8.
O amor de amizade
NA PRIMEIRA VEZ EM QUE ME ENCONTREI com o arcebispo Jean-Louis Bruguès, no Vaticano, cometi um pecado imperdoável. É verdade que os cargos e títulos da cúria romana são confusos, por vezes: variam segundo os dicastérios (os ministérios), a hierarquia, as Ordens e, por vezes, outros critérios. Alguns devem ser chamados «Eminência» (um cardeal), outros «Excelência» (um arcebispo, um bispo), outros, finalmente, «Monsenhor» (aqueles que são mais do que padre, mas menos do que bispo). Por vezes, um prelado é um mero padre, noutros casos é um frade e noutros um bispo. E como dirigir-se aos núncios que têm o título de arcebispo? Sem falar dos «monsignori», título honorífico, que é atribuído a prelados, mas também a meros padres?
Assim, quando preparei um encontro com o cardeal Tarcisio Bertone, que foi «primeiro-ministro» de Bento XVI, a sua assistente pessoal, antecipando-se, informou-me por email de que seria assisado que me dirigisse a ele, quando o visse, usando a fórmula: «Sua Eminência Cardeal Bertone».
Para mim, esses códigos tornaram-se um código e um jogo. Para um francês, essas palavras cheiram a monarquia e aristocracia – e, no nosso país, cortámos a cabeça aos que abusavam deles! Nas minhas conversas no Vaticano, por travessura, diverti-me a aumentá-los, a multiplicá-los, meio Tartufo, meio Bouvard e Pécuchet. Também recheei com eles as minhas inúmeras cartas enviadas à santa sé, acrescentando à mão em belas letras góticas essas fórmulas loucas, a que juntava um carimbo de monograma, um número, brasões-assinatura, no final das minhas missivas – e pareceu-me que as respostas às minhas solicitações eram muito mais positivas quando usara títulos pedantes e carimbos de tinta castanha. E, todavia, nada me é mais alheio do que essas fórmulas vaidosas que pertencem a uma etiqueta de outro tempo. Se tivesse tido coragem, teria perfumado os meus telegramas!
As suas respostas eram epístolas deliciosas. Cheias de cabeçalhos, de assinaturas volumosas a tinta azul e de ternuras («Pregiatissimo Signore Martel», escreve-me Angelo Sodano), redigidas quase sempre num francês impecável, continham fórmulas obsequiosas. «Desejo-lhe um bom tempo pascal», escreve-me Mons. Battista Ricca; «Na esperança de o cumprimentar em breve in Urbe», diz Mons. Fabrice Rivet; «Garantindo-lhe que está nas minhas orações», escreve-me o arcebispo Rino Fisichella; «Com a garantia das minhas orações em Cristo», escreveu-me o cardeal Dario Castrillón Hoyos (já falecido); «Com os protestos dos meus mais elevados sentimentos em Cristo», assinou o cardeal Robert Sarah. O cardeal Óscar Maradiaga, meu amigo após duas cartas, respondeu-me sempre em espanhol: «Le deseo una devota Semana Santa y una feliz Pascua de Ressurrección, su amigo». Mais amigo ainda, o cardeal de Nápoles, Crescenzio Sepe, envia-me uma carta em que se dirige a mim com um amável «Gentile Signore», antes de se despedir com um muito cool «cordial saluti». Mons. Fabián Pedacchio, o assistente particular de Francisco, terminou assim a sua carta: «Recomendando vivamente o Papa nas suas orações, peço-lhe que aceite a garantia da minha dedicação no Senhor». Guardei dezenas de cartas deste jaez.
Felizes estes epistológrafos de outro tempo! Poucos cardeais utilizam o email em 2019; muitos ainda preferem o correio e alguns o fax. Por vezes, os seus assistentes imprimem-lhes os emails que recebem; eles respondem em papel, à mão; digitalizados de imediato e enviados ao seu destinatário!
A maior parte desses cardeais ainda vive numa comédia do poder digna do Renascimento. Ouvir-me dizer «Eminência» a um cardeal fez-me sempre rir interiormente; e gosto da simplicidade do papa Francisco que quis acabar com esses títulos pretensiosos. Porque não é estranho que simples minutadores se façam chamar «monsignore»? Que cardeais ainda levem a sério alguém que lhes diz «Eminência»? Se estivesse no lugar deles, pediria que me chamassem: Senhor. Ou antes: Angelo, Tarcisio ou Jean-Louis!
Como verificaram, tomei ademais a decisão neste livro, como bom filho da laicidade francesa, de não seguir sempre as convenções do Vaticano. Acabei de escrever «santa sé» e não «Santa Sé»; e menciono sempre o santo padre, a santa virgem, o sumo pontífice – sem maiúsculas. Nunca digo «Sua Santidade» e escrevo «o santo dos santos». Quando utilizo «Eminência», a ironia é evidente. Também não uso o título «Santo» João Paulo II, sobretudo depois de ter posto em evidência os jogos duplos do seu círculo próximo! A laicidade francesa, tão mal compreendida em Roma – e inclusive tão pouco, infelizmente, por Francisco – consiste em respeitar todas as religiões, mas não conceder a nenhuma um estatuto especial. Em contrapartida, escrevo, é claro, «o Poeta» – que, neste livro, remete sempre para Rimbaud – com maiúscula! Felizmente, em França acredita-se mais na poesia do que na religião.
Com Monsenhor Bruguès, utilizei a palavra adequada, «Excelência», mas acrescentando, logo de seguida, que estava feliz por me encontrar com um cardeal francês. Erro grave de principiante! Jean-Louis Bruguès deixou-me falar, sem me interromper, e depois, no momento da sua resposta, deixou escapar, entre duas afirmações secundárias, como um ar anódino e falsamente modesto, como se o seu título não tivesse qualquer importância:
– Aliás, não sou cardeal. Não é automático. Sou apenas arcebispo – disse-me Bruguès, interiormente pesaroso, com um belo sotaque do sudoeste de França que o tornou imediatamente simpático a meus olhos.
Viera entrevistar Bruguès, nessa primeira vez, para uma emissão de rádio, e prometi-lhe apagar essa frase na gravação. Posteriormente, revimo-nos com frequência para conversar e trocar opiniões e nunca mais cometi o erro. Soube que figurara durante bastante tempo na «short list» para ser criado cardeal, considerando a sua proximidade com o papa Bento XVI, para quem coordenara as passagens delicadas sobre a homossexualidade no Novo Catecismo da Igreja Católica. Mas o papa resignou e o seu sucessor, Francisco, nunca teria perdoado ao arcebispo Bruguès por ter, na época em que este último era secretário-geral da Congregação para a Educação Católica, esgrimido contra ele para a nomeação do seu amigo para reitor da Universidade de Buenos Aires. Por conseguinte, a púrpura passou-lhe por debaixo do nariz. (Em 2018, chegado ao termo do seu mandato, o papa também o não reconduziu na chefia da biblioteca e Bruguès deixou Roma.)
– O santo padre nunca esquece nada. É muito rancoroso. Se um dia o vexaram, ou apenas o magoaram, ele lembra-se durante muito tempo. Bruguès nunca será criado cardeal enquanto Bergoglio for papa – sugere-me outro arcebispo francês.
Durante muito tempo, Jean-Louis Bruguès dirigiu a célebre Biblioteca Apostólica Vaticana e os não menos célebres Arquivos Secretos. Nessa biblioteca, são conservados religiosamente os «códices» do Vaticano, livros antigos, papiros valiosíssimos, incunábulos e um exemplar em velino da Bíblia de Gutenberg.
– Somos uma das mais antigas e mais ricas bibliotecas do mundo. No total, temos aqui 54 quilómetros de livros impressos e 87 quilómetros de arquivos – diz-me Bruguès que é o homem da medida justa.
O cardeal Raffaele Farina, que entrevistei diversas vezes na sua residência no Vaticano, e que foi o antecessor de Bruguès nos Arquivos Secretos, dá-me a entender que os processos mais sensíveis, nomeadamente sobre os abusos sexuais dos padres, são guardados de preferência na secretaria de Estado: os «Arquivos Secretos» só são secretos no nome! (Como se não fosse nada, durante uma dessas conversas, Farina aproveita para apontar o dedo à comissão encarregada de lutar contra a pedofilia na santa sé e «que não faz nada».)
O padre Urien, que trabalhou durante muito tempo na secretaria de Estado onde esses dossiers sensíveis se encontram, por conseguinte, arquivados, é categórico (o seu nome foi alterado):
– Todos os relatórios sobre os escândalos financeiros do Vaticano, todos os casos de pedofilia, todos os dossiers sobre a homossexualidade são conservados na secretaria de Estado, nomeadamente tudo o que se sabe sobre Paulo VI. Se esses documentos tivessem sido tornados públicos, alguns papas, cardeais, bispos talvez fossem incomodados pela justiça. Esses arquivos não são apenas a face sombria da Igreja. São o diabo!
Durante cinco conversas, o arcebispo Bruguès mostra-se extremamente prudente e evita os assuntos ambíguos, embora os nossos diálogos tenham que ver sobretudo com a literatura – o homem é um leitor apaixonado de Proust, François Mauriac, André Gide, Jean Guitton, Henri de Montherlant, Tony Duvert, Christopher Isherwood; viajou para Valparaíso seguindo os passos de Pierre Loti, conheceu Jacques Maritain no convento dos dominicanos de Toulouse e manteve uma longa correspondência com Julien Green.
– Os arquivos recentes não estão abertos – continua Bruguès. – Fazemo-lo cronologicamente, por papado, e só o santo padre pode decidir tornar público um novo período. Atualmente, estamos a abrir os arquivos de Pio XII, isto é, os da Segunda Guerra Mundial.
Para Paulo VI, vai ser preciso esperar ainda muito tempo.
EXISTE UM SEGREDO DE PAULO VI? Os rumores sobre a sexualidade daquele que foi papa durante quinze anos, de 1963 a 1978, são inúmeros e falei neles muito livremente com vários cardeais. Uma pessoa que teve acesso aos arquivos secretos da secretaria de Estado garante-me, inclusive, que existiriam diversos dossiers sobre o assunto, mas que não são públicos e não sabemos o que contêm.
Para captarmos na sua complexidade os mistérios que rodeiam esse papa há, portanto, que ser contraintuitivo. Na ausência de provas acusatórias, é importante analisar todos os indícios ao mesmo tempo: as leituras de Paulo VI, quintessência do «código Maritain», é um deles; as suas belas amizades com o mesmo Maritain, mas também com Charles Journet ou Jean Daniélou são outros; o seu círculo próximo, espetacularmente homófilo, no Vaticano, ainda outro. E, depois, há Jean Guitton. No labirinto complexo das inclinações particulares, dos amores de amizade e das paixões deste papa letrado e francófilo, desenha-se uma única constante.
O leitor, neste estádio, já sabe bastante sobre isso. Talvez até já esteja cansado dessas confissões a conta-gotas, desses códigos encriptados para dizer coisas afinal banais. No entanto, tenho de lá voltar mais uma vez porque aqui tudo tem a sua importância e esses pormenores, como num grande jogo de pistas, levar-nos-ão em breve, após Paulo VI, ao coração do pontificado inquietante de João Paulo II e ao grande fogo de artifício ratzingeriano. Mas não queimemos etapas…
Jean Guitton (1901-1999), escritor francês católico de direita, nasceu e morreu com o século XX. Autor prolífico, foi amigo de Maritain, mas também do homossexual assumido Jean Cocteau. O seu percurso durante a segunda guerra mundial ainda está por escrever, mas apercebemo-nos de que esteve perto da colaboração e foi um incensador do marechal Pétain. A sua obra teológica é menor, tal como a sua obra filosófica, e os seus livros estão quase totalmente esquecidos hoje em dia. Só ficaram à tona, desse naufrágio literário, algumas conversas famosas com o presidente François Mitterrand e, precisamente, com o papa Paulo VI.
– Jean Guitton nunca foi tomado a sério em França. Era um teólogo para a burguesia católica. O facto de ter sido próximo de Paulo VI continua a ser, um pouco, um mistério – comenta o redator-chefe de Esprit, Jean-Louis Schlegel, durante uma conversa na sede da revista.
Um cardeal italiano completa este quadro, mas sem que saiba se fala ingenuamente ou se quer transmitir-me uma mensagem:
– A obra de Jean Guitton quase não existe em Itália. Foi um capricho de Paulo VI, uma amizade muito particular.
O mesmo ponto de vista do cardeal Poupard, que foi seu amigo durante muito tempo:
– Jean Guitton é um excelente literato, mas não verdadeiramente um pensador.
Apesar da superficialidade da sua obra, a amizade que conseguiu estabelecer com o papa baseia-se certamente numa comunhão de pontos de vista, em particular sobre questões de costumes e de moral sexual. Dois textos históricos realizam essa aproximação. O primeiro é a famosa encíclica Humanae Vitae, tornada pública em 1968: trata do casamento e da contraceção e tornou-se célebre sob o nome pouco lisonjeiro de «encíclica da pílula» porque proíbe definitivamente a sua utilização, erigindo como regra que todo o ato sexual deve tornar possível a transmissão da vida.
O segundo texto não é menos célebre: trata-se da «declaração» Persona Humana, de 29 de dezembro de 1975. Este texto decisivo propõe-se estigmatizar «a dissolução dos costumes»: prega a castidade estrita antes do casamento (sendo a moda, então, a «coabitação juvenil», a Igreja quer pôr-lhe termo), sanciona severamente a masturbação («um ato intrínseca e gravemente desordenado») e proscreve a homossexualidade. «Segundo a ordem moral objetiva, as relações homossexuais são atos destituídos da sua regra essencial e indispensável. Elas são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência triste de uma rejeição de Deus».
Textos importantes e, no entanto, em breve anacrónicos. Já na época foram recebidos severamente pela comunidade científica, cujas descobertas biológicas, médicas e psicanalíticas haviam sido totalmente ignoradas, e ainda mais pela opinião pública. A Igreja católica aparece brutalmente a contracorrente da sociedade e, a partir de então, a distância em relação à vida real dos fiéis já não deixará de aumentar. Essas regras arcaicas nunca serão compreendidas pela maioria dos católicos: serão ignoradas ou troçadas massivamente pelos novos casais e pelos jovens, soberbamente rejeitadas pela grande maioria dos crentes. Falou-se mesmo, a seu respeito, de um «cisma silencioso», de que a queda das vocações e a derrocada da prática católica seriam a consequência.
– O erro não foi ter tido uma palavra sobre a moral sexual, que era desejável e continua a ser desejada por uma maioria de cristãos. A humanização da sexualidade, para retomar uma expressão de Bento XVI, é uma temática sobre a qual a Igreja devia expressar-se. O erro: ao colocar a fasquia demasiado alta, se posso dizê-lo, ficando desligada e inaudível, a Igreja pôs-se a si mesma fora de jogo nos debates sobre a moral sexual. Uma posição dura sobre o aborto teria sido melhor compreendida, por exemplo, se tivesse sido acompanhada por uma posição flexível quanto à contraceção. Ao pregar a castidade para os jovens, os casais divorciados ou os homossexuais, a Igreja deixou de falar aos seus – lamenta um cardeal entrevistado em Roma.
Sabemos, hoje em dia, através das testemunhas e dos documentos dos arquivos, que a proibição da pílula, e talvez as outras condenações morais sobre a masturbação, a homossexualidade e o celibato dos padres, foram longamente debatidas. Segundo os historiadores, a linha dura era minoritária, de facto, mas Paulo VI tomou a sua decisão sozinho, ex cathedra. Fê-lo, juntando-se à ala conservadora incarnada pelo velho cardeal Ottaviani e por um recém-chegado: o cardeal Wojtyla, futuro papa João Paulo II, que desempenhou um papel tardio, mas decisivo, nesse espetacular endurecimento da moral sexual da Igreja. Jean Guitton, adepto militante da castidade heterossexual, também defendeu a manutenção do celibato dos padres.
Inúmeros teólogos e peritos com que me encontrei censuram ao papa Paulo VI, cujas ideias eram tão pouco heterodoxas, o ter «cavalgado uma linha dura» por más razões, estratégicas ou pessoais. Fizeram-me notar que o celibato é um valor que foi historicamente defendido, na Igreja, pelas suas componentes homófilas e homossexuais. Segundo um desses teólogos: «Raros são os padres que valorizam a abstinência heterossexual; trata-se essencialmente de uma ideia homossexual ou, pelo menos, de uma pessoa que tem imensas interrogações quanto à sua própria sexualidade». O doce segredo de Paulo VI revela-se à vista de todos através da escolha do celibato dos padres? Muitos pensam isso hoje em dia.
Uma tal prioridade, desajustada em relação à época, informa-nos sobre o estado de espírito do Vaticano e convida-nos também a interrogarmo-nos sobre uma constatação quase-sociológica, estabelecida desde a Idade Média (a acreditarmos no historiador John Boswell) e que é aqui uma nova regra de No Armário do Vaticano – a décima: Os padres e teólogos homossexuais têm uma propensão muito maior para impor o celibato dos padres do que os seus correligionários heterossexuais. São obstinados e muito decididos a fazer respeitar esta palavra de ordem de castidade, todavia intrinsecamente contranatura.
Os defensores mais fervorosos do voto de castidade são, portanto, naturalmente os mais suspeitos. E é aqui que o diálogo entre Paulo VI e Jean Guitton atinge todo o seu valor, uma verdadeira comédia de época.
O tema da castidade era uma preocupação recorrente nos escritores homossexuais que referimos, de François Mauriac a Julien Green, para não falar em Jacques Maritain, mas atinge um nível delirante em Guitton.
Oriundo de uma família burguesa católica onde «se guardam as distâncias», Jean Guitton nunca exibiu a sua vida privada na praça pública, ao ponto de essa vida ter ficado misteriosa durante muito tempo. Este asceta puritano não mostrava as suas emoções e não falava, apesar de ser leigo, das suas experiências amorosas. As testemunhas que interroguei confirmam que Jean Guitton se interessou pouco pelas mulheres. Considerava-as «decorativas» ou «ornamentais», como dizem aquelas personagens misóginas de O Retrato de Dorian Gray.
Casou-se, no entanto, já idoso, com Marie-Louise Bonnet. Na sua autobiografia, Un Siècle, une vie, dedica, à sua esposa, um capítulo que traduz, também aqui, uma forte misoginia: «Andara à procura de um anjo para cuidar da casa, encarregar-se dos pós. O anjo apresentou-se sob a forma de Marie-Louise, que era professora de história de arte e ciência doméstica no liceu de Montpellier». Não tiveram filhos e não se sabe se a relação foi sequer consumada. Viveram «como irmão e irmã», segundo a expressão que lhe é atribuída e, quando a sua mulher desaparece precocemente, Guitton continua celibatário.
Uma singularidade que não escapou a Florence Delay. A romancista, eleita para o «cadeirão» de Guitton na Académie française, deve, como manda a tradição, fazer o seu «elogio» no dia da sua entrada sob a cúpula. Uma coisa pouco habitual: Florence Delay, ao fazer a apologia do falecido, multiplica as alusões à sua misoginia lendária: «Que teria pensado ele [de] uma mulher [lhe suceder], ele que nos considerava inacabadas!». Também não leva mais a sério o seu casamento tardio: «Alguns espantam-se ou divertem-se por M. Guitton, aparentemente votado à castidade do monge ou, mais filosoficamente, ao celibato kantiano, ter escrito um ensaio sobre o amor humano – ainda antes do seu afetuoso casamento de outono com Marie-Louise Bonnet. É que o amor humano engloba aquele que vai do discípulo ao mestre e do mestre ao discípulo». Ah! Em que termos galantes são ditas essas coisas!
Se a nova académica tivesse sido mais perversa, ou mais irónica, podia ter feito uma alusão discreta a um comentário célebre do sexólogo Alfred Kinsey, um contemporâneo de Guitton. O investigador, e autor do famoso Relatório Kinsey sobre a sexualidade dos Americanos, sublinhou pela primeira vez, de uma forma científica, a forte proporção de pessoas homossexuais na população geral. Tão espalhada, a homossexualidade já não era, portanto, uma anomalia, uma doença ou uma perversão. E Kinsey acrescentou, trocista, que as únicas verdadeiras perversões que continuavam a existir eram três: a abstinência, o celibato e o casamento tardio! Guitton seria, portanto, três vezes perverso!
Embora não gostasse nada das mulheres, e nunca falasse do belo sexo, invisível aos seus olhos, Guitton «amou de amizade» bastantes homens, a começar pelo cardeal Poupard, com quem manteve uma longa correspondência (algo de que mais de duzentas cartas manuscritas, como disse, ainda inéditas, talvez possam dar testemunho um dia). As suas paixões masculinas também foram dirigidas aos seus alunos: e, nomeadamente, a um dos seus jovens alunos, um tal Louis Althusser, «tão louro e tão belo que poderia ter feito dele seu apóstolo» (Florence Delay, também aqui, ousa tudo!).
A relação de Jean Guitton com o papa João XXIII, que conheceu sob o nome de Roncalli quando este era núncio em Paris, parece, também, atípica e o «amor de amizade» pode ter desempenhado o seu papel nela.
Desta ordem foi também a relação estabelecida precocemente com Giovanni Battista Montini, o futuro papa Paulo VI. Essa proximidade suscitou muitas incompreensões e rumores. Um teólogo tão influente como o padre Daniélou não hesitou em dizer que «o papa [Paulo VI] cometeu [uma] imprudência [ao meter] Guitton no concílio». Outros troçam do santo padre por se ter «apaixonado por este escritor de segunda ordem, insignificância literária». Afinal, havia uma piada recorrente no Vaticano, a seu respeito, conta-me um dos antigos diretores da Rádio Vaticano: «Não devemos classificar Guitton entre os leigos do conclave porque não tem filhos…»
Quando lemos os exaltados Dialogues avec Paul VI (Diálogos com Paulo VI), o livro de conversas reais ou imaginadas de Jean Guitton com o papa (prefaciado pelo cardeal Paul Poupard), ficamos igualmente surpreendendo com a estranheza do diálogo entre o santo padre e o leigo sobre a abstinência e sobre aquilo a que chamam «o amor mais» entre Jesus e Pedro, que «oculta uma exigência, que dá medo».
Hoje em dia, conhecemos bem esta linguagem. É a do primeiro Gide e do último Mauriac, a de Julien Green também, a de Henri de Montherlant e, por fim, a de Maritain. É a linguagem da culpa e da esperança na «civilização do amor» (para retomar a famosa expressão de Paulo VI). É a linguagem de Platão, que precisamente Paulo VI acaba de tornar novamente respeitável, abolindo a colocação no Index, onde estivera inserido como Montaigne, Maquiavel, Voltaire, André Gide e tantos outros.
Uma vez mais, não forcemos a nota. É possível que Jean Guitton tenha vivido esses debates no «modo Maritain», na inocência e ingenuidade, sem se dar conta da sua quota provável de inclinações e da sua sublimação gay. Aliás, Guitton afirmou não compreender nada da homossexualidade e esse poderia ser, paradoxalmente, o sinal de uma orientação afetiva homófila, aqui realmente inconsciente.
Para além de Marie-Louise Bonnet, a única mulher que encontramos no círculo próximo de Jean Guitton é a «Marechala» de Lattre de Tassigny, a viúva do grande chefe militar francês em relação ao qual um rumor persistente, no seio do exército em particular, sugere que teria sido bissexual (o escritor Daniel Guérin afirmou-o no seu livro Homossexualité et révolution e o editor Jean-Luc Barré, que publicou a obra do Marechal de Lattre de Tassigny, também pensa desta forma).
Entre a morte do marechal de França, em 1952, e o seu próprio desaparecimento em 2003, aos 96 anos, a «Marechala» viveu rodeada por um bando de homossexuais, no seu salão parisiense. Jean Guitton, travesso e sempre alegre, segundo uma testemunha, era um fiel do local: estava «sempre bem acompanhado por belas pessoas do sexo forte e benjamins efeminados». Outra testemunha confirma que Guitton esteve sempre «rodeado de efebos e rapazinhos de passe».
Eis um homem leigo que vive como um padre, faz a escolha de não ter filhos, casa tardiamente e alimenta, durante toda a vida, intensas amizades homófilas estando rodeado por jovens desejados. Foi um homossexual «reprimido»? É provável e nada, até hoje, prova o contrário. Todavia, temos de encontrar aqui uma outra palavra para definir este tipo de relação. Ora, Guitton propõe-nos precisamente uma, por imperfeita que seja: a «camaradagem». Oiçamos aqui, através das suas próprias palavras, no seu livro Le Christ de ma vie, onde dialoga com o padre Joseph Doré, futuro arcebispo de Estrasburgo:
– Há algo que é superior ao amor do homem pela mulher, é a camaradagem. O amor de David por Jónatas, de Aquiles por Pátroclo… Um jesuíta pode ter por outro jesuíta um amor de camarada bem superior ao amor que esse homem sentiria se fosse casado… Há na camaradagem… e amiúde é mal interpretado, por causa da homossexualidade… algo perfeitamente único, extraordinário.
Magnífica confissão, toda ela em jogo de espelhos, onde a referência a David e Jónatas é escolhida deliberadamente por um homem que não pode ignorar a carga homoerótica desse código explicitamente gay (a principal associação católica homossexual já tem esse nome, em França).
Jean Guitton, tal como Jacques Maritain, procura inventar uma linguagem para apreender a complexidade masculina sem a reduzir ao sexo. Estamos no âmago do chamado – a expressão foi mais duradoura do que a medíocre «camaradagem» de Guitton – «amor de amizade».
O conceito é antigo. É importante, durante um breve instante, relatar a sua génese por se encontrar, de tal modo, no cerne do nosso tema. A ideia de «amor de amizade» tem a sua raiz no pensamento grego da antiguidade, em Sócrates e Platão, sistematizado depois por Aristóteles. Através de Cícero e santo Agostinho, atravessa a antiguidade tardia até à Idade Média. Encontramos a sua ideia, se não a letra, em santo Elredo de Rievaulx, um monge cisterciense do século XII, que se tornou o primeiro «Santo LGBT» (porque nunca escondeu os seus amores). Um século depois, numa época em que a noção de «homossexualidade» não existe (a palavra só será inventada, sabe-se, no final do século XIX), a Idade Média reapropria-se deste conceito de «amor de amizade». Tomás de Aquino distingue o «amor de concupiscência» (amor concupiscentiae) do «amor de amizade» (amor amicitiae); o primeiro procuraria o outro para o seu bem pessoal e egoísta; o segundo privilegiaria, pelo contrário, o bem do amigo, amado como um outro eu. Diríamos hoje em dia, embora imperfeitamente: «amor platónico».
A ideia de «amor de amizade» foi utilizada mais tarde para definir a relação entre Shakespeare e o jovem batizado «Fair Youth» nos Sonnets, Leonardo da Vinci e o seu jovem aluno Salai ou ainda Miguel Ângelo e o jovem Tommaso dei Cavalieri. Amor? Amizade? Os especialistas pensam hoje em dia que, nesses casos precisos, se tratava provavelmente de homossexualidade. Em contrapartida, que dizer dos escritores Montaigne e La Boétie, para os quais a expressão «amor de amizade» também foi utilizada? Não desnaturemos aqui uma relação que talvez nunca tenha sido sexual e que uma célebre frase de Montaigne resume talvez melhor, porque foge à explicação racional: «Porque era ele, porque era eu».
A expressão «amor de amizade» também foi utilizada para descrever a relação entre o padre Henri de Lacordaire, um dos restauradores da Ordem dos Dominicanos em França, e o seu «amigo» Charles de Montalembert. Durante muito tempo, a Igreja cobriu o rosto perante este tema insistindo nessa «amizade», que sabemos hoje em dia que era homossexual (a inestimável correspondência Lacordaire-Montalembert, publicada recentemente, revela não só um diálogo exemplar sobre o catolicismo liberal francês, mas também a ligação explícita entre os dois homens).
O conceito de «amor de amizade» cobre, por conseguinte, situações infinitamente variadas e foi utilizado a torto e a direito, segundo as épocas, para uma longa sequência de relações que vão da amizade viril pura à homossexualidade propriamente dita. Segundo os especialistas do assunto, aliás bastante numerosos no Vaticano, este conceito apenas deveria aplicar-se, no entanto, aos casos de homofilias castas. Não se trataria de um sentimento equívoco, que tenderia a manter a confusão entre o amor e a amizade, mas de um amor autêntico e casto, relação de dois homens em toda a sua inocência. O seu êxito nos meios homófilos católicos do século XX explica-se pelo facto de pôr a tónica nas virtudes do ser amado, em vez de num desejo carnal, cuidadosamente negado; permite não sexualizar a afetividade. Finalmente, os cardeais mais conservadores – e mais homófobos –, como o americano Raymond Burke, o alemão Joachim Meisner, o italiano Carlo Caffarra ou o guineense Robert Sarah, que fizeram eles próprios voto de castidade, insistem firmemente em que os homossexuais se limitem a relações de «amor de amizade», isto é, à castidade, para evitarem estar em pecado e ir para o inferno. Assim, fecham o circuito.
DE JACQUES MARITAIN A JEAN GUITTON, este mundo dos «amores-amizades» constitui uma influência subterrânea do concílio Vaticano II.
Jacques Maritain não participou pessoalmente no concílio, mas teve uma influência importante neste em virtude da sua amizade com Paulo VI. Foi também esse o caso de outros teólogos influentes, como os padres Yves Congar, Charles Journet, Henri de Lubac ou Jean Daniélou. Este último é o caso mais esclarecedor: o jesuíta francês, teólogo de renome, é chamado como perito ao concílio Vaticano II por João XXIII, antes de ser criado cardeal por Paulo VI. Amigo de Jean Guitton (coassinaram um livro), Daniélou entrou para a Académie française graças a ele. Bastante progressista, foi um dos amigos próximos de Paulo VI.
Glosou-se muito a sua morte tão súbita como extraordinária, a 20 de maio de 1974, nos braços de «Mimi» Santoni, uma prostituta da rue Dulong, em Paris. A causa da morte seria provavelmente um enfarte durante o orgasmo. Uma versão desmente-o, claro, através dos jesuítas que, perante o escândalo suscitado na época pelo caso, propuseram a sua própria versão dos factos, transmitida de imediato por Le Figaro: o cardeal teria ido levar dinheiro à prostituta para a ajudar e teria morrido «na epéctase do apóstolo perante o Deus vivo».
Uma versão que me é confirmada, hoje em dia, pelo cardeal italiano Giovanni Battista Re, que foi «ministro» do Interior de João Paulo II:
– Jean Daniélou, líamo-lo muito. Gostávamos muito dele. A sua morte? Penso que quis salvar a alma da prostituta, foi isso. Para a converter, talvez. Na minha opinião, morreu em apostolado.
O cardeal Paul Poupard, amigo de Daniélou (assinaram um livro juntos) confirma-me também, erguendo as mãos ao céu, a generosidade do cardeal, tão humilde de coração, um homem excelente, que veio redimir os pecados da prostituta. Talvez mesmo tentar tirar, oh, que homem galante, do meretrício essa rapariga de má vida.
Para além das risadas que essas explicações suscitaram na época – Daniélou estava completamente despido quando da chegada dos bombeiros – o essencial, para nós, está alhures. Se Daniélou era, segundo tudo indica, um heterossexual praticante que, evidentemente, não fazia parte de Sodoma, o seu irmão, em contrapartida, foi claramente homossexual. Alain é um hinduísta reconhecido, especialista no erotismo divinizado da Índia fruitiva, de Xiva e do ioga. Também foi amigo de François Mauriac e do coreógrafo Maurice Béjart. A sua homossexualidade, conhecida desde há muito, foi confirmada recentemente pela sua autobiografia e pela publicação dos Carnets spirituels do seu irmão Jean. Sabe-se que Alain viveu durante muito tempo com o fotógrafo suíço Raymond Burnier.
A relação entre os dois irmãos Daniélou é interessante porque posso afirmar hoje que Jean esteve solidário com a escolha de vida de Alain e o apoiou de uma forma duradoura na sua homossexualidade. Quis tomar a seu cargo o peso dos «pecados» de Alain e preocupar-se com a sua alma.
O cardeal Jean Daniélou foi mais longe. A partir de 1943, começou a celebrar todos os meses uma missa para os homossexuais. Este facto está hoje em dia bem estabelecido (pela autobiografia de Alan e por uma biografia pormenorizada consagrada aos dois irmãos). Parece que essa missa, que reunia também o célebre especialista do islão, Louis Massignon, um cristão que também era homossexual, se perpetuou durante vários anos.
O ponto fundamental, aqui, não é tanto, por conseguinte, a morte de Jean Daniélou nos braços de uma prostituta, mas sim a organização, por um cardeal destacado, um teólogo de renome, de missas regulares destinadas à «salvação» dos homossexuais.
Paulo VI sabia-o? É possível, mas não certo. De qualquer modo, este círculo próximo amplamente homófilo, ou pró-gay, participa na história do seu pontificado – quintessência do «código Maritain».
«QUEM QUER QUE CONTEMPLE esta sequência pictórica pergunta-se que relação pode ter connosco esse povo de figuras vigorosas…» Quando do quinto centenário do nascimento de Miguel Ângelo, foi prestada uma espantosa homenagem gay-friendly, a 29 de fevereiro de 1976, pelo papa Paulo VI ao escultor italiano, na Basílica de São Pedro, em Roma. Entre grande pompa, o santo padre canta a memória do «incomparável artista» sob a majestosa cúpula que ele desenhou, mesmo ao lado da sublime Pietà, que esse «rapaz jovem que ainda não tem vinte anos» fez sair do mármore frio com a maior «ternura».
A dois passos, encontram-se a capela Sistina e a sua abóbada, pintada a fresco com a sua multidão viril, cujos anjos são gabados por Paulo VI – mas não os Ignudi, esses robustos efebos desnuados de um insolente esplendor físico, aqui voluntariamente esquecidos. Também são citados no discurso do papa «o mundo das Sibilas» e dos «Pontífices»; mas não é feita qualquer menção ao Cristo nu de Miguel Ângelo, nem aos santos vestidos à pai Adão ou ao «emaranhado de nus» do Juízo Final. Por meio desse silêncio deliberado, o papa censura de novo essas carnações rosadas que um dos seus pudicos antecessores castrara, outrora, mandando cobrir com um véu as partes genitais desses homens.
Paulo VI, surpreendido agora com a sua própria audácia, arrebata-se, comovido até às lágrimas pelos corpos emaranhados e o jogo dos músculos. E «que olhar!», verifica o papa. O do «jovem atleta que é o David florentino» (completamente nu e com belos membros) e a última Pietà, chamada Rondanini, «cheia de soluços» e non finito. Visivelmente, Paulo VI está maravilhado com a obra desse «visionário de beleza secreta», cujo «arrebatamento estético» iguala a «perfeição helénica». E, de súbito, o santo padre põe-se inclusive a ler um soneto de Miguel Ângelo!
Com efeito, que relação «pode ter connosco esse povo de figuras vigorosas»? Nunca, sem dúvida, em toda a história do Vaticano, foi feito um elogio tão girly, neste local tão sagrado, a um artista tão descaradamente homossexual.
– Paulo VI escrevia pessoalmente, à mão, os seus discursos. Guardámos todos os manuscritos – diz-me Micol Forti, uma mulher culta e enérgica, que é uma das diretoras dos Museus do Vaticano.
A paixão de Paulo VI pela cultura insere-se, nessa época, numa estratégia política. Em Itália, nessa época, a cultura está a passar da direita para a esquerda; a prática religiosa já está em decadência entre os artistas. Embora, durante séculos, os católicos tenham dominado a cultura, os códigos, as redes da arte, esta hegemonia esfumou-se no fim da década de 1960 e início da de 1970. Paulo VI pensa, no entanto, que não é demasiado tarde e que a Igreja pode recuperar, se souber captar as musas.
As testemunhas interrogadas confirmam-me que o empenhamento artístico de Paulo VI era sincero e que se baseava numa inclinação pessoal.
– Paulo VI era um «Miguel Ângelo addict» – afirma um bispo que trabalhou com o santo padre.
A partir de 1964, o papa anuncia o projeto de uma grande coleção de arte moderna e contemporânea. Lança-se na grande batalha cultural da sua vida, para reconquistar os homens da máscara e da pluma.
– Paulo VI começou por apresentar as desculpas da Igreja por não se ter ocupado com a arte moderna. E depois, pediu aos artistas, aos intelectuais do mundo inteiro que o ajudassem a constituir uma coleção para os museus do Vaticano – continua Micol Forti.
Os cardeais e os bispos que interroguei avançam várias hipóteses para explicar esta paixão pelas artes em Paulo VI. Um deles refere a influência decisiva que teria tido sobre ele um livro de Jacques Maritain, o seu ensaio Art et scolastique, onde imagina uma filosofia da arte que deixa aos artistas toda a sua liberdade.
Outro, bom conhecedor da vida cultural no Vaticano sob Paulo VI, insiste no papel do assistente pessoal do papa, o padre italiano Pasquale Macchi, um literato apaixonado pela arte e homófilo comprovado que frequentava os artistas.
– Graças a Pasquale Macchi, Paulo VI reuniu os intelectuais e tentou fazer com que os artistas regressassem ao Vaticano. Os dois avaliaram o fosso que se cavara em relação ao mundo da arte e Macchi foi um dos artesãos dessas novas coleções – diz-me um padre do Conselho Pontifício para a Cultura.
Visitei, várias vezes, essa ala moderna dos museus do Vaticano. Sem igualar, de modo algum, as coleções antigas – como poderia fazê-lo? –, temos de reconhecer que os conservadores do Vaticano foram abertos nas suas escolhas. Vejo ali, nomeadamente, dois artistas bastante pouco ortodoxos: Salvador Dali, pintor bissexual, com um quadro intitulado Crucifixão, de conotações soldadescas masoquistas, e sobretudo Francis Bacon, um artista declaradamente gay!
A PRETENSA HOMOSSEXUALIDADE DE PAULO VI é um rumor antigo. Em Itália, é inclusive muito insistente, uma vez que tão evocada foi em artigos e até na página Wikipédia do papa, onde figura até o nome de um dos seus pretensos amantes. Quando das minhas numerosas estadas em Roma, cardeais, bispos e dezenas de monsignori que trabalhavam no Vaticano falaram-me dela. Alguns desmentiram-na.
– Posso confirmar-lhe que esse rumor existiu. E posso prová-lo. Houve libelos, desde a eleição de Montini [Paulo VI], em 1963, que denunciavam os seus costumes – confia-me o cardeal Poupard, que foi um dos colaboradores do papa.
O cardeal Battista Re garante-me, pelo seu lado:
– Trabalhei com o papa Paulo VI durante sete anos. Foi um grande papa e todos os zunzuns que ouvi são falsos.
Atribuiu-se geralmente a Paulo VI uma relação com Paolo Carlini, um ator italiano de teatro e televisão, vinte e cinco anos mais novo do que ele. Ter-se-iam conhecido quando Giovanni Montini era arcebispo de Milão.
Embora esta ligação seja referida frequentemente em Itália, alguns dos seus elementos factuais parecem anacrónicos ou errados. Assim, Paulo VI teria escolhido o seu nome de papa em homenagem a Paolo, o que é desmentido por diferentes fontes, que adiantam outras explicações mais credíveis. De igual modo, Paolo Carlini teria morrido de um ataque cardíaco «dois dias depois de Paulo VI, por causa da sua tristeza»: no entanto, embora talvez já estivesse doente, só faleceu muito mais tarde. Montini e Carlini teriam partilhado também um apartamento perto do arcebispado, o que não é confirmado por nenhuma fonte policial fiável. Finalmente, o dossier da polícia de Milão sobre a relação Montini-Carlini, referido amiúde, nunca foi tornado público e nada prova, até hoje, que exista.
Pretensamente mais bem informado do que toda a gente, o escritor francês Roger Peyrefitte, homossexual militante, dedicou-se a fazer o «outing» de Paulo VI, numa série de entrevistas: primeiro, na Gay Sunshine Press, depois na revista francesa Lui, um artigo publicado em seguida em Itália no semanário Tempo, em abril de 1976. Nessas entrevistas de repetição, e mais tarde nos seus livros, Peyrefitte declarava que «Paulo VI era homossexual» e que tinha «a prova» desse facto. O «outing» era a sua especialidade: o escritor já pusera em causa François Mauriac num artigo da revista Arts, em maio de 1964 (com razão, desta vez), bem como o rei Balduíno, o duque de Edimburgo e o xá do Irão – até se ter descoberto que algumas das suas fontes estavam erradas porque fora vítima de uma partida pregada por jornalistas!
Tive a oportunidade, quando era um jovem jornalista, de interrogar Roger Peyrefitte, um pouco antes da sua morte, sobre o rumor da homossexualidade de Paulo VI. Raciocinando, o velho escritor não me pareceu muito bem informado, mas sim, na verdade, apenas excitado pelo odor do escândalo. Em todo o caso, nunca apresentou a menor prova da sua «cacha». De facto, parece que ele quis atacar Paulo VI após a declaração Persona Humana, que era hostil aos homossexuais. De qualquer modo, o escritor medíocre e venenoso, próximo da extrema-direita e voluntariamente polemista, tornara-se, no final da sua vida, um especialista das falsas informações, e mesmo dos boatos homófobos e, por vezes, até antissemita. O crítico Angelo Rinaldi comentou nestes termos a publicação dos seus Propos secrets: «Ontem recenseador dos judeus e dos francomações – um trabalho muito útil para as futuras proscrições –, Roger Peyrefitte torna-se hoje o auxiliar da brigada dos costumes num livro atrativo como um relatório policial… Quanto a “fazer progredir uma causa maldita”, há que ter, pelo menos, inconsciência para o afirmar… Os “hétero-chuis” teriam de inventar, se não existisse, este colecionador de mexericos obsoletos, septuagenário com caracolinhos cujas passagens pelo ecrã espalham a hilaridade no seio das famílias e reforçam os preconceitos».
O ponto interessante foi, sem a menor dúvida, a reação pública de Paulo VI. Segundo várias pessoas interrogadas (nomeadamente cardeais que trabalharam com ele), os artigos sobre a sua pretensa homossexualidade teriam afetado muito o santo padre. Levando o rumor muito a sério, teria multiplicado as intervenções políticas para o fazer cessar. Assim, teria pedido pessoalmente a ajuda do presidente do conselho italiano, à data Aldo Moro, que se contava entre os seus amigos próximos e com quem partilhava uma mesma paixão por Maritain. Que fez Moro? Não sabemos. O líder político foi raptado alguns meses depois pelas Brigadas Vermelhas que exigiam um resgate. Paulo VI interveio publicamente para pedir que fosse poupado e teria tentado, inclusive, reunir os fundos necessários. Mas Moro acabou por ser assassinado, mergulhando Paulo VI no desespero.
O papa decide, por fim, desmentir pessoalmente o rumor lançado por Roger Peyrefitte: expressa-se publicamente sobre o assunto a 4 de abril de 1976. Encontrei a sua intervenção no gabinete de imprensa do Vaticano. Eis a declaração oficial de Paulo VI: «Irmãos e filhos muito queridos! Sabemos que o nosso cardeal vigário e, em seguida, a Conferência Episcopal Italiana vos convidaram a rezar pela nossa humilde pessoa que foi alvo de escárnio e horríveis e caluniosas insinuações por parte de uma determinada imprensa, sem consideração pela honestidade ou pela verdade. Agradecemos-vos as vossas demonstrações filiais de piedade, de sensibilidade moral e de afeto… Obrigado, obrigado de todo o coração… Ademais, uma vez que este episódio e outros foram causados por uma recente declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, a propósito de determinadas questões de ética sexual, exortamos-vos a conceder a esse documento… uma observância virtuosa e, assim, a fortalecer em vós um espírito de pureza e amor que se oponha ao hedonismo licencioso muito difundido nos costumes do mundo de hoje».
Erro grave de comunicação! Enquanto o rumor veiculado por um escritor reacionário pouco credível estava limitado a alguns meios homófilos anticlericais, o desmentido público de Paulo VI, na solenidade do angelus do domingo de Ramos, contribui para o amplificar por todo o mundo. São publicadas centenas de artigos para difundir este desmentido, nomeadamente em Itália, deixando, claro, pairar a dúvida. O que não era mais do que um rumor torna-se uma questão, talvez um assunto. A cúria retirará a lição: vale mais ignorar os rumores sobre a homossexualidade dos papas ou dos cardeais do que mediatizá-los, desmentindo-os!
De então para cá, teriam aparecido outros testemunhos que apoiariam o «terrível» rumor: em primeiro lugar, o de um poeta italiano menor, Biagio Arixi, amigo de Carlini, que lhe teria revelado a sua ligação com o papa, pouco antes da sua própria morte. O camerlengo e mestre de cerimónias de João XXIII e Paulo VI, Franco Bellegrandi, evocou igualmente esse tema num livro duvidoso. O arcebispo polaco Juliusz Paetz também se alargou muito sobre a pretensa homofilia do papa, tendo chegado a difundir fotos e a sugerir aos jornalistas que poderia ter tido uma amizade muito próxima (bromance) com ele (o testemunho de Paetz não foi confirmado). Pelo seu lado, um antigo guarda suíço forneceu informações que vão no mesmo sentido e vários antigos amantes, reais ou autoproclamados, de Paulo VI tentaram testemunhar, amiúde em vão, e de qualquer modo sem serem convincentes. Em contrapartida, outros testemunhos de cardeais, e vários biógrafos sérios, desmentem com firmeza esta asserção.
Ponto mais capital: a hipótese da homossexualidade de Paulo VI e a sua relação com Paolo Carlini foram levadas a sério quando do processo de beatificação de Paulo VI. Segundo duas fontes que interroguei, o dossier foi passado a pente fino com uma extrema minúcia pelos padres que prepararam esse «processo». Se houve debate, se há dossier, é pelo menos porque há dúvida. A questão da pretensa homossexualidade de Paulo VI figura mesmo explicitamente nos documentos apresentados ao papa Bento XVI, que foram redigidos pelo padre Antonio Marrazzo. Segundo uma fonte de primeira mão que conhece bem o amplo dossier reunido por Marrazzo, e conversou com ele sobre os costumes atribuídos ao santo padre, a questão aparece em inúmeros documentos e testemunhos escritos. Segundo essa mesma fonte, Marrazzo concluiu, todavia, após um importante trabalho de verificação e de cotejo, que Paulo VI provavelmente não era homossexual. A sua posição foi retomada, por fim, pelo papa Bento XVI que, depois de ter realizado pessoalmente um longo exame do processo, decidiu beatificar Paulo VI e reconhecer as suas «virtudes heroicas», pondo um termo provisório à polémica.
CONTINUA A EXISTIR UM ÚLTIMO MISTÉRIO em redor de Paulo VI: o seu círculo próximo recheado de homófilos e de homossexuais. Conscientemente ou não, este papa, que proibia severamente essa forma de sexualidade, reuniu à sua volta, no mesmo momento, bastantes homens que a praticavam.
É o caso, como vimos, do secretário particular de Paulo VI, Pasquale Macchi, que trabalhou vinte e três anos com ele, primeiro no arcebispado de Milão e depois em Roma. Para além do seu papel na criação da coleção de arte moderna dos museus do Vaticano, este padre de fibra artística lendária era próximo de Jean Guitton e mantinha inúmeros contactos com os criadores e intelectuais da sua época, em nome do papa. A sua homofilia é confirmada por mais de uma dezena de testemunhas.
Da mesma forma, o padre e futuro bispo irlandês, John Magee, tendo sido um dos assistentes e confidentes de Paulo VI, era provavelmente homossexual (como dão a entender os testemunhos no processo do escândalo de Cloyne).
Um outro próximo de Paulo VI, Loris Francesco Capovilla, que foi também secretário pessoal do seu antecessor, João XXIII, e um ator-chave do concílio (foi criado cardeal pelo papa Francisco em 2014 e morreu com a idade canónica de cem anos, em 2016), teria sido homófilo.
– Mons. Capovilla era um homem muito discreto. Dirigia umas palavrinhas ternas aos jovens padres e era de uma grande delicadeza. Engatava com delicadeza. Escreveu-me uma vez – confirma-me o antigo padre da cúria Francesco Lepore (Um cardeal e diversos arcebispos e prelados do Vaticano confirmar-me-ão também, nas conversas gravadas, as inclinações de Capovilla.)
O teólogo oficial de Paulo VI, o dominicano Mario Luigi Ciappi, um florentino de humor devastador, também passava por ser um «homófilo extrovertido», que vivia na proximidade do seu «socius», ou secretário pessoal, segundo três testemunhos convergentes de padres dominicanos que recolhi. (Ciappi foi um dos teólogos oficiais de cinco papas, entre 1955 e 1989, e foi criado cardeal por Paulo VI, em 1977.)
O mesmo se passou com o mestre de cerimónias pontificais de Paulo VI, o monsignore italiano Virgilio Noè, futuro cardeal. Durante muito tempo, as pessoas divertiram-se no Vaticano com esse homem de protocolo direito que nem um fuso em público, de quem se dizia que levava uma vida tortuosa, em privado.
– Toda a gente sabia que Virgilio era praticante. Digamos mesmo, muito praticante! Era uma forma de brincadeira entre nós, no interior do Vaticano – confirma um padre da cúria romana.
O camareiro do papa era, também, um homossexual conhecido; e esse era igualmente o caso de um dos principais tradutores e guarda-costas do santo padre – o célebre arcebispo Paul Marcinkus, de quem voltaremos a falar. Quanto aos cardeais de Paulo VI, são numerosos os que fazem parte da «paróquia», a começar por Sebastiano Baggio, a quem o papa confia a Congregação para os Bispos, depois de o ter elevado à púrpura. Finalmente, um dos responsáveis da guarda suíça sob Paulo VI, próximo do papa, vive ainda hoje com o seu namorado nos subúrbios de Roma, onde uma das minhas fontes o encontrou.
Que quis dizer-nos Paulo VI ao recrutar maioritariamente para o seu círculo próximo padres homófilos, «questioning», «closeted» ou praticantes? Deixo a questão ao leitor, que tem entre mãos todos os pontos de vista e todas as peças do puzzle. De qualquer modo, o «código Maritain», uma matriz que aparece sob Paulo VI, vai perpetuar-se sob os pontificados seguintes de João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Sempre astuto, o papa fez do «amor de amizade» uma regra de fraternidade vaticana. O «código Maritain» nasceu sob bons auspícios; continua em vigor hoje em dia.