14.

Os diplomatas do papa

– AH, É JORNALISTA? – Mons. Ricca olha-me com inquietação e um pouco de avidez. – Tenho problemas com os jornalistas – acrescenta, fixando-me nos olhos.

– Ele é um jornalista francês: é francês – insiste o arcebispo François Bacqué, que acabou de nos apresentar.

– Ah – retruca Ricca com um alívio fingido.

E o célebre Ricca acrescenta:

– O meu problema são os jornalistas italianos. Não têm nada no crânio! Nada! Tem zero de inteligência. Mas, se é francês, talvez haja uma hipótese de ser diferente! É um bom presságio!

Foi apenas a meio da minha investigação, quando já começara a escrever este livro, que fui convidado a residir na Domus Internationalis Paulus VI e foi assim que começaram as coisas. Anteriormente, vivia em Roma em apartamentos alugados no Airbnb, na maior parte das vezes nas imediações de Roma Termini.

O arcebispo François Bacqué, um núncio apostólico francês aposentado, propôs-me um dia reservar um quarto para mim na Domus Internationalis Paulus VI e foi assim que as coisas começaram. A sua recomendação foi bastante para que eu morasse no santo dos santos da diplomacia vaticana.

A Domus Internationalis Paulus VI está situada no n.º 70 da Via della Scrofa, em Roma. Esta residência oficial da santa sé é um lugar «extraterritorial», fora de Itália: os carabinieri não podem penetrar nela e se lá fossem cometidos um roubo, uma violação ou um crime, seriam a triste gendarmaria vaticana e a muito incompetente justiça da santa sé que se encarregariam do caso.

A residência diplomática, também chamada Casa del Clero, tem uma localização ideal entre a praça Navona e o Panteão – um dos mais belos locais de Roma, templo laico, se não republicano, extraordinário símbolo da «religião civil», destinado a todas as crenças e todos os deuses, e que foi reimaginado pelo imperador LGBT Adriano – antes de ter sido alvo de uma «apropriação cultural» abusiva pelo catolicismo italiano!

A Domus Internationalis Paulus VI é um local capital da santa sé: residir no coração da máquina vaticana constitui uma oportunidade para mim. Ali, tratam-me como amigo e já não como uma personalidade estrangeira. Em primeiro lugar, é um hotel de passagem para os diplomatas do Vaticano – os famosos núncios apostólicos – quando permanecem em Roma. Por vezes, os cardeais e os bispos estrangeiros também se instalam lá, em vez de em Santa Marta. O cardeal Jorge Bergoglio residia lá quando das suas passagens por Roma: as imagens que o mostram em sotaina branca, quando veio pessoalmente pagar a sua conta de hotel, com toda a simplicidade, deram a volta ao mundo.

Para além dos cardeais e dos diplomatas de passagem, a Casa del Clero é um local de residência permanente de diversos núncios reformados, bispos sem afetação ou monsignori que ocupam cargos prestigiosos na santa sé. Muitos encontram-se lá em pensão completa ou em meia-pensão. Durante os pequenos-almoços, nos salões do primeiro andar, ou almoços realizados em comum na imensa sala de restaurante, sem contar as trocas de palavras diante das máquinas de café e os longos serões diante da televisão, aprenderei a conhecer esses núncios, esses diplomatas apostólicos, esses minutadores da secretaria de Estado ou aquele secretário da Congregação para os Bispos. Os criados da Casa del Clero – um dos quais é um playboy digno de uma capa de The Advocate – têm de se comportar bem! Perante tantos olhares cruzados de núncios e de monsignori em flor, há razão para entrar em pânico!

O conforto dos quartos santos da Casa del Clero é espartano: uma lâmpada afastada lança uma luz crua sobre uma cama individual, geralmente ladeada por um crucifixo torto. As camas estreitas dos padres, que vi com tanta frequência nos apartamentos do Vaticano, têm o seu conservantismo nas dimensões.

Na gaveta da mesa de cabeceira velha e cambada: uma bíblia (que substituo imediatamente por Une saison en enfer). Na casa de banho, uma lâmpada fluorescente que remonta a Pio XI difunde uma luz de forno de micro-ondas. O sabão é emprestado ao grama (é preciso devolvê-lo). Quem disse que o catolicismo tinha horror à vida?

Durante uma das minhas estadas, o meu vizinho de caserna, no quarto andar, estava bem mais favorecido. Viver na Casa ao ano é uma vantagem. À força de me cruzar com aquele minutador eminente da secretaria de Estado, ele acabou por me deixar entrever, um dia em que estava em boxers (preparava-se para ir a um concerto da Cher?), o seu grande apartamento de esquina. E qual não foi a minha surpresa ao entrever uma cama vermelho-vivo fabulosa, de casal, que poderia ter servido para um cenário de um filme de Fellini – e nunca a expressão «segredos de alcova» me pareceu tão bem achada. Não longe dessa, outro quarto célebre, o 424, foi o de Angelo Roncalli, o futuro papa João XXIII.

O pequeno-almoço também é frugal. Vou tomá-lo para agradar aos padres que me convidam insistentemente para o fazer. Ali, tudo é hostil: o pão crucificado em vez de torrado; os iogurtes naturais comprados à dúzia; o café americano à discrição, tão pouco americano; os cornflakes pouco católicos. Só os kiwis, disponíveis em grande quantidade todas as manhãs, são sumarentos: mas porquê kiwis? Devemos pelá-los como um pêssego ou abri-los ao meio como um abacate? A questão é alvo de debate na Casa, diz-me François Bacqué – como quatro. Os pequenos-almoços da residência del Clero parecem-se com os de um lar de idosos onde se pede gentilmente aos pensionistas que não morram demasiado lentamente para deixarem o lugar a outros prelados um pouco menos senis – não há falta deles no grande hospício que é o Vaticano.

Foi também nos salões de leitura da Domus Internationalis Paulus VI, no primeiro andar, que conheci Laurent Monsegwo Pasinya, um eminente cardeal congolês de Kinshasa, membro do conselho dos cardeais de Francisco, e que gosta, disse-me, de se instalar na Casa del Clero, «porque aqui somos mais livres» do que no Vaticano, antes das suas reuniões com o papa.

O diretor da Casa e de todas as residências vaticanas, Mons. Battista Ricca, também lá reside e o seu apartamento hermético e, ao que parece, imenso, no mezanino esquerdo, tem o número 100. Ricca almoça regularmente na Casa, humildemente, com dois dos seus amigos próximos, numa mesa um pouco afastada, uma espécie de família. E oferecerei durante um dos nossos encontros, uma noite, nos salões do primeiro andar, diante da televisão, o famoso livro branco a Ricca – que, com o reconhecimento de quem foi beneficiado, mo agradecerá calorosamente.

Também nos podemos cruzar lá com Fabián Pedacchio, o secretário particular do papa Francisco, que aí viveu durante muito tempo e, diz-se, ainda manteria lá um quarto para trabalhar calmamente com o bispo brasileiro Ilson de Jesus Montanari, secretário da Congregação para os Bispos, ou com Mons. Fabio Fabene, um dos artífices do sínodo. Mons. Mauro Sobrino, prelado de Sua Santidade, também aí vive e trocámos lá alguns segredos. Um misterioso casal de rapazes, dinky e bio-queens, que ouvem Born this way, de Lady Gaga, em sessões contínuas, também lá vive e tive algumas belas conversas noturnas com eles. Um padre basco também tem umas belas amizades nesse «círculo mágico», segundo a expressão que me é fornecida.

O arcebispo François Bacqué vive lá desde que a sua carreira diplomática terminou: este aristocrata caído em desgraça continua ali à espera da púrpura. Ao cardeal Jean-Louis Tauran, outro francês como ele originário de Bordéus, e um perfeito plebeu, Bacqué teria perguntado: «Como é possível que você seja cardeal quando não é nobre? E porque é que eu não sou, eu que pertenço à nobreza?» (Um assistente de Tauran transmite-me esta frase.)

Espécimenes desta laia encontram-se à molhada na Casa del Clero, um local onde os jovens ambiciosos esperam muito e os reformados, caídos em desgraça, curam as suas amarguras de ego. Com estes últimos rebentos do catolicismo em declínio, a Casa reúne misteriosamente essa aristocracia espiritual que sobe e aquela que desce.

Três capelas, no segundo e no terceiro andar da Casa del Clero permitem concelebrar missas à hora preferida por cada um; por vezes, são celebrados lá ofícios para grupos gays (como me confirma, num depoimento escrito, um padre). Um serviço de lavandaria no quarto permite aos núncios não terem de lavar a sua própria roupa. Tudo é barato, mas pago em dinheiro vivo. Quando for pagar a fatura, a máquina do cartão de débito da Domus Internationalis Paulus VI estará «excecionalmente» avariada, algo que acontecerá em cada uma das minhas estadas; um residente comunicar-me-á, por fim, que aquela máquina «está sempre avariada e há anos» (e a mesma avaria ocorrerá várias vezes durante a minha estada na Domus Romana Sacerdotalis) – uma maneira, talvez, de alimentar um circuito de dinheiro líquido?

Na Casa del Clero, não há o hábito de deitar tarde, mais sim o de levantar cedo – mas há exceções. No dia em que tentei passar a manhã na cama, compreendi pela agitação das empregadas de limpeza, e pela sua impaciência, que estava perto do pecado. Aliás, à noite, as portas da Casa del Clero são fechadas à meia-noite e todos os núncios notívagos e outros diplomatas viajantes afetados pelo jet-lag se encontram para conversar no salão a desoras. É o mérito paradoxal das horas de recolher de outros tempos.

A DUPLA PORTA-COCHEIRA FASCINA-ME. Tem qualquer coisa de gideano e, aliás, o escritor afirmou em Si le grain ne meurt que esse tipo de porta, indício de um estatuto social elevado, era necessária a toda a boa família burguesa. Outrora, esse tipo de portal permitia a entrada dos cavalos dos coches pelo seu pé e, por conseguinte, «possuir uma parelha». Ainda hoje, na Casa del Clero, que parelhas!

A porta-cocheira, no n.º 19 da Via di San Agostino, nas traseiras da Domus Internationalis Paulus VI, é uma entrada secundária e discreta, sem nome. De cor castanho-charuto, é formada por duas folhas, mas não possui patamar nem soleira. No meio: um «postigo», um pequeno batente cortado no grande batente para permitir que os peões entrem discretamente durante a noite. O passeio forma uma pequena rampa. A moldura é em pedra de cantaria branca e serve de caixilho. Na porta-cocheira: pregos à vista e um puxador de ferro comum, usado para tantas passagens diurnas e por tantos visitantes noturnos. Ó portal do tempo antigo, sabes tantas histórias!

Observei frequentemente a porta dupla, prestando atenção aos movimentos de entrada e de saída, tirando fotografias do belo pórtico. Essa porta tem profundidade. Há uma espécie de voyeurismo na contemplação dessas «closed doors», verdadeiros portais urbanos, e essa atração explica provavelmente que a arte de fotografar as portas se tenha tornado um fenómeno muito popular no Instagram, onde se publicam os seus retratos sob o hashtag #doortraits.

Após um corredor, um portão de ferro e, em seguida, um pátio interno – outra linha de fuga. Por uma escada interior, que utilizei com bastante frequência, chega-se diretamente ao ascensor C e, desse modo, aos quartos da residência, sem ter de passar nem pelo cubículo do porteiro nem pela receção. E, se dispusermos das boas chaves, podemos entrar e sair pelo portão de ferro e depois pela porta-cocheira, após o recolher obrigatório regulamentar da meia-noite. Que bênção!… que nos faz ter saudades do tempo das diligências!

Desconfio de que a porta dupla conhece inúmeros segredos do Vaticano. Irá contá-los algum dia? Felizmente, não existe porteiro naquele lado. Mais uma bênção! Num domingo de agosto de 2018, vi lá um monsignore do Vaticano à espera do seu belo acompanhante pago, de calções vermelhos e ténis azuis, prodigando-lhe doces carícias na rua e no café Friends, antes de o levar para casa! Imagino também que haja determinadas noites em que um determinado monge, apressado devido a uma necessidade premente, tenha de participar no ofício das matinas da igreja de Sant Agostini, situada mesmo em frente da porta-cocheira, ou que aquele núncio viajante, levado por uma vontade súbita de ver a esplêndida Madonna dos Peregrinos, de Caravaggio, improvise a sua saída durante a noite. A Arcadia, que merece o seu nome, encontra-se também diante da porta-cocheira, tal como a Biblioteca Angelica, uma das mais belas bibliotecas de Roma, onde, também, um religioso poderá ter, de súbito, necessidade de consultar alguns incunábulos ou as páginas iluminadas do célebre Codex Angelicus. E depois, contígua à Casa do Clero, a noroeste, encontra-se a Universidade de Santa Cruz, mais conhecida sob o nome de Universidade do Opus Dei; e, durante algum tempo, podia ir-se para lá diretamente da residência do clero através de uma passagem aérea, hoje em dia definitivamente fechada. Uma desgraça: agora é preciso sair pela porta-cocheira, à noite, se se tiver de assistir a uma aula de latim ou participar numa reunião ultramontana com um jovem e rígido seminarista da «Obra».

A anomalia da Casa do Clero situa-se a oeste do imenso edifício, na Piazza delle Cinque Lune: o McDonald’s. O Vaticano, como sabemos, é demasiado pobre para fazer a manutenção das suas propriedades; teve de se sacrificar e aceitar ter como inquilino esse símbolo da má comida americana. E, segundo as minhas informações, Mons. Ricca assinou o contrato de arrendamento sem ter uma faca encostada à garganta.

Polemicou-se muito sobre o facto de um McDonald’s se instalar perto do Vaticano, num edifício que não pertencia à santa sé, mas ninguém se indignou por um fast-food da mesma cadeia ter sido autorizado pelo Vaticano precisamente no interior de uma das suas residências romanas.

– Foi deslocado um pequeno altar dedicada à santa virgem, que estava na entrada utilizada hoje em dia pelo McDonald’s, e transferiram-no simplesmente para perto do portal da Casa del Clero, na Via della Scrofa – explica-me um dos pensionistas da residência.

Vejo, efetivamente, essa espécie de altar-retábulo azul, vermelho e amarelo, onde uma pobre virgem foi pregada contra a sua vontade, colocado trivialmente sob o pórtico da entrada oficial. Foi o MacDonald’s que exerceu pressão para que a santa virgem esteja longe dos seus McNuggets?

De qualquer modo, o contraste é surpreendente. Porta estreita da obrigação, com recolher obrigatório e Ave-Maria, à frente; porta-cocheira de duas folhas, com os seus devaneios, e muitas chaves, na traseira: eis o catolicismo na sua verdade crua. O papa conhece a Casa del Clero em todos os seus recantos: viveu lá demasiado tempo para não saber.

Com o bom tempo, este porto de mistério assume os seus ares de verão; e ainda é mais intrigante. A Domus Internationalis Paulus VI torna-se, então, uma estância e vemos os jovens secretários de nunciaturas que se despojaram dos seus cabeções a conversar diante do portão de ferro, antes do recolher, de t-shirt bege colante e calções vermelhos, bem como núncios vindos de países em desenvolvimento a abandonar, imediatamente antes da meia-noite, esta YMCA dirigindo-se para noitadas DYMK (que significa «Does Your Mother Know?»). Regressarão de madrugada, afónicos, por terem cantado demasiado «I Will Survive» ou «I Am What I Am», dançando com o indicador da mão esquerda a apontar para o céu como no Saint Jean-Baptiste, no festival Gay Village Fantàsia, no bairro da EUR, onde os encontrei.

– No meu tempo, um padre nunca vestiria uns calções vermelhos como aqueles – comenta, irritado, o arcebispo François Bacqué, quando passamos diante daqueles espécimenes coloridos que dão a impressão de ter, nessa noite, organizado uma happy hour diante da Casa del Clero.

«VIAJAR SOZINHO É VIAJAR COM O DIABO!» escreve o grande romancista católico (e homossexual) Julien Green. Essa poderia ser uma das normas de vida dos núncios apostólicos, cujos segredos descobri pouco a pouco.

Logo no início da minha investigação, um embaixador colocado junto da santa sé prevenira-me:

– No Vaticano, como verá, há muitos gays: 50%, 60%, 70%? Ninguém sabe. Mas verificará que, entre os núncios, essa taxa atinge o auge! No universo já maioritariamente gay do Vaticano, são os mais gays!

E perante o meu espanto devido a essa revelação, o diplomata rira-se inclusive de mim:

– Sabe? A expressão «núncio homossexual» é uma espécie de pleonasmo!

Para compreendermos este paradoxo, pensemos nas oportunidades que são proporcionadas por uma condição solitária no outro extremo do mundo. As ocasiões são tão belas quando se está longe de casa, tão numerosas em Marrocos e na Tunísia, e os encontros tão fáceis tanto em Banguecoque como em Taipei. A Ásia e o Médio Oriente são terras de missões, para os núncios de natureza nómada, verdadeiras terras prometidas. Em todos esses países, vi-os em ação, rodeados pelos seus queridos, afetados ou efervescentes, descobrindo a verdadeira vida longe do Vaticano e repetindo sem cessar: Ah esse coolie! Ah esse marinheiro! Ah esse cameleiro! Ah esse condutor de riquexó!

«Portadores do bichinho de uma paixão masculina pelas viagens», segundo a bela fórmula do poeta Paul Verlaine, os núncios também vão beber às suas reservas naturais: os seminaristas, os propedeutas, os jovens monges que, no terceiro mundo, ainda são mais acessíveis do que em Roma.

– Quando viajo para o estrangeiro, emprestam-me Legionários de Cristo – confessa-me outro arcebispo. (Este não insinua nada de mal com esta frase que, no entanto, nos dá uma ideia da consideração que ele tem pelos Legionários a partir do momento em que se desloca a uma «antiga colónia».)

– Os substantivos «sucursais», «concessões» e «colónias» soam bem aos ouvidos dos viajantes europeus. Põem muitos padres a arder! – Disse-me, com uma rara franqueza, um padre das Missões estrangeiras, um francês também homossexual, inquirido várias vezes em Paris. (No decurso desta investigação, encontrei inúmeros padres missionários no terreno na Ásia, em África, no Magrebe e na América Latina; utilizo também para esta parte os testemunhos de uma vintena de núncios e de diplomatas que me contaram os hábitos dos seus amigos e correligionários.)

Na verdade, também aqui se trata de um segredo de polichinelo. Em todo o lado, os padres deixam rasto. Os donos dos bares gays que interroguei em Taiwan, Hanoi ou Hué não poupam os elogios a essa clientela fiel e séria. Os empregados dos bares do bairro Shinjuku ni-chome, em Tóquio, apontaram-me a dedo os clientes habituais. Os jornalistas gays especializados de Banguecoque investigaram alguns incidentes de «costumes» ou alguns casos de vistos, quando um prelado quis levar consigo para Itália um jovem asiático indocumentado. O atual presidente da República das Filipinas, Rodrigo Dutertre, reconhece, ele próprio, a existência deste tipo de turismo e reclama o reconhecimento da homossexualidade dos eclesiásticos, dado ter afirmado que imagina que 90% do clero seja gay. Em todo o lado, a presença de padres, de frades e de religiosos europeus está atestada.

Para além dos núncios para os quais as viagens constituem a própria base da sua profissão, os padres da cúria utilizam também as suas férias para se entregarem a explorações sexuais inovadoras longe do Vaticano. Mas, é claro, esses monsignori raramente exibem o seu estatuto profissional quando fazem peregrinações a Manila ou Jacarta! Já não aparecem como membros do clero.

– Por terem atribuído a si mesmos princípios mais fortes do que o seu carácter e por terem sublimado os seus desejos durante demasiado tempo, eles «explodem» literalmente no estrangeiro – comenta o padre das Missões estrangeiras.

O Vietname é especialmente apreciado hoje em dia. O regime comunista e a censura à imprensa protegem as escapadas eclesiásticas, em caso de escândalo, quando na Tailândia tudo acaba, agora, na imprensa (como me dá a entender o bispo tailandês Francis Xavier Vira Arpondratana, durante vários encontros e almoços).

– O turismo sexual está a migrar – explica-me M. Dong, dono de dois bares gays de Hué. – Passa dos países que se encontram sob a luz dos projetores, como a Tailândia ou Manila, para aqueles que estão menos mediatizados como a Indonésia, o Camboja, a Birmânia ou aqui o Vietname. (O nome de um dos estabelecimentos de M. Dong, que visito em Hué, diverte-me: chama-se o Ruby, como a antiga escort girl dos bunga-bunga de Berlusconi.)

A Ásia não é o único local de destino desses padres, mas é um dos mais apreciados por todos os excluídos da sexualidade normalizada: o anonimato e a discrição que ela proporciona não têm igual. A África, a América do Sul (por exemplo, a República Dominicana onde uma importante rede de padres gays foi descrita num livro) e a Europa de Leste também têm os seus adeptos, sem esquecer os Estados Unidos, matriz de todos os Stonewall unipessoais. Vemo-los a bronzearem-se lá, nas praias de P’Town, ou a alugar um bungalow nos «Pines» ou um Airbnb nos bairros gay de Hell’s Kitchen, Boystown ou Fort Lauderdale. Um pároco francês diz-me ter lamentado, depois de visitar metodicamente esses bairros «gupies» (gays yuppies) e post-gay americanos, a sua «heterogeneidade demasiado grande» e a sua falta de «gaytude».

Há uma razão. Hoje em dia, a percentagem de homossexuais é provavelmente mais elevada no Vaticano fechado no armário do que no período de Castro post-gay.

Por fim, alguns preferem ficar na Europa para fazer o circuito dos clubes gays de Berlim, frequentar as noites sadomasoquistas desde o «The Church” até Amsterdão, não perder o closing de Ibiza e depois festejarem o «birthday», que se torna uma «birthweek», em Barcelona. Mais próximos, esses locais nem por isso deixam de ser mais longínquos. (Utilizo sempre, aqui, exemplos precisos relacionados com núncios e padres cujo turismo sexual me foi descrito no terreno.)

E, assim, precisa-se uma nova regra deste livro, a décima primeira: Na sua maioria, os núncios são homossexuais, mas a sua diplomacia é essencialmente homófoba. Denunciam o que são. Quanto aos cardeais, aos bispos e aos padres, quanto mais viajam, mais suspeitos são!

O NÚNCIO LA PAIVA, de quem já falei, não foge à regra. É um belo espécimen, também. E de que espécie! Arcebispo, está eternamente em representação. E evangeliza. É daqueles que, numa carruagem de comboio quase deserta, ou nas filas de bancos de um autocarro vazio, iria sentar-se ao lado de um efebo que viajasse sozinho, para tentar trazê-lo para a fé. Também está disposto a deambular pelas ruas, como o vi fazer, ele que se parece com o famoso núncio do escultor Fernando Botero – gordo, redondo e muito vermelho – se isso lhe permitir meter conversa com um seminarista por quem se interessou de repente.

Ao mesmo tempo, La Paiva é cativante, apesar do seu temperamento reacionário. Quando vamos ao restaurante, em Roma, quer que eu vista camisa e casaco, mesmo quando estão trinta graus nas ruas. Uma noite, fez-me mesmo uma cena: o meu look grunge não lhe agrada «nada» e eu deveria aparecer bem barbeado! La Paiva repreende-me:

– Não compreendo porque é que os jovens deixam crescer a barba, hoje em dia. (Gosto de que La Paiva fale de mim como se eu fosse um jovem.)

– Não deixo crescer a barba, Excelência. E também não estou mal barbeado. É aquilo a que se chama barba de três dias.

– Não é por preguiça? É isso?

– Limito-me a achar que é mais bonito. Barbeio-me de três em três ou quatro em quatro dias.

– Prefiro-o imberbe, como sabe.

– O Senhor também era barbudo, não era?

Penso no retrato de Cristo por Rembrandt (Christuskopf, um quadro pequeno que vi na Gemäldegalerie de Berlim), o mais belo talvez: o seu rosto é fino e frágil; tem os cabelos longos despenteados e uma longa barba desigual. É um Cristo grunge, precisamente, e por pouco que não tem uns jeans rasgados! Rembrandt pintou-o a partir de um modelo vivo anónimo – o que era uma novidade na pintura religiosa da época –, provavelmente um jovem da comunidade judaica de Amesterdão, donde a sua humanidade e a sua simplicidade. A vulnerabilidade de Cristo toca-me, como tocou François Mauriac, que gostava tanto deste retrato e que, como todos nós, se apaixonara por ele.

OS NÚNCIOS, os diplomatas e os bispos com que convivi na Domus Internationalis Paulus VI são os soldados do papa em todo o mundo. Desde a eleição de João Paulo II, a sua ação internacional tem sido inovadora e particularmente favorável aos direitos do homem, à abolição da pena de morte, ao desarmamento nuclear e aos processos de paz. Mais recentemente, Francisco fez da defesa do ambiente, da reaproximação entre os Estados Unidos e Cuba ou da pacificação das FARC, na Colômbia, a sua prioridade.

– É uma diplomacia da paciência. O Vaticano nunca desiste, mesmo quando as outras potências se vão embora. E quando toda a gente deixa um país, por causa da guerra, por exemplo, os núncios ficam debaixo das bombas. Vimo-lo no Iraque ou mais recentemente na Síria – sublinha Pierre Morel, que foi embaixador de França na santa sé.

Morel explica-me em pormenor, durante várias conversas em Paris, o funcionamento dessa diplomacia vaticana, com os respetivos papéis dos núncios, da secretaria de Estado, da Congregação para as Igrejas Orientais, o papel do papa «vermelho» (o cardeal que tem a seu cargo a «evangelização dos povos», isto é, do terceiro mundo), do papa «negro» (o superior geral dos Jesuítas) e, por fim, das «diplomacias paralelas». A secretaria de Estado coordena o conjunto da rede e traça o rumo.

Este aparelho diplomático eficaz e pouco conhecido também foi posto ao serviço, sob João Paulo II e Bento XVI, de uma cruzada ultraconservadora e homófoba. É possível contá-la através do percurso de dois núncios emblemáticos que foram, tanto um como o outro, observadores permanentes do Vaticano junto das Nações Unidas: o arcebispo Renato Martino, hoje cardeal, e o núncio Silvano Tomasi.

QUANDO CHEGO a casa de Renato Raffaele Martino, na Via Pfeiffer, em Roma, a dois passos do Vaticano, um filipino de cerca de vinte anos, talvez trinta, quintessência da beleza asiática, abre-me a porta com um grande sorriso. Conduz-me, sem dizer uma palavra, até à sala do cardeal, onde o prelado se junta a mim.

De súbito, não é um Renato Martino que tenho à minha frente, mas uma dezena. Estou literalmente rodeado por retratos do cardeal, em tamanho real, pintados sob todos os ângulos, por vezes expostos em painéis inteiros e que o núncio colocou em todas as paredes e em todos os cantos do seu apartamento.

Compreendo que, aos oitenta e seis anos, o cardeal tenha orgulho no percurso realizado desde a sua ordenação episcopal pelo grande Agostino Casaroli e que tenha alguma estima por si próprio. Afinal de contas, batalhou como o próprio diabo para impedir a luta contra a SIDA em cinco continentes, com algum êxito, e isso não está ao alcance de todos. Mas não consigo deixar de pensar que tantos retratos de si ao mesmo tempo, tão grandes, de pé e a cores, tantas ereções de estátuas tocam, apesar de tudo, o ridículo.

O que se segue está em conformidade. O ancião não responde verdadeiramente às minhas perguntas, apesar de se expressar, como a maior parte dos núncios, num francês impecável, mas leva-me a dar uma volta pela casa. Martino diz-me ter visitado 195 países durante a sua longa carreira de núncio: trouxe, dessas viagens, inúmeros objetos, que me mostra agora na sua sala de jantar, na capela privada, no corredor interminável, na dezena de quartos e inclusive num terraço panorâmico com uma bela vista sobre a Roma católica. O seu apartamento é pelo menos quinze vezes maior do que o quarto do papa Francisco.

É um museu, um verdadeiro gabinete de curiosidades – digamos, um gabinete de objetos de devoção. O cardeal mostra-me, uns atrás dos outros, as suas 38 condecorações, as 200 medalhas com o seu nome gravado, os 14 títulos de doutor honoris causa e 16 retratos seus. Vejo também lenços armoriados, bijutarias, elefantes em miniatura gastos, um belo panamá de colonialista e, decorando as paredes, certificados atribuídos a «Sua Eminência Reverendíssima» com a imagem de uma qualquer ordem de cavalaria bizarra (possivelmente a Ordem de São Januário). E enquanto passamos em fila indiana entre essas relíquias e esses manipansos, verifico que o pajem filipino nos contempla de longe, com desolação e uma apatia constrangida; já deve ter visto frequentemente este género de procissão.

No grande caravançarai que o seu apartamento representa, um cafarnaum, descubro agora o cardeal fotografado em cima de um elefante, na companhia de um efebo; aqui, posa descontraído com um companheiro tailandês e ali com jovens laocianos, malaios, filipinos, singapurianos ou tailandeses – todos eles agradáveis representantes dos países onde foi vice-núncio, pro-núncio ou núncio. Visivelmente, Martino gosta da Ásia e a sua paixão pelos elefantes não está no armário: é exibida em grande tiragem em todos os cantos do apartamento.

Segundo duas fontes diplomáticas, a criação de Martino como cardeal por João Paulo II foi longa e pejada de dificuldades. Teria inimigos? Falta de «straightness»? Demasiadas notas de despesas ou rumores acerca da sua conduta? O que é um facto é que foi obrigado a esperar durante vários consistórios. De cada vez que o fumo não era branco, Martino entrava em depressão, tanto mais que comprara, com muito custo, o barrete, o solidéu, a camalha vermelha e o anel de safira, ainda antes da sua criação como cardeal. Esta comédia humana durou alguns anos, e a capa de seda furta-cores e adamascada a fio de ouro estava quase carmesim quando o núncio, perto dos setenta e um anos, foi finalmente elevado à púrpura. (Na sua «Testimonianza», Mons. Viganò faz claramente o «outing» de Martino ao declarar as suas suspeitas de que ele pertence à «corrente homossexual» da cúria, algo que os seus amigos contestaram vivamente num comunicado.)

Na capela do cardeal, desta vez, no meio dos medalhões-retratos de Martino e dos amuletos, cuidadosamente protegidos do sol por cortinados com pregas bordadas, descubro a trindade dos artistas LGBT: Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo e Caravaggio. Cada um desses homossexuais notórios tem direito, neste local mais íntimo, a uma reprodução castrada de uma das suas obras. Falamos durante alguns instantes do seu factótum filipino e Martino que, ao que parece, não se apercebeu do que eu pretendia dizer, desenha-me, dando uma de Robinson Crusoe, um retrato idílico do rapaz tendo o cuidado de precisar que, na verdade, tem ao seu serviço «dois filipinos», que prefere às tradicionais freirinhas. É compreensível.

O ANTIGO TESTAMENTO, como todos sabem, está povoado de personagens mais coloridas, mais aventureiras e também mais monstruosas do que o Novo. O cardeal Renato Martino é, à sua maneira, uma personagem das velhas escrituras. É ainda, hoje em dia, presidente do Dignitatis Humanae Institute, uma das associações católicas de extrema-direita e lóbi político ultraconservador, dirigido pelo inglês Benjamin Harnwell. Se existe uma organização estruturalmente homófoba neste livro, é ela – e Renato Martino é a sua bússola.

Nos 195 países que visitou, nas embaixadas em que foi núncio e como «observador permanente» na sede das Nações Unidas durante dezasseis anos, entre 1986 e 2002, Renato Martino foi um grande defensor dos Direitos Humanos, um militante anti-IVG exaltado, bem como um opositor fervoroso aos direitos dos gays e ao uso do preservativo.

Na ONU, Renato Martino foi o principal porta-voz de João Paulo II: teve de aplicar a linha do papa. A sua margem de manobra era, é certo e tal como a de todos os diplomatas, reduzida, mas segundo mais de uma vintena de testemunhos recolhidos em Nova Iorque, Washington e Genebra, incluindo os de três antigos embaixadores junto da ONU, Martino assumiu a sua missão manifestando um tal preconceito antigay, uma tal animosidade pessoal contra os homossexuais, que esse ódio se tornou suspeito.

– Monsenhor Martino não era um diplomata normal – explica-me um embaixador que foi seu homólogo em Nova Iorque. – Nunca vi ninguém tão binário. Enquanto observador permanente da santa sé na ONU, tinha dois rostos e a sua linha política tinha claramente dois pesos e duas medidas. Tinha uma abordagem humanista em relação aos Direitos Humanos, clássica para a santa sé, e sempre muito moderada. Era um grande defensor da justiça, da paz e, lembro-me nomeadamente, do direito dos Palestinos. E depois, de súbito, quando se abordava a questão da luta contra da SIDA, da IVG ou da despenalização da homossexualidade, tornava-se maniqueísta, obsessivo e vindicativo, como se isso o tocasse pessoalmente. Em relação aos Direitos Humanos, expressava-se um pouco como a Suíça e o Canadá; e de súbito, quanto à questão gay ou a SIDA, falava como o Uganda e a Arábia Saudita! E, aliás, o Vaticano fez, subsequentemente, uma aliança contranatura, segundo nós, com a Síria e a Arábia Saudita quanto à questão dos direitos das pessoas homossexuais. Martino era Dr. Jekyll e Mr. Hyde!

UM SEGUNDO DIPLOMATA DO VATICANO, Silvano Tomasi, vai desempenhar um papel semelhante na Suíça. Se, em Nova Iorque, se encontra a prestigiosa representação permanente das Nações Unidas e o seu Conselho de Segurança, é em Genebra que está instalada a maior parte dos organismos especializados das Nações Unidas que intervêm nas questões dos Direitos Humanos e da luta contra a SIDA: o Alto-Comissariado para os Direitos Humanos, a Organização Mundial de Saúde, o ONUSIDA, o Fundo Mundial de combate à SIDA e, claro, o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas. O Vaticano está representado no conjunto destes organismos especializados por um único «observador permanente», sem direito de voto.

Quando me encontro com Silvano Tomasi no Vaticano, onde me recebe à margem de um encontro internacional que decorre na sala das audiências pontificais Paulo VI, o prelado pede desculpa por não ter muito tempo para me dedicar. Por fim, acabaremos por falar durante mais de uma hora e faltará ao resto da conferência a que deveria assistir para ficar comigo.

– Recentemente, o papa Francisco disse-nos, dirigindo-se aos núncios apostólicos, que a nossa vida devia ser uma vida de «gypsies» – diz-me Tomasi, usando a palavra inglesa.

Como saltimbanco, portanto, como nómada, como boémio, talvez, Tomasi percorreu o mundo, como todos os diplomatas. Foi embaixador do Vaticano na Etiópia, na Eritreia ou ainda no Djibuti antes de ficar à frente do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes.

– Os refugiados, os migrantes são a prioridade do papa Francisco, que se interessa pelas periferias, pela margem da sociedade, pelas pessoas deslocadas. Quer ser uma voz para aqueles que não têm voz – diz-me Tomasi.

Estranhamente, o núncio tem uma tripla nacionalidade: é italiano, nascido a norte de Veneza em 1940; cidadão do Estado do Vaticano, enquanto núncio; e americano.

– Cheguei a Nova Iorque aos dezoito anos. Fui estudante católico nos Estados Unidos, fiz a minha tese na New School, em Nova Iorque e fui durante muito tempo padre em Greenwich Village.

O jovem Silvano Tomasi é ordenado no seio da missão de San Carlos Borromeo, criada no final do século XIX, cujo principal objetivo era evangelizar o Novo Mundo. Na década de 1960, exerce longamente o seu ministério numa paróquia dedicada aos imigrados italianos que vivem em Nova Iorque: Our Lady of Pompeii, uma igreja do «Village», na esquina da Bleecker Street com a 6ª Avenida.

É um bairro que conheço bem, por ter vivido vários anos em Manhattan. Estamos a cinco minutos a pé de Stoneawll Inn. É aí, em junho de 1969, no preciso momento em que o jovem Silvano Tomasi se instala no bairro, que nasce o movimento homossexual americano, durante uma noite de distúrbios. Todos os anos se comemora, em todo o mundo, esse acontecimento, sob o nome de Gay Pride. Greenwich Village torna-se, durante a década de 1970, o local simbólico da libertação homossexual e é aí que o jovem prelado exerce a sua missão evangélica, entre os hippies, os travestis e os ativistas gays que tomaram o bairro de assalto.

Quando da nossa conversa, falamos do «Village» e da sua fauna LGBT. Esperto que nem macaco velho, Silvano Tomasi expressa-se com uma grande tensão e também uma grande reserva: não vou ensinar-lhe a fazer caretas!

– Veja bem: conversamos como amigos, faz-me dizer coisas e depois vai reter apenas as afirmações contrárias à Igreja, como todos os jornalistas! – Diz-me Tomasi, rindo, e continuando a falar cada vez mais. (O encontro foi formalizado oficialmente através do serviço de imprensa do Vaticano e o prelado sabe que está a ser gravado porque utilizo um Nagra bem visível.)

Depois de ter viajado muito, o núncio Silvano Tomasi termina a sua carreira tornando-se «observador permanente» da santa sé junto da ONU, em Genebra. Ali, entre 2003 e 2016, vai pôr em execução a diplomacia dos papas João Paulo II e Bento XVI.

Durante mais de dez anos, portanto, o diplomata-chefe do Vaticano, que, todavia, era um bom conhecedor de Greenwich Village, conduz uma política tão obsessivamente antigay como a posta em prática em Nova Iorque pelo seu colega Renato Martino. Os dois núncios despendem, em concerto, uma energia considerável para tentar bloquear as iniciativas que visam a despenalização internacional da homossexualidade e o uso do preservativo. Multiplicam as intervenções para entravar todos os projetos nesse sentido da OMS, do ONUSIDA ou do Fundo Mundial de combate à SIDA, como me confirmam diversos responsáveis desses organismos especializados das Nações Unidas que interroguei em Genebra, nomeadamente o diretor-geral do ONUSIDA, Michel Sidibé.

No mesmo momento, os dois núncios mostraram-se discretos quanto aos casos de abusos sexuais dos padres que já se contam, nesses anos, aos milhares. Uma moral de geometria variável, em suma.

– Um bom diplomata é um diplomata que representa bem o seu governo. E, no caso vertente, para o Vaticano, um bom núncio apostólico é aquele que se mantém fiel ao papa e às prioridades que ele defende – diz-me simplesmente Tomasi para justificar a sua ação em Genebra na estrita obediência à linha imposta por João Paulo II.

EM 1989, PELA PRIMEIRA VEZ, o papa dedica, perante uma assembleia de médicos e investigadores reunidos em Viena, um discurso à questão da SIDA. Já tinha sido visto, em 1987, em Los Angeles, a beijar uma criança condenada à morte pelo vírus, ou a exigir, quando da mensagem de Natal de 1988, compaixão para com as vítimas da epidemia, mas ainda não se expressara publicamente sobre este tema. «Parece ofensivo à natureza humana e, por conseguinte, moralmente ilícito», declara desta vez João Paulo II, «desenvolver a prevenção da SIDA, baseada no recurso a meios e remédios que violam o sentido autenticamente humano da sexualidade e que são um paliativo para aqueles distúrbios profundos onde estão em causa a responsabilidade dos indivíduos e a da sociedade».

É certo que o papa não refere o «preservativo» enquanto tal (nunca o fará), mas esta primeira declaração suscita uma viva agitação em todo o mundo. Em setembro de 1990 e de novo em março de 1993, retoma este tipo de discurso, desta vez em solo africano, na Tanzânia e depois no Uganda, dois dos países mais atingidos pela pandemia. Aí, afirma ainda «que a restrição sexual imposta pela castidade é o único meio seguro e virtuoso de pôr fim à chaga trágica da SIDA». O papa não tolera qualquer exceção à regra, inclusive no caso dos casais casados assintomáticos (em que um dos parceiros é seropositivo), no preciso momento em que um ugandês em cada oito estava contaminado pelo vírus.

Estas posições serão vivamente contestadas não só pela comunidade científica e médica, mas também por cardeais influentes como Carlo Maria Martini ou Godfried Danneels (o arcebispo de Paris, Jean-Marie Lustiger, defenderá, numa casuística inimitável, a posição de João Paulo II, propondo ao mesmo tempo algumas exceções como «mal menor»).

Na ONU, Renato Martino lança-se então numa campanha virulenta contra o «safer sex» e o recurso ao preservativo. Quando um comité de bispos americanos publica, em 1987, um documento que dá a entender que é necessário informar as populações dos meios para se protegerem, Martino afadiga-se nas altas instâncias para mandar proibir o texto. Seguidamente, mobiliza-se para que a prevenção da SIDA não figure nos documentos ou nas declarações da ONU. Um pouco mais tarde, utiliza um artigo pretensamente científico que o cardeal López Trujillo difunde massivamente para denunciar os perigos do «sexo sem risco» e concluir que existem inúmeras contaminações quando de relações sexuais protegidas. Ainda em 2001, pouco antes do fim da sua missão, durante a Conferência Episcopal da África do Sul publica uma carta pastoral justificando a utilização do preservativo no caso dos casais casados assintomáticos, Martino agita-se pela última vez para tentar fazer calar os bispos sul-africanos.

«O PRESERVATIVO AGRAVA O PROBLEMA DA SIDA». A frase é uma das mais célebres do pontificado de Bento XVI. A afirmação foi, é certo, deformada frequentemente. Recordemos brevemente o contexto e a formulação exata. A 17 de março de 2009, o papa está a caminho de Iaundé, nos Camarões, quando da sua primeira viagem a África. No avião da Alitalia, numa conferência de imprensa que foi organizada minuciosamente, toma a palavra. A pergunta, preparada de antemão, é-lhe feita por um jornalista francês. Na sua resposta, depois de ter saudado a ação meritória dos católicos na luta contra a SIDA em África, Bento XVI acrescenta que essa doença só poderá ser vencida com dinheiro: «Se não houver alma», afirma, «se os Africanos não se ajudarem, não poderemos resolver este flagelo por meio da distribuição de preservativos; pelo contrário, isso corre o risco de aumentar o problema».

– Se formos honestos, temos de reconhecer que a resposta do papa, tomada no seu conjunto, é bastante coerente. O que levanta um problema é apenas uma frase: a ideia de que o preservativo é «pior» e que «agrava» as coisas. A única coisa que não está bem é a ideia de «pior» – reconhece Federico Lombardi, o porta-voz de Bento XVI. (Lombardi, presente ao lado do papa no avião, confirma-me que a pergunta sobre a SIDA fora autorizada e preparada de antemão.)

A frase desencadeia de imediato uma vaga de protestos em cinco continentes. Bento XVI é criticado, troçado e até ridicularizado. Os presidentes de inúmeros países, primeiros-ministros e inúmeros médicos de fama mundial, frequentemente católicos, denunciam pela primeira vez umas «afirmações irresponsáveis». Diversos cardeais falam delas como uma grave «falta de tato» ou um «erro». Outros, por fim, como a associação Act Up, acusam o papa de ser, pura e simplesmente, «um criminoso».

– Os bispos e os padres que já recorriam a uma linguagem antipreservativo viram-se legitimados pela frase de Bento XVI e, por conseguinte, multiplicaram as homilias nas suas igrejas contra o combate à SIDA e, claro, alguns insistiram no facto de que a doença era um castigo de Deus para punir os homossexuais – diz-me um padre africano que também é diplomata da santa sé (e que encontro, um pouco por acaso, num café do Borgo, em Roma).

Amiúde, esses bispos e esses padres católicos fazem causa comum com os pastores americanos homófobos, os evangélicos ou os imãs que se opõem aos direitos dos gays e ao preservativo como meio de luta contra a SIDA.

Segundo esse diplomata do Vaticano, os núncios presentes no terreno têm nomeadamente como missão vigiar os bispos africanos e os seus discursos sobre a homossexualidade e a SIDA. Devem comunicar o mínimo «desvio» à santa sé. Sob João Paulo II e Bento XVI, bastava, portanto, que um padre aprovasse a distribuição de preservativos, ou se mostrasse favorável à homossexualidade, para perder todas as esperanças de vir a ser bispo.

A célebre advogada Alice Nkom explica-me que no seu país, os Camarões, onde levei a cabo uma investigação, «está em curso uma verdadeira caça aos homossexuais». Ora, insiste ela, o bispo Samuel Kléda tomou posição a favor da criminalização da homossexualidade e tenciona castigar os doentes com SIDA. No Uganda, onde um ativista gay foi assassinado, o arcebispo católico Cyprian Lwanga opôs-se à despenalização da homossexualidade. No Malawi, no Quénia ou até na Nigéria, os representantes da Igreja católica ficaram célebres por afirmações homófobas ou antipreservativo (algo que é confirmado por um relatório pormenorizado da Human Rights Watch entregue ao papa Francisco, em 2013).

Uma política moralmente injusta com efeitos contraproducentes, como me confirma durante uma entrevista em Genebra, o maliano Michel Sidibé, diretor-geral do organismo especializado das Nações Unidas, ONUSIDA:

– Na África subsariana, o vírus da SIDA difunde-se principalmente por relações heterossexuais. Podemos afirmar, portanto, baseando-nos em números, que as leis homófobas, além de atentarem contra os Direitos Humanos, são completamente ineficazes. Quanto mais os homossexuais se esconderem, mais vulneráveis estarão. Ao fim de contas, ao reforçar a estigmatização, corremos o risco de travar a luta contra a SIDA e multiplicar as contaminações das populações vulneráveis.

Entre tantos prelados africanos homófobos, dois cardeais destacam-se do grupo. Tornaram-se notados, nestes últimos anos, pelos seus discursos contra os preservativos e contra os gays: o sul-africano Wilfrid Napier e o guineense Robert Sarah, promovidos a cardeais por João Paulo II e Bento XVI, numa época em que ser antigay era um ponto a favor num CV. Ambos foram marginalizados, de então para cá, por Francisco.

AnTES DE SER HOMÓFOBO, WILFRID NAPIER defendeu, durante muito tempo, os Direitos Humanos. O seu percurso fala por si: o atual arcebispo de Durban foi um militante ativo da causa negra e do processo democrático na África do Sul. À frente da Conferência Episcopal Sul-africana, desempenhou um importante papel no momento das negociações para pôr termo ao apartheid.

No entanto, Napier contestou os progressos propostos por Nelson Mandela sobre a despenalização da homossexualidade, a introdução da ideia de «orientação sexual» na Constituição do país e, subsequentemente, a implementação do «same-sex marriage».

Vários testemunhos que recolhi em Joanesburgo, Soweto e Pretória classificam Napier como um «verdadeiro homófobo» e um «militante radical contra o preservativo». Em 2013, o arcebispo de Durban denuncia as propostas de lei a favor do casamento gay que se multiplicam por todo o mundo: «É uma nova forma de escravatura. E os Estados Unidos dizem-nos que não vão ter dinheiro enquanto não distribuírem preservativos e legalizarem a homossexualidade». (Recordemos aqui que o casamento gay foi adotado na África do Sul antes de o ser nos Estados Unidos.)

Essas intervenções suscitaram vivas reações. O arcebispo anglicano Desmond Tutu, prémio Nobel da paz, opôs-se frontalmente a Napier (sem citar o seu nome) denunciando as Igrejas que estão «obcecadas com a homossexualidade» quando há uma grave epidemia de SIDA. Tutu comparou, em diversas ocasiões, a homofobia com o racismo, indo ao ponto de afirmar: «Se Deus fosse homófobo, como alguns afirmam, não rezaria a esse Deus».

O escritor Peter Machen, diretor do festival de cinema de Durban, também criticou o cardeal Napier com pesados subentendidos: «Isn’t it a little hard to tell, Archbishop, (who is gay) when most of your colleagues wear dresses?» (Não é um pouco difícil dizer, Arcebispo, quem é homossexual quando a maior parte dos seus colegas usa vestidos?)

Napier multiplica as suas declarações antigays, denunciando, por exemplo, «a atividade homossexual» no seio da Igreja, a causa, segundo ele, dos abusos sexuais: «Afastar-se da lei de Deus conduz sempre à desgraça», acrescenta. Essa homofobia obsessiva de Napier suscita reservas inclusive nas fileiras da Igreja sul-africana. Assim, os jesuítas de Joanesburgo criticaram as posições do cardeal nas suas conversas privadas com o núncio apostólico (segundo uma fonte de primeira mão) e aceitam tacitamente, fechando os olhos, segundo o que pude verificar no local, as distribuições de preservativos.

O juiz Edwin Cameron também se mostra igualmente crítico. Amigo de Nelson Mandela, tendo um filho que morreu de SIDA, Cameron é uma das figuras mais respeitadas da África do Sul. Militante da causa negra, aderiu ao ANC sob o apartheid, o que foi raro para um branco. Membro hoje em dia do Supremo Tribunal sul-africano, tornou pública a sua seropositividade. Entrevistei-o várias vezes em Joanesburgo, onde me deu a sua opinião, lenta e pausadamente, sobre Wilfrid Napier:

– Aqueles que se preocupam com diminuir a tragédia da SIDA em África ou proteger as pessoas LGBT neste continente encontraram no seu caminho um adversário implacável na pessoa do cardeal Wilfrid Napier. Ao ouvi-lo, hesitamos entre a angústia e o desespero. Ele utilizou o seu importante poder de prelado da Igreja católica romana para se opor aos direitos das mulheres, para condenar os preservativos e para repudiar toda a proteção jurídica dos homossexuais. Militou contra a descriminalização das relações sexuais consentidas entre dois homens ou duas mulheres adultos e, claro, contra o casamento dos casais do mesmo sexo. Apesar desta obsessão, afirmou que não conhecia homossexuais. Assim, e simultaneamente, tornou-nos invisíveis e julgou-nos! Esta triste saga na história do nosso país e esta página negra da Igreja católica em África está prestes a chegar ao fim, esperemos, com o pontificado de Francisco.

Precisemos, por fim, que o cardeal Wilfrid Napier se manteve discreto quando aos abusos sexuais da Igreja católica, que envolvem dezenas de padres na África do Sul. O arcebispo de Durban foi inclusive ao ponto de declarar, numa entrevista à BBC, que os pedófilos não devem ser «punidos» porque se trata «de doentes e não de criminosos». Tendo em conta o escândalo suscitado por essas afirmações, o cardeal pediu desculpa, afirmando que havia sido mal entendido. «Não posso ser acusado de homofobia», descartou-se, «porque não conheço nenhum homossexual».

ROBERT SARAH É UM HOMÓFOBO DE OUTRO TIPO. Conversei informalmente com ele depois de uma conferência, mas não pude entrevistá-lo oficialmente, apesar de vários pedidos. Em contrapartida, pude conversar várias vezes com os seus colaboradores, nomeadamente Nicolas Diat, o coautor dos seus livros. O cardeal Fernando Filoni que tem a seu cargo as questões africanas no Vaticano, e um padre que viveu com Sarah, quando este último era secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos, também me forneceram informações.

Robert Sarah não nasceu católico, tornou-se. Tendo crescido numa tribo coniagui a quinze horas de taxi-brousse da capital, Conacri, partilha com ela os preconceitos, os ritos, as superstições e até a cultura da feitiçaria e dos marabutos. A sua família é animista; a sua casa é feita de terra batida e dorme lá deitado no chão. Assim nasceu o storytelling do chefe de tribo Sarah.

A ideia de se converter ao catolicismo, e depois tornar-se padre, germina em contacto com os missionários do Espírito Santo. Entra para o seminário menor na Costa do Marfim e, em seguida, é ordenado padre em Conacri, em 1969, no preciso momento em que Sékou Touré, o ditador no poder na Guiné, organiza a caça aos católicos. Quando o arcebispo da cidade é encarcerado, em 1979, Roma nomeia para o substituir Sarah que se torna o bispo mais novo do mundo. Inicia-se um braço de ferro e o prelado enfrenta o ditador, o que lhe vale ser colocado na lista de pessoas… a envenenar.

A maior parte das testemunhas que interroguei sublinha a coragem que Sarah revelou sob a ditadura e, ao mesmo tempo, a sua inteligência nas relações de força. Exibindo uma modéstia que dissimula um ego extravagante, o prelado soube fazer-se notar pelo círculo próximo de João Paulo II que admira, simultaneamente, a sua oposição a uma ditadura comunizante e as suas tomadas de posição inflexíveis sobre a moral sexual, o celibato dos padres, a homossexualidade e o preservativo.

Em 2001, João Paulo II chama-o para junto de si. Sarah deixa África e torna-se «romano». É um ponto de viragem. Torna-se secretário da importante Congregação para a Evangelização dos Povos, o «ministério» que, no Vaticano, se ocupa de África.

– Conheci bem Robert Sarah quando ele chegou a Roma. Era um biblista. Era humilde e prudente, mas também bajulador e lisonjeiro com o cardeal prefeito, à data Crescenzio Sepe. Trabalhava muito. E depois, mudou – conta-me um padre, especialista em África, que foi próximo de Sarah no Palazzo di Propaganda.

Vários observadores espantam-se, aliás, com essa parelha contranatura formada por Crescenzio Sepe e Robert Sarah, a carpa e o coelho. O jovem bispo serve, sem pestanejar, um cardeal, chamado «papa vermelho», que tem amizades mundanas e será transferido para longe de Roma pelo papa Bento XVI.

– Sarah é um grande místico. Reza sem cessar, um pouco enfeitiçado. Mete medo. Mete medo, literalmente – comenta um padre.

Há zonas de sombra importantes que subsistem no percurso de Robert Sarah, um pouco belo de mais para ser verdadeiro. Assim, a sua ligação às ideias de extrema-direita de Mons. Lefebvre, excomungado pelo papa em 1988, volta com frequência: Sarah formou-se efetivamente numa escola de missionários de que Marcel Lefebvre era então uma figura tutelar e, em seguida, esteve imerso, em França, num meio integrista. A proximidade de Sarah com a extrema-direita católica é um simples pecado venial de juventude ou moldou duradouramente as suas ideias?

Uma segunda zona de sombra cobre as competências litúrgicas e teológicas do cardeal que exige a missa em latim ad orientem, mas não teria o nível exigido. Ultraelitista (porque exigir o latim, mesmo quando se fala mal, é separar-se das multidões) – e filistino. Os seus escritos sobre santo Agostinho, são Tomás de Aquino ou a Reforma são muito criticados. Quanto às suas elucubrações contra os filósofos do Iluminismo, denotam «um arcaísmo que coloca a superstição à frente da razão», segundo um teólogo, que acrescenta:

– Porquê recuar até antes do concílio do Vaticano II quando se pode regressar à Idade Média!

Um outro docente universitário e teólogo francês que vive em Roma, e publicou diversos livros de referência sobre o catolicismo, explica-me, quando de três conversas:

– Sarah é um teólogo de gama baixa. A sua teologia é muito pueril: «Rezo, logo sei». Abusa dos argumentos de autoridade. Nenhum teólogo digno desse nome o pode tomar muito a sério.

O ensaísta francês, Nicolas Diat, que coescreveu três livros com Sarah, toma a defesa do cardeal, durante os três almoços que partilhamos em Paris:

– O cardeal Sarah não é um tradicionalista, como querem fazer crer. É um conservador. Originalmente, é um chefe tribal, é preciso não o esquecer. Para mim, é um santo com uma enorme piedade.

Um santo que alguns criticam pela sua habilidade social, o seu estilo de vida e as suas ligações africanas. Defensor incondicional do continente negro, Sarah manteve-se discreto relativamente às malversações financeiras de determinados prelados africanos, como, por exemplo, as da Conferência Episcopal do Mali ou aquelas que o cardeal-arcebispo de Bamako colocava secretamente na Suíça (e que foram reveladas pelo escândalo SwissLeaks).

A isso temos de juntar um estranho mistério editorial que descobri. As vendas em livraria dos livros do cardeal Sarah não correspondem de modo algum aos números anunciados. Não é raro, é certo, um autor «insuflar» um pouco os números das suas vendas, por vaidade. Mas, no caso vertente, os «250 000 exemplares» anunciados na imprensa são quase dez vezes superiores às vendas reais em livraria. O «êxito sem precedentes» do cardeal é um exagero. As vendas dos livros do cardeal Sarah são apenas médias em França: no final de 2018, Dieu ou rien vendeu 9926 exemplares na edição original de grande formato e La Force du silence, 16 325, apesar do curioso prefácio do papa emérito Bento XVI (segundo os números da base de dados da edição francesa, Edistat). As vendas na Amazon também são fracas. E mesmo se lhe juntarmos a difusão nas paróquias e seminários, mal tomadas em conta pelas estatísticas da edição, e as versões em formato de bolso (apenas 4608 exemplares para La Force du silence), estamos longe das «centenas de milhares de exemplares» anunciadas. No estrangeiro, a mesma debilidade, sobretudo porque o número das traduções é em si mesmo inferior ao que pôde ser escrito por determinados jornalistas.

Como explicar este «hiato»? Ao investigar no seio da editora francesa de Sarah, descobri a marosca. Segundo duas pessoas que tiveram conhecimento dessas negociações delicadas: dezenas, talvez centenas de milhares de exemplares dos seus livros, teriam sido compradas «por atacado» por mecenas e fundações, e em seguida distribuídos gratuitamente, nomeadamente em África. Essas «bulk sales», ou vendas diretas, são perfeitamente legais. Uma vez que contribuem para «insuflar» artificialmente os números das vendas, agradam tanto aos editores como aos autores: garantem aos primeiros fontes de lucros significativas, uma vez que distribuidores e livreiros são curto-circuitados; os autores beneficiam ainda mais uma vez que são remunerados em percentagem (em alguns casos, podem ser assinadas adendas aos contratos para renegociar os direitos, se essas vendas paralelas não estavam previstas inicialmente). A versão em inglês dos livros de Sarah é publicada, talvez segundo modos semelhantes, por uma editora católica conservadora, que se celebrizou pelas suas campanhas anticasamento gay: a Ignatius Press, de São Francisco.

Através de fontes diplomáticas concordantes, confirma-se também que exemplares dos livros de Sarah foram distribuídos gratuitamente em África, por exemplo, no Benim. Vi pessoalmente, num centro diplomático cultural francês, pilhas de centenas de livros do cardeal embrulhados em plástico.

Quem apoia a campanha do cardeal Sarah e, caso seja necessário, essas distribuições de livros? Beneficia de apoios financeiros europeus ou americanos? O que é certo: Robert Sarah tem ligações a associações ultraconservadoras católicas, nomeadamente o Dignitatis Humanae Institute (o que me é confirmado por Benjamin Harnwell, o seu diretor). Nos Estados Unidos, tem ligações, nomeadamente, a três fundações o Becket Fund of Religious Liberty, os Cavaleiros de Colombo (que admitem ter comprado a «granel» e em francês os seus livros) e o National Catholic Prayer Breakfast, onde fez uma conferência. Na Europa, Robert Sarah também pode contar com o apoio dos Cavaleiros de Colombo, em especial em França, bem como com a afeição de uma milionária que já visitámos neste livro: a princesa Gloria von Thurn und Taxis, uma riquíssima monárquica alemã. Gloria TNT confirma-me, quando de uma conversa no seu palácio de Ratisbona, na Baviera:

– Aqui, convidámos sempre o clero: faz parte do nosso património católico. Recebo conferencistas que vêm de Roma. Estou muito envolvida com a Igreja católica e adoro convidar speakers, como o cardeal Robert Sarah. Ele apresentou o seu livro aqui, em Ratisbona, e convidei a imprensa: foi um belo serão. Tudo isso faz parte da minha vida social.

Nas fotografias da receção mundana, distinguimos a princesa Gloria TNT, rodeada por Robert Sarah e o seu escriba Nicolas Diat, bem como o cardeal Ludwig Müller, o padre Wilhelm Imkamp ou ainda Georg Ratzinger, o irmão do papa (a edição alemã do livro é prefaciada por Georg Gänswein). Em resumo: os principais atores daquilo que foi chamado «das Regensburger Netzwerk» (em português: «a rede de Ratisbona»).

Robert Sarah também mantém vínculos com a associação de Marguerite Peeters, uma militante extremista belga, homófoba e antifeminista. Aliás, Sarah prefaciou um pequeno panfleto de Marguerite Peeters contra a teoria do género, que foi editado quase por conta da autora. Aí, escreve: «A homossexualidade é um contrassenso em relação à vida conjugal e familiar. É no mínimo pernicioso recomendá-la em nome dos Direitos Humanos. Impô-la é um crime contra a humanidade. E é inadmissível que os países ocidentais os organismos especializados da ONU imponham aos países não-ocidentais a homossexualidade e todos os seus desvios morais… Promover a diversidade das «orientações sexuais» em terra africana, asiática, oceânica ou sul-americana é impelir o mundo para uma deriva antropológica e moral total: para a decadência e destruição da humanidade!»

Quais são os financiamentos de que Sarah beneficia? Não sabemos. De qualquer modo, o papa Francisco, visando determinados cardeais da cúria romana, teria dito: «Há Deus e há o Deus do dinheiro».

Finalmente, um derradeiro mistério: o círculo próximo do cardeal não para de surpreender os observadores: Sarah viaja e trabalha com gays. Um dos seus colaboradores próximos é um gay de extrema-direita bastante famoso por seduzir sem timidez, por vezes na presença do cardeal. E quando Sarah era secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos, organizavam-se serões mundanos homossexuais num dos apartamentos do dicastério. Sarah sabia-o? Nada o prova, mas o Vaticano continua a ironizar sobre essa época insólita em que «private dancers», as «orgias químicas e as «chemsex parties» eram moeda corrente nas dependências do «papa vermelho».

– Sarah podia não estar ao corrente da vida dissoluta de determinados padres da Congregação e dos serões de deboche que se desenrolavam no edifício onde residia e trabalhava? – Pergunta-se, visivelmente aterrado, um padre que, na época, vivia nesse ministério (e que interrogo na Bélgica).

Hoje em dia, os bons conhecedores da cúria fazem notar também a presença, entre os colaboradores de Sarah, de um prelado que foi ridicularizado pela imprensa e condenado pelo tribunal italiano num caso de prostituição gay. Castigado pelo papa, o monsignore desapareceu, para reaparecer miraculosamente na equipa de Sarah, no Vaticano (o seu nome ainda figura no Annuario Pontifico).

– O cardeal mais antigay da cúria romana está rodeado de homossexuais. Exibe-se com eles nas redes sociais. Em Roma ou em França, aonde se desloca com frequência, é visto acompanhado por gays agitados perfeitamente praticantes! – Diz, rindo, um jornalista francês que o conhece bem.

O papa Francisco também conhece bem esse Sarah. Porque se, em público, o cardeal professa a sua admiração pelo papa, em privado critica-o vigorosamente. Quando faz conferências, o seu séquito apresenta-o como «um dos conselheiros mais próximos do papa» para atrair o público e vender os seus livros; mas, na verdade, é um dos seus inimigos mais implacáveis. Francisco, que nunca se deixou iludir pelos cortesãos obsequiosos e os hipócritas de longa data, castiga-o regularmente com uma pérfida severidade. Há muito que Sarah não se encontra em odor de santidade no Vaticano.

– A técnica do papa contra Sarah é aquela a que chamarei a técnica da tortura chinesa: não é despedido de imediato, é humilhado pouco a pouco privando-o de meios e retirando-lhe os colaboradores, marginalizando-o, desmentindo as suas afirmações ou recusando-lhe audiência… e depois, um dia, vão fazer-lhe hara-kiri. A técnica foi afinada para [Raymond] Burke e [Ludwig] Müller. A vez de Sarah chegará no devido momento – afirma-me um padre da cúria que pertence ao círculo próximo do cardeal Filoni.

A tortura chinesa já está em marcha. Criado cardeal por Bento XVI em 2010, Robert Sarah assumiu a chefia do poderoso Conselho Pontifício «Cor Unum», que se ocupa das organizações caritativas católicas, onde se mostrou sectário e mais preocupado com a evangelização do que com a filantropia. Após a sua eleição, o papa Francisco destitui-o por ter exercido a missão de caridade de uma forma pouco caritativa. Fase I do suplício chinês: em vez de o demitir, o papa reorganiza a cúria e dissolve totalmente o Conselho Pontifício «Cor Unum», privando assim Sarah do seu cargo! Prémio de consolação, o cardeal é, segundo a famosa técnica do «promoveatur ut amoveatur» (promovido para ser afastado), nomeado para chefiar a Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos sacramentos. Também lá multiplica os passos em falso e se revela um militante incondicional do rito latino e da missa ad orientem: o padre deve celebrar a missa de costas, virado para oriente. O papa chama-o à ordem: fase dois do suplício chinês. Fase três: Francisco renova, de uma só vez, vinte e sete dos trinta cardeais da equipa que aconselha Robert Sarah e, sem sequer se dar o trabalho de o consultar, nomeia homens seus para os substituir. Fase quatro: Francisco priva-o dos seus colaboradores. As aparências estão salvas: Sarah mantém o cargo; mas o cardeal é marginalizado no próprio seio do seu ministério. De algum modo, está dentro do armário!

Tendo permanecido na sombra durante muito tempo, foi com o sínodo para a família, querido por Francisco, que Sarah apareceu de rosto descoberto. O africano já não hesita em classificar o divórcio como um escândalo e as segundas núpcias como adultério! Em 2015, profere inclusive um discurso histérico em que denuncia, como se ainda estivesse na sua aldeia animista, a «besta do apocalipse», um animal de sete cabeças e dez cornos enviado por Satanás para destruir a Igreja. E qual é, então, essa besta demoníaca que ameaçaria a Igreja? O seu discurso de 2015 é explícito nesse ponto: trata-se da «ideologia do género», das uniões homossexuais e do lóbi gay. E o cardeal dá ainda mais um passo, comparando essa ameaça LGBT… ao terrorismo islâmico: são duas faces de uma mesma moeda, segundo ele «duas bestas do apocalipse» (estou a citá-lo aqui com base na transcrição oficial que obtive).

Ao comparar os homossexuais com o Daesh, Sarah acabou de atingir um ponto de não retorno.

– Estamos perante um iluminado – resume severamente, «off the record», um cardeal próximo do papa.

E um padre que participou no sínodo diz-me:

– Já não se trata de religião; aqui, estamos num discurso típico da extrema-direita. É Mons. Lefebvre: não é preciso ir procurar mais longe as suas fontes. Sarah é Lefebvre africanizado de novo.

O que é estranho aqui é a obsessão de Sarah com a homossexualidade. Que ideia fixa! Que psicose em relação a esse «apocalipse»! Em dezenas de entrevistas obscurantistas, o cardeal condena os homossexuais ou suplica-lhes que se mantenham castos. Magnânimo, vai mesmo ao ponto de propor aos menos frugais entre eles algumas «terapias reparadoras» que, defendidas amiúde pelo padre-psicanalista Tony Anatrella ou por charlatães, permitiriam «curá-los» e voltarem a ser heterossexuais! Se uma pessoa homossexual não consegue atingir a abstinência, as terapias reparadoras podem ajudá-la: «Num bom número de casos, quando a prática dos atos sexuais ainda não está estruturada, [esses homossexuais] podem reagir positivamente a uma terapia adequada».

No fundo, o cardeal atinge uma certa esquizofrenia. Em França, torna-se uma das figuras tutelares da Manif pour tous, sem ver que inúmeros dos apoios «anti-gender» provêm também de puros racistas que apelam ao voto, nas eleições presidenciais de 2017, na extrema-direita de Marine Le Pen. Aquele que defende uma visão absolutista da família exibe-se ao lado daqueles que pretendem reservar o abono de família aos franceses «de gema» e se opõem ao reagrupamento familiar dos pais africanos com os seus filhos.

Imprudência ou provocação? Robert Sarah vai ao ponto de prefaciar um livro de Daniel Mattson, Why I Don’t Call Myself Gay (Por Que Razão não me Defino como Gay). O livro, que tem um título que dá vertigens, é significativo por não propor aos homossexuais nem «caridade» nem «compaixão», mas a abstinência total. No seu prefácio, o cardeal Sarah dá a entender que ser homossexual não é um pecado se a continência for mantida. Quando confrontado com uma mulher adúltera, Jesus não disse: «Não te condeno; vai e não tornes a pecar»? É essa a mensagem de Sarah que, estranhamente, se junta à de tantos pensadores e escritores católicos homossexuais que valorizaram a castidade para não seguirem a sua tendência.

Com este tipo de discurso, Sarah aproxima-se, conscientemente ou não, dos homófilos mais caricatos, aqueles que sublimaram ou recalcaram a sua inclinação no ascetismo ou no misticismo. O prelado confessa ter lido muito sobre esta «doença» e assistido, em Roma, às conferências que tratavam da questão homossexual, nomeadamente as da Universidade Pontifícia São Tomás (como conta no prefácio do livro Why I Don’t Call Myself Gay). «Senti [ao ouvir aqueles homossexuais] a solidão, o sofrimento e a infelicidade de que sofriam seguindo uma vida contrária [à verdade] do Senhor», escreve. «E foi apenas quando começaram a viver na fidelidade aos ensinamentos de Cristo que conseguiram encontrar a paz e a alegria que procuravam».

NA VERDADE, O MUNDO de Robert Sarah é uma ficção. A sua crítica da modernidade ocidental por oposição ao ideal africano só é credível para aqueles que não conhecem África.

– A liberdade africana não corresponde em nada ao que Sarah afirma por pura ideologia – explica-me o diplomata africano do Vaticano que trabalhou com ele.

A ilusão é sobretudo palpável em três pontos: o celibato dos padres, a SIDA e a pretensa homofobia da África. O economista canadiano Robert Calderisi, antigo porta-voz do Banco Mundial em África, explica-me, quando o interrogo, que a maior parte dos padres do continente vive discretamente com uma mulher; os outros são geralmente homossexuais e tentam exilar-se na Europa.

– Os africanos desejam que os padres sejam como eles. Apreciam quando são casados e têm filhos – acrescenta Calderisi.

Todos os núncios e diplomatas que interroguei, e todos os meus contactos nos países africanos, onde fiz investigação, Camarões, Quénia e África do Sul confirmam esta frequente vida dupla dos padres católicos em África, quer sejam heterossexuais, quer homossexuais.

– Sarah sabe isso muito bem: um número significativo de padres africanos vive com uma mulher. Aliás, perderiam toda a legitimidade na sua aldeia se não provassem a sua prática heterossexual! Longe de Roma, conseguem mesmo, por vezes, ser casados na igreja da sua aldeia. O discurso atual de Sarah sobre a castidade e a abstinência é uma imensa fábula, quando conhecemos a vida dos padres em África. É uma miragem! – Afirma um padre especialista em África, que conhece bem o cardeal.

Esse prelado confirma também que a homossexualidade é um dos ritos de passagem tradicionais das tribos da África Ocidental, especialmente na Guiné. Uma singularidade africana que o cardeal não pode ignorar.

Hoje em dia, os seminários africanos também são, à imagem dos seminários italianos da década da 1950, locais homossexualizados e espaços de proteção dos gays. Trata-se, também aqui, de uma lei sociológica ou, se é que se pode dizer assim, de uma espécie de «seleção natural» no sentido de Darwin: ao estigmatizar os homossexuais em África, a Igreja força-os a esconder-se. Refugiam-se nos seminários para se protegerem e não terem de casar. Quando podem, fogem para a Europa onde os episcopados italianos, franceses e espanhóis recorrem a eles para repovoar as suas paróquias. E, assim, fecha-se o círculo.

O discurso de Robert Sarah foi-se tornando mais rígido à medida que ele se afastou de África. O bispo é mais ortodoxo do que o padre e o cardeal mais ortodoxo do que o bispo. Embora tenha fechado os olhos a bastantes segredos de África, ei-lo em Roma mais intransigente do que nunca. Os homossexuais tornam-se então os seus bodes expiatórios, indissociáveis daquilo que, a seus olhos, está perfeitamente ligado a eles: a SIDA, a teoria do género e o lóbi gay.

Robert Sarah foi um dos cardeais mais virulentos contra a utilização do preservativo em África. Repudiou as ajudas internacionais ao desenvolvimento que contribuíam para essa «propaganda», recusando toda a missão social à Igreja e castigando as associações, nomeadamente a rede Caritas, que distribuíam preservativos.

– Há uma grande distância, em África, entre o discurso ideológico da Igreja e o trabalho no terreno que é frequentemente muito pragmático. Vi, por toda a parte, freiras a distribuir preservativos – confirma-me o economista canadiano Robert Calderisi, antigo chefe de missão e porta-voz do Banco Mundial para a África Ocidental.

Sarah comete outro erro histórico em relação à homossexualidade. Aqui, a sua matriz é neo-terceiro-mundista: os ocidentais quereriam, repete, impor os seus valores através dos Direitos Humanos; ao atribuírem direitos aos homossexuais, viriam negar a «africanidade» dos povos do continente negro. Sarah ergue-se, portanto, em nome da África – que, no entanto, já deixou há muito tempo, dizem os seus detratores – contra o Ocidente doente. Para ele, os direitos LGBT não podem ser direitos universais.

Na realidade, como descobri na Índia, os artigos homófobos atualmente em vigor nos códigos penais dos países da Ásia e África anglófonas foram, na sua maioria, impostos, a partir de 1860, e quase nos mesmos termos, pela Inglaterra vitoriana às colónias e protetorados da Commonwealth (trata-se do artigo 337.º do código penal indiano, a matriz inicial, generalizado subsequentemente, de forma idêntica e sob o mesmo número, no Botsuana, Gâmbia, Lesotho, Maláui, Mauritânia, Nigéria, Quénia, Somália, Suazilândia, Sudão, Tanzânia, Zâmbia…). Este fenómeno também pode ocorrer alhures, na África do Norte e na África Ocidental: desta vez, um resultado do colonialismo francês. Logo, a penalização da homossexualidade não tem nada de local nem de asiático – é um vestígio do colonialismo. A pretensa singularidade de uma «africanidade» foi uma imposição dos colonos para tentarem «civilizar» os autóctones africanos, inculcar-lhes uma «boa moral» europeia e condenar as práticas homossexuais.

Ao tomarmos em conta esta dimensão homófoba da história colonial, avaliamos até que ponto o discurso do cardeal Sarah está viciado. Quando ele afirma que «a África e a Ásia devem proteger totalmente as suas culturas e os seus valores próprios» ou insiste em que a Igreja não permita que lhe seja imposta «uma visão ocidental da família», o cardeal ofende os crentes, cegado pelos seus preconceitos e os seus interesses. O seu discurso, neste campo, não deixa de lembrar o do ditador africano Robert Mugabe, presidente do Zimbabwe, para quem a homossexualidade é uma «prática ocidental antiafricana», ou o dos presidentes autocratas do Quénia ou do Uganda que repetem que ela é «contrária à tradição africana».

Decididamente, se cardeais como Robert Sarah ou Wilfrid Napier fossem coerentes consigo mesmos, deviam apelar à despenalização da homossexualidade em África, em nome do anticolonialismo e para reencontrar uma verdadeira tradição africana.

TEVE DE ESPERAR-SE PELO PAPA FRANCISCO para que a posição da Igreja quanto ao preservativo se suavizasse, ou no mínimo matizasse. Quando da sua viagem a África, em 2015, o sumo pontífice reconhecerá explicitamente que o preservativo é «um dos métodos» viáveis de luta contra a SIDA. Em vez de discorrer sobre a prevenção, insistirá no papel importante desempenhado pela Igreja no tratamento da epidemia: milhares de hospitais, de dispensários e de orfanatos, bem como a rede católica Caritas Internationalis, tratam os doentes e fornecem-lhes terapias antirretrovirais. Entretanto, a SIDA terá feito, em todo o mundo, mais de trinta e cinco milhões de mortos.