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Os Legionários de Cristo

MARCIAL MACIEL é, provavelmente, a figura mais demoníaca que a Igreja católica pôde gerar e ver crescer, de há cinquenta anos a esta parte. À cabeça de uma riqueza doida e de uma empresa de violências sexuais, foi protegido durante várias décadas por João Paulo II, Stanislaw Dziwisz, secretário pessoal do papa, e pelo cardeal secretário de Estado, Angelo Sodano, que se tornou «primeiro-ministro» do Vaticano.

Todas as pessoas que entrevistei no México, em Espanha e em Roma são severas em relação aos apoios romanos de que Marcial Maciel beneficiou, com exceção do cardeal Giovanni Battista Re, então «ministro» do Interior do papa, que me diz, quando de uma das nossas conversas no seu apartamento privado no Vaticano:

– João Paulo II encontrou-se pela primeira vez com Marcial Maciel quando da sua viagem ao México, em 1979. Era, aliás, a primeira viagem internacional do novo papa, imediatamente após a sua eleição. João Paulo II tinha uma imagem positiva dele. Os Legionários de Cristo recrutavam uma grande quantidade de jovens seminaristas, eram uma organização muito eficaz. Mas a verdade, sobre a pedofilia, é que não sabíamos. Só começámos a ter dúvidas, a ouvir rumores, no fim do pontificado de João Paulo II.

Pelo seu lado, o cardeal Jean-Louis Tauran, «ministro» dos Negócios Estrangeiros de João Paulo II, diz-me também, durante quatro conversas no seu gabinete, Via Della Conciliazone:

– Não sabíamos do que se passava com Marcial Maciel. Não sabíamos tudo isso. É um caso extremo. É um nível de esquizofrenia verdadeiramente inimaginável.

MARCIAL MACIEL DEGOLLADO nasceu em 1920 em Cotija de la Paz, no estado de Michoacán, a oeste do México. Ordenado padre pelo seu tio em 1944, funda durante esse período os Legionários de Cristo, uma organização católica de fins pedagógicos e caritativos.

Este ramo atípico da Igreja mexicana ao serviço de Jesus é malvisto inicialmente, tanto no México como no Vaticano, em virtude da sua natureza quase sectária. Todavia, em alguns anos, graças a uma energia fora do vulgar e, já então, a financiamentos turvos, Marcial Maciel está à frente de diversas escolas, universidades e organizações caritativas no México. Em 1959, funda Regnum Christi, o ramo laico dos Legionários de Cristo. Vários jornalistas (uma italiana, Franca Giansoldati, uma mexicana, Carmen Aristegui, bem como dois americanos, Jason Berry e Gerald Renner) fizeram o relato da ascensão e queda, espetaculares, de Marcial Maciel; retomo aqui as grandes linhas do seu trabalho e alimento-me também de dezenas de entrevistas que realizei para esta investigação durante quatro viagens ao México.

À cabeça deste «exército», cuja lealdade ao papa é erigida em mantra, e a dedicação à sua pessoa em fanatismo, o padre Maciel vai recrutar seminaristas aos milhares e arrecadar fundos às dezenas de milhões, o que fez do seu sistema um modelo de angariação de fundos católico e de nova evangelização em conformidade com os sonhos de Paulo VI e, sobretudo, de João Paulo II.

Podemos tomar aqui de empréstimo uma imagem do Evangelho segundo são Lucas, evocando uma criatura possuída pelo demónio, a qual responde a Cristo que lhe pergunta o seu nome: «O meu nome é legião, porque somos muitos (demónios)». Terá Marcial Maciel pensado nesta imagem ao criar o seu exército diabólico?

Seja como for, o padre mexicano tem um êxito impressionante. Apoia-se numa organização rígida e fanática, em que os seminaristas fazem voto de castidade, mas também de pobreza (confiando, aos Legionários de Cristo, os seus bens, os seus haveres e até o dinheiro recebido como presente de Natal). Maciel acrescenta-lhe um compromisso contrário à lei canónica: o «voto de silêncio». Na verdade, é estritamente proibido criticar os superiores e, nomeadamente, o padre Maciel, a quem os jovens seminaristas devem chamar «nuestro padre». Antes mesmo de serem uma máquina de assédios sexuais, os Legionários já são uma empresa de assédio moral.

A obediência ao padre Maciel é uma forma de sadomasoquismo que continua a ser inimaginável, ainda antes dos abusos sexuais. Todos estão dispostos a deixar-se esquartejar para serem amados pelo padre, sem imaginarem a que preço.

Para controlar os jovens recrutas de cabelos curtos, que desfilam dois a dois, no verão em calções, no inverno com um casaco cruzado com duas filas de botões, de gola redonda, o guru cria um sistema temível de vigilância interna. A correspondência é lida, as chamadas telefónicas listadas, as relações de amizade passadas a pente fino. Os melhores espíritos, sobretudo os mais belos, os atletas, entram para a guarda próxima de Marcial Maciel que adora rodear-se de jovens seminaristas: a sua beleza é uma vantagem; feições indígenas, um handicap. Se tocam um belo instrumento musical, trata-se de um extra muito apreciado; se se é débil à imagem do jovem padre do campo de Bernanos, uma tara.

Compreende-se que o físico passe à frente do intelecto. Algo que é bem resumido por uma bela frase de James Alison, um padre inglês que viveu muito tempo no México, e que interrogo em Madrid:

– Os Legionários de Cristo são Opus Dei que não leem livros.

A VIDA DUPLA DO CHEFE LEGIONÁRIO foi denunciada precocemente, ao contrário do que disse o Vaticano. Logo na década de 1940, Marcial Maciel foi mandado embora duas vezes do seminário, pelos seus superiores, em virtude de factos obscuros ligados à sexualidade. Os primeiros abusos sexuais remontam às décadas de 1940 e 50 e foram comunicados oficialmente aos bispos e aos cardeais mexicanos desde esse período. A toxicodependência doentia de Marcial Maciel, uma dependência que acompanha nomeadamente as suas sessões homossexuais, será também alvo de comunicações a Roma. Em 1956, Marcial Maciel é suspenso pelo Vaticano por ordem do cardeal Valerio Valeri – prova, mais do que suficiente, de que o caso era conhecido desde esse período.

Todavia, como várias vezes durante a carreira deste mentiroso e falsificador de génio, Marcial Maciel conseguiu fazer-se perdoar: o seu processo é limpo pelo cardeal Clemente Micara, no final do ano de 1958. Em 1965, o papa Paulo VI reconhece inclusive oficialmente os Legionários de Cristo por um decreto que os liga diretamente à santa sé. Em 1983, o papa João Paulo II legitimará ainda mais a seita de Marcial Maciel ao validar a carta constitucional dos Legionários, apesar de esta infringir gravemente a lei canónica.

É preciso dizer que, entretanto, os Legionários de Cristo se tornaram uma máquina de guerra formidável que suscita elogios e louvores em toda a parte – enquanto redobram os rumores sobre o seu fundador. Marcial Maciel encontra-se agora à frente de um império que reunirá, no final da sua carreira, quinze universidades, cinquenta seminários e institutos de estudos superiores, cento e setenta e sete colégios, trinta e quatro escolas para crianças desfavorecidas, cento e vinte e cinco casas religiosas, duzentos centros educativos e mil e duzentos oratórios e capelas, sem falar das associações caritativas. Em toda a parte, a bandeira dos Legionários agita-se ao vento e exibe as suas oriflamas.

Inocentado e legitimado de novo por Paulo VI e João Paulo II, o padre Marcial Maciel duplica em energia, para desenvolver o seu movimento, e em perversão, para saciar a sua sede de padre predador. Por um lado, o comprachicos – termo de calão espanhol para definir aqueles que se dedicam ao comércio de crianças roubadas – estabelece relações privilegiadas com multimilionários como Carlos Slim, o rei das telecomunicações mexicanas, cujo casamento celebra, e faz dele um dos filantropos para os seus Legionários. Estima-se que Marcial Maciel, através de holdings e fundações, acumulou uma fortuna constituída por uma dúzia de propriedades no México, em Espanha, em Roma, bem como numerário colocado em contas secretas avaliadas em várias centenas de milhões de dólares (segundo o New York Times). O dinheiro é, evidentemente, uma das chaves do sistema de Maciel.

Por outro lado, aproveitando as conversas em confissão e as fichas de que dispõe sobre inúmeros jovens seminaristas, chantageia aqueles que foram assinalados em virtude das suas condutas homossexuais e abusa deles, por sua vez, em total impunidade. No total, o predador Maciel teria agredido sexualmente dezenas de crianças e inúmeros seminaristas: mais de duzentas vítimas estão recenseadas hoje em dia.

A seu nível de vida também é excecional para a época – e para um padre. O padre que ostenta em público uma humildade absoluta, e uma modéstia a toda a prova, vive em privado num apartamento blindado, viaja e instala-se em hotéis de luxo, conduz viaturas desportivas de preços proibitivos. Possui também identidades falsas, mantém duas mulheres com as quais terá pelo menos seis filhos e não hesita em usar sexualmente os seus próprios filhos, dois dos quais apresentarão queixa mais tarde.

Em Roma, aonde se desloca frequentemente nas décadas de 1970, 80 e 90, é recebido como um humilde servidor da igreja por Paulo VI e como convidado estrela pelo seu «amigo pessoal» João Paulo II.

É preciso esperar até 1997 para que uma nova queixa credível e bem fundamentada chegue ao gabinete do papa. Foi apresentada por sete padres, antigos seminaristas da Legião, que dizem ter sido abusados sexualmente por Maciel. Colocam a sua ação sob o selo do evangelho e são apoiados por docentes universitários de renome. A carta é arquivada sem seguimento. O cardeal secretário de Estado, Angelo Sodano, e o secretário pessoal do papa, Stanislaw Dziwisz, tê-la-ão transmitido ao papa? Ignoramo-lo.

Não há qualquer surpresa aqui: a abordagem de Angelo Sodano foi sempre de defesa dos padres, mesmo sendo suspeitos de abusos sexuais. Segundo ele, como se retomasse a famosa epígrafe que figura nas Stanze de Rafael, que vi no palácio apostólico: «Dei Non Hominum Est Episcopos Iudicare» (Cabe a Deus, não aos homens, julgar os bispos).

Mas o cardeal foi bem mais longe, ao ponto de denunciar publicamente, durante uma celebração pascal, as acusações de pedofilia como sendo «bisbilhotices do momento». Subsequentemente, será posto em causa nomeada e violentamente por outro cardeal, o corajoso e friendly arcebispo de Viena, Christoph Schönborn, por ter dado cobertura aos crimes sexuais do seu antecessor, o cardeal Hans Hermann Gröer. Homossexual, Gröer foi obrigado a demitir-se depois de um escândalo retumbante na Áustria.

– A regra do cardeal Angelo Sodano era nunca abandonar um padre, mesmo quando acusado do pior. Nunca se desviou dessa linha. Penso que, para ele, se tratava de evitar as divisões da Igreja, de nunca dar oportunidades aos inimigos desta. Retrospetivamente, pode dizer-se que foi um erro, mas o cardeal Sodano é um homem nascido na década de 1920, que era uma outra época. No caso de Marcial Maciel, é certo que foi um erro – diz-me um arcebispo na reforma, que conhece bem o cardeal.

Seja como for, o secretário de Estado Angelo Sodano não se limita a ser um dos advogados de Marcial Maciel junto da santa sé; foi também, enquanto núncio, e depois como chefe da diplomacia vaticana, um dos principais «desenvolvedores» dos Legionários de Cristo na América Latina. Essa organização estava ausente do Chile antes da passagem de Sodano: ele estabeleceu contactos com Marcial Maciel e favoreceu a implantação do movimento nesse país, depois na Argentina e, talvez em seguida, na Colômbia.

Sol Prieto, uma docente universitária argentina, especialista em catolicismo, que entrevisto em Buenos Aires tenta explicar as motivações racionais do cardeal:

– Toda a lógica de Angelo Sodano era enfraquecer as ordens religiosas tradicionais como os jesuítas, os dominicanos, os beneditinos ou os franciscanos, nos quais não confiava, ou que suspeitava serem de esquerda. Preferia os movimentos laicos ou as congregações conservadoras como o Opus Dei, Comunhão & Libertação, a Ordem do Verbo Encarnado ou os Legionários de Cristo. Para ele, a Igreja estava em guerra e precisava de soldados, e não apenas de monges!

Em breve, novas acusações pormenorizadas de pedofilia são transmitidas à Congregação para a Doutrina da Fé, que é então dirigida pelo cardeal Ratzinger. Numerosas violações são comunicadas ainda no final da década de 1990 e início da de 2000, enquanto, pouco a pouco, aparece, já não só uma série de actos isolados, mas um verdadeiro sistema do Mal. Em 1997, está constituído um processo completo e cabe apenas ao Vaticano pôr termo aos actos do predador. Em 2003, o secretário pessoal de Maciel informa, ele mesmo, o Vaticano dos comportamentos criminosos do seu patrão, deslocando-se pessoalmente a Roma com provas que transmite a João Paulo II, a Stanislaw Dziwisz e a Angelo Sodano, que não o ouvem (este ponto é certificado por uma nota dirigida ao papa Bento XVI e que foi revelada pelo jornalista Gianluigi Nuzzi).

Estes novos alertas transmitidos ao Vaticano e esses processos ficam sem efeito e são arquivados, uma vez mais, sem seguimento. O cardeal Ratzinger não inicia qualquer procedimento. Segundo Francesco Lombardi, antigo porta-voz de Bento XVI, o cardeal teria comunicado repetidamente, ao papa João Paulo II, os crimes de Marcial Maciel, propondo demiti-lo das suas funções e reduzi-lo ao estado laical, mas teria sido confrontado com a recusa de Angelo Sodano e Stanislaw Dziwisz.

No entanto, parece que o cardeal Ratzinger tomou o caso suficientemente a sério para perseverar; apesar da posição conciliadora de João Paulo II, abre de novo um dossier sobre Marcial Maciel e acumula as provas contra ele. Mas este homem é prudente, demasiado; só avança quando todos os sinais são verdes e, voltando à carga junto de João Paulo II, não pode deixar de verificar que o sinal continua vermelho: o papa não deseja que o seu «amigo», Marcial Maciel, seja incomodado.

Para dar uma ideia do estado de espírito que prevalecia nessa época, podemos recordar aqui que o próprio adjunto de Ratzinger, Tarcisio Bertone, o futuro secretário de Estado de Bento XVI, assinou, ainda em 2003, o prefácio de um livro de Marcial Maciel, Mi vida es Cristo (o jornalista espanhol que o entrevistou, Jesús Colina, reconhecerá mais tarde ter sido manipulado por Maciel). Ainda nessa altura, o Osservatore Romano publicou um artigo que elogiava Maciel – uma ilustração de vício disfarçado de virtude.

Durante o mesmo período, o cardeal esloveno Franc Rodé multiplica também as provas de apoios ao fundador dos Legionários e saúda «o exemplo do padre Maciel na senda de Cristo» (quando interrogo Rodé, garante-me que não sabia e dá a entender que o Maciel tinha uma relação com o assistente do papa, Stanislaw Dziwisz: «Quando Dziwisz foi criado cardeal, ao mesmo tempo que eu, os Legionários fizeram uma imensa festa para ele – e não para mim», conta-me). Quanto ao cardeal Marc Ouellet, hoje em dia prefeito da Congregação para os Bispos, limpa o nome do seu dicastério apoiando-se no facto de Maciel ser um frade e não depender, portanto, dele. Chama a minha atenção para o facto de Maciel nunca ter sido eleito bispo nem criado cardeal, que constituiria a prova de que desconfiavam dele…

Que dizer, por fim, do apoio público prestado por João Paulo II a Maciel, em novembro de 2004? Quando dos sessenta anos de ordenação do padre, o papa vem pessoalmente, no decurso de uma bela cerimónia, despedir-se de Maciel. As fotografias dos dois homens, enlaçados afetuosamente, quando o papa está à hora da morte, dão a volta ao mundo. No México, aparecem na primeira página de vários jornais, suscitando incredulidade e mal-estar.

Teremos de esperar pela morte de João Paulo II, em 2005, para o caso Maciel ser reexaminado por Bento XVI, recém-eleito papa. Este autoriza a abertura dos arquivos do Vaticano para que seja realizada a investigação e liberta o conjunto dos Legionários do seu «voto de silêncio» para que possam falar.

– A história reconhecerá que Bento XVI foi o primeiro a denunciar os abusos sexuais e a obter a condenação de Marcial Maciel, logo após a sua acessão ao trono de São Pedro – diz-me Federico Lombardi, antigo porta-voz de Bento XVI e agora presidente da fundação Ratzinger.

Em 2005, Marcial Maciel é demitido de todas as suas funções por Bento XVI, que o obriga a retirar-se da vida pública. Reduzido ao «silêncio penitencial», é suspenso definitivamente a divinis.

Mas, sob a cobertura das sanções oficiais, Bento XVI poupou, uma vez mais, o padre. Este, é certo, já não poderá exercer os sacramentos até ao fim dos seus dias. A sua pena não é menos particularmente clemente, inferior à que o mesmo Joseph Ratzinger aplicou a grandes teólogos como Leonard Boff ou Eugen Drewermann, castigados por não terem cometido outros crimes para além da defesa das suas ideias progressistas. Marcial Maciel não é denunciado à justiça pela Igreja, não é excomungado, nem detido, nem encarcerado. Renunciam inclusive a um processo canónico «em virtude da sua idade avançada e da sua saúde frágil».

Convidado a levar uma «vida de oração e penitência», Maciel continua, entre 2005 e 2007, a viajar de uma casa para outra, do México a Roma, e a beneficiar de meios financeiros ilimitados. Muda-se simplesmente para os Estados Unidos para evitar eventuais processos – dando corpo à velha frase: «Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos». Sofrendo de um cancro do pâncreas, retira-se finalmente para uma residência sumptuosa na Florida, onde morre no luxo em 2008, com a idade canónica de oitenta anos.

É preciso esperar ainda pelo ano seguinte, em 2009, para que uma investigação a todas as organizações ligadas aos Legionários de Cristo, e ao seu ramo laico Regnum Christi, seja ordenada por Bento XVI. Cinco bispos são encarregados desta missão de controlo em cinco continentes. Os seus resultados, transmitidos confidencialmente ao papa em 2010, parecem de tal modo críticos que o Vaticano reconhece finalmente, num comunicado, os «actos objetivamente imorais» e os «verdadeiros crimes» de Marcial Maciel.

Todavia, conscientemente ou não, Roma fica por um julgamento parcial. Ao denunciar a ovelha ronhosa, poupa indiretamente o seu círculo próximo, a começar pelos padres Luis Garza Medina e Álvaro Corcuera, os adjuntos de Maciel. Em 2017, os Paradise Papers revelarão que Medina e Corcuera, entre cerca de vinte padres Legionários cujos nomes são publicados, e que Bento XVI não incomodou, beneficiaram de fundos secretos graças a esquemas financeiros off-shore através das Bermudas, do Panamá e das Ilhas Virgens britânicas. Descobrir-se-á também que mais trinta e cinco padres pertencentes aos Legionários de Cristo estão implicados em casos de abusos sexuais e não só o seu fundador. Terão de passar ainda vários anos antes de o papa Bento XVI colocar a Legião sob tutela do Vaticano e nomear um administrador provisório (o cardeal Velasio de Paolis). A partir de então, o caso pareceu encerrado e os Legionários retomaram a sua vida normal, retirando apenas os inúmeros retratos do guru das paredes das suas escolas, proibindo os seus livros, apagando simplesmente as suas pegadas, como se nada se tivesse passado.

Acabam de rebentar novos casos. Óscar Turrión, o reitor do colégio pontifício internacional dos Legionários, chamado Maria Mater Ecclesiae em Roma, onde reside uma centena de seminaristas vindos do mundo inteiro, reconheceu que vivia secretamente com uma mulher e tinha dois filhos. Teve de se demitir.

Ainda hoje em dia circulam rumores no México, mas também em Espanha e em Roma, sobre o ramo laico dos Legionários, Regnum Christi, e a sua universidade pontifícia, Ateneo Pontificio Regina Apostolorum, onde são referidas algumas derivas. O jornalista mexicano Emiliano Ruiz Parra, especialista em Igreja católica, confessa a sua frustração quando o interrogo, no México:

– Nem Bento XVI, nem Francisco se aperceberam da dimensão do fenómeno. E o problema mantém-se: o Vaticano já não controla os Legionários, que poderão retomar alguns maus hábitos.

O CARDEAL JUAN SANDOVAL ÍÑIGUEZ vive numa residência católica de grande luxo em Tlaquepaque, uma cidade-satélite de Guadalajara, no México. Visito-o ali, na Calle Morelos, com Eliezer, um investigador da região, que me serve de guia e que conseguiu desencantar o seu número de telefone. O cardeal aceitou a entrevista sem dificuldade, marcando-nos o encontro em sua casa, ao final da tarde desse mesmo dia.

A sua residência de arcebispo emérito é um pequeno paraíso luxuriante nos trópicos, protegido por dois polícias mexicanos armados. Por detrás de um muro e portões, descubro os domínios do cardeal: três casas coloridas, imensas, ligadas entre si por uma capela privada e garagens onde estão estacionados vários Ford 4x4 que brilham como sóis. Há quatro cães, seis papagaios e um saguim. O arcebispo de Guadalajara acabou de se reformar, mas o seu emprego do tempo não parece esgotar-se.

– A Igreja católica do México era rica. Mas agora é uma igreja pobre. Veja só que, para um país de 120 milhões de habitantes, já só temos 17 000 padres. Fomos perseguidos! – Insiste o prelado.

Juan Sandoval Íñiguez é um dos cardeais mais antigays do México. Utilizando frequentemente a palavra «maricón» para falar dos homossexuais (um insulto, em espanhol), o cardeal denunciou de uma forma radical a utilização de preservativos. Foi ao ponto de celebrar missas contra o «satanismo» dos homossexuais e foi sobretudo o inspirador do movimento anticasamento gay no México, pondo-se à frente das manifestações contra o governo mexicano. Os Legionários de Cristo, de que é próximo, constituíram frequentemente os grandes batalhões desses desfiles de rua. Aliás, durante a minha estada no México, pude assistir à grande «Marcha por la familia» contra o projeto de casamento gay.

– É a sociedade civil que se mobiliza espontaneamente – comenta o cardeal. – Não me envolvo pessoalmente. Mas, claro, a lei natural é a Bíblia.

O passarinheiro é um sedutor e fica comigo durante várias horas a conversar em francês. Por vezes, agarra-me na mão gentilmente, para reforçar os seus argumentos, ou dirige-se ternamente em espanhol a Eliezer para lhe perguntar a sua opinião ou lhe fazer perguntas sobre a sua vida.

O que é estranho e me chama a atenção de imediato: este arcebispo antigay está obcecado pela questão gay. Quase só falamos desse tema. Eis que critica implicitamente o papa Francisco. Censura-lhe os sinais favoráveis aos gays e, como quem não diz nada, dá-me como pasto os nomes de alguns bispos e cardeais que o rodeiam e lhe parecem ter esses gostos.

– Sabe, quando Francisco diz a frase «Quem sou eu para julgar?» não defende os homossexuais. Protege um dos seus colaboradores, é muito diferente! Foi a imprensa que adulterou tudo!

Peço autorização ao cardeal para ver a sua biblioteca e o homem levanta-se, apressando-se a mostrar-me os seus tesouros. Um prelado literato: ele próprio escreveu algumas obras que se delicia a apontar-me.

Que surpresa! Juan Sandoval Íñiguez tem secções inteiras dedicadas à questão gay. Vejo obras sobre o pecado homossexual, a questão lesbiana e as terapias de reconversão. Toda uma biblioteca de tratados pró e antigay, como se os autos de fé que o cardeal prega em toda a parte não tivessem razão de ser em sua casa. A menos que o cardeal se tenha apaixonado pelos livros que quer mandar queimar?

De súbito, dou de caras, estupefacto, com vários exemplares, colocados bem à vista, do famoso Liber Gomorrhianus na sua versão em inglês: The Book of Gomorrah.

– É um grande livro, que data da Idade Média e, veja, fui eu que assinei o prefácio desta nova tradução – diz-me, com orgulho, o cardeal.

Estranho livro este ensaio célebre de 1051, assinado por um padre italiano que veio a ser são Pedro Damião. Neste longo tratado, dirigido ao papa Leão IX, o frade denuncia as tendências homossexuais, segundo ele muito difundidas, do clero da época. Aponta também para os maus hábitos dos padres que se confessam uns aos outros a fim de dissimularem a sua tendência e faz inclusive o «outing», avant la lettre, de alguns altos prelados romanos da época. Todavia, o papa desautoriza são Pedro Damião e não adota nenhuma das sanções que ele reclama. Confisca-lhe inclusive o seu artigo inflamatório, diz-nos John Boswell, que escreveu a história do caso, e isso tanto mais que o colégio cardinalício era, então, muito praticante! A importância histórica do livro não é menor por isso porque é nomeadamente a partir desse panfleto do século XI que o castigo divino de Sodoma será reinterpretado, já não como um problema de hospitalidade, como a Bíblia dá a entender, mas como um pecado de «sodomia». A homossexualidade torna-se abominável!

Falamos agora com o cardeal Juan Sandoval Íñiguez sobre os tratamentos que existem para «desintoxicar» os homossexuais, e também os pedófilos, que ele parece associar sistematicamente aos primeiros, como se fossem iguais no pecado. Mencionamos também uma clínica especializada, que se destinaria aos pedófilos mais «incuráveis». Mas o cardeal evita o assunto e não se alarga sobre o tema.

Todavia, sei que essa residência existe, se chama «Casa Alberione» e foi fundada em 1989 por iniciativa do cardeal, ou com o seu apoio, precisamente na sua paróquia de Tlaquepaque. Padres pedófilos estrangeiros, «enviados de país em país como se fossem resíduos nucleares», segundo as palavras de alguém que conhece bem o assunto, foram tratados nessa clínica de «reabilitação», o que permitira simultaneamente tratá-los, mantê-los como padres e evitar que fossem entregues à justiça. A partir do início da década de 2000, depois de o papa Bento XVI ter imposto que os pedófilos deixassem de ser protegidos pela Igreja, a «Casa Alberione» perdeu a sua razão de ser. Segundo uma investigação do diário mexicano El Informador, o cardeal Juan Sandoval Íñiguez reconheceu a existência dessa residência, que acolheu nomeadamente Legionários de Cristo, mas afirmou que «já não alberga, desde 2001, padres pedófilos». (Existiu, no Chile, uma instituição semelhante, «The Club», sobre a qual Pablo Larraín fez um filme.)

«HOLA!»: acabaram de me chamar, de súbito, com um grito, nas minhas costas, enquanto passeamos, com o cardeal, pelo parque. Viro-me, surpreendido, mas sem estar tão assustado como Robinson Crusoe quando ouve, pela primeira vez, um papagaio falar-lhe na sua ilha. Da sua grande gaiola, o belo «perico» iniciou uma conversa comigo. Irá revelar-me um segredo? No México, este tipo de ave é também chamado «guacamayo». Outro termo, em francês, é: Papegai.

Passeamos entre os pavões e os galos. O cardeal parece feliz e não se apressa. É de uma gentileza de cortar o fôlego comigo e com Eliezer, o meu scout mexicano.

O cão Oso (que quer dizer «Urso») diverte-se agora connosco e, de súbito, envolvemo-nos num jogo de futebol a quatro, o cardeal, o cão Oso, Eliezer e eu, perante o olhar divertido de cinco freiras que asseguram, em tempo integral, a lide da casa, a lavagem da roupa e a cozinha do cardeal.

Pergunto a Juan Sandoval Íñiguez:

– Não se sente um pouco só aqui?

A minha pergunta parece diverti-lo. Descreve-me a sua vida social. Cito-lhe Jean Jacques Rousseau, para quem, afirmo, «o voto de celibato seria contranatura».

– Pensa que há menos solidão entre os pastores casados ou os imãs? – Inquire o cardeal numa resposta sob a forma de pergunta. – Está a ver – acrescenta, mostrando-me as freiras –, não estou sozinho aqui.

O cardeal agarra-me o braço, com firmeza. E acrescenta, após um longo silêncio:

– E, além disso, também há cá um padre, um jovem padre, que vem ter comigo todas as tardes.

E quando me espanto por não o ver, ao fim da tarde, o cardeal acrescenta talvez com alguma candura:

– Esta tarde, ele acaba às 22 horas.

AS PROTEÇÕES de que Marcial Maciel beneficiou no México e em Roma permanecem pouco conhecidas hoje em dia. Várias vítimas do padre pedófilo suspeitaram, com ou sem razão, do cardeal Juan Sandoval Íñiguez por não o ter denunciado. Para além dos Legionários de Cristo, teria colocado alguns padres acusados de abusos sexuais em «reeducação», sem os denunciar, na sua residência Casa Alberione. (O cardeal nega qualquer falta ou qualquer responsabilidade.)

Críticas semelhantes visam o arcebispo do México, o cardeal Norberto Rivera. Tão obsessivamente antigay como Sandoval Íñiguez, multiplicou os discursos ao ponto de fazer declarações sobre «o ânus que não pode servir de orifício sexual». Num outro comentário célebre, reconheceu que havia muitos padres gays no México, mas «que Deus já lhes perdoara». Mais recentemente, foi ao ponto de declarar que um «filho tem mais probabilidade de ser violado pelo seu pai se for um pai homossexual».

Os jornalistas especializados no México sugerem que Norberto Rivera, um dos apoiantes de Marcial Maciel, não acreditou, até ao fim, nos seus crimes e se teria recusado a transmitir ao Vaticano algumas queixas.

Por todas estas razões e por ter chamado publicamente mentirosos inveterados aos queixosos, o cardeal do México é alvo hoje em dia de críticas por cumplicidade ou silêncio no caso dos abusos sexuais. A imprensa denuncia-o regularmente e dezenas de milhares de mexicanos assinaram uma petição para alertar a opinião pública e impedi-lo de participar no conclave que elege os papas. Figura também num bom lugar na lista dos «dirty dozen», os doze cardeais suspeitos de terem dado cobertura a padres pedófilos, publicada pela associação americana das vítimas de abusos sexuais da Igreja católica (SNAP).

Sandoval Íñiguez e Rivera foram criados cardeais por João Paulo II, provavelmente por recomendação de Angelo Sodano ou de Stanislaw Dziwisz. Foram ambos adversários violentos da teologia da libertação e do casamento homossexual. O papa Francisco, que criticara duramente o cardeal Rivera pela sua homofobia e pedira solenemente à Igreja mexicana que parasse as suas hostilidades para com os gays, apressou-se a virar a página Rivera, impondo-lhe a reforma em 2017, mal atingiu o limite de idade. Esta decisão silenciosa é, nas palavras de um padre que interroguei no México, uma «sanção divina com efeito temporal imediato».

– Sabemos que, entre os bispos que apoiaram Marcial Maciel ou se manifestam hoje em dia contra nós ou contra o casamento gay, existe um número significativo que é homossexual. É mesmo incrível, eles são muito frequentemente homossexuais! – Exclama, quando de uma conversa no seu gabinete, no México, o ministro da Cultura, Rafael Tovar y de Teresa.

E o célebre ministro acrescenta, na presença da minha editora mexicana, Marcela González Durán:

– O aparelho religioso é gay, no México, a hierarquia é gay, os bispos são geralmente gays. É incrível!

O ministro confirma-me também, quando lhe confio o tema do meu livro, que o governo mexicano dispõe de informações precisas sobre os bispos «gays antigays» – fornecendo-me alguns nomes entre dezenas. Acrescenta que vai falar da minha investigação, no dia seguinte, a Enrique Peña Nieto, presidente da República na altura, e ao seu ministro do Interior, para que estes me transmitam informações complementares. Seguidamente, terei várias outras conversas com Tovar y de Teresa. (Também pude entrevistar Marcelo Ebrard, o antigo presidente da câmara municipal da Cidade do México, que foi o principal artífice do casamento gay e conheceu bem os adversários católicos desse projeto de lei. Outras pessoas proporcionar-me-ão informações, como o milionário Carlos Slim Jr., o intelectual Enrique Krauze, um conselheiro influente do presidente Enrique Peña Nieto e vários diretores da Televisa, a principal emissora de televisão ou ainda José Castañeda, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Tendo estado quatro vezes na Cidade do México, e em mais oito cidades do país, beneficiei finalmente do apoio e das informações de uma dezena de escritores ou militantes gays, nomeadamente de Guillermo Osorno, Antonio Martínez Velázquez e Felipe Restrepo. Os meus investigadores mexicanos Luis Chumacero e, em Guadalajara, Eliezer Ojeda, também contribuíram pessoalmente para este relato.)

A VIDA HOMOSSEXUAL DO CLERO MEXICANO é um fenómeno bem conhecido e já bem documentado. Calcula-se que mais de dois terços dos cardeais, dos arcebispos e dos bispos mexicanos são «praticantes». Uma importante organização homossexual, FON, fez mesmo o «outing», tornando públicos os seus nomes, de trinta e oito hierarcas católicos.

Esta proporção seria menos importante entre os simples prelados e os bispos «indígenas» onde, segundo um relatório transmitido oficialmente ao Vaticano por Mons. Bartolomé Carrasco Briseño, 75% dos padres das dioceses dos estados de Oxaca, Hidalgo ou Chiapas, onde vive a maior parte dos ameríndios, estariam secretamente casados ou em concubinato com uma mulher. Em resumo, o clero mexicano seria, assim, heterossexual activo, nos campos, e homossexual praticante, nas cidades!

Vários jornalistas especializados na Igreja católica confirmam essas tendências. É o caso de Emiliano Ruiz Parra, autor de vários livros sobre o tema e antigo jornalista encarregado das questões de religião no diário Reforma:

– Diria que 50% dos padres são gays no México, se quisermos um número mínimo, e 75% se formos mais realistas. Os seminários são homossexuais e a hierarquia católica mexicana é gay de uma forma espetacular.

Ruiz Parra acrescenta que ser gay, na Igreja, não é um problema no México: é mesmo um rito de passagem, um elemento de promoção e uma relação normal «de poder» entre o noviço e o seu mestre.

– A tolerância é grande no seio das Igreja, desde que as pessoas se não expressem no exterior. E, é claro, para proteger o segredo, têm de atacar os gays mostrando-se muito homófobos na praça pública. É essa a chave. Ou a astúcia.

Tendo levado a cabo investigações sobre os Legionários de Cristo e sobre Marcial Maciel, Emiliano Ruiz Parra mostra-se particularmente crítico em relação ao Vaticano, tanto ontem como hoje, e aos múltiplos apoios de que o predador beneficiou no México. Como muitos, avança argumentos financeiros, a corrupção, os subornos, bem como, um argumento mais novo como causa explicativa, o da homossexualidade de uma parte dos seus apoios.

– Se Marcial Maciel tivesse falado, teria sido a Igreja mexicana, no seu conjunto, a desmoronar-se.

UMA DAS PRIMEIRAS GRANDES OBRAS de caridade de Marcial Maciel, aquela que lançou a sua carreira, fazendo esquecer as suas primeiras vilanias, foi a construção da igreja de Nossa-Senhora-de-Guadalupe, em Roma. Pretende ser uma réplica em miniatura da célebre basílica com o mesmo nome na Cidade do México, uma das maiores do mundo, que acolhe todos os anos milhares de peregrinos.

Nos dois casos, trata-se de locais de grande devoção que chamam a atenção pelos seus rituais arcaicos, quase sectários. As multidões devotas e prosternadas chocam-me quando visito a basílica mexicana. O francês que sou, e que conhece o catolicismo sobretudo intelectual do seu país – o dos Pensamentos de Pascal, das orações fúnebres de Bossuet ou de O Génio do Cristianismo de Chateaubriand –, tem dificuldade em compreender esse fervor e essa religiosidade popular.

– Não podemos conceber o catolicismo mexicano sem a virgem de Guadalupe. O amor à virgem, a sua fraternidade, como uma mãe, irradia pelo mundo inteiro – explica-me Mons. Monroy.

Este antigo reitor da basílica da Cidade do México leva-me a visitar o complexo religioso que, para além de duas basílicas, conta com conventos, museus, lojas de recordações grandiosas e me parece, ao fim e ao cabo, uma verdadeira indústria turística. Mons. Monroy mostra-me também os inúmeros quadros que o pintam com todos os trajes sacerdotais (incluindo um retrato magnífico realizado pelo artista gay Rafael Rodriguez, que também entrevistei em Santiago de Querétaro, a noroeste da Cidade do México).

Segundo diversos jornalistas, Nossa-Senhora-de-Guadalupe seria o palco de vários negócios mundanos e, pelo comportamento de alguns dos seus padres, uma espécie de «confraria gay». Tanto no México, como em Roma.

Situada na Via Aurelia, a oeste do Vaticano, a sede oficial italiana dos Legionários de Cristo foi financiada pelo jovem Maciel, desde o início da década de 1950. Graças a uma incrível angariação de fundos levada a cabo no México, em Espanha e em Roma, a igreja e a sua paróquia foram construídas a partir de 1955 e inauguradas pelo cardeal italiano Clemente Micara, no final de 1958. No mesmo momento, durante o interregno entre Pio XII e João XXIII, o dossier crítico sobre a toxicodependência e a homossexualidade de Marcial Maciel evaporava-se no Vaticano.

Para tentar compreender, à sombra da pureza da Virgem de Guadalupe, o fenómeno Maciel, é necessário decifrar as proteções de que beneficiou e o amplo sistema que tornou possível, tanto no México como em Roma, esse imenso escândalo. Várias gerações de bispos e de cardeais mexicanos e de inúmeros cardeais da cúria fecharam os olhos ou apoiaram, com conhecimento de causa, um dos maiores pedófilos do século XX.

O QUE DIZER DO FENÓMENO MARCIAL MACIEL? Trata-se de um perverso mitómano, patológico e demoníaco ou terá sido produto de um sistema? Uma figura acidental e isolada ou o sinal de uma deriva coletiva? Ou dizendo de outra forma: é a história de um só homem, como se afirma para limpar o nome da instituição, ou o produto de um modelo de governo que o clericalismo, o voto de castidade, a homossexualidade secreta e endémica no seio da Igreja, a mentira e a lei do silêncio tornaram possível? Como se passou com o padre Karadima no Chile e em inúmeros outros casos em diversos países da América Latina, a explicação residiria, segundo as testemunhas interrogadas, em cinco fatores – aos quais devo acrescentar um sexto elemento.

Em primeiro lugar, a cegueira em virtude do êxito. Os triunfos fulgurantes dos Legionários de Cristo fascinaram durante muito tempo o Vaticano, uma vez que em nenhuma parte do mundo os recrutamentos de seminaristas eram tão impressionantes, as vocações sacerdotais tão entusiásticas e as entradas de dinheiro tão faustosas. Quando da primeira visita de João Paulo II ao México, em 1979, Marcial Maciel mostrou o seu sentido de organização, o poder das suas redes políticas e mediáticas, a sua capacidade de resolver os mínimos pormenores, com um exército de assistentes, mantendo-se, simultaneamente, humilde e discreto. João Paulo II ficou literalmente maravilhado. Voltará quatro vezes ao México, cada vez mais fascinado com o savoir-faire do seu «caro amigo» Maciel.

O segundo fator é a proximidade ideológica entre João Paulo II e os Legionários de Cristo, uma organização de extrema-direita, violentamente anticomunista. Ultraconservador, Marcial Maciel foi o ponta de lança, primeiro no México, depois na América Latina e em Espanha, do combate aos regimes marxistas e à corrente da teologia da libertação. Obsessivamente anticomunista, paranoico até, Maciel antecipou-se às expectativas do papa que encontrou nele um defensor da sua linha dura contra o comunismo. Ao fazê-lo, juntando o psicológico ao ideológico, o padre Maciel soube acariciar inteligentemente o orgulho de João Paulo II, um papa místico que diversas testemunhas descrevem em privado como um homem misógino e de uma grande vaidade.

O terceiro fator, ligado ao precedente, é a necessidade de dinheiro de João Paulo II para a sua missão ideológica anticomunista, nomeadamente na Polónia. Parece um dado adquirido hoje em dia, apesar dos desmentidos da santa sé, que Marcial Maciel desembolsou realmente dinheiro para financiar redes antimarxistas na América Latina e, talvez também indiretamente, o sindicato Solidarnosc. Segundo um ministro e um alto diplomata inquiridos no México, essas transferências financeiras teriam ficado num quadro «eclesial». Em Varsóvia e em Cracóvia, alguns jornalistas e historiadores confirmam-me, pelo seu lado, que existiram relações financeiras entre o Vaticano e a Polónia:

– Disse-se muito que o banco do Vaticano ou o banco Ambrosiano, italiano, tinham contribuído. Penso que isso é falso.

O jornalista Zbigniew Nosowski, que dirige o meio de comunicação católico WIEZ, em Varsóvia, também se mostrou reservado quanto à própria existência desses financiamentos:

– Não creio que o dinheiro tenha podido circular assim entre o Vaticano e o Solidarnosc.

Para além dessas posições de princípio, outras fontes tenderiam a sugerir o contrário. Lech Walesa, antigo presidente do Solidarnosc, que se tornou presidente da república Polaca, reconheceu que o seu sindicato recebera dinheiro do Vaticano. Vários jornais e livros assinalam também os fluxos financeiros: a sua fonte seriam, a montante, os Legionários de Cristo de Marcial Maciel, e o seu destino, a jusante, o sindicato Solidarnosc. Na América Latina, alguns pensam mesmo, sem mais certezas, que o ditador chileno, Augusto Pinochet, pode ter contribuído para determinados financiamentos (graças à intermediação do núncio Angelo Sodano), tal como os narcotraficantes colombianos (por intermédio do cardeal Alfonso López Trujillo). Neste estádio, todas estas hipóteses são possíveis, mas não foram confirmadas de uma forma clara. «Dirty money for good causes?», pergunta-se um bom conhecedor do caso: a origem dos financiamentos pode estar envolvida em mistério, mas nem por isso a causa seria menos justa…

– Sabemos através de testemunhas diretas que Mons. Stanislaw Dziwisz, o secretário particular do papa João Paulo II, distribuía, no Vaticano, envelopes contendo notas a alguns dos seus visitantes polacos, tanto laicos como religiosos. Nessa época, nos anos de 1980, o sindicato Solidarnosc estava banido por lei. Dziwisz perguntava aos seus visitantes polacos: «Como podemos ajudar-vos?» A falta de fundos era frequentemente uma preocupação. Então, o assistente do papa dirigia-se durante uns instantes a uma divisão adjacente e voltava com um sobrescrito – conta-me Adam Szostkiewicz, durante uma entrevista em Varsóvia. (Szostkiewicz, um jornalista influente do semanário Polityka, acompanha há muito o catolicismo polaco. Ele próprio membro do Solidarnosc foi, durante seis meses, preso político da junta militar comunista.)

Segundo Szostkiewicz, existiam outras vias de acesso susceptíveis de permitir a entrada, na Polónia, de produtos de consumo corrente, de medicamentos, de comida e, talvez, de malas de dinheiro. Essas «rotas» eram essencialmente «eclesiais»: a ajuda transitava por intermédio de padres ou de comboios humanitários que circulavam a partir da Alemanha federal. O dinheiro nunca passava através da RDA, nem da Bulgária, cujos controlos eram muito mais estritos.

– Os católicos beneficiavam de uma liberdade de circulação maior do que os outros: a polícia polaca tolerava-os um pouco melhor e as revistas eram mais sumárias. Também obtinham vistos mais facilmente – acrescenta Szostkiewicz. (Num livro recente, Il Caso Marcinkus, o jornalista italiano, Fabio Marchese Ragona, revela, a partir de testemunhos e de documentos inéditos da justiça italiana, que o Vaticano teria transferido “mais de um bilião de dólares para o Solidarnosc”. O arcebispo americano, Paul Marcinkus, e Stanislaw Dziwisz teriam sido os atores desses esquemas financeiros complexos. O segundo assistente do papa, o sacerdote polaco Mieczyslaw Mokrzycki, conhecido como padre Mietek, agora arcebispo da Ucrânia, desempenhou um papel neste sistema, bem como o padre jesuíta polaco, Przydatek – os dois são íntimos de Dziwisz. Alguns jornalistas de investigação estão atualmente a pesquisar estes temas, nomeadamente no seio da redação da Gazeta Wyborcza. Nos próximos meses, ou anos, é possível que venha a haver revelações.)

As malas de dinheiro sujo são um dado possível do pontificado de João Paulo II. Podemos considerar discutível o procedimento, mas a queda do regime comunista polaco e, no seguimento, a queda do muro de Berlim e do império soviético, podem dar uma legitimidade retrospetiva a esta utilização singular do dinheiro santo.

O quarto fator relaciona-se com os subornos pessoais – porque é necessário que utilizemos o termo. Marcial Maciel «regava» regularmente os cardeais e os prelados próximos de João Paulo II. O psicopata recompensava os seus protetores romanos e enriquecia-os muito além do que é imaginável. Oferecia-lhes automóveis de luxo, viagens sumptuosas, distribuía entre eles sobrescritos com notas, simultaneamente para aumentar a sua influência, fazer com que lhe fossem concedidos favores para a sua seita de «legionários» e para encobrir os seus crimes. Estes factos estão hoje em dia comprovados, mas nenhum dos cardeais que se deixaram corromper foi incomodado pelas autoridades e ainda menos excomungado por simonia! Raros são, aliás, aqueles que recusaram o seu dinheiro sujo e parece que o cardeal Ratzinger, com a sua austeridade de celibatário, foi um deles. Tendo recebido, no México, um sobrescrito com notas, tê-lo-ia mandado devolver ao remetente. O cardeal Bergoglio foi, também, sempre um inimigo declarado de Marcial Maciel: denunciou-o precocemente, tanto mais porque Maciel odiava não só os padres vermelhos da teologia da libertação, mas também os jesuítas.

Para além dos aspetos morais, os riscos financeiros corridos pelo Vaticano são outro fator – o quinto – que poderia explicar o silêncio da Igreja. Mesmo quando reconhece os factos, não quer pagar! Nos Estados Unidos, os casos de abusos sexuais já custaram dezenas de milhares de dólares em indemnizações às vítimas. Reconhecer um erro equivale, para o Vaticano, a assumir a sua responsabilidade financeira. Este argumento do custo das indemnizações é central em todos os casos de abusos sexuais.

Por fim – e aqui entramos no indizível –, há entre os apoios que Marcial Maciel recebeu no México, em Espanha ou no Vaticano algo a que chamaria pudicamente o «clericalismo do armário». É o sexto fator que permite explicar o inexplicável, provavelmente o mais doloroso, e também o mais profundo, talvez a primeira chave de leitura. Muitos cardeais mexicanos, sul-americanos, espanhóis, polacos ou italianos, que rodeiam João Paulo II, levam, efetivamente, uma vida dupla. Por certo não são pedófilos; não cometem forçosamente abusos sexuais. Em contrapartida, são maioritariamente homossexuais e estão envolvidos numa vida totalmente construída sobre o jogo duplo. Vários desses cardeais recorreram regularmente aos serviços de prostitutos e a financiamentos não convencionais para satisfazerem as suas tendências. É certo que Marcial Maciel, uma alma negra, foi muito além do que é tolerável, ou legal, todos convêm no Vaticano, mas denunciar os seus esquemas mentais equivaleria a questionarem-se sobre as suas próprias vidas. Seria também exporem-se a que a sua eventual homossexualidade pudesse ser revelada.

Uma vez mais, a chave poderia ser esta: a cultura do segredo que era necessária para proteger a homossexualidade dos padres, dos bispos e dos cardeais no México e em Roma – nomeadamente de tantas personagens-chave no círculo próximo do papa – permitiu ao pedófilo Maciel, por um estranho desvio de clericalismo, agir ele próprio no segredo, em toda a liberdade, e ser assim protegido duradouramente.

À força de terem confundido pedofilia e homossexualidade – algo que tantos cardeais aparentemente fizeram –, as diferenças esbatem-se. Se está tudo misturado, abuso sexual e pecado, pedofilia, homossexualidade e prostituição, ao ponto de o crime apenas ser diferente pela sua magnitude, e não pela sua natureza, quem deve ser punido? Eis os padres perdidos: onde está o cimo, onde está o fundo? O bem? O mal? A natureza, a cultura? Os outros e eu? Podemos excomungar Marcial Maciel pelos seus crimes sexuais, se estivermos, um pouco como ele, na mentira sexual e formos, nós próprios, «intrinsecamente desordenados»? Denunciar abusos é expor-se pessoalmente e, quem sabe, correr o risco de ser denunciado. Estamos no cerne do segredo do caso Maciel e de todos os crimes de pedófilos que encontraram, e continuam a ter no Vaticano e no clero católico, um exército de apoios, de inúmeras desculpas e uma infinidade de silêncios.