12.

Os guardas suíços

NATHANAËL enfrentou dois problemas, no Vaticano: as raparigas e os homossexuais. A raridade das primeiras e a omnipresença dos segundos.

Encontrei este guarda suíço por acaso, no Vaticano. Estava um pouco perdido no dédalo das escadas e ele indicou-me o caminho. Não era arisco, metemos conversa.

Inicialmente, pensei que Nathanaël fazia parte do pessoal contratado que trabalha no interior do Vaticano para fazer reparações. O fato-macaco azul que trazia nesse dia dava-lhe o aspeto de um operário italiano vulgar. Assim, fiquei surpreendido ao vê-lo, alguns dias depois, na farda chamada «de gala» vermelha, amarela e azul: era guarda suíço! Um guarda suíço com uma caixa de ferramentas!

Contactei novamente Nathanaël algum tempo depois, quando de uma nova estada em Roma, e dei de caras com a sua recusa educada, mas firme, de me rever. Viria a saber subsequentemente que se tratava de uma das regras impostas aos guardas suíços. Por razões que não revelarei aqui, aceitou apesar de tudo falar comigo e adquirimos o hábito de nos encontrarmos no café Makasar, no Borgo, um local situado a alguns minutos a pé do quartel da guarda suíça, mas cuja discrição, longe dos estabelecimentos frequentados pelos monsignori ou pelos turistas, correspondia ao que ambos procurávamos.

Grande, de rosto oblongo, sedutor, Nathanaël era decididamente muito sociável. Desde o nosso primeiro encontro, comunicou-me o seu nome próprio (alterado aqui) e número de telefone; o seu apelido só me foi revelado posteriormente, e por inadvertência, quando inseri as suas coordenadas no meu smartphone e o seu número de telemóvel encontrou uma correspondência imediata com a sua ficha no Google+. Todavia, Nathanaël não figura nem no Instagram nem no Facebook, e não aparece nenhuma fotografia sua no Google Images, segundo uma regra estrita do Vaticano que impõe uma discrição extrema aos Guardas Suíços.

– Nem selfies, nem perfis nas redes sociais – confirma-me Nathanaël.

As raparigas e os homossexuais constituíram, portanto, os dois principais problemas do guarda suíço na santa sé. Desde a sua entrada em funções, conseguiu ir para a cama «com dez raparigas», diz-me, mas a obrigação de celibato pesa-lhe. Aliás, as regras são estritas.

– Tem de se estar na caserna antes da meia-noite e nunca se pode dormir fora. Estamos proibidos de viver em casal, e o casamento só é autorizado aos oficiais superiores, sendo estritamente proibido levar raparigas para o quartel. Dissuadem-nos de nos encontrarmos com elas na cidade e a delação é incentivada, por vezes.

Estas obsessões pudibundas dos velhos papões do Vaticano indispõem Nathanaël que considera que as questões essenciais, relacionadas com as missões soberanas da Guarda, não são tomadas em linha de conta, o mesmo se passando com a segurança do papa que, segundo ele, deixaria a desejar. Faço-lhe notar que entrei frequentemente no Vaticano pela porta chamada Arco delle Campare – a mais mágica de todas, sob o relógio à esquerda de são Pedro de Roma – sem ter tido de mostrar qualquer documento de identidade e sem que o meu saco fosse revistado, porque um cardeal ou um simples padre residente no interior me vinham buscar. O guarda suíço fica consternado com as minhas experiências.

Ao longo de uma dezena de encontros secretos no café Makasar, Nathanaël revela-me o que o aborrece verdadeiramente no Vaticano: o engate sustentado e, por vezes, agressivo de determinados cardeais.

– Se um deles me tocar, parto-lhe a cara e demito-me – afirma, em termos explícitos.

Nathanaël não é gay, nem sequer gay-friendly; confia-me a sua revolta perante o número de cardeais e bispos que lhe fizeram avanços (referem-se os seus nomes). Está traumatizado com o que descobriu no Vaticano em termos de vida dupla, de engate e até de assédio.

– Fiquei enojado com o que vi. Ainda não me recompus. E dizer que jurei «sacrificar a minha vida», se necessário, por este papa!

Todavia, a lagarta não estava no fruto desde a origem? A guarda suíça foi fundada pelo papa Júlio II, em 1506: a sua bissexualidade está bem comprovada. Quanto ao uniforme do mais pequeno exército do mundo, um traje renascentista rainbow flag e um capacete de alabardeiro com duas pontas ornado com plumas de garça-real, foi concebido, segundo a lenda, por Miguel Ângelo.

Um tenente-coronel dos carabinieri confirma-me, em Roma, que os guardas suíços estão obrigados a um estrito segredo profissional:

– Há uma omertà incrível. Ensinam-nos a mentir pelo papa, por razões de Estado. Os casos de assédio ou abusos sexuais são numerosos, mas são abafados, e a guarda suíça foi sempre tornada diretamente responsável pelo que lhe aconteceu. Fazem-nos compreender bem que, se falarem, nunca mais arranjarão um emprego. Em contrapartida, caso se comportem bem, são ajudados a encontrar um lugar quando regressarem à vida civil, na Suíça. A sua carreira futura depende dos seus silêncios.

DURANTE A MINHA INVESTIGAÇÃO, entrevistei onze guardas suíços. Para além de Nathanaël, com quem convivi regularmente em Roma, a maior parte dos meus contactos foi estabelecida durante a peregrinação militar a Lourdes ou, na Suíça, com antigos guardas com que pude encontrar-me durante mais de uma trintena de estadas em Zurique, Basileia, Saint Gall, Lucerna, Genebra e Lausanne. Foram fontes fiáveis e de primeira mão para este livro, informando-me sobre os costumes da cúria e a vida dupla de inúmeros cardeais que naturalmente namoriscaram com eles.

Conheci Alexis na cervejaria Versailles. Todos os anos, quando de uma grande peregrinação, milhares de polícias, gendarmes e membros das forças armadas do mundo inteiro, todos eles católicos praticantes, encontram-se em Lourdes, uma cidade francesa dos Pirenéus. Um grupo de guardas suíços participa tradicionalmente, entre eles precisamente Alexis, no ano em que lá fui. (O nome foi alterado.)

– Eis finalmente os Guardas Suíços – exclama em voz alta Thierry, o dono da Versailles, contentíssimo com a chegada desses soldados coloridos que atraem os clientes e melhoram a sua faturação.

A peregrinação militar a Lourdes é um festival cáqui ou multicolorido em que estão representadas dezenas de países: veem-se chapéus com plumas fluorescentes, sabres afiados que brilham, pompons, homens de kilt e todos os tipos de fanfarras. Ali, rezam com fervor e embebedam-se em grandes efusões, nomeadamente no Pont Vieux. Aí, vejo centenas de militares católicos embriagados que cantam, dançam e engatam. As mulheres são raras; os homossexuais, estão no armário. É um verdadeiro consumo imoderado de álcool para batizados!

Nesta imensa bebedeira, os guardas suíços continuam apesar de tudo a ser a atração número um, como me comunicara o tenente-coronel dos carabinieri que me facilitou os trâmites para participar na peregrinação de Lourdes.

– Verá – disse-me o gendarme –, que, longe de Roma, os guardas suíços descontraem. A pressão é menos forte do que no Vaticano, o controlo pelos oficiais relaxa, o álcool torna as conversas mais fluidas. Põem-se a falar!

Com efeito, Alexis baixa a guarda:

– Em Lourdes, não usamos a toda a hora o uniforme de gala – diz-me o jovem, que acabou de chegar à Brasserie Versailles. – Ontem à noite, estivemos à paisana, apenas de gravata. É perigoso, para a imagem, se envergarmos o uniforme vermelho, amarelo e azul e estivermos um pouco alegres!

Alexis não é mais gay-friendly do que Nathanaël. Desmente com veemência uma ideia feita segundo a qual a guarda pontifical suíça albergaria uma percentagem elevada de homossexuais. Desconfia realmente de que quatro ou cinco dos seus camaradas são «provavelmente gays» e conhece, claro, os rumores sobre um dos responsáveis da guarda suíça de Paulo VI, que vive hoje em dia com o seu companheiro, na periferia de Roma. Sabe também, como toda a gente, que vários cardeais e bispos estiveram no centro das atenções, vivendo maritalmente com um guarda suíço. E, claro, conhece a história do triplo homicídio, no recinto do próprio Vaticano, em que um jovem cabo da guarda, Cédric Tornay, teria assassinado, «num momento de loucura», o comandante da guarda suíça e a mulher deste.

– É a versão oficial, mas ninguém, entre os guardas, acredita nela – diz-me Alexis. – Na verdade, Cédric foi suicidado! Foi assassinado, tal como o seu comandante e a mulher deste, antes de ter sido realizada uma encenação macabra para fazer crer na tese do suicídio depois do duplo homicídio. (Não vou voltar aqui a este caso dramático que já fez correr muita tinta e sobre o qual circulam as hipóteses mais esotéricas. Entre elas, basta, para o nosso tema, recordar que a hipótese de uma ligação entre o jovem cabo e o seu comandante foi avançada por vezes, sem convencer forçosamente, a menos que a sua ligação, real ou pretensa, possa ter sido utilizada para esconder um outro móbil do crime. De qualquer modo, o mistério continua. Por uma questão de justiça, o papa Francisco poderia reabrir este processo obscuro.)

Tal como Nathanaël, Alexis foi engatado por dezenas de cardeais e bispos, ao ponto de ter pensado demitir-se da guarda:

– O assédio é tão insistente que disse a mim mesmo que ia regressar a casa imediatamente. Muitos de nós ficam exasperados com os avanços, geralmente pouco discretos, dos cardeais e dos bispos.

Alexis conta-me que um dos seus colegas era chamado regularmente, em plena noite, por um cardeal que dizia precisar dele no seu quarto. Outros incidentes da mesma ordem foram revelados pela imprensa: do simples presente sem consequências, deixado em cima da cama de um guarda suíço, acompanhado por um cartão de visita, a tentativas de abordagem mais avançadas, que podemos classificar como assédio ou agressões sexuais.

– Levei muito tempo a aperceber-me de que estávamos rodeados, no Vaticano, por grandes frustrados, que consideram os guardas suíços como carne fresca. Impõem-nos o celibato e recusam-nos o direito a casar porque querem guardar-nos para eles, é tão simples como isso. São tão misóginos, tão perversos. Gostariam tanto de que fôssemos como eles: homossexuais escondidos!

Segundo Alexis, Nathanaël e pelo menos mais treze antigos guardas entrevistados na Suíça, as normas internas são bastante precisas no que se refere à homossexualidade, embora nunca seja referida enquanto tal durante a sua formação. Os guardas suíços são convidados a dar prova de uma «muito grande gentileza» para com os cardeais, bispos «e todos os monsignori». Pede-se àqueles que são considerados «magalas» que sejam muito obsequiosos e de uma delicadeza extrema. Nunca devem criticar uma eminência ou uma excelência, nem recusar-lhe o que quer que seja. Afinal, um cardeal é o apóstolo de Cristo na terra!

Por outro lado, essa cortesia deve ser uma fachada, segundo uma regra não escrita da Guarda. A partir do momento em que um cardeal dá o seu número de telefone a um jovem militar, ou o convida para tomar café, o guarda suíço deve recusar educadamente e comunicar-lhe que não está disponível. Se for insistente, deve receber sempre a mesma recusa e o encontro, caso tenha sido aceite por pusilanimidade, deve ser anulado com um pretexto qualquer de obrigação de serviço. Nos casos de assédio mais evidentes, os guardas suíços são exortados a falar no assunto aos seus superiores, mas a não reponderem, criticarem ou denunciarem um prelado, em caso algum. O caso é quase sempre arquivado sem seguimento.

Tal como os outros guardas suíços, Alexis confirma-me o grande número de homossexuais no Vaticano. Utiliza palavras fortes: «domínio», «omnipresença», «supremacia». Esta profunda homossexualidade chocou profundamente a maior parte dos guardas que entrevistei. Nathanaël, depois de terminado o seu serviço e oficializada a sua «libertação», não conta voltar a pôr, nunca mais, os pés no Vaticano, «exceto em férias com a minha mulher». Outro guarda suíço, entrevistado em Basileia, confirma-me que a homossexualidade dos cardeais e dos prelados é um dos temas mais discutidos no quartel e as histórias que ouvem contar aos seus camaradas aumentam ainda mais as que eles próprios testemunharam.

Com Alexis, tal como fiz com Nathanaël e os outros guardas suíços, evocamos os nomes precisos e a lista dos cardeais e arcebispos que lhes fizeram avanços confirma-se, tão comprida como a cappa magna do cardeal Burke. Apesar de estar informado do estado da questão, esses testemunhos surpreendem-me: o número dos eleitos é ainda maior do que pensava.

Porque é que aceitaram falar-me tão livremente, a ponto de se espantarem com a sua própria ousadia? Não por inveja ou vaidade, como inúmeros cardeais e bispos; nem para ajudar a causa, como a maioria dos meus contactos gays no interior do Vaticano; mas por deceção, como homens que perderam as suas ilusões.

E eis que Alexis me transmite agora outro segredo. Se os graduados que, como disse, estão autorizados a casar apenas raramente são homossexuais, as coisas são diferentes entre os confessores, capelães e padres que rodeiam os guardas suíços:

– Pedem-nos que vamos à capela que está reservada para nós e nos confessemos pelo menos uma vez por semana. Ora, nunca vi tantos homossexuais como entre os capelães da guarda suíça – revela-me Alexis.

O jovem dá-me o nome de dois capelães e confessores da guarda que, segundo ele, seriam homossexuais (essas informações ser-me-ão confirmadas por outro guarda suíço-alemânico e um padre da cúria). Referem-me igualmente o nome de um desses capelães que morreu de SIDA (o jornalista suíço Michael Meier também o revelou num artigo do Tages-Anzeiger, tornando público o seu nome).

DURANTE INÚMERAS ESTADAS NA SUÍÇA, aonde vou todos os meses de há vários anos a esta parte, encontrei-me com advogados especializados e responsáveis de diversas associações de defesa dos Direitos Humanos (como a SOS Rassismus und Diskriminierung Schweiz), que me chamaram a atenção para certas discriminações que afetam a guarda suíça, desde o processo de recrutamento até ao código de boa conduta aplicado no interior do Vaticano.

Assim, segundo um advogado suíço, o estatuto da associação que recruta os futuros guardas suíços, na confederação, seria ambíguo. É uma pessoa jurídica de direito suíço, ou de direito italiano, ou ainda de direito canónico da santa sé? O Vaticano deixa pairar esta ambiguidade para jogar nos três tabuleiros. Ora, uma vez que o processo de recrutamento desses cidadãos helvéticos ocorre na Suíça, deveria estar de acordo com o direito do trabalho, uma lei que se aplica inclusive às empresas estrangeiras que exercem atividades no país. Assim, as regras de recrutamento dos guardas são consideradas discriminatórias: as mulheres estão excluídas (quando são aceites no exército suíço); um jovem casado ou em união de facto não pode candidatar-se ao lugar, sendo aceites apenas os solteiros; a sua reputação deve ser «irrepreensível» e deve ser de «bons costumes» (fórmulas que visam implicitamente eliminar os gays, mas também as pessoas transexuais); quanto aos migrantes, apesar de serem tão caros ao papa Francisco, estão igualmente afastados do recrutamento. Finalmente, há poucos ou nenhuns deficientes e pessoas de cor, negros ou asiáticos, entre os guardas, o que pode deixar pensar que as suas candidaturas não são aceites.

Segundo os advogados que consultei, a mera proibição de ser casado seria discriminatória na Suíça, sem esquecer que também está em contradição com os princípios de uma Igreja que pretende incentivar o casamento e proibir todas as relações fora dele.

Pedi que interrogassem em alemão, através desse advogado, os responsáveis da guarda suíça quanto a essas anomalias jurídicas e as suas respostas são significativas. Repudiam a ideia de discriminação porque as restrições militares imporiam determinadas normas (contrárias, no entanto, ao código específico do exército suíço, que tem em conta especificidades quanto à idade e condições físicas dos recrutas). Tratando-se da homossexualidade, comunicaram-nos, por escrito, «que ser gay não é um problema quanto ao recrutamento, desde que não se seja demasiado “openly gay”, demasiado visível nem demasiado feminino». Finalmente, as normas orais transmitidas durante a formação dos guardas suíços e o seu código de conduta (o Regolamento della Guardia Svizzera Pontificia, que adquiri, e cuja última edição, prefaciada pelo cardeal Sodano, data de 2006), contêm também irregularidades em matéria de discriminação, de direito do trabalho e de silêncio em caso de assédio.

Anomalias não só jurídicas, em relação ao direito suíço, italiano ou europeu, mas também morais e teológicas, que dizem muito sobre as particularidades de um Estado decididamente fora das normas.