcopados se dividiram em dois campos irreconciliáveis como, por exemplo, na Argentina, no Uruguai, no Brasil ou nos Estados Unidos. No terreno, a batalha causa estragos.

Primeiro, na Argentina: lá, na sua base de retaguarda, o papa mobiliza os seus amigos. O teólogo Víctor Manuel Fernández, um íntimo de Francisco e um dos seus escribas, recentemente promovido a bispo, sai subitamente da sua reserva. Numa longa entrevista ao Corriere della Sera (maio de 2015), ataca ferozmente a ala conservadora da cúria e, sem o nomear, o cardeal Müller: «O papa avança lentamente porque quer ter a certeza de que não se poderá voltar atrás. Visa reformas irreversíveis… Não está sozinho, de modo algum. As pessoas [os fiéis] estão com ele. Os seus adversários são mais fracos do que pensam… Aliás, é impossível um papa agradar a toda a gente. Bento XVI agradava a todos?» É uma «declaração de guerra» para a ala ratzingeriana da cúria.

Não muito longe de Buenos Aires, o arcebispo «bergogliano» de Montevideu, no Uruguai, Daniel Sturla sobe um degrau com igual rapidez, expressando-se sobre a questão dos homossexuais. Chegará mesmo a tornar público, subsequentemente, um contributo sobre a questão gay no sínodo.

– Ainda não conhecia o papa Francisco. Mobilizei-me espontaneamente porque os tempos mudaram e aqui, em Montevideu, se tornara impossível não ter compaixão pelos homossexuais. E sabe que mais? Aqui não existe qualquer oposição às minhas posições pró-gays. Penso que a sociedade está a evoluir em toda a parte, o que ajuda a Igreja a avançar sobre a questão. E cada um descobre que a homossexualidade é um fenómeno muito amplo, incluindo no seio da Igreja – diz-me Sturla durante uma longa conversa no seu gabinete de Montevideu. (O papa Francisco criou-o cardeal em 2015.)

Outro amigo do santo padre esforça-se sem peias: o cardeal das Honduras, Óscar Maradiaga. Coordenador do «C9», o conselho dos nove cardeais próximos de Francisco, o arcebispo encadeia as viagens por todas as capitais da América Latina, acumulando «milhas» no seu cartão Platinum. Em todo o lado, ele destila o pensamento de Francisco, em público, e em privado a sua estratégia; reúne também apoios, informa o papa sobre a sua oposição e prepara os planos de batalha. (Em 2017, o arcebispado de Óscar Maradiaga ver-se-á envolvido em alegações de corrupção financeira, de que, alegadamente, um dos beneficiários seria seu ajudante e amigo íntimo: este bispo auxiliar foi também considerado suspeito pela imprensa, de «más condutas graves e ligações homossexuais» – o qual apresentou a demissão, em 2018. Na sua «Testimonianza», Mons. Viganò faz também um julgamento severo em relação a Maradiaga por proteger acusados de abuso sexual. Neste estádio, o processo continua em curso e presume-se a inocência dos prelados citados.)

No Brasil, um grande país católico – o mais importante do mundo com uma comunidade estimada em 135 milhões de fiéis e uma verdadeira influência no sínodo com os seus dez cardeais – o papa apoia-se nos seus próximos: o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, o cardeal João Bráz Aviz, antigo arcebispo de Brasília e no novo arcebispo da capital brasileira, Sérgio da Rocha, que será crucial no sínodo, e a quem agradecerá, criando-o cardeal pouco depois. Encarrega-os de marginalizar a ala conservadora, encarnada por um cardeal antigay, o arcebispo de São Paulo Odilo Scherer, próximo do papa Bento XVI. A batalha tradicional Hummes-Scherer, que há muito define as relações de força no seio do episcopado brasileiro, redobra de intensidade nesse momento. Aliás, Francisco castigará Scherer, expulsando-o da cúria sem pré-aviso, no momento em que eleva Sérgio da Rocha à púrpura.

Uma tensão recorrente que me é resumida por Frei Betto, um célebre dominicano e intelectual brasileiro, próximo do antigo presidente Lula e uma das figuras-chave da teologia da libertação:

– O cardeal Hummes é um cardeal progressista que esteve sempre próximo das causas sociais. É um amigo do papa Francisco, que pode contar com ele. O cardeal Scherer, em contrapartida, é um homem limitado e um conservador, que não tem uma única fibra social. É muito tradicional – confirma-me Betto, quando de uma conversa no Rio de Janeiro.

Quando o entrevisto, o cardeal Odilo Scherer causa-me uma impressão bem melhor. Afável e um pouco manhoso, recebe-me em camisa azul-celeste, com uma caneta Montblanc a sair do preto e branco do seu bolso, no seu magnífico gabinete do arcebispado de São Paulo. Ali, durante uma bela conversa, tem o cuidado de desdramatizar as tensões no seio da Igreja brasileira, de que é o mais alto dignitário:

– Temos um papa, um único: Francisco; não temos dois, apesar de haver um papa emérito. Por vezes, as pessoas não gostam do que diz Francisco e, então, viram-se para Bento XVI; outras não gostam de Bento e, então, estão com Francisco. Cada papa tem o seu próprio carisma, a sua personalidade. Um papa completa o outro. Juntos, contribuem para uma visão equilibrada da Igreja. Não se deve colocar um papa contra o outro.

Os Estados Unidos são outro país decisivo, que conta com dezassete cardeais, dos quais dez são votantes. Um estranho mundo, além disso, que Francisco conhece mal e onde são numerosos os cardeais rígidos, que levam uma vida dupla. Não tendo a menor confiança no presidente da Conferência Episcopal Americana, o pretenso liberal David DiNardo, um oportunista ratzingeriano que passou a ser pró-Francisco sob Francisco, o papa descobre, baralhado, que tem poucos aliados no país. Eis a razão pela qual decide apoiar-se em três bispos gay-friendly pouco comuns: Blase Cupich que acaba de ser nomeado arcebispo de Chicago e que se mostra favorável aos casais homossexuais; o versátil Joseph Tobin, arcebispo de Indianápolis e, hoje em dia, de Newark, onde acolheu homossexuais casados e católicos ativistas LGBT; e, finalmente, Robert McElroy, um padre liberal e pró-gay de São Francisco. Estes três apoios de Francisco nos Estados Unidos entregar-se-ão incansavelmente ao sínodo e serão recompensados, os dois primeiros com a púrpura, em 2016, enquanto McElroy será nomeado bispo de San Diego durante os debates.

Em Espanha, França, Alemanha, Áustria, nos Países Baixos, na Suíça ou na Bélgica, Francisco procura também aliados e aproxima-se dos cardeais mais liberais, como o alemão Reinhard Marx, o austríaco friendly Cristoph Schönborn ou o espanhol Juan José Omella Omella (que nomeará arcebispo de Barcelona pouco depois, e de seguida criará cardeal). É também numa entrevista ao jornal alemão Die Zeit que o papa lança uma ideia destinada a um belo futuro: a ordenação dos famosos viri probati. Em vez de propor a ordenação das mulheres ou o fim do celibato dos seminaristas – casus belli para os conservadores –, Francisco pretende ordenar homens católicos casados de idade madura, uma forma de responder à crise das vocações, de travar a homossexualidade na Igreja e de tentar limitar os casos de abusos sexuais.

Ao multiplicar os debates no terreno, o papa coloca os conservadores na defensiva. «Encurrala-os», como diz um padre que trabalhou para o sínodo, e mostra que são minoritários no seu próprio país.

Desde 2014 que o papa foi claro: «Para a maior parte das pessoas, a família [tal como foi imaginada por João Paulo II no início da década de 1980] já não existe. Há os divórcios, as famílias arco-íris, as famílias monoparentais, o fenómeno da gestação para outrem, os casais sem filhos, as uniões do mesmo sexo… A doutrina tradicional manter-se-á, certamente, mas os desafios pastorais exigem respostas contemporâneas, que já não podem derivar do autoritarismo nem do moralismo». (Estas afirmações ousadas e não desmentidas do papa foram-me contadas pelo cardeal das Honduras, Oscar Maradiaga, amigo pessoal de Francisco.)

Entre os dois sínodos, de 2014 e 2015, a batalha entre liberais e conservadores adquire, por conseguinte, dimensão e estende-se a todos os episcopados, enquanto Francisco prossegue com a sua política de pequenos passos.

– É preciso não simplificar o debate – relativiza, no entanto, Romilda Ferrauto, uma jornalista da Rádio Vaticano que participou nos dois sínodos. – Houve verdadeiros debates que abanaram a santa sé, mas não havia, de um lado, os liberais e, do outro, os conservadores. A fratura não era assim tão nítida entre a esquerda e a direita, havia muitos mais matizes e diálogos. Alguns cardeais podem acompanhar o santo padre na reforma financeira, mas não na moral, por exemplo. Quanto ao papa Francisco, foi apresentado como um progressista. Não é exato: é um misericordioso. Tem uma abordagem pastoral: estende a mão ao pecador. Não é, de modo algum, a mesma coisa.

PARA ALÉM DOS CARDEAIS MOBILIZADOS em todo o mundo e da cúria que se agita de uma forma desorganizada, a equipa do papa também se interessa pelos intelectuais. Esses «influenciadores», pensa o grupo de Baldisseri, serão vitais para o êxito do sínodo, donde a implementação de um grande plano secreto de comunicação.

Nos bastidores, um jesuíta influente, o padre Antonio Spadaro, que dirige La Civiltà Cattolica, afadiga-se nessa vertente.

– Não somos uma revista oficial, mas todos os nossos artigos são relidos pela secretaria de Estado e são «certificados» pelo papa. Podemos dizer que é uma revista autorizada, digamos semioficial – diz-me Spadaro, no seu escritório em Roma. E que escritório! A Villa Malta, na via di Porta Pinciana, onde se encontra sediada a revista, é um local magnífico, na zona da Villa Médicis e do Palácio Borghese.

Sempre cheio de cafeína e jet-lag, Antonio Spadaro, com quem tive seis conversas e jantares, é o peixe-piloto do papa, um teólogo que também é um intelectual, como há poucos no Vaticano de hoje em dia. A sua proximidade com Francisco suscita invejas: diz-se que é uma das suas eminências pardas, ou pelo menos um dos seus conselheiros oficiais. Jovem, dinâmico, encantador, Spadaro impressiona-me. As suas ideias surgem com uma rapidez e uma inteligência evidentes. O jesuíta interessa-se por todas as culturas e, para começar, pela literatura. Já tem diversas obras no ativo, entre as quais um ensaio premonitório sobre a ciberteologia e dois livros biográficos sobre o escritor italiano, católico e homossexual, Pier Vittoria Tondelli, que morreu de SIDA aos 36 anos.

– Interesso-me por tudo, incluindo rock – diz-me Spadaro, durante um jantar em Paris.

Sob Francisco, a revista jesuíta tornou-se um espaço de experimentação onde são testadas ideias e lançados debates. Logo em 2013, Spadaro publica lá a primeira grande entrevista do papa Francisco, recém-eleito. Um texto destinado a marcar época:

– Passámos três tardes juntos para essa conversa. Fiquei surpreendido com a sua abertura de espírito e o seu sentido do diálogo.

Este texto célebre anuncia, de uma certa forma, o roteiro do sínodo futuro. Nela, Francisco expressa as suas ideias, inovadoras, e o seu método. Quanto às questões sensíveis da moral sexual e do sacramento dos casais divorciados, milita em prol do debate colegial e descentralizado. Nessa entrevista, Francisco desenvolve assim, pela primeira vez, as suas ideias sobre a homossexualidade.

Spadaro não larga a questão gay, levando Francisco ao limite e forçando-o a delinear uma verdadeira visão cristã da homossexualidade. O papa pede que os homossexuais sejam acompanhados «com misericórdia», imagina uma pastoral para as «situações irregulares» e os «feridos sociais», que se sentem «condenados pela Igreja». Nunca um papa mostrou uma tal empatia e, há que dizer a palavra, uma tal fraternidade em relação aos homossexuais. É uma verdadeira revolução galileana! E, desta vez, as suas afirmações não foram improvisadas, decerto, como pode ter acontecido com a célebre frase: «Quem sou eu para julgar?» A entrevista foi relida minuciosamente e cada palavra pesada com uma balança de precisão (como me confirma Spadaro).

Todavia, para Francisco a essencial está alhures: está na hora de a Igreja sair dos temas fraturantes e daqueles que dividem os crentes para se concentrar no que verdadeiramente está em jogo: os pobres, os migrantes, a miséria. «Não podemos insistir apenas nas questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e à utilização dos métodos contracetivos. Não é possível… Não é necessário falar permanentemente nisso», afirma o papa.

Para além dessa entrevista decisiva, Antonio Spadaro vai mobilizar as suas redes internacionais, bastante nutridas, para apoiar as posições do papa sobre a família. Assim, em 2015, florescem, na revista La Civiltà Cattolica, pontos de vista e entrevistas favoráveis às ideias de Francisco. Alguns peritos são mobilizados, pelo seu lado, por Spadaro ou pelo secretariado do sínodo, como os teólogos italianos Maurizio Gronchi e Paolo Gamberini; ou os franceses Jean-Miguel Garrigues (um amigo próximo do cardeal Schönborn) ou Antoine Guggenheim. Este começa a defender subitamente o reconhecimento das uniões de casais do mesmo sexo no diário católico francês La Croix. «O reconhecimento de um amor fiel e duradouro entre duas pessoas homossexuais», escreve, «independentemente do seu grau de castidade, parece-me uma hipótese a estudar. Poderia assumir a forma que a Igreja dá habitualmente à sua oração: uma bênção».

Quando de uma viagem ao Brasil, durante o mesmo período, Spadaro encontra-se igualmente com um padre pró-gay, jesuíta como ele, Luís Corrêa Lima. Têm uma longa conversa, na residência da Companhia de Jesus da Universidade Católica do Rio de Janeiro, sobre as «pastorais em prol dos homossexuais» organizadas pelo padre Lima. Seduzido por esta ideia, Spadaro encomenda a Lima um artigo sobre o tema para La Civiltà Cattolica, um artigo que acabará por nunca ser publicado.

(Para além de Mons. Baldisseri, Kasper e Spadaro, interroguei Antoine Guggenheim e Jean-Miguel Garrigues que me confirmaram a estratégia de conjunto. Também me encontrei com o padre Lima, no Rio de Janeiro, visitando com ele a favela da Rocinha, onde ele celebra missa todos os domingos, e o espaço onde se realizam essas «pastorais» LGBT.)

OUTRO INTELECTUAL de alto nível acompanha com grande atenção os debates do pré-sínodo. Este dominicano italiano, também ele teólogo, discreto e fiel, reside no convento de Saint-Jacques, que fica junto da biblioteca do Saulchoir, em Paris.

O irmão Adriano Oliva é um historiador medievalista reputado, latinista experiente, doutor em teologia. É sobretudo um dos melhores especialistas do mundo de são Tomás de Aquino: preside à famosa comissão Leonina que tem a seu cargo a edição crítica das obras do pensador medieval – uma referência.

Então, porque é que Oliva se mobiliza inesperadamente, no início do ano de 2015, e inicia a escrita de um livro arriscado em prol dos divorciados que tornaram a casar e das bênçãos das uniões homossexuais? Seria o dominicano italiano incentivado diretamente pelo secretariado do sínodo, se não pelo papa, para intervir, primeiro que tudo, no debate?

São Tomás de Aquino, sabemo-lo, é geralmente a caução em que se apoiam os conservadores para se oporem a todos os sacramentos dos divorciados ou dos casais homossexuais. Tratar esse tema frontalmente é, por conseguinte, não só arriscado, se não arrojado, mas também estratégico. O título do livro, publicado em breve: Amours.

É raro, hoje em dia, ler uma obra tão corajosa. Apesar de erudito, exegético e reservado aos especialistas, Amours é, em apenas 160 páginas, um minucioso trabalho de sapa da ideologia moralizante do Vaticano, de João Paulo II a Bento XVI. O irmão Oliva parte de uma dupla falência doutrinal da Igreja: a contradição do seu discurso sobre os divorciados que voltaram a casar e o impasse em que se perdeu em relação à homossexualidade. O seu projeto é claro: «O presente estudo tem como objetivo mostrar que uma alteração desejável por parte do Magistério em relação à homossexualidade e ao exercício da sexualidade pelos casais homossexuais corresponderia não só às investigações antropológicas, teológicas e exegéticas atuais, mas também aos desenvolvimentos de uma tradição teológica, tomista em particular».

O dominicano atira-se à interpretação dominante do pensamento de são Tomás de Aquino: ao cerne da doutrina, não à sua margem. Oliva: «Existe o hábito de considerar “contranatura” não só a sodomia, mas também a inclinação homossexual. São Tomás, em contrapartida, considera essa inclinação “segundo a natureza” da pessoa homossexual tomada na sua individualidade». O teólogo apoia-se na «intuição genial» do Doutor angélico, o «“contranatura” natural», segundo a qual se pode explicar a origem da homossexualidade. E Oliva faz notar, aqui quase darwiniano, que «são Tomás coloca a origem da homossexualidade ao nível dos princípios naturais da espécie».

Para são Tomás, o homem, inclusive nas suas irregularidades e nas suas singularidades, faz parte, por conseguinte, do desígnio divino. A inclinação homossexual não é contranatura, mas provém da alma racional. Oliva, de novo: «a homossexualidade não comporta em si qualquer ilicitude, nem quanto ao seu princípio, conatural ao indivíduo e enraizado no que o anima como ser humano, nem quanto ao seu fim, amar uma pessoa, que é um fim bom». E Oliva conclui apelando «ao acolhimento das pessoas homossexuais no coração da Igreja e não nas suas margens».

Após a leitura de Amours, vários cardeais, bispos e inúmeros padres disseram-me que a sua visão de são Tomás de Aquino mudara e que o interdito da homossexualidade fora levantado definitivamente. Alguns, tanto entre os fiéis como nas hierarquias, disseram-me inclusive que o livro tivera neles o efeito do Corydon, de André Gide e, aliás, Adriano Oliva conclui o seu texto com uma alusão ao Si le grain ne meurt, de Gide. (Contactado em meu nome, o irmão Oliva recusa-se a comentar a génese do livro ou a discutir as suas ligações com Roma. O seu editor, Jean-François Colosimo, patrão das éditions du Cerf, foi mais eloquente, o mesmo se passando com a equipa do cardeal Baldisseri que confirma ter «encomenda[do] análises a peritos», nomeadamente ao irmão Oliva. Para terminar, tive a confirmação de que Adriano Oliva foi recebido efetivamente no Vaticano por Baldisseri, Bruno Forte e Fabio Fabene – isto é, os principais artesãos do sínodo.)

Tal como seria de esperar, o livro não passou despercebido nas redes tomistas onde esta carga teve o efeito de uma bomba de fragmentação. A polémica incendiou os círculos católicos mais ortodoxos, tanto mais que o ataque vinha do interior, assinado por um padre dificilmente refutável, tomista entre os tomistas. Cinco dominicanos do Angelicum, a Universidade Pontifícia São Tomás de Aquino, em Roma, apresentam em breve uma resposta severa e mal feita – e também esquizofrénica, uma vez que alguns deles são homófilos. Alguns militantes identitários entram também na corrida e atacam violentamente o padre ousado por ter feito de são Tomás de Aquino um autor gay-friendly! Em sites e blogues, a extrema-direita católica enfurece-se.

Apoiado intelectualmente pelo mestre da Ordem dos Dominicanos, de quem depende, o irmão Oliva é também alvo de diversos ataques sistemáticos, académicos desta vez, em diversas revistas tomistas, nomeadamente num artigo de 47 páginas. Em resposta, um novo artigo de 48 páginas toma a defesa de Oliva na Revue des Sciences philosophiques et théologiques, dirigida pelo dominicano Camille de Belloy (que também interroguei). De então para cá, anunciam-se novas salvas…

Como se vê, o tema era sensível. Para o irmão Oliva, que diz «ter agido com toda a liberdade», foi mesmo o tema mais perigoso da sua carreira e, por mais corajoso que o dominicano seja, é impossível que um investigador do seu nível se possa ter lançado a solo num trabalho como este sobre são Tomás de Aquino e a questão gay sem ter recebido luz verde da cúpula. Dos cardeais Baldisseri e Kasper? De certeza. Do próprio papa Francisco?

O cardeal Walter Kasper confirma-me a intervenção pessoal de Francisco.

– Adriano Oliva veio ver-me aqui. Falámos. Ele enviara-me uma carta que mostrei ao papa. Francisco ficou muito impressionado e pediu a Baldisseri que lhe encomendasse um texto para ser distribuído pelos bispos. Creio que foi esse texto que veio a ser Amours.

E Kasper acrescenta:

– Adriano Oliva prestou um serviço à Igreja, sem ser militante.

Amours será distribuído durante o sínodo, por sugestão do papa. O livro não é mais um panfleto ou um ensaio isolado e um pouco suicidário, como foi dito: é uma arma num plano de conjunto desejado pelo próprio sumo pontífice.

A ESTRATÉGIA DO PAPA, a sua manobra, a sua máquina de guerra posta em movimento contra os conservadores da Igreja, não escaparam aos seus opositores. Quando interroguei esses anti-Francisco, quer se tratasse de cardeais quer de simples monsignori, preferiram reagir «off the record». Por tradição, um cardeal nunca diz mal do papa fora do Vaticano. Os jesuítas e os membros do Opus Dei calam ainda mais os seus desacordos. Os dominicanos são prudentes e geralmente progressistas, tal como os franciscanos. Todavia, as críticas ad hominem contra Francisco não se fazem esperar, quando se desliga o microfone: trata-se mesmo de uma verdadeira torrente de ódio.

Uma dessas línguas viperinas é um prelado incontornável da cúria, com quem tive mais de uma dezena de encontros, almoços e jantares, em Roma. Divertido, mau, viperino, portanto, Aguisel (o seu nome foi alterado) é um homossexual descomplexado que, apesar da sua idade canónica, continua a ser um grande sedutor. Aguisel te uma gay pride que é só seu! Engata seminaristas que convida para jantar por fornadas inteiras; tenta afeiçoar-se aos empregados de café, aos empregados de mesa dos restaurantes romanos onde jantamos e que trata pelos nomes próprios. Acontece que Aguisel gosta muito de mim.

– Sou do Antigo Testamento – diz-me o nosso prelado, numa frase divertida, autoirónica e tão verdadeira.

Aguisel detesta Francisco. Censura-lhe a vertente «comunizante», o seu liberalismo familiar e, claro, as suas posições demasiado favoráveis aos homossexuais.

– Este papa está cheio de zelo – diz-me, o que da sua boca não é um elogio.

Noutro dia, quando estamos a jantar no La Campana, um restaurante típico de Roma, vicolo della Campana (casa que, diz-se, Caravaggio frequentava com regularidade), Aguisel aponta as incoerências e mudanças de rumo de Francisco. Segundo ele, este papa não teria uma «sequência de ideias». E, relativamente à homossexualidade, daria um passo em frente, e depois dois atrás, uma prova de que estaria a navegar à vista:

– Como é que Francisco pode atacar a teoria do género e, ao mesmo tempo, receber oficialmente, no Vaticano, um transexual espanhol com o «seu» ou a «sua» noiva?… Está a ver, nem sequer se sabe como o dizer! Tudo isso é incoerente e mostra que ele não tem doutrina, apenas atos impulsivos de comunicação.

Agora, o prelado continua em tom de confidência, sussurrando:

– Mas, sabe, o papa fez muitos inimigos na cúria. Ele é mau. Despede toda a gente. Não suporta a contradição. Veja o que fez ao cardeal Müller!

Sugiro que houve outros motivos para a animosidade de Francisco contra Müller (que o papa demitiu sem aviso prévio, em 2017). O meu interlocutor está consciente das questões que levanto e percebe que estou bem informado, mas está obcecado apenas com os pequenos vexames sofridos por Müller e os seus aliados.

– O papa interveio de cima, e pessoalmente, para despedir os próprios assistentes de Müller, no seio da Congregação para a Doutrina da Fé. De um dia para o outro, foram devolvidos aos seus países! Parece que diziam mal do papa. Uns pérfidos? Não é verdade. Estavam apenas na oposição. Não fica bem, quando se é papa, atacar pessoalmente simples monsignori!

Após uma hesitação, Aguisel ousa:

– Francisco tem um espião na Congregação para a Doutrina da Fé, que lhe conta tudo. Sabia isso? Tem um espião! O espião é o subsecretário!

Eis mais ou menos o tipo de conversas que tivemos com o prelado, durante inúmeras refeições. Conhece os segredos da cúria e, claro, o nome dos cardeais e monsignori «praticantes». Sente um enorme prazer em mos revelar, mesmo assim, apesar de, cada vez que faz o «outing» de um correligionário, se censurar, espantado com a sua própria audácia:

– Lá estou eu a falar de mais. Falo de mais. Deve achar-me atrevido!

Fiquei fascinado com a imprudência calculada do prelado durante esses diálogos regulares, que se estenderam por dezenas de horas e vários anos. Como todos os prelados com que me encontro, sabe muito bem que faço reportagens de investigação e que sou autor de várias obras sobre a questão gay. Se me fala, tal como tantos cardeais e bispos anti-Francisco, não é, por conseguinte, nem por acaso, nem por acidente, mas em virtude dessa «doença do boato, da maledicência e da bisbilhotice» de que o papa tão bem troça.

– O santo padre é um pouco especial – acrescenta o prelado. – As pessoas, as multidões, toda a gente gosta muito dele em todo o mundo, mas não sabem quem é. É brutal! É cruel! É rude! Aqui, conhecem-no e é detestado.

UM DIA em que estamos a almoçar na zona da Piazza Navona, em Roma, Mons. Aguisel agarra-me no braço, sem dizer água-vai, no fim da refeição, e conduz-me em direção à igreja San Luigi dei Francesi.

– Aqui, tem três Caravaggio, e é grátis. Não podemos privar-nos disso.

Os quadros murais, em óleo sobre tela, são sumptuosos na sua profundidade crepuscular e na sua escuridão brutal. Meto uma moeda de um euro num aparelhinho diante da capela; de súbito, as obras iluminam-se.

Depois de ter cumprimentado uma «maluca de sacristia» que o reconheceu – como em todo o lado, os gays são numerosos entre os seminaristas e padres desta igreja francesa – Aguisel faz agora uma preleção afetada a um grupo de jovens turistas, salientando o seu título prestigioso de curial. Após este interlúdio, retomamos o nosso diálogo sobre a homossexualidade de Caravaggio. O erotismo que se desprende do Martírio de São Mateus, um velho por terra a receber a morte das mãos de um belo guerreiro nu, é um eco de São Mateus e o Anjo, cuja primeira versão, desaparecida hoje em dia, foi considerada demasiado homoerótica para ser digna de uma capela! Para o Tocador de alaúde, o Rapaz com o cesto de fruta ou o seu Baco, Caravaggio mandou posar o seu amante, Mario Minniti. Quadros como Narciso, Concerto, São João Batista ou ainda o estranho Amor Vincit Omina (Amor vitorioso, que vi na Gemäldegalerie de Berlim) confirmaram, há muito, a atração do pintor pelos rapazes. O escritor Dominique Fernandez, membro da Academia Francesa, escreveu: «Para mim, Caravaggio é o maior pintor homossexual de todos os tempos, isto é, aquele que exaltou com mais veemência o vínculo de desejo entre dois homens».

Não será estranho, então, que Caravaggio seja, simultaneamente, um dos pintores preferidos do papa Francisco, dos cardeais rígidos que estão no armário e dos militantes gays, que organizam, em Roma, City Tours LGBT, em que uma das etapas consiste, precisamente, em virem prestar homenagem ao «seu» pintor?

– Aqui, na igreja San Luigi dei Francesi, recebemos autocarros inteiros de visitantes. Cada vez há menos paroquianos e mais turistas low cost! Só vêm ver o Caravaggio. Comportam-se com uma vulgaridade que nunca ousariam exibir num museu! Tenho de os caçar! – Explica-me Mons. François Bousquet, o reitor da igreja francesa, com quem almoço duas vezes.

De súbito, Mons. Aguisel insiste em me mostrar algo. Após um pequeno desvio, faz com que a bela capela se ilumine a, ei-lo: um São Sebastião! Este quadro do pintor Numa Boucoiran foi acrescentado à igreja no século XIX, a pedido do embaixador de França junto do Vaticano («desde a guerra, pelo menos cinco foram homossexuais», acrescenta Aguisel que os contou minuciosamente). Convencional e sem grande génio artístico, este São Sebastião adere, mesmo assim, a todos os códigos da iconografia gay: o rapaz está de pé, resplandecente, orgulhoso e extasiado, numa nudez exagerada pela beleza dos seus músculos, o corpo atlético trespassado pelas flechas do seu carrasco, que talvez seja o seu amante. Boucoiran é fiel ao mito, apesar de não ter o talento de Botticelli, Il Sodoma, Ticiano, Veronese, Guido Reni, El Greco ou Rubens que, todos eles, pintaram este ícone gay, e até de Leonardo da Vinci que o desenhou oito vezes.

Vi vários São Sebastião nos museus do Vaticano, em particular o de Girolamo Siciolante da Sermoneta que, de tão explicitamente provocante e libidinoso, poderia figurar na capa de uma enciclopédia das culturas LGBT. Sem contar o São Sebastião da Basílica de São Pedro de Roma, um mosaico mais prosaico, que tem a sua capela dedicada, em entrando à direita, imediatamente após a Pietà de Miguel Ângelo. (É também, hoje em dia, o túmulo de João Paulo II.)

O mito de são Sebastião é um código velado muito apreciado, conscientemente ou não, pelos homens do Vaticano. Pô-lo a nu, é revelar muitas coisas, apesar das múltiplas leituras que proporciona. Podemos fazer dele uma figura efebófila ou, pelo contrário, sadomasoquista; pode representar uma passividade submissa de adolescente ou, inversamente, o vigor marcial do soldado que resiste, custe o que custar. E sobretudo isto: Sebastião, atado à árvore, na sua vulnerabilidade absoluta, parece amar o seu carrasco, lançar-se sobre ele. Este «prazer na dor», carrasco e vítima enredados, encastoados num mesmo fôlego, é uma metáfora maravilhosa da homossexualidade no Vaticano. Em Sodoma, todos os dias se festeja são Sebastião.

UM DOS RAROS OPOSITORES DE FRANCISCO que aceita expressar-se publicamente é o cardeal australiano George Pell, «ministro» da Economia do papa. Quando Pell se aproxima de mim para me cumprimentar, estou sentado numa pequena sala de espera da Loggia I do palácio apostólico do Vaticano. Ele de pé, eu sentado: de súbito, tenho um gigante à minha frente. É desengonçado, a sua marcha é ligeiramente desequilibrada. Ladeado pelo seu assistente, igualmente imenso, que caminha descontraidamente e tomará notas, conscienciosamente, das nossas conversas, nunca me senti tão pequeno em toda a vida. Entre os dois, fazem pelo menos quatro metros de altura!

– Trabalho com o papa e encontro-me com ele de quinze em quinze dias – conta-me Pell, com uma grande cortesia. – Temos, sem a menor dúvida, antecedentes culturais diferentes: ele vem da Argentina e eu, da Austrália. Posso ter divergências com ele, como em relação às alterações climáticas, por exemplo, mas somos uma organização religiosa e não um partido político. Devemos estar unidos no que respeita à fé e à moral. Tirando isso, diríamos que somos livres e, como dizia Mao Zedong, que cem flores desabrochem…

George Pell responde às minhas perguntas à maneira anglo-saxónica, com profissionalismo, concisão e humor. É eficaz; conhece os seus processos e a música. Com ele, não há «off»; tudo é «on the record». A cortesia do cardeal surpreende-me, vinda dele, que os seus confrades descreveram como «brutal» e «conflituoso», mesmo assustador como um «bulldog». A sua alcunha no Vaticano: «Pell-Pot».

Falamos das finanças da santa sé; do seu trabalho como ministro; da transparência que está a tentar introduzir onde a opacidade prevaleceu durante muito tempo.

– Quando cheguei, descobri quase 1,4 mil milhões de euros que dormiam, esquecidos por todos os balanços contabilísticos! A reforma financeira é um dos raros temas que une, no Vaticano, a direita, a esquerda e o centro, tanto política como sociologicamente.

– Há uma direita e uma esquerda no Vaticano? – Inquiro, interrompendo-o.

– Penso que, aqui, somos todos uma variante de centro radical.

No sínodo, George Pell que é geralmente considerado um dos representantes da ala direita e conservadora do Vaticano, um ratzingeriano, fez parte dos cardeais críticos em relação a Francisco. Tal como eu esperava, o cardeal relativiza os seus desacordos que foram alvo de fugas de informações para a imprensa, dando provas de uma certa casuística, isto é, de uma verdadeira linguagem estereotipada:

– Não sou um opositor de Francisco. Sou um leal servidor do papa. Francisco incentiva as discussões livres e abertas e gosta de ouvir a verdade de pessoas que não pensam como ele.

Em diversas ocasiões, George Pell evoca «a autoridade moral» da Igreja que seria a sua razão de ser e o seu principal motor de influência em todo o mundo. Pensa que é necessário permanecer fiel à doutrina e à tradição: não se pode mudar a lei, mesmo que a sociedade se transforme. Por conseguinte, a linha de Francisco sobre as «periferias» e a sua empatia em relação aos homossexuais parecem-lhe vãs, se não erradas.

– É bom interessarmo-nos pelas «periferias». Mas continua a ser necessário ter uma massa crítica de crentes. Sem dúvida que é preciso ocuparmo-nos da ovelha tresmalhada, mas devemos interessar-nos também pelas outras 99 ovelhas que ficaram no rebanho. (Depois da nossa entrevista, Pell deixou Roma após ter sido interrogado pela justiça australiana na sequência de casos históricos de abuso sexual de rapazes, acusações que nega veementemente. O julgamento foi fortemente mediatizado, alimentado por milhares de páginas de depoimentos, e traduziu-se na sua condenação, no final de 2018.

O RESULTADO de cerca de dois anos de debates e de tensões em vota do sínodo tem um bonito nome: Amoris Leatitia (a alegria do amor). Esta exortação apostólica pós-sinodal tem a marca pessoal e as referências culturais de Francisco. O papa insiste no facto de nenhuma família ser realmente perfeita; é necessário prestar atenção pastoral a todas as famílias, tal como são. Estamos longe do discurso sobre a família ideal, usado pelos conservadores anticasamento.

Determinados prelados pensam, e é um raciocínio possível, que Francisco recuou nas suas ambições reformadoras e que escolheu uma espécie de status quo em relação às questões mais sensíveis. Os defensores de Francisco, em contrapartida, consideram Amoris Leatitia um importante ponto de viragem.

Segundo um dos redatores do texto, os homossexuais perderam a batalha do sínodo mas, por outro lado, conseguiram incluir, como represália, nesta exortação apostólica, três referências codificadas à homossexualidade: uma fórmula escondida sobre o «amor de amizade» (§127); uma referência à alegria pelo nascimento de são João Batista, que sabemos ter sido pintado efeminado por Caravaggio e por Leonardo da Vinci, que usou como modelo o seu amante Salai (§65); por fim, o nome de um pensador católico que eventualmente reconheceu a sua homossexualidade, Gabriel Marcel (§322)… Uma magra vitória!

Amoris Laetitia é o resultado de dois sínodos – diz-me o cardeal Baldisseri. – Se ler os capítulos 4 e 5, verá que é um texto magnífico sobre a relação amorosa e sobre o amor. O capítulo 8, o dos temas sensíveis, é, na verdade, um texto de compromisso.

A ala conservadora do Vaticano não gostou desse compromisso. Cinco cardeais, entre os quais dois «ministros» do papa, Gerhard Ludwig Müller e Raymond Burke, já tinham feito saber os seus desacordos, ainda antes do sínodo, num livro intitulado Demeurer dans la vérité du Christ (Permanecer na Verdade de Cristo) – uma desaprovação pública tão rara como ruidosa. Os cardeais George Pell, outro ministro de Francisco, e Angelo Scola, juntaram-se a eles, entrando de facto na oposição. Sem se aliar formalmente a eles, Georg Gänswein, o célebre secretário particular de Bento XVI, transmitiu uma mensagem pública sibilina, confirmando esta linha.

O mesmo grupo pega de novo na pena, uma vez concluídos os trabalhos do segundo sínodo, para mostrar publicamente o seu desacordo. A carta apelando a que se «faça luz» sobre as «dúvidas» de Amoris Leatitia é assinada por quatro cardeais: o americano Raymond Burke, o italiano Carlo Caffarra e dois alemães, Walter Brandmüller e Joachim Meisner (chamados rapidamente os quatro «dubia», dúvida em latim). A sua carta é tornada pública em setembro de 2016. O papa nem sequer se deu o trabalho de lhes responder.

Detenhamo-nos um pouco nestes quatro «dubia» (dois dos quais faleceram recentemente). Segundo inúmeras fontes da Alemanha, Suíça, Itália e Estados Unidos, eles estariam «no armário» e teriam múltiplas companhias «mundanas» e amizades especiais. O círculo próximo de um deles seria alvo de troça por parte da imprensa germanófona por ser constituído, essencialmente, por bonitos rapazes efeminados; a sua homofilia é atestada, hoje em dia, pelos jornalistas de além-Reno. Quanto a Carlo Caffarra, antigo arcebispo de Bolonha, criado cardeal por Bento XVI e fundador do Instituto João Paulo II «para os estudos sobre o casamento e da família», foi um dos opositores tão excessivos ao casamento gay, que essa obsessão acaba por denunciá-lo.

Os «dubia» são o rosto de um estilo: a humildade aparente e uma vaidade extravagante; as gargalhadas obsequiosas dos apolos e efebos que os rodeiam e os autos de fé; as «malucas» da sacristia, as «liturgy queens», os meninos de coro bem penteados com as suas riscas direitas das escolas dos jesuítas e a Inquisição; uma linguagem tortuosa e, na verdade, torturante, e posições medievais quanto à moral sexual. E, acima de tudo, quanta falta de entusiasmo em relação às pessoas do belo sexo! Quanta misoginia! Quanta alegria divina e quanta rigidez viril – ou vice-versa. «The Lady doth protest too much, methinks».

O papa, perfeitamente informado da homofilia de vários desses «dubia» e sobre os paradoxos da vida dos seus opositores, esses modelos da intransigência moral e da rigidez, está profundamente revoltado com tanta duplicidade.

É então que se torna visível a terceira vertente da batalha de Francisco contra a sua oposição: a luciferiana. Metodicamente, o papa vai castigar os seus inimigos, um cardeal após o outro: quer retirando-lhes os ministérios (Gerhard Ludwig Müller será demitido da direção da Congregação para a Doutrina da Fé, Mauro Piacenza foi transferido impiedosamente, Raymond Burke, expulso do seu lugar à frente do Tribunal Supremo); quer esvaziando as suas funções de toda a substância (Robert Sarah dá por si à frente de um ministério, uma verdadeira concha vazia, privado de todos os apoios); quer, ainda, despedindo o seu círculo próximo (os colaboradores de Sarah e Müller são afastados e substituídos por homens apoiantes de Francisco); ou, por fim, deixando os cardeais enfraquecerem-se por si próprios (as acusações de abusos sexuais, no caso de George Pell, as suspeitas de má gestão desses assuntos, no de Gerhard Müller e Joachim Meisner e a batalha interna na Ordem de Malta, envolvendo Raymond Burke). Quem disse que o papa Francisco era misericordioso?

NA MANHÃ em que me encontro com o cardeal Gerhard Müller, na sua residência privada da Piazza de la città Leonina, perto do Vaticano, tenho a impressão de que o acordei. Cantou matinas durante toda a noite? O todo-poderoso prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e inimigo n.º 1 do papa Francisco, abre-me pessoalmente a porta… e está em trajes menores. É o meu primeiro cardeal de pijama!

À minha frente, vejo um homem grande envergando uma t-shirt amarrotada, calças de fato de treino largas, compridas e elásticas, da marca Vittorio Rossi, e pantufas. Com um certo constrangimento, balbucio:

– Tínhamos marcado um encontro para as 9h00?

– Sim, precisamente. Mas não tencionava tirar fotografias, pois não? – Pergunta-me o cardeal-prefeito emérito, que parece dar-se conta, nesse momento, da incongruência da sua vestimenta.

– Não, não, fotografias, não.

– Então, posso ficar assim [vestido] – retruca Müller.

Instalamo-nos no seu imenso escritório, onde uma estante impressionante cobre cada parede. A conversa é apaixonante e Müller parece-me mais complexo do que os seus contraditores querem dar a entender.

Intelectual próximo de Bento XVI, conhece perfeitamente, tal como o papa emérito, a obra de Hans Urs von Balthasar e de Jacques Maritain e falamos longamente sobre eles. Müller mostra-me os seus livros, na sua estante impecavelmente arrumada, para me provar que os leu.

O apartamento é clássico e de uma fealdade pouco católica. É, aliás, uma característica comum às dezenas de apartamentos de cardeais que visitei: esse meio luxo mundano, essa mistura de géneros que não combinam, mais o ersatz e o superficial do que a profundidade. É, numa palavra, aquilo a que chamaria o «middlebrow»! É o termo utilizado, nos Estados Unidos, para aquilo que não é elitista nem popular: é a cultura do mediano, do que fica entre os dois; a cultura que fica precisamente no centro. Um grande relógio opulento e falsamente art déco, que deixou de funcionar; uma cómoda barroca demasiado ornamentada; uma mesa pretensiosa – e tudo isso misturado. É a cultura dos «cadernos Moleskine», falsamente modelados nos de Bruce Chatwin e Hemingway, lendas apócrifas. Esse estilo sem estilo, «bland» e apagado, é comum a Müller, Burke, Ruini, Dziwsz, Stafford, Farina, Etchegaray, Herranz, Marino, Re, Sandoval e a tantos cardeais à procura de «self-aggrandizement» (autoengrandecimento) que visitei.

Em sua defesa, quando o encontro, Müller acaba de ser «amesquinhado». O papa despediu-o impiedosamente da Congregação para a Doutrina da Fé, de que era «prefeito» desde Bento XVI.

– Que opinião tenho do papa Francisco? Digamos que Francisco tem a sua própria massa, tem verdadeiramente um estilo próprio. Mas compreenderá que a questão dos «pró» ou dos «anti» Francisco não faz qualquer sentido para mim. A túnica vermelha que usamos é o sinal de que estamos dispostos a dar o nosso sangue por Cristo e servir Cristo significa, para todos os cardeais, servir o vigário de Cristo. Mas a Igreja não é uma comunidade de robots e a liberdade dos filhos de Deus permite-nos ter opiniões diferentes, ideias diferentes, sentimentos diferentes dos do papa. Mas repito, e insisto, isso não quer dizer que não queiramos ser profundamente leais ao papa. Somos, porque queremos ser profundamente leais ao Senhor.

Com Raymond Burke, Robert Sarah, Angelo Banasco ou Mauro Piacenza, o leal Müller juntou-se, no entanto, à longa lista dos Judas, multiplicando os seus ataques dissimulados e biliosos a Francisco. Com a sua natureza de brigão, o cardeal crítico quis dar lições ao santo padre. Hipocritamente, contradisse de uma forma violenta a sua linha sobre o sínodo. Deu entrevistas sobre a moral que contradiziam Francisco e acumulou os pontos de tensão e, em breve, de rutura. Dizer que caiu em desgraça significaria que um dia esteve em graça. O seu galero cardinalício já estava a prémio há vários meses e Francisco desbarretou-o sem hesitar durante uma conversa que, segundo Müller, «durou um minuto». E ei-lo, à minha frente, em ceroulas!

De súbito, uma freira, cheia de devoção e que acabou de bater à porta delicadamente, entra com o chá do cardeal, que preparou com o cuidado clerical devido a Sua Eminência, mesmo caída. Parecendo incomodado, precisamente no meio da sua conversa de fala-barato, o cardeal rabugento mal a olha enquanto pousa a chávena e, sem um agradecimento, manda-a a sair brutalmente. A religiosa sem idade, que entrara toda diligente, sai encolerizada. Até mesmo uma criada de uma família burguesa seria melhor tratada! Tive pena dela e, mais tarde, no momento de me ir embora, senti vontade de a ir procurar para me desculpar do sucedido.

Uma contradição a mais ou a menos é igual para o cardeal Müller. Na Baviera, onde foi bispo, deixou a recordação de um prelado «ambíguo» e talvez mesmo «esquizofrénico» (para utilizar uma palavra frequente do vocabulário do papa), segundo mais de uma dezena de testemunhos que recolhi em Munique e Ratisbona. Padres e jornalistas descrevem os seus convívios mundanos, no âmbito da «Regensburger Netzwerk («a rede de Ratisbona»). Parecia sob a influência de Joseph Ratzinger e Georg Gänswein.

– Quando Müller era bispo de Ratisbona, aqui na Baviera, a sua personalidade foi mal compreendida. A sua relação com o célebre cardeal Karl Lehmann, um liberal e progressista, pareceu particularmente complicada no que se refere à questão gay: trocaram cartas muito duras, muita amargas, como que às avessas, sendo Lehmann bastante gay-friendly e heterossexual, Müller muito antigay. Ao mesmo tempo, Müller era frequentador assíduo das receções da princesa Gloria von Thurn und Taxis, no palácio de St. Emmeran –, conta-me Matthias Drobinski, o jornalista do Süddeutsche Zeitung que cobre, há vinte e cinco anos, a igreja alemã.

O PALÁCIO DE RATISBONA integra, com audácia e um certo êxito, um claustro românico e gótico, uma abadia beneditina, uma ala barroca e salões de baile rococó e neorrococó. Jogando com os estilos e as épocas, o palácio é conhecido inclusive por ter sido o da irmã da imperatriz Sissi! A princesa Gloria von Thurn und Taxis, viúva de um rico industrial, cuja família fez fortuna por ter o monopólio do serviço postal durante o sacro-império germânico, antes de ser expropriada por Napoleão, reside nele. O seu antro é o ponto de referência da faixa mais conservadora da igreja católica alemã, o que talvez tenha valido à princesa o seu apodo «Gloria TNT», em virtude do seu conservantismo explosivo!

Acabada de chegar das suas aulas de ténis quotidianas, a castelã, polo de marca, cor-de-rosa a condizer com os seus ousados óculos ovalados, relógio de desporto Rolex e anéis cheios de cruzes, concede-me uma audiência. Que mulher! Que circo!

Tomamos um copo no «Café Antoinette» – em homenagem à Rainha de França decapitada – e Gloria von Thurn und Taxis, cuja rigidez e atitude de camionista me haviam sido descritos em pormenor, revela-se estranhamente gentil e amistosa comigo. Exprime-se num francês perfeito.

Gloria TNT leva o tempo necessário para me contar a sua vida de «queen» – a extensão do seu património multimilionário com as quinhentas divisões do seu palácio para manter, sem falar nos 40 000 m2 de telhados: «é muito caro», lamenta-se, arregalando os olhos; um empenhamento político ao lado da direita mais reacionária; o seu afeto pelos sacerdotes, entre os quais o seu «querido amigo» o cardeal Müller; a sua vida agitada, que divide entre a Alemanha, Nova Iorque e Roma (onde seria coarrendatária, num pouso no centro da cidade, com outra princesa, Alessandra Borghese, o que suscita boatos loucos sobre a sua inclinação monárquica). Gloria TNT insiste sobretudo no seu catolicismo desenfreado:

– A minha fé é católica. Tenho uma capela privada pessoal onde os meus amigos padres podem celebrar a missa quando querem. Adoro quando utilizam as capelas. Tenho precisamente um capelão, um padre ao domicílio, há mais de um ano. Estava reformado, mandei-o vir para cá; agora, vive connosco num apartamento do palácio; é o meu capelão particular – diz-me Gloria TNT.

O padre em questão chama-se Mons. Wilhelm Imkamp. Embora tenha o título de «monsenhor», não é bispo.

– Imkamp é um padre ultraconservador muito bem identificado. Queria tornar-se bispo, mas foi bloqueado por razões pessoais. É muito próximo da ala conservadora radical da Igreja alemã, em especial do cardeal Müller e de Georg Gänswein – diz-me, em Munique, o jornalista do Süddeutsche Zeitung, Matthias Drobinski.

Esse turbulento Imkamp é, além disso, um estranho prelado: parece bem inserido no Vaticano onde foi «consultor» de diversas congregações; também foi assistente de um dos cardeais alemães mais delicadamente homófobos, Walter Brandmüller. Porque é que essas ligações ativas e as suas amizades ratzingerianas não lhe permitiram tornar-se bispo sob Bento XVI? Existe aí um mistério que mereceria ser explicado.

David Berger, ex-seminarista e teólogo que se tornou militante gay, explica-me, durante uma conversa em Berlim:

– Todas as manhãs, Mons. Imkamp celebra uma missa em latim segundo o rito antigo, na capela de Gloria von Thurn und Taxis. Ele é um conservador próximo de Georg Gänswein; ela, uma madonna dos gays.

A aristocrata decadente Gloria TNT não tem falta de meios, nem de paradoxos. Descreve-me a sua coleção de arte contemporânea que inclui obras de Jeff Koons, Jean-Michel Basquiat, Keith Haring ou inclusive do fotógrafo Robert Mapplethorpe, de quem possui um magnífico e célebre retrato que ele lhe tirou. Se Koons é vivo, dois dos seus artistas, Haring e Mapplethorpe, eram homossexuais e morreram de SIDA; Basquiat era toxicodependente; Mapplethorpe foi inclusive vaiado pela extrema-direita católica americana por causa da sua obra considerada homoerótica e sadomasoquista. Esquizofrenia?

A princesa resumiu as suas contradições sobre a homossexualidade quando de um debate do partido conservador bávaro (CSU), na presença de Mons. Wilhelm Imkamp: «Toda a gente pode fazer o que quiser no seu quarto, mas isso não deve transformar-se em programa político». Compreendemos o código: tolerância forte para os homossexuais «no armário»; tolerância zero para a visibilidade dos gays!

Um cocktail explosivo, em suma, esta Gloria TNT: rata de sacristia e membro do jet-set aristocrático-punk; católica fervorosa desvairada e integralista doidinha rodeada por um bando de gays. Gloria von Thurn und Taxis é uma cocote do mais alto coturno!

Tradicionalmente próxima dos conservadores da CSU, na Baviera, parece, nestes últimos anos, ter adotado algumas ideias do AfD, o partido da direita reacionária alemã, sem por isso se ter juntado formalmente a ele. Vimo-la marchar ao lado dos seus deputados quando das «Demo für Alle», as manifestações anticasamento gay; também declarou, numa entrevista, o seu afeto pela duquesa Beatrix von Storch, vice-presidente do AfD, ao mesmo tempo que reconhecia desacordos com o seu partido.

– Madame von Thurn und Taxis é típica da zona cinzenta entre os cristãos-sociais da CSU e a direita dura do AfD que se tocam na aversão à teoria do género, na luta contra o aborto, o casamento gay ou, ainda, na denúncia da política migratória da chanceler Angela Merkel – explica-me, em Munique, o teólogo alemão Michael Brinkschröder.

Aqui, estamos no cerne da chamada «rede de Ratisbona», constelação de que a Rainha-Sol Glória TNT é o astro iluminado em redor do qual «mil diabos dançam». Os prelados Ludwig Müller, Wilhelm Imkamp e Georg Gänswein pareceram sempre à vontade nesta capelinha friendly, onde os mordomos estão de libré, os bolos, decorados com «sessenta maçapães em forma de pénis» (diz-nos a imprensa alemã) e os padres são, naturalmente, muito homófobos. De natureza principesca, Gloria TNT assegura pessoalmente o serviço pós-venda: participa na promoção das obras antigays dos seus amigos cardeais reacionários, como Müller, ou então o guineense ultraconservador Robert Sarah, ou o alemão Joachim Meisner, com quem foi coautora de um livro de entrevistas. O homófilo Meisner foi a quintessência da hipocrisia do catolicismo: era, simultaneamente, um dos inimigos do papa (um dos quatro «dubia»); um homófobo eriçado; um bispo que ordenou com conhecimento de causa, tanto em Berlim como em Colónia, padres gays praticantes; um «closeted» fechado a sete chaves desde a puberdade tardia; e um esteta que vivia com o seu séquito efeminado e maioritariamente LGBT. Dúvida!

O PENSAMENTO DO CARDEAL MÜLLER deve ser tomado a sério? Grandes cardeais e teólogos alemães mostram-se críticos em relação aos seus escritos, aos quais falta autoridade, e ao seu pensamento, que não seria digno de confiança. Sublinham perfidamente que ele coordenou a edição das obras completas de Ratzinger, insinuando assim que essa proximidade explica o seu título de cardeal e a sua nomeação para a Congregação para a Doutrina da Fé!

Estes julgamentos severos exigem que os qualifiquemos: Müller foi criado cardeal por Francisco e não por Bento XVI. Foi padre na América Latina e é autor de livros profundos, nomeadamente sobre a teologia da libertação, o que, se não permite relativizar o seu conservantismo, mostra pelo menos a sua complexidade. Quando da nossa conversa, disse-me que era amigo de Gustavo Gutiérrez, o «pai fundador» dessa corrente religiosa, com quem, com efeito, publicou um livro de entrevistas fascinante.

Por outro lado, não há dúvidas relativamente à sua homofobia: quando o papa mostrou empatia durante uma conversa com Juan Carlos Cruz, um homossexual vítima de abusos sexuais – «O facto de ser gay não tem a menor importância. Deus fê-lo como é e ama-o assim e pouco me importa. O papa ama-o assim. Deve ser feliz como é», terá dito Francisco – o cardeal Müller proferiu de imediato declarações escandalizadas, insistindo publicamente em que «a homofobia é uma invenção» («hoax», diz).

Uma tal severidade, uma tal confiança contrastam com a inação que o cardeal Müller demonstrou nos casos de abusos sexuais de que foi informado. Sob a sua liderança, a Congregação para a Doutrina da Fé, que tem a seu cargo, no Vaticano, os processos de pedofilia, demonstrou negligência (algo que Müller nega firmemente) e pouca empatia para com as vítimas. A sua falta de apoio também contribuiu para o abandono da influente leiga irlandesa, Marie Collins, ela própria vítima de padres pedófilos, da Comissão para a Proteção de Menores, criada pelo Vaticano para lutar contra os abusos sexuais da Igreja.

Durante o sínodo da família, Müller uniu claramente a oposição ao papa Francisco, apesar de me dizer hoje, com um toque de hipocrisia, não querer «juntar confusão à confusão, amargura à amargura, ódio ao ódio». Liderou a rebelião dos «dubia», elevou a dogma a recusa de toda a comunhão às pessoas que voltaram a casar e mostrou-se radicalmente hostil à ordenação das mulheres e até dos «viri probati». Para ele, que sabe de cor todos os versículos do Antigo Testamento e das epístolas que abordam esse «Mal», as pessoas homossexuais devem ser respeitadas, mas sob condição de permanecerem castas. Finalmente, o cardeal parece opor-se firmemente à «ideologia do género», de que faz uma caricatura grosseira, sem a subtileza que revelou ao analisar a teologia da libertação.

O papa Francisco não gostou das críticas de Müller ao sínodo da família e, em especial, a Amoris Laetitia. Nos cumprimentos de Natal de 2017, apontará Müller, sem o nomear, denunciando as pessoas «que traem a [sua] confiança [e] se deixam corromper pela ambição ou pela vanglória; e quando são despedidas delicadamente, autodeclaram-se, falsamente, mártires do sistema, em vez de fazerem o seu mea culpa». Mais severo ainda, o papa denunciou os autores de «complots» e aqueles que, nesses pequenos círculos, representam «um cancro». Como verificamos, a relação entre Francisco e Müller não podia estar melhor.

De súbito, somos interrompidos por uma chamada telefónica. Sem pedir desculpa, o prelado levanta-se de um salto e atende. Rude há pouco, ei-lo, depois de ter visto o número, a fazer pose, com uma voz afetada: agora, tem maneiras. Começa a falar em alemão, com uma voz perfumada. A conversa floreada dura apenas alguns minutos, mas percebo que é de ordem pessoal. Se não tivesse à minha frente um homem que fez voto de castidade e se não ouvisse ressoar, ao longe, no aparelho, uma voz de barítono, teria imaginado uma conversa sentimental.

O cardeal volta a sentar-se a meu lado, vagamente inquieto. E de súbito, pergunta-me, com um ar inquisitivo:

– Compreende alemão?

EM ROMA, por vezes, sentimo-nos num filme de Hitchcock. No mesmo prédio onde vive Müller habita também o seu grande inimigo: o cardeal Walter Kasper. Vou frequentar bastante este casario e acabarei até por conhecer o guarda do edifício art déco sem alma, a quem confiarei recadinhos deixados para os dois cardeais rivais, ou o famoso livro branco que depositarei como presente para Müller.

Os dois alemães cruzam as espadas há muito e as suas justas teológicas são memoráveis. A partida é jogada de novo em 2014-2015: inspirador e teólogo oficioso de Francisco, Kasper viu ser-lhe confiada, pelo papa, a conferência inaugural do sínodo sobre a família e foi Müller que a demoliu!

– O papa Francisco recuou, é um facto. Não tinha escolha. Mas foi sempre muito claro. Aceitou um compromisso ao mesmo tempo que tentava manter o rumo – diz-me Kasper, durante uma entrevista em sua casa.

O cardeal alemão, envergando um fato escuro muito cuidado, fala com uma voz quente e uma infinita ternura. Ouve o seu interlocutor, medita em silêncio, antes de se lançar numa longa explicação filosófica de que tem o segredo e que me lembra as minhas longas conversas com os católicos da revista Esprit, em Paris.

E eis que, agora, Kasper avança sobre são Tomás de Aquino, que está a reler e que foi, segundo ele, traído pelos neotomistas, esses exegetas que o radicalizaram e travestiram, como os marxistas fizeram com Marx e os nietzschianos com Nietzsche. Fala-me de Hegel e de Aristóteles e, enquanto procura uma obra de Emmanuel Levinas e tenta encontrar outra de Paul Ricoeur, verifico que estou perante um verdadeiro intelectual. O seu amor pelos livros não é fingido.

Kasper, nascido na Alemanha no ano da chegada de Hitler ao poder, estudou na Universidade de Tubinga, cujo reitor é o teólogo suíço Hans Küng, e onde convive com Joseph Ratzinger. Desses anos decisivos, datam essas duas amizades essenciais, que perdurarão até hoje, apesar dos desacordos crescentes que terá com o futuro papa Bento XVI.

– Francisco está mais próximo das minhas ideias. Tenho muita estima por ele, muito afeto, apesar de na verdade o ver bastante pouco. Mas também mantive muito boas relações com Ratzinger, apesar das nossas diferenças.

Essas «diferenças» datam de 1993 e já se relacionavam com o debate sobre os divorciados que voltaram a casar – a verdadeira preocupação de Kasper, até mais do que a questão homossexual. Com dois outros bispos, e provavelmente com o encorajamento de Hans Küng, que rompeu com Ratzinger, Kasper manda ler uma carta nas igrejas da sua diocese para abrir o debate sobre a comunhão das pessoas divorciadas. Fala da misericórdia e da complexidade de cada uma das situações, um pouco como Francisco hoje em dia.

Perante este ato de dissidência suave, o cardeal Ratzinger, que então dirige a Congregação para a Doutrina da Fé, põe termo ao ímpeto dos aventureiros. Por meio de uma carta tão rígida como severa, exorta-os a voltarem às fileiras. Com este simples samizdat, Kasper passa para a oposição ao futuro Bento XVI, tal como Müller fará, no sentido inverso, em relação a Francisco.

Kasper-Müller é, por conseguinte, a linha divisória do sínodo, uma batalha que se repete em 2014-2015, depois de ter sido travada nos mesmos termos e quase com os mesmos atores, vinte e cinco anos antes, entre Kasper e Ratzinger! Por vezes, o Vaticano dá a impressão de ser um grande paquete em movimento que marca passo.

– Sou pragmático – corrige Kasper. – O caminho traçado por Francisco e a estratégia dos pequenos passos são bons. Se avançarmos demasiado depressa, como na ordenação das mulheres, ou no celibato dos padres, haverá um cismo entre os católicos e não quero isso para a minha Igreja. Relativamente aos divorciados, em contrapartida, deve poder ir-se mais longe. Há muito que defendo esta ideia. No que respeita ao reconhecimento dos casais homossexuais, é um tema mais difícil: tentei fazer avançar o debate no sínodo, mas as pessoas não ouviram. Francisco encontrou um meio termo falando das pessoas, dos indivíduos. E depois, passo a passo, faz mexer as coisas. Também rompe com uma certa misoginia: nomeia mulheres para todo o lado, para as comissões, os dicastérios, juntamente com os peritos. Avança ao seu ritmo, à sua maneira, mas tem um rumo.

Após a vitória do «same-sex marriage» na Irlanda, Walter Kasper assumiu a posição de que a Igreja deveria aceitar o veredito das urnas. Esse referendo, de maio de 2015, foi realizado entre os dois sínodos e o cardeal pensava, então, que era necessário tê-lo em conta, como disse ao diário italiano Corriere della Sera. Segundo ele, a questão do casamento, que ainda era «marginal» antes do primeiro sínodo, tornou-se «central» quando, pela primeira vez, o casamento foi aberto aos casais do mesmo sexo «por uma votação popular». E o cardeal acrescentou nessa mesma entrevista: «Um Estado democrático deve respeitar a vontade popular. Se uma maioria [dos cidadãos de um país] quer este tipo de união, é dever do Estado reconhecer tais direitos».

Debatemos todos esses temas no seu apartamento, durante as duas entrevistas que me concede. Admiro a sinceridade e probidade do cardeal. Evocamos, com uma grande liberdade de tom, a questão homossexual e Kasper mostra-se aberto, ouve, faz perguntas e sei, através de diversas fontes e também por intuição – e aquilo a que se chama o «gaydar» –, que estou a lidar com um dos poucos cardeais da cúria que não é homossexual. É a sétima regra de No Armário do Vaticano, que se verifica quase sempre: Os cardeais, os bispos e os padres mais gay-friendly, e aqueles que falam pouco da questão homossexual, são geralmente heterossexuais.

Mencionamos os nomes de alguns cardeais e Kasper, na verdade, está ao corrente da homossexualidade de vários dos seus colegas. Acontece que são também, de certa forma, os seus adversários e os mais «rígidos» da cúria romana. Temos dúvidas em relação a alguns nomes e estamos de acordo relativamente a outros. Nesta fase, a nossa conversa é de ordem privada e prometo-lhe manter confidencial o nosso joguinho de «outing». Diz-me apenas, como se tivesse acabado de fazer uma descoberta perturbadora:

– Escondem-se. Dissimulam. A chave é essa.

Agora, falamos dos «anti-Kasper» e, pela primeira vez, sinto que o cardeal se irrita. Mas, aos 85 anos, o teólogo de Francisco já não tem vontade de se bater com os hipócritas, os tortuosos. Fazendo um sinal, abandona o debate e diz-me, usando uma frase que poderíamos julgar vaidosa e presunçosa, mas que na verdade é uma constatação severa em relação aos joguinhos inúteis desses prelados desligados da realidade e, o que é pior, da sua própria realidade.

– Ganharemos – diz-me Kasper. E, quando diz esta palavra, vejo de súbito o bonito sorriso do cardeal, geralmente tão austero.

Numa mesa baixa: um exemplar do Frankfurter Allgemeine Zeitung, o jornal que lê todos os dias. Kasper fala-me de Bach e de Mozart e sinto ecoar a sua alma alemã. Na parede da sala, vejo um quadro que representa uma aldeia, sobre o qual o interrogo:

– Vê, a realidade é isto. A minha aldeia na Alemanha. Todos os anos, no verão, regresso à minha região. Lá, há campanários, igrejas. Ao mesmo tempo, hoje em dia, as pessoas já não vão muito à missa e parecem ser felizes sem Deus. A grande questão é essa. É isso que me preocupa. Como reencontrar o caminho de Deus? Tenho a impressão de que está perdido. Perdemos a batalha.