13.

A cruzada contra os gays

NO MOMENTO EM QUE O PAPA JOÃO PAULO II protege Marcial Maciel e que uma parte do seu círculo próximo engata os guardas suíços e se entrega à luxúria, o Vaticano trava a sua grande batalha contra os homossexuais.

Essa guerra não tem nada de novo. O fanatismo contra os sodomitas existe desde a Idade Média, o que não impediu dezenas de papas de serem suspeitos de ter inclinações, incluindo Pio XII e João XXIII – continuando a ser regra uma forte tolerância interna acompanhada de vivas críticas externas. A Igreja sempre foi mais homófoba nas suas palavras do que nas práticas do seu clero.

Todavia, esse discurso público do catolicismo torna-se mais rígido no final da década de 1970. A Igreja foi apanhada de surpresa pela revolução dos costumes que não previu, nem compreendeu. O papa Paulo VI, que não via esse assunto com grande clareza, reagiu logo em 1975 com a célebre «declaração» Persona Humana, que se insere na dinâmica da encíclica Humanae Vitae: o celibato dos padres é confirmado, a castidade, valorizada, as relações sexuais antes do casamento são proibidas e a homossexualidade é violentamente repudiada.

Em larga medida, e no plano doutrinal, o pontificado de João Paulo II (1978-2005) inscreve-se nessa continuidade, mas agrava-a por meio de um discurso cada vez mais homófobo no preciso momento em que o seu círculo próximo se lança numa nova cruzada contra os gays (Angelo Sodano, Stanislaw Dziwisz, Joseph Ratzinger, Leonardo Sandri, Alfonso López Trujillo, entre outros, estão nesse processo).

A partir do ano da sua eleição, o papa impede o debate. Num discurso de 5 de outubro de 1979, pronunciado em Chicago e dirigido a todos os bispos americanos, convida-os a condenar os chamados actos «contranatura»: «Como pastores cheios de compaixão, haveis tido razão ao dizer que “A atividade homossexual, que deve ser distinguida da tendência homossexual, é moralmente má”. Pela clareza desta verdade, provastes o que é a verdadeira caridade de Cristo; não haveis traído aqueles que, por causa da homossexualidade, se encontram confrontados com problemas morais penosos, como teria sido o caso se, em nome da compreensão e da piedade, ou por qualquer outra razão, tivésseis oferecido falsas esperanças aos nossos irmãos ou às nossas irmãs». (De notar a expressão «ou por qualquer outra razão», que poderia ser uma alusão aos hábitos bem conhecidos do clero americano.)

Porque é que João Paulo II decide aparecer, e tão precocemente, como um dos papas mais homófobos da história da Igreja? Segundo o vaticanista americano Robert Carl Mickens, que vive em Roma, haveria dois fatores essenciais:

– É um papa que nunca conheceu a democracia; por conseguinte, decidiu tudo sozinho, com as suas intuições geniais e os seus preconceitos arcaicos de católico polaco, nomeadamente os relacionados com a homossexualidade. Depois, o seu modus operandi, a sua linha durante todo o seu pontificado, é a unidade: pensa que uma Igreja dividida é um Igreja fraca. Impôs uma grande rigidez para proteger essa unidade e a teoria da infalibilidade pessoal do sumo pontífice fez o resto.

A escassa cultura democrática de João Paulo II é referida por vezes, tanto em Cracóvia como em Roma, por aqueles que o conheceram, o mesmo se passando com a sua misoginia e homofobia. Todavia, o papa tolera muito bem a omnipresença de homossexuais no seu círculo próximo. São tão numerosos, tão praticantes, entre os seus ministros e os seus assistentes, que não pode ignorar os seus modos de vida e não apenas as suas «tendências». Então, porquê manter uma tal esquizofrenia? Porquê deixar instalar-se uma tal hipocrisia? Porquê uma tal intransigência pública e uma tal tolerância privada? Porquê? Porquê?

A cruzada que João Paulo II vai lançar contra os gays, contra o preservativo e, em breve, contra as uniões de facto, inscreve-se portanto num contexto novo e, para a descrever, há que entrar no seio da máquina vaticana que, só por si, permite compreender a sua violência, o seu motor psicológico profundo – o ódio a si mesmo que funciona como o seu potente motor secreto – e, finalmente, o seu fracasso. Porque é uma guerra que João Paulo II vai perder.

Vou contá-la, para começar, através da experiência de um ex-monsignore, Krzysztof Charamsa, um simples elo da máquina de propaganda, que nos revelou a parte sombria desta história ao fazer o seu coming out. Interessar-me-ei em seguida por um cardeal da cúria, Alfonso López Trujillo, que foi um dos seus principais atores – e cujo percurso segui minuciosamente na Colômbia, na América Latina, e depois em Roma.

A PRIMEIRA VEZ em que ouvi falar de Krzysztof Charamsa foi através de um email: o seu. O prelado contactou-me quando ainda trabalhava para a Congregação para a Doutrina da Fé. O padre polaco gostara, escreveu, do meu livro Global Gay e pedia-me ajuda para mediatizar o coming out que se preparava para fazer e que me confiava sob o selo do segredo. Não sabendo então se se tratava de um prelado importante, como afirmava, ou de um charlatão, fiz algumas perguntas ao meu amigo italiano Pasquale Quaranta, jornalista de La Repubblica, a fim de verificar a sua biografia.

Depois de confirmada a autenticidade do testemunho, troquei alguns emails com Mons. Charamsa, recomendei-lhe o nome de alguns jornalistas e, em outubro de 2015, imediatamente antes do sínodo sobre a família, o seu coming out muito mediatizado chamou todas as atenções e deu a volta ao mundo.

Encontrei-me com Krzysztof Charamsa alguns meses depois, em Barcelona, onde se exilara depois de ter sido demitido das suas funções pelo Vaticano. Tornado ativista queer e militante pela independência da Catalunha, causou-me bastante boa impressão. Jantámos a três com Éduard, o seu namorado, e sentia nele, e no olhar que lançava a Éduard, um certo orgulho, um pouco como alguém que tivesse acabado de fazer, sozinho, a sua pequena revolução, o seu «One-Man Stonewall».

– Já te apercebeste do que ele fez? Da sua coragem? Foi capaz de fazer tudo isso por amor. Por amor pelo homem que ama – disse-me Pasquale Quaranta.

Vimo-nos ainda em Paris no ano seguinte e, durante diversas conversas, Charamsa contou-me a sua história, que iria transformar em livro mais tarde, La Première Pierre. Nas suas entrevistas e nos seus escritos, o antigo padre manteve sempre uma espécie de contenção, de reserva, talvez por receio ou por forma de expressão estereotipada, que o impediria de contar toda a verdade. Todavia, se ele realmente falasse um dia, o seu testemunho seria capital, porque Charamsa esteve no cerne da máquina de guerra homofóbica do Vaticano.

A Congregação para a Doutrina da Fé foi chamada durante muito tempo o Santo Ofício estando a seu cargo a tristemente célebre «Inquisição» e o seu famoso «Índex», a lista dos livros censurados ou proibidos. Este «ministério» do Vaticano continua hoje em dia, tal como o seu nome indica, a fixar a doutrina e a definir o bem e o mal. Sob João Paulo II, este dicastério estratégico, o segundo por ordem protocolar após a secretaria de Estado, era dirigido pelo cardeal Joseph Ratzinger. Foi ele que pensou e promulgou a maior parte dos textos contra a homossexualidade e examinou a maior parte dos processos de abusos sexuais na Igreja.

Krzysztof Charamsa trabalhava lá, como consultor e secretário-adjunto da comissão teológica internacional. Completo o seu relato recorrendo aos de quatro outros testemunhos internos, os de outro consultor, de um membro da comissão, de um perito e de um cardeal membro do conselho desta Congregação. Além disso, tive pessoalmente o ensejo de passar inúmeras noites, graças à hospitalidade de padres compreensivos, no santo dos santos: uns apartamentos do Vaticano perto da praça Santa Marta, a alguns metros do Palácio do Santo Ofício.

A Congregação para a Doutrina da Fé reúne cerca de quarenta assalariados permanentes, chamados ufficiali, scrittori ou ordinanze, geralmente padres muito ortodoxos, fiéis e fiáveis (Charamsa fala deles como «funcionários da Inquisição»). Na sua maioria são altamente diplomados, amiúde em teologia, bem como em direito canónico ou em filosofia. São assistidos por uma trintena de consultori externos.

De um modo geral, cada «processo inquisitorial» (hoje em dia diríamos «ponto de doutrina») é estudado pelos funcionários, discutido em seguida pelos peritos e consultores, antes de ser submetido ao conselho dos cardeais que o ratifica. Esta aparente horizontalidade, fonte de debates, esconde na realidade uma verticalidade: só um homem está autorizado a interpretar os textos e ditar «a» verdade, porque o prefeito da Congregação (Joseph Ratzinger, sob João Paulo II, William Levada e depois Gerhard Müller sob Bento XVI – ambos enfeudados a Ratzinger) tem, naturalmente, o controlo sobre todos os documentos: propõe-nos, altera-os e valida-os, antes de os apresentar ao papa, durante audiências privadas decisivas. O santo padre tem a última palavra. Vemo-lo – e sabemo-lo desde Nietzsche – a moral é sempre um instrumento de domínio.

Também é um terreno propício à hipocrisia. Entre os vinte cardeais que figuram atualmente no organigrama da Congregação para a Doutrina da Fé, pensamos que exista entre eles cerca de uma dúzia de homófilos ou homossexuais praticantes. Pelo menos cinco vivem com um namorado. Três recorrem regularmente a prostitutos. (Mons. Viganò critica ou faz o «outing» de sete deles, na sua «Testimonianza».)

A Congregação é, por conseguinte, um caso clínico interessante e o coração da hipocrisia vaticana. Oiçamos Charamsa: «Sendo em boa parte homossexual, esse clero impõe o ódio aos homossexuais, isto é, o ódio a si mesmo, num acto masoquista desesperado».

Segundo Krzysztof Charamsa, bem como outros testemunhos internos, a questão homossexual torna-se, sob o prefeito Ratzinger, uma verdadeira obsessão doentia. As poucas linhas do Antigo Testamento dedicadas a Sodoma são lidas e relidas lá; a ligação entre David e Jónatas reinterpretada incessantemente, tal como a frase de Paulo, no Novo Testamento, que confessa o seu sofrimento por ter «um espinho na carne» (Paulo sugere assim a sua homossexualidade). E de súbito, quando se está desvairado por esse desamparo, quando se compreende que o catolicismo abandona e angustia a existência, talvez comecem a chorar em segredo?

Estes eruditos homófobos da Congregação para a Doutrina da Fé têm o seu próprio código SWAG – Secretly We Are Gay. Quando esses padres falam entre si, jargão feérico, do apóstolo João, o «discípulo que Jesus amava», esse «João, já querido mais do que os outros», aquele que «Jesus, tendo-o olhado, amou», sabem muito bem o que querem dizer; e quando evocam a imagem da cura, por Jesus, de um jovem criado de centurião, «que lhe era caro», segundo as insinuações bem apoiadas do Evangelho segundo São Lucas, o significado de tudo isso não apresenta dúvidas aos seus olhos. Sabem que pertencem a um povo maldito – e a um povo eleito.

Durante os nossos encontros em Barcelona e em Paris, Charamsa descreve-me minuciosamente esse universo secreto, a mentira tão agarrada aos corações, a hipocrisia erigida em norma, a linguagem estereotipada, a lavagem aos cérebros, e diz-me tudo isso em tom de confissão, como se desvendasse a intriga de O Nome da Rosa, onde os monges se cortejam e trocam favores entre si até ao dia em que, invadido pelos remorsos, um jovem monge se atira de uma torre.

– Lia e trabalhava a toda a hora. Só fazia isso. Era um bom teólogo. Foi por isso que os teólogos da Congregação ficaram tão surpreendidos com o meu coming out. Esperavam isso de toda a gente, menos de mim – conta-me o padre polaco.

Durante muito tempo, o ortodoxo Charamsa obedeceu às ordens sem estados de alma e contribuiu inclusive para a escrita de textos de uma violência inaudita contra a homossexualidade «objetivamente desordenada». Sob João Paulo II e o cardeal Ratzinger, é mesmo um festival. O sílabo, na sua totalidade, não contém palavras suficientemente duras contra os gays. A homofobia exibe-se ad nauseam em dezenas de declarações, exortações, cartas, instruções, considerações, observações, homilias, motu próprio e encíclicas a tal ponto que seria penoso listar aqui todas essas «bulas».

O Vaticano tenta proibir a entrada dos homossexuais nos seminários (sem se dar conta de que, desse modo, esgota as vocações); legitima a sua exclusão do exército (na altura, até os Estados Unidos decidem suspender a regra do «Don’t ask, don’t tell»); propõe-se legitimar teologicamente as discriminações de que os homossexuais possam ser alvo no seu trabalho; e, claro, condena as uniões do mesmo sexo e o casamento.

No dia seguinte à World Gay Pride que se realizou em Roma, a 8 de julho de 2000, João Paulo II toma a palavra durante a oração tradicional do angelus para denunciar «as manifestações bem conhecidas» e afirmar a sua «tristeza pela afronta feita ao Grande Jubileu do ano 2000». Mas os fiéis são em pequeno número nesse fim-de-semana, em comparação com as 200 000 pessoas gay-friendly que desfilam pelas ruas de Roma.

«A Igreja dirá sempre o que está bem e o que está mal. Ninguém pode exigir dela que ache justa uma coisa que é injusta segundo a lei natural e a lei evangélica», afirma, quando dessa gay pride, o cardeal Angelo Sodano que fez tudo para proibir o desfile LGBT. De notar também, no mesmo momento, os ataques do cardeal Jean-Louis Tauran que reprova essa manifestação «durante o ano Santo» e os do bispo auxiliar de Roma, Mons. Rino Fisichella, cuja divisa episcopal é «Escolhi o caminho da verdade» e que não encontra palavras suficientemente duras para criticar a World Gay Pride! Aliás, circulou bastante uma piada no interior do Vaticano, para explicar essas três tomadas de posição combativas: os cardeais estavam furiosos contra a parada gay porque lhes tinham recusado um carro!

Por ter feito o seu «coming out» demasiado ruidosamente ou por o ter feito demasiado tardiamente, Krzysztof Charamsa é, hoje em dia, atacado tanto pela cúria como pelo movimento gay italiano. Tendo passado, de um ápice, da homofobia internalizada a drama queen, o prelado incomoda. Assim, comunicaram-me na Congregação para a Doutrina da Fé que a sua demissão estaria ligada ao facto de não ter obtido uma promoção que esperava. A sua homossexualidade teria sido descoberta, uma vez que há vários anos que vivia com o seu namorado.

Um prelado da cúria, bom conhecedor do processo, e também ele homossexual, explica-me:

– Charamsa estava no coração da máquina homofóbica vaticana. Levava uma vida dupla: atacava os gays em público; e vivia com o seu amante, em privado. Durante muito tempo, adaptou-se a este sistema, que condenou de repente, nas vésperas do sínodo, pondo em dificuldades a ala liberal da cúria. O que é problemático é que ele teria podido, tal como eu e outros, colocar-se ao lado dos progressistas, como os cardeais Walter Kasper ou o muito friendly Christoph Schönborn. Em vez disso, denunciou-os e atacou-os durante anos. Para mim, Charamsa continua a ser um mistério. (Estes julgamentos severos, típicos da contracampanha levada a cabo pelo Vaticano, não contradizem em nada o relato de Krzysztof Charamsa, que reconheceu ter «sonhado vir a ser prefeito inquisidor» e participou num verdadeiro «serviço de polícia das almas».)

Por outro lado, Charamsa não foi defendido pela comunidade gay italiana que criticou o seu «pink-washing», como confirma este outro ativista:

– Nas suas entrevistas e no seu livro, não explicou nada do sistema. Só falou de si, da sua pessoa insignificante. Essa confissão não tem qualquer interesse: fazer o coming out em 2015, tem um atraso de cinquenta anos! O que nos teria interessado, era que expusesse o sistema a partir do interior, que descrevesse tudo, à Soljenitsin.

Julgamento severo, provavelmente, apesar de, é um facto, Charamsa não ter sido o Soljenitsin gay do Vaticano que alguns poderiam esperar.

A CRUZADA CONTRA OS GAYS é conduzida, sob João Paulo II, por outro prelado ainda mais influente do que o ex-padre Charamsa. É um cardeal, entre os mais próximos de João Paulo II. O seu nome: Alfonso López Trujillo. O seu título: presidente do Conselho Pontifício para a Família.

Entramos aqui numa das páginas mais sombrias da história recente do Vaticano: tenho de levar todo o tempo necessário, de tal modo o caso é absolutamente extraordinário.

Quem é Alfonso López Trujillo? A fera nasceu em 1935 em Villahermosa, na região de Tolima, na Colômbia. É ordenado padre, em Bogotá, aos vinte e cinco anos e, dez anos depois, torna-se bispo auxiliar dessa mesma cidade, antes de ir para Medellín de que é nomeado arcebispo, aos 43 anos. Percurso clássico, em suma, para um padre bem-nascido e que nunca teve falta de dinheiro.

A carreira notável de Alfonso López Trujillo deve muito ao papa Paulo VI, que reparou nele precocemente, quando da sua visita oficial à Colômbia, em agosto de 1968, e ainda mais a João Paulo II que fez dele, desde o início do seu pontificado, o seu homem de confiança na América Latina. A razão dessa grande amizade é simples, e idêntica à que o papa polaco tem, no mesmo momento, pelo núncio Angelo Sodano ou o padre Marcial Maciel: o anticomunismo.

Alvaro Léon, hoje em dia na reforma, foi durante muitos anos monge beneditino e, quando era um jovem seminarista, «mestre de cerimónia» de Alfonso López Trujillo, em Medellín. É aí que me encontro com esse homem idoso, com um belo rosto esgotado, acompanhado pelo meu principal investigador colombiano, Emmanuel Neisa. Alvaro Léon deseja aparecer no meu livro com o seu nome verdadeiro, «porque esperei tantos anos para falar», diz-me, «que agora quero fazê-lo completamente, com coragem e precisão».

Almoçamos juntos num restaurante próximo da catedral de Medellín e Alvaro Léon leva o seu tempo a contar-me a sua vida ao lado do arcebispo, fazendo render o suspense. Vamos ficar juntos até ao final da tarde, percorrendo a cidade e os seus cafés.

– López Trujillo não é de cá. Só estudou em Medellín e teve uma vocação tardia. Inicialmente, estudava psicologia e só mais tarde se tornou seminarista na cidade.

Aspirante ao sacerdócio, o jovem López Trujillo é enviado para Roma para fazer os seus estudos de filosofia e teologia no Angelicum. Graças a um doutoramento e a um bom conhecimento do marxismo, vai poder lutar com armas iguais com os teólogos de esquerda, e combatê-los à direita – se não à extrema-direita – como testemunham vários livros seus.

De regresso a Bogotá, o jovem é ordenado padre em 1960. Durante dez anos, dirige o ministério na sombra, já com uma grande ortodoxia e não sem alguns incidentes.

– Muito em breve, começaram a circular rumores sobre ele. Quando é nomeado bispo auxiliar de Bogotá, em 1971, um grupo de leigos e padres afixa inclusive, diante da catedral da cidade, uma petição para denunciar o seu extremismo e contra a sua nomeação! Foi a partir desse momento que López Trujillo se tornou completamente paranoico – conta-me Alvaro Léon.

Segundo todas as testemunhas que interroguei na Colômbia, a aceleração inesperada da carreira de López Trujillo faz-se no Conselho episcopal latino-americano (CELAM) que reúne regularmente o conjunto dos bispos hispânicos, para definir as orientações da Igreja católica na América do Sul.

Uma das conferências fundadoras realiza-se precisamente em Medellín, em 1968 (a primeira realizou-se no Rio de Janeiro, em 1955). Nesse ano, quando os campus universitários se inflamam na Europa e nos Estados Unidos, a Igreja católica está em plena efervescência na sequência de Vaticano II. O papa Paulo VI faz uma paragem na Colômbia, para lançar a Conferência do CELAM.

Essa grande missa revela-se decisiva: uma corrente progressista, que em breve será chamada «teologia da libertação» pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez, aparece lá. É um ponto de viragem na América Latina onde grandes sectores da Igreja se põem a valorizar uma «opção preferencial pelos pobres». Inúmeros bispos defendem a «libertação dos povos oprimidos», a descolonização e denunciam as ditaduras militares da extrema-direita. Em breve, uma minoria tomba no esquerdismo, com os seus padres guevaristas ou castristas e aqueles que, mais raros, como os padres Camilo Torres Restrepo, colombiano, ou Manuel Pérez, espanhol, juntam o gesto à palavra e pegam em armas ao lado das guerrilhas.

Segundo o venezuelano Rafael Luciani, um especialista em teologia da libertação, também ele membro do CELAM e professor de teologia no Boston College, «López Trujillo emerge verdadeiramente em reação à Conferência de Medellín». Durante vários encontros e jantares, Luciani dá-me inúmeras informações sobre o CELAM e o papel que o futuro cardeal aí desempenhou.

A Conferência de Medellín, cujos debates e declarações López Trujillo seguiu de perto como simples padre, foi um despertar para ele. Compreende que a guerra fria acabou de atingir a Igreja latino-americana. A sua leitura é binária e basta-lhe seguir a sua vertente para escolher um campo.

Integrado pouco a pouco nas instâncias administrativas do CELAM, o jovem bispo, recém-eleito, começa o seu trabalho de lóbi interno a favor de uma opção política de direita e milita, ainda discretamente, contra a teologia da libertação e a sua opção preferencial pelos pobres. O seu projeto: fazer de maneira que o CELAM se ligue de novo a um catolicismo conservador. Ficará sete anos nesse lugar.

Nesse momento, está ligado ao Vaticano para levar a cabo o seu trabalho de sapa? Decerto, porque foi nomeado para o CELAM graças ao apoio do Vaticano e, nomeadamente, do influente cardeal italiano Sebastiano Baggio, antigo núncio no Brasil que assumiu a direção da Congregação para os Bispos. Todavia, o colombiano só se tornará o ponta de lança do dispositivo antiteologia da libertação de João Paulo II a partir da Conferência de Puebla, no México, em 1979.

– Em Puebla, López Trujillo foi muito influente, muito forte, lembro-me muito bem. A teologia da libertação era uma espécie de consequência do Vaticano II, dos anos de 1960… e também do maio de 1968 em França [ri]. Por vezes era demasiado politizada e abandonara o verdadeiro trabalho da Igreja – explica-me o cardeal brasileiro Odilo Scherer, durante uma conversa em São Paulo.

Nesse ano, em Puebla, López Trujillo, agora arcebispo, passa, portanto, à ação direta. «Preparem os bombardeiros», escreve a um colega, antes da conferência. Organiza-o minuciosamente fazendo, diz-se, trinta e nove viagens entre Bogotá e Roma para preparar a reunião. É ele que se encarrega de que um teólogo como Gustavo Gutiérrez seja afastado da sala da conferência sob o pretexto de não ser bispo…

Quando a Conferência do CELAM se inicia no México, com um discurso inaugural de João Paulo II, que se deslocou especialmente para o efeito, López Trujillo tem um plano de batalha preciso: pretende reconquistar o poder ao grupo progressista e fazer tombar a organização para a direita. Sempre treinado «como um pugilista antes do combate», segundo a sua expressão, está disposto a terçar armas com os padres «esquerdistas», algo que me é confirmado pelo célebre dominicano brasileiro Frei Betto, durante uma conversa no Rio de Janeiro:

– Na época, os bispos eram, na sua maioria, conservadores. Mas López Trujillo não era apenas um conservador: era uma pessoa de extrema-direita. Estava abertamente ao lado do grande capital e da exploração dos pobres: defendia mais o capitalismo do que a doutrina da Igreja. Tinha tendências cínicas. Na Conferência do CELAM, em Puebla, foi ao ponto de esbofetear um cardeal!

Alvaro Léon, o antigo colaborador de López Trujillo, continua:

– O resultado de Puebla é um êxito parcial de López Trujillo. Consegue recuperar o poder e fazer-se eleger presidente do CELAM, mas, ao mesmo tempo, não se livrou da teologia da libertação que continuará a fascinar um número importante de bispos.

Detendo agora o poder, Alfonso López Trujillo pode afinar a sua estratégia política e usar métodos iconoclastas para firmar a sua influência. Dirige o CELAM, com mão de ferro, entre 1979 e 1983, e Roma aprecia ainda mais a sua combatividade porque é levada a cabo, como acontece com Marcial Maciel, por um «local». Já não é necessário enviar cardeais italianos largados de paraquedas nem utilizar os núncios apostólicos para travar uma guerra contra o comunismo na América Latina: basta recrutar os bons latinos servis para «fazerem o trabalho».

E Alfonso López Trujillo é tão dedicado, tão fervoroso, que faz o seu trabalho de erradicação da teologia da libertação, com zelo, em Medellín, em Bogotá e em breve em toda a América Latina. Num retrato irónico de The Economist, será mesmo apresentado com o seu solidéu vermelho de cardeal, verdadeira boina de Che Guevara ao contrário!

O novo papa João Paulo II e o seu séquito cardinalício ultraconservador, que controlam agora o seu guerreiro López Trujillo, vão fazer da capitulação total da teologia da libertação a sua prioridade. Essa é também a linha da administração americana: o relatório da comissão Rockefeller, redigido a pedido do presidente Nixon, estima, logo em 1969, que a teologia da libertação é mais perigosa do que o comunismo; na década de 1980, sob Reagan, a CIA e o Departamento de Estado ainda continuam a vigiar as ideias subversivas desses padres vermelhos latinos.

Pelo seu lado, o sumo pontífice vai nomear, na América Latina, um número impressionante de bispos de direita e extrema-direita, durante as décadas de 1980 e 1990.

– Os bispos nomeados na América Latina, durante o pontificado de João Paulo II, eram, na sua maioria, próximos do Opus Dei – confirma o docente universitário Rafael Luciani, membro do CELAM.

Paralelamente, o cardeal Joseph Ratzinger, que assumiu a chefia da Congregação para a Doutrina da Fé, trava o combate ideológico contra os pensadores da teologia da libertação que acusa de utilizar «conceitos marxistas» e castiga duramente vários deles (López Trujillo faz parte dos redatores dos dois documentos antiteologia da libertação publicados por Ratzinger, em 1984 e 1986).

Em menos de dez anos, a maioria dos bispos do CELAM inclina-se para a direita. A corrente da teologia da libertação torna-se minoritária nos anos de 1990 e terá de esperar-se pela quinta Conferência do CELAM, em 2007, que se realizará em Aparecida, no Brasil, para que reapareça uma nova corrente moderada, encarnada pelo cardeal argentino Jorge Bergoglio. Uma linha anti López Trujillo.

NUMA NOITE DE OUTUBRO DE 2017, encontro-me em Bogotá com um antigo seminarista, Morgain, que conviveu e trabalhou durante muito tempo com López Trujillo, em Medellín. O homem é fiável; o seu depoimento, irrefutável. Continua a trabalhar para o episcopado colombiano, o que torna difícil a sua palavra pública (o seu nome foi alterado). Mas sossegado com o facto de eu o ir citar sob um nome falso, começa a contar-me, sussurrando, os rumores e depois, em breve, em voz alta, os escândalos. Também guarda há tantos anos estas informações secretas que acaba por esvaziar o saco, com inúmeros pormenores, durante um longo jantar, em que também participa o meu investigador colombiano, Emmanuel Neisa

– Nessa época, trabalhava com o arcebispo López Trujillo em Medellín. Ele vivia na opulência e deslocava-se como um príncipe ou, melhor, como uma verdadeira «señora». Quando chegava num dos seus automóveis de luxo para fazer uma visita episcopal, exigia que mandássemos colocar uma passadeira vermelha. Em seguida, descia do automóvel, esticava a perna, de que primeiro apenas víamos o tornozelo, depois pousava um pé na passadeira, como se fosse a Rainha de Inglaterra! Todos devíamos beijar-lhe os anéis e tinha de haver em toda a parte, à sua volta, incenso. Para nós, aquele luxo, aquele espetáculo, a passadeira, eram muito chocantes.

Este nível de vida de outros tempos é acompanhado por uma verdadeira caça aos padres progressistas. Segundo Morgain, cujo testemunho é confirmado pelo de outros padres, Alfonso López Trujillo identificava, no decurso das suas digressões de diva, os padres próximos da teologia da libertação. Estranhamente, alguns desses padres desapareciam ou eram por vezes assassinados pelos paramilitares, imediatamente depois da visita do arcebispo.

Na década de 1980, Medellín tornou-se, é verdade, a capital mundial do crime. Os narcotraficantes, nomeadamente o célebre cartel de Medellín de Pablo Escobar – estima-se que, então, gere 80% do mercado de cocaína para os Estados Unidos –, fazem reinar o terror. Face à explosão da violência – simultaneamente, a guerra dos narcos, o aumento do poder das guerrilhas e os confrontos entre cartéis rivais –, o governo colombiano decreta o estado de emergência («estatuto de seguridad»). Mas a sua impotência é evidente: só no ano de 1991, são contados mais de seis mil homicídios em Medellín.

Perante esta espiral infernal, criam-se grupos paramilitares na cidade para organizar a defesa das populações, sem que nem sempre seja possível saber se essas milícias, por vezes públicas, amiúde privadas, trabalham para o governo, para os cartéis ou por conta própria. Esses famosos «paramilitares» vão semear, por sua vez, o terror na cidade e, em seguida, lançar-se também eles, para se financiarem, no tráfico de droga. Pelo seu lado, Pablo Escobar reforça, junto a si, o seu Departamento de Orden Ciudadanos (DOC), a sua própria milícia paramilitar. Afinal de contas, a fronteira entre os narcotraficantes, os guerrilheiros e os paramilitares esbate-se totalmente, precipitando Medellín, e toda a Colômbia, numa verdadeira guerra civil.

É neste contexto que temos de recolocar o percurso de López Trujillo. Segundo os jornalistas que investigaram o arcebispo de Medellín (em especial, Hernando Salazar Palacio no seu livro La Guerra Secreta del Cardenal López Trujillo, ou Gustavo Salazar Pineda, na obra El Confidente de la Mafia se Confiesa) e as pesquisas que Emmanuel Neisa efetuou para mim no país, o prelado esteve ligado a determinados grupos paramilitares próximos dos narcotraficantes. Teria sido grandemente financiado por esses grupos – talvez diretamente por Pablo Escobar, que se apresentava como católico praticante – e tê-los-ia informado regularmente das atividades esquerdistas no seio das igrejas de Medellín. O advogado Gustavo Salazar Pineda, em especial, afirma no seu livro que López Trujillo recebia malas com notas da parte de Pablo Escobar, mas o visado negou ter conhecido Escobar. (Sabemos, através de uma investigação aprofundada de Jon Lee Anderson para o New Yorker, que Pablo Escobar tinha o hábito de recompensar os padres que o apoiavam, os quais se iam embora com malas cheias de dinheiro.)

Nessa época, os paramilitares perseguiam os padres progressistas com um encarniçamento tão mais violento quanto consideravam, por um lado com razão, que esses padres da teologia da libertação eram aliados das três principais guerrilhas colombianas (as FARC, o E.L.N. e o M-19).

– López Trujillo deslocava-se com membros dos grupos paramilitares – afirma também Alvaro Léon (que participou, enquanto mestre de cerimónias do arcebispo, em diversas deslocações dessas). – Ele dizia-lhes quais os padres que realizavam ações sociais nos bairros e nas zonas pobres. Os paramilitares identificavam-nos e, por vezes, regressavam mais tarde para os assassinar; amiúde, tinham de abandonar a região ou o país. (Este relato aparentemente inverosímil é corroborado por testemunhos apresentados pelos jornalistas Hernando Salazar Palacio e Gustavo Salazar Pineda, nos seus respetivos livros.)

Um dos locais onde o prevaricador López Trujillo teria denunciado vários padres de esquerda foi a chamada Parroquia Santo Domingo Savio, em Santo Domingo, um dos bairros mais perigosos de Medellín. Quando visito essa igreja com Alvaro León e Emmanuel Neisa, obtemos informações precisas sobre essas atrocidades. Alguns missionários que trabalhavam lá em contacto com os pobres foram efetivamente assassinados e um padre da mesma corrente teológica, Carlos Calderón, foi perseguido pessoalmente por López Trujillo e depois pelos paramilitares, antes de ter de fugir do país para África.

– Ocupei-me das deslocações de López Trujillo aqui a Santo Domingo. Geralmente, chegava com uma escolta de três ou quatro veículos, com guarda-costas e paramilitares por todo o lado. O seu séquito era impressionante! Toda a gente estava muito bem vestida. Os sinos da igreja deviam tocar até ele descer do seu carro de luxo e, claro, devia haver uma passadeira vermelha. As pessoas deviam beijar-lhe a mão. Também era preciso haver música, um coro, mas os cabelos das crianças tinham de ser cortados antecipadamente, para estarem perfeitos, e não podia haver negros. Era durante estas visitas que os padres progressistas eram identificados e denunciados aos paramilitares – confirma-me Alvaro Léon, na escadaria da igreja da Parroquia Santo Domingo Savio.

Acusações que são afastadas, com um movimento de mão, por Mons. Angelo Acerbi, que foi núncio em Bogotá, entre 1979 e 1990, quando o interrogo em Santa Marta, no interior do Vaticano, onde se reformou:

– López Trujillo era um grande cardeal. Posso garantir-lhe que, em Medellín, nunca teve a menor conivência nem com os paramilitares nem com os guerrilheiros. Sabe, foi muito ameaçado pelas guerrilhas. Foi até detido e preso. Era muito corajoso.

Considera-se hoje em dia que López Trujillo é direta ou indiretamente responsável pela morte de bispos e de dezenas de padres eliminados por causa das suas convicções progressistas.

– É importante que seja feita a história dessas vítimas porque a legitimidade do processo de paz passa hoje em dia por esse reconhecimento – diz-me, durante várias conversas em Bogotá, José Antequera, o porta-voz da associação das vítimas «Hijos e Hijas», cujo pai foi assassinado.

É necessário sublinhar também a incrível riqueza que o arcebispo acumula durante esse período. Segundo diversos testemunhos, abusava das suas funções para requisitar todos os objetos de valor detidos pelas igrejas que visitava – as joias, os cálices de prata, os quadros – que recuperava em proveito próprio.

– Confiscava todos os objetos de valor das paróquias e revendia-os ou oferecia-os a cardeais ou bispos da cúria romana, para obter as suas boas graças. Um pároco elaborou um inventário minucioso de todos esses roubos – conta-me Alvaro Léon.

Nestes últimos anos, foram publicados, na Colômbia, depoimentos de antigos arrependidos da máfia, ou dos seus advogados, que confirmam os vínculos existentes entre o cardeal e os cartéis da droga ligados aos paramilitares. Esses rumores eram antigos, mas segundo a investigação de vários grandes repórteres colombianos, o cardeal teria sido financiado realmente por determinados traficantes de droga, o que contribuiria para explicar, ademais da sua fortuna familiar pessoal, o seu nível de vida e a sua coleção de automóveis de luxo.

– E então, num belo dia, López Trujillo desapareceu – conta Morgain. – Volatilizou-se, literalmente. Partiu e nunca mais voltou a pôr os pés na Colômbia.

UMA NOVA VIDA começa em Roma para o arcebispo de Medellín. Depois de ter ajudado eficazmente a extrema-direita colombiana, empenha-se agora em encarnar a linha conservadora dura de João Paulo II sobre a questão dos costumes e da família.

Já cardeal, desde 1983, exila-se definitivamente no Vaticano por ocasião da sua nomeação para presidente do Conselho Pontifício para a Família, em 1990. Este novo «ministério», criado pelo papa pouco depois da sua eleição, constitui uma das prioridades do pontificado.

A partir desse período e graças à confiança cada vez maior que lhe concede o papa João Paulo II – e também os seus protetores e amigos próximos Angelo Sodano, Stanislaw Dziwisz e Joseph Ratzinger – a vaidade de López Trujillo, já fora do comum, torna-se incontrolável. Ei-lo que começa a parecer-se com uma figura do antigo testamento, com as suas cóleras, as suas excomunhões e os seus delírios. Mantendo sempre esse nível de vida inimaginável para um padre, mesmo que agora seja cardeal. Os rumores aumentam e alguns padres transmitem por vezes histórias curiosas a seu respeito.

À frente do seu «ministério» da família, que transforma num «war room», López Trujillo desenvolve uma energia sem igual para condenar o aborto, defender o casamento e denunciar a homossexualidade. Aquele que é de uma misoginia aterradora, segundo todas as testemunhas, concebe também a guerra contra a teoria do género. «Workaholic», segundo diversas fontes, intervém em inúmeras tribunas em todo o mundo para denunciar o sexo antes do casamento e os direitos dos gays. Nesses fóruns, torna-se constantemente notado por uma escalada de excessos de linguagem contra os cientistas «interruptores de gravidez» que acusa de cometerem crimes com as suas provetas graduadas e os infames médicos de bata branca que recomendam a utilização do preservativo em vez de pregarem a abstinência antes do casamento.

A SIDA, agora um flagelo mundial, torna-se a nova obsessão de López Trujillo onde a sua cegueira se expande impunemente. «O preservativo não é uma solução», repete em África, com a sua autoridade de cardeal, limitar-se-ia a incentivar a «promiscuidade sexual», enquanto a castidade e o casamento são as únicas respostas verdadeiras perante a pandemia.

Por onde quer que passa, tanto em África, como na Ásia e, claro, na América Latina, exorta os governos e os organismos especializados da ONU a não cederem às «mentiras» e incita as populações a não utilizarem preservativos. Declara mesmo, no início da década de 2000, numa entrevista à BBC, que uma vez que os preservativos estão cheios de «micro-orifícios» deixam passar o vírus da SIDA que é «450 vezes mais pequeno do que um espermatozoide»! Se o problema da SIDA não fosse tão grave, poderíamos contrapor-lhe o comentário famoso de um ministro francês: «O cardeal não percebeu nada do preservativo: mete-o no índex».

Em 1995, López Trujillo é o autor de um Léxico da família: termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspetos éticos, pretendendo banir, entre esses termos, a expressão «safe sex», a «teoria do género» ou o «planeamento familiar». Inventa também algumas expressões próprias como «colonialismo contracetivo» e o notabilíssimo «pansexualismo».

A sua obsessão antigay, porque ultrapassa a média e a norma (no entanto já exorbitantes no Vaticano), tornou-se suspeita dentro em breve. Internamente, esta cruzada espanta: que esconde o cardeal por detrás deste combate tão excessivo e tão pessoal? Por que razão é tão «maniqueísta»? Por que razão procura, a esse ponto, a provocação e luz dos holofotes?

No Vaticano, alguns começam a troçar dos seus excessos e gratificam esse desmancha prazeres com uma bela alcunha: «coïtus interruptus». Externamente, a associação Act Up faz dele uma das suas sombras negras: mal ele se exprime em qualquer lugar, militantes disfarçados de preservativos gigantes, ou vestidos com t-shirts explícitas, triângulo cor-de-rosa sobre fundo negro, vão festejá-lo. Ele condena esses sodomitas blasfemos que o impedem de se expressar; eles, aquele profeta Loth que quer crucificar os gays.

A história julgará severamente López Trujillo. Mas, em Roma, este heroico combatente é mostrado como exemplo por João Paulo II e Bento XVI, saudado até à caricatura pelos cardeais secretários de Estado Angelo Sodano e Tarcisio Bertone.

Foi considerado «papabile» à morte do papa e João Paulo II tê-lo-ia inserido inclusive na lista dos seus potenciais sucessores, pouco antes da sua morte, em 2005 – algo que, no entanto, não está provado. Mas o facto de este apóstolo aliciador que usava anátemas e imprecações contra tantos católicos de esquerda, e mais ainda contra os casais divorciados, os costumes contranatura e o Mal, encontrar subitamente uma tribuna, um eco e talvez até partidários, graças a um mal-entendido gigantesco, entre os pontificados de João Paulo II, a terminar, e o de Bento XVI, que se inicia, é o presente envenenado das circunstâncias.

Em Roma, López Trujillo continua a ser uma figura complexa e, para muitos, enigmática por detrás das virtudes cardeais.

– López Trujillo era contra o marxismo e a teologia da libertação, era isso que o animava – confirma-me o cardeal Giovanni Battista Re, antigo «ministro» do Interior de João Paulo II, quando de uma das nossas conversas no seu apartamento do Vaticano.

O arcebispo Vincenzo Paglia, que lhe sucedeu como presidente do Conselho Pontifício para a Família, é mais reservado. A sua linha rígida sobre a família já não estaria na moda no pontificado de Francisco, faz-me saber, em breves palavras, Paglia, quando de uma entrevista no Vaticano:

– A dialética entre o progressismo e o conservantismo sobre as questões de sociedade já não é um tema hoje em dia. Devemos ser radicalmente missionários. Penso que já não devemos ser autorreferenciais. Falar da família não significa fixar regras; pelo contrário, significa ajudar as famílias. (Durante esta conversa, Paglia, cuja fibra artística foi amiúde alvo de troça, mostra-me a sua instalação que representa a Madre Teresa em versão pop art: a santa de Calcutá é em plástico com faixas azuis, em latex talvez, e Paglia liga-a à corrente. A Madre Teresa acende-se de repente e, com um azul lápis-lazúli brilhante, começa a piscar…).

Segundo várias fontes, a influência de López Trujillo em Roma viria também da sua fortuna. Teria «regado» literalmente inúmeros cardeais e prelados, segundo o modelo do mexicano Marcial Maciel.

– López Trujillo era um homem de redes e de dinheiro. Era violento, colérico, duro. É um dos que «fizeram» Bento XVI, para cuja eleição contribuiu sem se coibir, com uma campanha muito bem organizada e muito bem financiada – confirma o vaticanista Robert Carl Mickens.

ESTA HISTÓRIA não estaria completa sem o seu «happy end» e, para fazer agora o relato do mesmo, verdadeira apoteose, regresso a Medellín: precisamente ao bairro do arcebispado, onde Alvaro Léon, o antigo mestre de cerimónia de López Trujillo, nos conduz, a Emmanuel Neisa e a mim, pelas ruelas que rodeiam a catedral. Esta zona central de Medellín é chamada Villa Nueva.

Ademais, um bairro estranho onde, entre o Parque Bolivar e a Carrera 50, à altura das ruas chamadas Calle 55, 56 e 57, se sucedem, literalmente acopladas, dezenas de lojas religiosas, onde se vendem artigos católicos ou vestes sacerdotais, e bares gays que exibem, como montra, os seus transexuais coloridos com sapatos de salto alto fino. Os dois mundos, celestes e pagãos, o crucifixo de pechisbeque e as saunas baratas, os padres e os prostitutos, misturam-se num incrível bom humor um pouco festivo tão típico da Colômbia. Uma transexual que parece uma escultura de Fernando Botero aborda-me, altamente empreendedora. À sua volta, os prostitutos e os travestis que vejo são mais frágeis, mais franzinos, longe das imagens folclóricas felllinianas e arty; são símbolos da miséria e da exploração.

A alguns passos, visitamos ¡Medellín Diversa Como Vos!, um centro LGBT fundado nomeadamente por padres e seminaristas. Gloria Londoño, uma das responsáveis, recebe-nos:

– Estamos num local estratégico porque toda a vida gay de Medellín se organiza aqui, em volta da catedral. Os prostitutos, os transexuais, os travestis são populações muito vulneráveis e nós ajudamo-los informando-os dos seus direitos. Também distribuímos preservativos – explica-me Gloria Londoño.

Ao deixarmos o centro, cruzamo-nos, na Calle 57, com um padre acompanhado pelo seu namorado e Alvaro Léon, que os reconheceu, aponta-mos discretamente. Continuamos a nossa visita ao bairro católico-gay quando, de súbito, nos detemos perante um belo edifício da rua Bolivia, chamada também Calle 55. Alvaro Léon aponta para um andar e um apartamento:

– Era ali que tudo se passava. López Trujillo tinha ali um apartamento secreto para onde levava os seminaristas, os jovens e os prostitutos.

A homossexualidade do cardeal Alfonso López Trujillo é um segredo de polichinelo de que me falaram dezenas de testemunhas e que vários cardeais me confirmaram pessoalmente. O seu «pansexualismo», para recuperar a palavra de uma das entradas do seu dicionário, é famoso tanto em Medellín, em Bogotá e em Madrid como em Roma.

O homem era um perito da grande distância entre a teoria e a prática, entre o espírito e o corpo, um mestre absoluto da hipocrisia – um facto notório na Colômbia. Um próximo do cardeal, Gustavo Álvarez Gardeazábal, foi mesmo ao ponto de escrever um romance baseado em factos verídicos, La Misa ha terminado, em que denunciou a vida dupla de López Trujillo que, sob pseudónimo, é a sua personagem principal. Quanto aos inúmeros militantes gays que interroguei em Bogotá, durante as minhas quatro viagens à Colômbia – em especial os da associação Colombia Diversa que conta com vários advogados –, acumularam inúmeros testemunhos que partilharam comigo.

O docente universitário venezuelano Rafael Luciani refere-me que a homossexualidade doentia de López Trujillo é hoje em dia «bem conhecida pelas instâncias eclesiásticas latino-americanas e por alguns responsáveis do CELAM». Aliás, estará em preparação um livro sobre a vida dupla e a violência sexual do cardeal López Trujillo, coassinado por diversos padres. Quanto ao seminarista Morgain, que foi um dos assistentes de López Trujillo, fornece-me, por sua vez, os nomes de vários dos seus batedores e amantes, obrigados na sua maioria a saciar os desejos do arcebispo para não afundarem a sua carreira.

– Inicialmente, não compreendia o que queria – conta-me Morgain, durante o nosso jantar em Bogotá. – Era ingénuo e as suas técnicas de engate escapavam-me completamente. E depois, pouco a pouco, compreendi o seu sistema. Ele ia às paróquias, aos seminários, às comunidades religiosas para identificar rapazes que perseguia em seguida, de uma forma muito violenta. Pensava que era desejável! Obrigava os seminaristas a ceder às suas investidas. A sua especialidade eram os noviços. Os mais frágeis, os mais jovens, os mais vulneráveis. Mas, na verdade, deitava-se com toda a gente. Também tinha muitos prostitutos.

Morgain dá-me a entender que foi «bloqueado» na sua ordenação por López Trujillo porque não aceitara ir para a cama com ele.

López Trujillo era um desses homens que procuram o poder para terem sexo e o sexo para terem poder. Alvaro Léon, o seu antigo mestre de cerimónias, também levou algum tempo a perceber o que se passava:

– Alguns padres diziam-me, com um ar entendido: «Tu és o tipo de rapaz de que o arcebispo tanto gosta», mas não compreendia o que estavam a insinuar. López Trujillo explicava aos jovens seminaristas que deviam estar-lhe totalmente submetidos e aos padres que deviam submeter-se aos bispos. Que devíamos andar bem barbeados, vestir-nos de uma forma perfeita para lhe «dar prazer». Havia uma grande quantidade de subentendidos que não compreendia inicialmente. Estava encarregado das deslocações e ele pedia-me frequentemente que o acompanhasse nas suas saídas; utilizava-me, em certa medida, para entrar em contacto com outros seminaristas. Os seus alvos eram os jovens, os brancos de olhos claros, os louros, em especial; não os «latinos» demasiado indígenas, de tipo mexicano, por exemplo… e, de modo nenhum, os negros! Ele detestava os negros.

O sistema López Trujillo estava bem rodado. Álvaro Léon prossegue:

– Durante a maior parte do tempo, o arcebispo tinha os seus «batedores» como M.B, R., L. e até o bispo alcunhado «la gallina», padres que lhe arranjavam rapazes, os engatavam por ele na rua e lhos traziam a esse apartamento secreto. Não era ocasional, mas sim uma verdadeira organização. (Disponho da identidade e função desses padres «batedores», confirmados por pelo menos uma outra fonte. O meu investigador colombiano, Emmanuel Neisa, investigou cada um deles.)

Para além desta vida desenfreada, deste «engate em chamas», as testemunhas relatam também a violência de López Trujillo que agredia os seminaristas, tanto verbal como fisicamente.

– Insultava-os, humilhava-os – acrescenta Alvaro Léon.

Todas as testemunhas referem que o cardeal não vivia a sua homossexualidade de uma forma serena, como a maior parte dos seus colegas em Roma. Para ele, era uma perversão, enraizada no pecado, que exorcizava pela violência física. Era essa a sua maneira, viciosa, de se livrar de todos os seus «nós de histeria»? O arcebispo também tinha prostitutos em cadeia: a sua propensão para a compra de corpos era notoriamente conhecida em Medellín.

– López Trujillo batia nos prostitutos, era essa a sua relação com a sexualidade. Pagava-lhes, mas, em troca, eles tinham de aceitar as suas pancadas. Isso passava-se sempre no final do acto físico, e não durante o mesmo. Terminava as suas relações sexuais batendo-lhes por puro sadismo – garante ainda Alvaro Léon.

Neste grau de perversão, a violência do desejo tem qualquer coisa de estranho. Esses excessos sexuais, esse sadismo para com prostitutos, não são comuns. López Trujillo não tem qualquer respeito pelos corpos que aluga. Tem até fama de pagar mal aos seus gigolos, negociando duramente, com um olhar opaco, o preço mais baixo. Se há uma personagem patética neste livro, é ele: López Trujillo.

Porque as derivas desta «alma desonesta» não pararam, é claro, nas fronteiras colombianas. O sistema perpetuou-se em Roma (onde engatava em Roma Termini, de acordo com uma testemunha) e em breve por todo o mundo, onde teve uma brilhante carreira de orador antigay e «cabrito» milionário.

Viajando incessantemente por conta da cúria, com o seu boné de propagandista-chefe antipreservativos, López Trujillo aproveita as suas deslocações em nome da santa sé para encontrar rapazes (segundo o testemunho de pelo menos dois núncios). O cardeal teria visitado mais de cem países, com vários destinos preferidos, na Ásia, aonde se deslocou frequentemente depois de ter descoberto os encantos sexuais de Banguecoque e Manila, em especial. Durante essas inúmeras viagens, no outro lado do mundo, onde era menos conhecido do que na Colômbia ou em Itália, o cardeal peripatético eclipsava-se regularmente dos seminários e das missas para se dedicar ao seu comércio, aos seus «taxi boys» e os seus «money boys».

ROMA, CIDADE ABERTA, porque não disseste nada? Reveladora, uma vez mais, esta vida maquilhada de perverso narcísico que se faz passar por um santo. Tal como o monstro Marcial Maciel, López Trujillo teria falsificado a sua vida de uma forma inimaginável – algo que toda a gente, ou quase, sabia, no Vaticano.

Falando no caso López Trujillo com inúmeros cardeais, nunca ouvi nenhum fazer-me um retrato ideal dele. Ninguém me disse, banzado com as minhas informações: «Teria posto as mãos no fogo por ele!» Todas as pessoas com que me encontrei preferiram calar-se, franzir o sobrolho, fazer caretas, elevar os braços ao céu ou responder-me com palavras codificadas.

Hoje em dia, as línguas soltam-se, mas o encobrimento deste caso clínico funcionou bem. O cardeal Lorenzo Baldisseri, que foi durante muito tempo núncio na América Latina, antes de se tornar um dos homens de confiança do papa Francisco, partilhou comigo as suas informações quando de duas conversas em Roma:

– Conheci López Trujillo quando ele era vigário geral na Colômbia. Era uma pessoa muito controversa. Tinha uma dupla personalidade.

Igualmente prudente, o teólogo Juan Carlos Scannone, um dos amigos mais próximos do papa Francisco, que interrogo na Argentina, não fica espantado quando falo na vida dupla de López Trujillo:

– Era um intriguista. O cardeal Bergoglio nunca gostou muito dele. Penso até que nunca esteve em contacto com ele. (Segundo as minhas informações, o futuro papa Francisco encontrou-se com López Trujillo no CELAM.)

Pelo seu lado, Claudio Maria Celli, um arcebispo que foi um dos enviados do papa Francisco na América Latina, depois de ter sido um dos responsáveis pela comunicação de Bento XVI, conheceu bem López Trujillo. Dá-me a sua opinião, numa frase pesada com balança de precisão, durante uma conversa em Roma:

– López Trujillo não era um santo da minha devoção.

Os núncios também sabiam. A sua profissão não consiste em evitar que um padre gay acabe bispo, ou que um bispo que gosta de prostitutos seja criado cardeal? Ora, os núncios que se sucederam em Bogotá desde 1975, nomeadamente Eduardo Martínez Somalo, Angelo Acerbi, Paolo Romeo, Beniamino Stella, Aldo Cavalli ou Ettore Balestrero, todos próximos de Angelo Sodano, poderiam ignorar essa vida dupla?

Quanto ao cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos, prefeito da Congregação do Clero, partilhava demasiados segredos com López Trujillo, e provavelmente os seus hábitos, para falar! Foi um dos que o ajudaram constantemente, apesar de estar perfeitamente informado das suas libações e libertinagens. Finalmente, um cardeal italiano foi igualmente determinante na proteção romana de López Trujillo: Sebastiano Baggio. Este antigo capelão nacional dos escoteiros italianos é um especialista em América Latina: trabalhou nas nunciaturas de El Salvador, da Bolívia, da Venezuela e da Colômbia. Em 1964, é nomeado núncio no Brasil, imediatamente após o golpe de Estado: aí, mostra-se mais do que compreensivo em relação aos militares e à ditadura (segundo os testemunhos que recolhi em Brasília, Rio e São Paulo; em contrapartida, o cardeal-arcebispo de São Paulo, que interrogo sobre este tema, lembra-se de um «grande núncio que fez muito pelo Brasil»). Após o seu regresso a Roma, o esteta colecionador de arte Sebastiano Baggio é criado cardeal por Paulo VI e colocado à frente da Congregação para os Bispos e da Comissão pontifícia para a América Latina, cargos em que é reconduzido por João Paulo II que faz dele um dos seus emissários para o subcontinente americano. O historiador David Yallop descreve Baggio como um «reacionário» de «direita ultraconservadora»: este próximo do Opus Dei supervisiona, aliás, o CELAM a partir de Roma e, em especial, a batalha da Conferência de Puebla, em 1979, aonde se dirige com o papa; as testemunhas descrevem-no ao lado de López Trujillo, a bater-se contra a esquerda da Igreja e mostrando-se «visceral» e «violentamente» anticomunista. Nomeado «camerlengo» por João Paulo II, Baggio continuará a exercer um poder exorbitante no Vaticano e a proteger o seu «grande amigo» López Trujillo, apesar dos inúmeros rumores sobre a sua vida dupla. Segundo mais de dez testemunhos recolhidos no Brasil e em Roma, Baggio era conhecido pelas suas amizades particulares latinas e por ser muito empreendedor com os seminaristas que gostava de receber em cuecas ou em suporte atlético!

– As extravagâncias de López Trujillo eram bastante mais conhecidas do que se julga. Toda a gente estava ao corrente. Então, porque é que foi eleito bispo? Porque foi colocado à frente do CELAM? Porque foi criado cardeal? Porque foi nomeado presidente do Conselho Pontifício para a Família? – Pergunta-se Alvaro Léon.

Um prelado da cúria, que conviveu com López Trujillo, comenta:

– López Trujillo era amigo de João Paulo II, era protegido pelo cardeal Sodano e pelo assistente pessoal do papa, Stanislaw Dziwisz. Também era muito bem-visto pelo cardeal Ratzinger que, logo após a sua eleição, em 2005, o reconduziu na presidência do Conselho Pontifício para a Família durante um novo mandato. Todavia toda a gente sabia que ele era homossexual. Vivia connosco aqui, no quarto andar do Palazzo San Callisto, num apartamento do Vaticano com 900 m2 e tinha vários veículos! Alguns Ferrari! Levava uma vida fora do comum. (O esplêndido apartamento de López Trujillo é ocupado hoje em dia pelo cardeal africano Peter Turkson, que aí vive em agradável companhia, no mesmo andar dos apartamentos dos cardeais Poupard, Etchegaray e Stafford, que visitei.)

Um outro bom conhecedor da América Latina, o jornalista José Manuel Vidal, que dirige um dos principais sites sobre o catolicismo, em espanhol, lembra-se:

– López Trujillo vinha cá, frequentemente, a Espanha. Era amigo do cardeal de Madrid, Rouco Varela. De cada vez, chegava com um dos seus amantes; lembro-me nomeadamente de um belo polaco e, depois, de um belo filipino. Era visto aqui como o «papa da América Latina»: portanto, deixavam-no à vontade.

Por fim, interrogo francamente Federico Lombardi, que foi porta-voz de João Paulo II e Bento XVI, sobre o cardeal de Medellín. Apanhado de surpresa, a sua resposta é instantânea, quase um reflexo: ergue os braços ao céu em sinal de consternação e pavor.

TODAVIA, O DIABO FOI FESTEJADO. Quando do seu desaparecimento inesperado, em abril de 2008, devido às sequelas de uma «infeção pulmonar» (segundo o comunicado oficial), o Vaticano redobrou os elogios. O papa Bento XVI e o cardeal Sodano, ainda em funções, celebraram uma grande missa para honrar a memória desta caricatura de cardeal.

Todavia, quando da sua morte, começaram a circular diversos rumores. O primeiro era que teria morrido de SIDA; o segundo, que fora enterrado em Roma por não poder sê-lo na Colômbia.

– Quando López Trujillo morreu, decidimos enterrá-lo aqui em Roma porque não podíamos enterrá-lo na Colômbia – confirma-me o cardeal Lorenzo Baldisseri. – Não podia voltar ao seu país, nem morto!

O motivo? Segundo os testemunhos que recolhi em Medellín, a sua cabeça fora posta a prémio em virtude da sua proximidade com os paramilitares. Isso explicaria por que razão teve de se esperar até 2017, ou seja, quase dez anos após a sua morte, para o papa Francisco ordenar o repatriamento do corpo para a Colômbia. O santo padre prefere, como sugere um padre que esteve implicado nesse repatriamento expedito, que em caso de escândalo sobre a sua vida, os restos de López Trujillo já não estejam em Roma? De qualquer modo, pude ver o túmulo do cardeal numa ampla capela da ala oeste do transepto da imensa catedral de Medellín. Nessa cripta, sob uma pedra de uma brancura imaculada, rodeado por velas acesas permanentemente, o cardeal repousa. Por detrás da cruz: o diabo.

– Geralmente, a capela funerária está fechada com uma grade. O arcebispo tem demasiado medo do vandalismo. Teme que o túmulo seja saqueado por uma das famílias das vítimas de López Trujillo ou por um prostituto que tivesse rancor em relação a ele – comenta Alvaro Léon.

Todavia, por mais bizarro que possa ser, vejo nesta mesma catedral, situada misteriosamente no coração do bairro gay de Medellín, vários homens, jovens e menos jovens, no engate. Exibem-se lá, sem precaução, entre paroquianos que têm a Bíblia na mão e turistas que visitam a catedral. Vejo-os deslocar-se lentamente na sua bela caçada, entre os bancos da igreja, ou sentados contra a parede leste da catedral – é como se a rua gay atravessasse literalmente a imensa igreja. E quando passamos diante deles com Alvaro Léon e Emmanuel Neisa, fazem-nos pequenas piscadelas de olho simpáticas – como uma grande homenagem a esse grande travesti à antiga, essa grande maluca de pia de água benta, essa diva do catolicismo moribundo, esse satânico doutor e esse anticristo: sua Eminência Alfonso López Trujillo.

RESTA, PARA TERMINAR, uma última pergunta a que não estou em medida de responder e que parece importunar muita gente. López Trujillo, que pensava que tudo se compra, até mesmo os actos de violência, mesmo os actos sadomasoquistas, comprou penetrações sem preservativo?

– Oficialmente, a morte de López Trujillo está ligada à diabetes, mas existem rumores, fortes e duradouros, sobre o facto de que teria morrido de SIDA – diz-me um dos especialistas da Igreja católica na América Latina.

Os antigos seminaristas Alvaro Léon e Morgain também ouviram o rumor e consideram-no provável. O cardeal antipreservativo morreu de complicações ligadas à SIDA, para a qual andaria a fazer tratamento há vários anos? Ouvi frequentemente este rumor, mas não posso, aqui, confirmá-lo nem infirmá-lo. O que é certo é que o seu desaparecimento, em 2008, ocorre num momento em que a doença é corretamente tratada em Roma na policlínica Gemelli, o hospital oficioso do Vaticano – sobretudo para um cardeal que dispõe de importantes meios financeiros, como ele. A data da sua morte não corresponde, portanto, ao estado da epidemia. Teria ido até à negação da sua própria doença ou ter-se-ia recusado a deixar-se tratar, ou demasiado tarde? É possível, mas bastante pouco provável. Neste estádio, tenho sobretudo a impressão de que se trata de um boato falso que decorre da verdadeira vida desregrada do cardeal e nada, de qualquer modo, atendendo às minhas informações, permite dizer que López Trujillo foi vítima de uma doença da qual apenas o uso do preservativo poderia tê-lo protegido.

CASO TIVESSE MORRIDO COM ESSA DOENÇA, o desaparecimento do cardeal López Trujillo não teria nada de excecional no interior do catolicismo romano. Segundo uma dezena de testemunhos recolhidos no Vaticano e no seio da Conferência Episcopal Italiana, a SIDA causou devastação na santa sé e no episcopado italiano durante as décadas de 1980 e 1990. Um segredo calado durante muito tempo.

Inúmeros padres, monsignori e cardeais morreram com sequelas da doença. Alguns doentes «reconheceram» a sua contaminação e a SIDA em confissão (como me confirma, sem citar nomes, um dos confessores de São Pedro). Outro padres foram diagnosticados durante a colheita de sangue anual, obrigatória para o pessoal do Vaticano (mas esta obrigação não abrange os monsignori, os núncios, os bispos, nem os cardeais): esse controlo inclui uma análise da SIDA; segundo as minhas informações, alguns padres teriam sido afastados na sequência de um diagnóstico «positivo».

A proporção significativa de doentes com SIDA no seio da hierarquia católica é corroborada por um estudo estatístico realizado nos Estados Unidos, a partir de certidões de óbito de padres católicos, e que concluiu que havia uma taxa de mortalidade ligada ao vírus da SIDA pelo menos quatro vezes superior à da população geral. Outro estudo, baseados nos exames anonimizados de sessenta e cinco seminaristas romanos, no início da década de 1990, mostrou que 38% dentre eles eram seropositivos. É certo que as transfusões sanguíneas, a toxicodependência ou as relações heterossexuais podem explicar o número elevado de casos nestes dois estudos – mas, na verdade, ninguém é parvo.

No Vaticano, a negação e o silêncio prevalecem. Francesco Lepore, o antigo padre da cúria, conta-me o desaparecimento, devido a sequelas da SIDA, de um religioso membro da Congregação da Causa dos Santos. Esse próximo do cardeal Giuseppe Siri teria morrido de SIDA «na indiferença dos seus superiores» e foi «enterrado com toda a discrição, ao romper da aurora, para evitar o escândalo». Um cardeal de língua neerlandesa, próximo de João Paulo II, morreu também com o mesmo vírus, mas nunca se viu, claro, uma única participação de falecimento de cardeal ou bispo que mencionasse como causa: SIDA.

– Com base nas minhas conversas internas, penso que, no Vaticano, há inúmeros seropositivos ou doentes de SIDA – confirma-me outro monsignore. – Por outro lado, os padres seropositivos não são estúpidos: não vão buscar o tratamento à farmácia do Vaticano! São acompanhados nos hospitais de Roma.

Visitei várias vezes a Farmacia Vaticana, essa instituição improvável, situada na ala leste do Vaticano – uma loja dantesca com dez guichets – e, na verdade, entre os biberões, as tetinas e os perfumes de luxo, não imaginamos sequer que um padre possa ir buscar lá as suas triterapias ou o seu Truvada.

Com Daniele, o meu investigador romano, vários trabalhadores do serviço social e membros das associações italianas de prevenção da SIDA (nomeadamente do Progetto Coroh e do antigo programa «io faccio l’attivo»), realizámos um inquérito na capital italiana. Fomos várias vezes ao Instituto dermatológico San Gallicano (ISG), à policlínica Gemelli, ligada ao Vaticano, bem como a um centro de despistagem anónima e gratuita da SIDA, ASL Roma, que fica na Via Catone, perto de São Pedro.

O professor Massimo Giuliani é um dos especialistas de doenças transmissíveis sexualmente e de SIDA no Instituto dermatológico San Gallicano. Daniele e eu encontramo-nos com ele duas vezes:

– Como havia muito tempo que, no Instituto dermatológico San Gallicano nos ocupávamos das doenças transmissíveis sexualmente, e nomeadamente da sífilis, mobilizámo-nos imediatamente a partir dos primeiros casos de SIDA, no início da década de 1980. Tornámo-nos, em Roma, um dos primeiros hospitais a tratar esse tipo de pacientes. Na época e até 2007, o Instituto estava no Trastevere, um bairro de Roma que não fica muito distante do Vaticano. Hoje, estamos aqui, neste complexo a sul de Roma, onde nos encontramos.

Segundo várias fontes, o Instituto dermatológico San Gallicano era privilegiado, desde a década de 1970, pelos padres quando tinham doenças transmissíveis sexualmente. Era preferido, por razões de anonimato, à policlínica Gemelli, ligada ao Vaticano.

Quando apareceu a SIDA, San Gallicano tornou-se, um pouco naturalmente, o hospital dos padres, dos monsignori e dos bispos contaminados com o vírus da SIDA.

– Vimos vir aqui muitos padres, muitos seminaristas seropositivos – afirma o professor Massimo Giuliani. – Pensamos que o problema da SIDA existe muito fortemente na Igreja. Aqui, não os julgamos. A única coisa importante é que venham a uma consulta a um hospital para se tratarem. Mas podemos temer que a situação na Igreja seja mais grave do que aquilo que já vemos, por causa da negação.

A questão da negação dos padres está bem documentada: recusam mais frequentemente do que o resto da população serem submetidos a despistagem, porque não se sentem abrangidos; e mesmo quando têm relações sexuais não protegidas com homens, mostram má cara a fazer análises, temendo uma falta de confidencialidade.

– Pensamos – prossegue o professor Massimo Giuliani –, que o risco é grande atualmente, devido à negação e a um fraco uso do preservativo, de se ser contaminado com SIDA quando se pertence à comunidade católica masculina. Na nossa linguagem, consideramos que os padres são uma das categorias sociais mais em risco e os mais difíceis de atingir em termos de prevenção da doença. Fizemos tentativas de diálogo, de formação, nomeadamente nos seminários, sobre a transmissão e o tratamento das doenças transmissíveis sexualmente e da SIDA. Mas continua a ser muito difícil. Falar do risco da SIDA seria reconhecer que os padres têm práticas homossexuais. E a Igreja, evidentemente, recusa esse debate.

As minhas conversas com os prostitutos de Roma Termini (e com o acompanhante de luxo Francesco Mangiacapra, em Nápoles) confirmam o facto de os padres se contarem entre os clientes mais imprudentes nos seus actos sexuais:

– Em geral, os padres não têm medo das doenças transmissíveis sexualmente. Sentem-se intocáveis. Estão de tal modo seguros da sua posição, do seu poder, que não tomam em conta os riscos, contrariamente a outros clientes. Não têm o menor sentido da realidade. Vivem todos num mundo sem SIDA – explica-me Francesco Mangiacapra.

ALBERTO BORGHETTI é um interno do serviço de doenças contagiosas da policlínica Gemelli, em Roma. Este jovem médico e investigador recebe-nos, a Daniele e a mim, a pedido da responsável do serviço, a infeciologista Simona Di Giambenetto, que quis ajudar-nos na nossa investigação.

A policlínica Gemelli é o mais católico dos hospitais católicos do mundo. Em termos médicos, estamos no santo dos santos! Os cardeais, os bispos, as pessoas do Vaticano e inúmeros padres romanos tratam-se lá e têm, aliás, um corredor de acesso prioritário. E, claro, é o hospital dos papas. João Paulo II foi o mais célebre paciente de Gemelli e as câmaras de televisão acompanharam lá, cinicamente, as evoluções da sua doença, com uma emoção sepulcral. Divertido, o papa teria aliás dado um nome ao hospital Gemelli onde era hospitalizado com tanta frequência: «Vaticano III».

Ao visitar o hospital e os seus serviços, ao encontrar-me com vários outros internos e médicos, descubro um estabelecimento moderno, distante das críticas que o rumor romano traz consigo. Tratando-se de um hospital ligado ao Vaticano, as pessoas com doenças transmissíveis sexualmente ou SIDA seriam malvistas lá, disseram-me.

Através do seu mero profissionalismo e do seu conhecimento fino da epidemia, o interno Alberto Borghetti informa essas suspeitas:

– Somos um dos cinco hospitais na vanguarda em relação à SIDA. Tratamos todos os pacientes e somos inclusive, aqui, na ala científica que está ligada à Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão, um dos principais centros de investigação italianos sobre a doença. Estudamos os efeitos indesejáveis e colaterais das diferentes terapias antirretrovirais; fazemos investigação sobre as interações medicamentosas e sobre os efeitos das vacinas na população seropositiva.

No serviço de doenças infeciosas, onde me encontro, constato, ao ver os cartazes e painéis, que os pacientes que sofrem de doenças transmissíveis sexualmente são tratados, algo que Borghetti confirma:

– Aqui, tratamos todas as doenças transmissíveis sexualmente, quer sejam devidas a bactérias, como os gonococos, a sífilis e as clamídias, quer a vírus, como o herpes, o vírus do papiloma e, claro, as hepatites.

Segundo um outro professor de medicina especializado no tratamento da SIDA que interroguei em Roma, a policlínica Gemelli teria, no entanto, assistido a algumas tensões quanto às doenças transmissíveis sexualmente ou o anonimato dos pacientes.

Alberto Borghetti contesta essas afirmações:

– De um modo geral, os resultados dos exames ligados ao vírus da SIDA só são do conhecimento do médico assistente e não são consultáveis pelos outros profissionais de saúde da policlínica. No Gemelli, os doentes também podem pedir a anonimização do seu processo, o que reforça ainda mais o anonimato das pessoas seropositivas.

Segundo um padre que conhece bem o Gemelli, essa anonimização não seria suficiente para tranquilizar os pacientes eclesiásticos contaminados:

– Fazem tudo para garantir o anonimato, mas atendendo ao grande número de bispos e padres que lá são tratados, é fácil cruzarmo-nos com pessoas que conhecemos. O «serviço de doenças infeciosas» tem um nome bastante claro!

Um dermatologista, inquirido em Roma, diz-me:

– Alguns padres dizem-nos que foram contaminados ao manipular uma seringa ou por uma transfusão antiga: fingimos acreditar neles.

Pelo seu lado, Alberto Borghetti confirma que os medos e a negação possam existir, nomeadamente para os padres:

– É verdade que, por vezes, recebemos aqui seminaristas ou padres que chegam numa fase muito avançada da SIDA. Com os migrantes e os homossexuais, fazem parte, provavelmente, das pessoas que não quiseram fazer um teste de despistagem: têm muito medo ou então encontram-se em negação. É verdadeiramente lamentável porque chegam ao sistema de cuidados com um diagnóstico tardio, por vezes com doenças oportunistas e, como são tratados tardiamente, correm o risco de não ser capazes de recuperar um sistema imunitário eficaz.

JOÃO PAULO II FOI PAPA ENTRE 1978 E 2005. A SIDA, aparecida em 1981, no início do seu pontificado, iria ser responsável, durante os anos subsequentes, por trinta e cinco milhões de mortos. Em todo o mundo, trinta e sete milhões de pessoas vivem, ainda hoje, com o VIH.

O preservativo, que o Vaticano de João Paulo II repudiou energicamente, utilizando todas as suas forças e o poderio da sua rede diplomática para se opor a ele, continua a ser o meio mais eficaz de lutar contra a epidemia, incluindo no seio de um casal assintomático casado. Todos os anos, graças a essas camisas e aos tratamentos antirretrovirais, são salvas dezenas de milhões de vidas.

Desde a encíclica Humanae Vitae, a Igreja condena todos os meios profiláticos ou químicos, como a pílula ou o preservativo, que impedem a transmissão da vida. Mas, como sublinha o vaticanista francês Henri Tincq, «o meio que consiste em impedir a transmissão da morte deve ser confundido com aquele que impede a transmissão da vida?»

Para além de João Paulo II, quem são os principais artífices que definiram e implementaram essa política mundial de repúdio absoluto do preservativo no tempo da pandemia mundial da SIDA? Trata-se de um grupo de doze homens fiéis, dedicados, ortodoxos, misóginos e cujo voto de castidade os impede de serem heterossexuais. Segundo os resultados da minha investigação, e com base em centenas de entrevistas realizadas para este livro, posso afirmar que esses prelados são, na sua grande maioria, homossexuais praticantes (contei oito em doze e Mons. Viganò cita, pelo seu lado, quatro na sua «Testimonianza»). Que sabiam, de qualquer modo, esses homens em matéria de preservativos e de heterossexualidade para se terem erigido, assim, em juízes?

Esses doze homens, todos criados cardeais, são: o secretário particular Stanislaw Dziwisz; os secretários de Estado Agostino Casaroli e Angelo Sodano; o futuro papa Joseph Ratzinger; os responsáveis da secretaria de Estado: Giovanni Battista Re, Achille Silvestrini, Leonardo Sandri, Jean-Louis Tauran, Dominique Mamberti; os núncios: Renato Raffaele Martino e Roger Etchegaray. Assim como, claro, um cardeal então muito influente: sua Eminência Alfonso López Trujillo.