18.
A CEI
DE SÚBITO, O CARDEAL ITALIANO ANGELO BAGNASCO retira o anel cardinalício do seu anular direito e dá-mo espontaneamente. Com uma precisão de joalheiro, esse homem pequeno e totalmente engelhado estende-me o anel no coração da sua mão e eu recebo-o na palma da minha. Admiro a coisa. A cena passa-se no final da nossa conversa, enquanto trocamos impressões sobre o traje dos cardeais e sobre o anel cardinalício. Para um bispo não é o «anel do pescador», reservado ao papa, mas a marca da sua relação privilegiada com os fiéis. Substitui a aliança dos casados, talvez para significar que desposaram as suas ovelhas. Nesse momento preciso, sem os seus atributos e o símbolo do seu cargo episcopal, o cardeal sente-se observado e quase despido?
Se o seu relógio é luxuoso e a sua corrente de bispo com cruz peitoral de metal precioso igualmente luxuriante, o anel de Angelo Bagnasco é mais simples do que teria sonhado. No anular dos inúmeros cardeais e arcebispos que visitei, vi pedras tão preciosas, tão ousadas nas suas cores verde ametista, amarelo rubis e violeta esmeralda, que me perguntei se não se trataria de meros quartzos translúcidos pintados em Marráquexe. Vi anéis que deformavam os dedos, cardeais homófilos usando um anel grená que, dizem, afasta os demónios e, nas mãos de cardeais «closeted», anéis com, em engaste, aventurinas. E que engaste! Todos sabem que o pecado seria enfiar o anel no polegar. Ou no indicador!
Há que dizer que todos os cabeções e todos os clérigos se parecem. E embora Maria, uma das vendedoras de De Ritis, uma loja sacerdotal afamada, situada perto do Panteão de Roma, se tenha esforçado por explicar a diversidade de cortes e formas, para um olhar laico como o meu, existem realmente muito poucas diferenças entre todas essas vestimentas indigestas. Uma vez que não podem variar na indumentária – nem todos os cardeais têm a ousadia de Sua Eminência Raymond Burke –, os altos prelados compensam, por conseguinte, essa falta por meio das joias. Uma verdadeira «chuva de vento de diamantes», como escreve o Poeta! Quanta elegância, quanto estilo, quanto gosto na escolha dos tamanhos, das combinações e das cores. Esta safira, este diamante, este escrínio, este rubi rosa pálido, essas pedras são tão finas, tão trabalhadas, que dizemos para connosco que assentam como uma luva em cardeais eles próprios tão preciosos. E quantos valores assim reunidos, que fazem desses homens culpados de tão doces e pequenos furtos, verdadeiros cofres-fortes. Por vezes, vi prelados «straight-laced» que traziam cruzes peitorais tão espetaculares, com os seus diamantes engastados e os seus animais da Bíblia enroscados ou enlaçados, que julgaríamos que haviam acabado de sair de um desenho de Tom of Finland. E que variedade também nos botões de punho, por vezes tão vistosos, que os prelados, surpreendidos pela sua própria audácia, hesitam finalmente em usar com medo de se traírem.
O anel de Angelo Bagnasco é, quanto a ele, belo e simples. Nem de um retangular brilhante, nem em ouro encerrando um diamante, como um daqueles que o papa Bento XVI usou. Uma tal simplicidade espanta quando conhecemos o nosso homem.
– Os cardeais passam muito tempo a escolher o seu anel. Muitas vezes, mandam fazê-lo por medida. É uma fase importante e, por vezes, um certo investimento financeiro – conta-me um dos vendedores de Barbiconi, um célebre comerciante de trajes eclesiásticos, cruzes peitorais e anéis, situado na Via Santa Caterina de Siena, em Roma. E acrescenta, como bom comerciante. – Não é necessário ser padre para comprar um anel!
O cardeal Jean-Louis Tauran usava, quando o ia visitar, para além de um relógio Cartier e de uma cruz ecuménica que lhe fora oferecida pelo seu amigo íntimo, um padre anglicano, um sublime anel invulgar, verde e ouro, no anular direito.
– Esse anel que aí vê tem um valor sentimental muito grande para mim – disse-me Tauran. – Fi-lo a partir das alianças de meu pai e de minha mãe que foram fundidas em conjunto. A partir desse material, o joalheiro deu forma ao meu anel cardinalício.
Como descobri durante a minha investigação, determinados prelados têm apenas um anel. Com humildade, gravam nele, no anverso, a figura de Cristo, de um santo ou de um apóstolo, por exemplo; por vezes, preferem mandar inscrever um crucifixo ou a cruz da sua ordem religiosa; no reverso, podem ver-se as suas armas episcopais, ou, para um cardeal, sob a sua ligatura, as armas do papa que o elevou à púrpura. Outros cardeais têm vários anéis, uma verdadeira panóplia, e trocam-nos de acordo com as ocasiões, como trocam de sotaina.
Esta excentricidade é compreensível. Os bispos que usam belas pérolas fazem-me lembrar essas mulheres veladas que vi no Irão, no Qatar, nos Emirados Árabes Unidos ou na Arábia Saudita. O rigor do islão, que se estende não só aos cabelos, à espessura e largura do hijab, mas também ao comprimento das mangas das camisas ou dos vestidos, transfere a elegância feminina para o véu cujas cores vistosas, formas sedutoras e alto preço dos tecidos de caxemira, seda pura ou angorá, são a consequência paradoxal. O mesmo se passa com os bispos católicos que, restringidos pela sua panóplia de Playmobil, cabeção e sapatos pretos, dão largas à sua imaginação mais louca exibindo anéis, relógios e botões de punho.
BEM VESTIDO e bem penteado, o cardeal Bagnasco recebe-me numa residência privada da Via Pio VIII, um beco sem saída situado atrás do Vaticano, mas que me obriga a uns bons vinte minutos de caminhada para lá chegar, a partir da praça de São Pedro de Roma. O caminho ascendente faz um longo meandro, sob o sol, atrasando a minha chegada; ainda por cima, o cardeal marcou a hora do nosso encontro de uma maneira imperial, como fazem amiúde os prelados que não marcam encontros, mas impõem o seu horário, sem possibilidade de discussão – até os ministros italianos são mais condescendentes e hospitaleiros! Por todas essas razões, chego um pouco atrasado à convocatória e ligeiramente suado. O cardeal convida-me a utilizar a sua casa de banho e foi nesse momento que fiquei submerso numa nuvem de aromas.
Requintado e coquete, bem aperaltado, tinham-me falado dos perfumes do cardeal Bagnasco – com notas de madeira, ambreados, «chyprés» ou «hespéridés» – e agora percebo porquê. Será Égoïste, de Chanel, La Nuit de L’homme, de Yves Saint Laurent ou Vétiver, de Guerlain? De qualquer modo, a começar pela sua água de colónia, o cardeal gosta de se embonecar. Já Rabelais troçava da flatulência dos prelados italianos; nunca poderia ter imaginado que chegaria um dia em que troçariam deles por cheirarem a cocote!
No fundo, os perfumes desempenham mais ou menos a mesma função que os anéis. Permitem a singularidade quando a clérgima impõe a uniformidade. O âmbar, a violeta, o almíscar, a champaca, quantos aromas descobri no Vaticano. Quantos óleos! Quantas fragrâncias! Que «confusão de perfumes! Mas ungir-se com Opium não é já fazer a apologia discreta de uma adição?
Angelo Bagnasco foi durante muito tempo o mais poderoso e mais elevado dignitário da Igreja italiana. Mais do que qualquer outro bispo no seu país, foi o grão-vizir do «catolicismo spaghetti» (como poderíamos chamar ao catolicismo italiano para o distinguirmos do catolicismo da santa sé). Fez e desfez carreiras; cocriou cardeais.
Em 2003, é nomeado bispo das forças armadas, um cargo que, diz, o excita «com trepidação» porque se trata de uma «diocese muito ampla» que consiste em evangelizar «os soldados em toda a Itália e mesmo fora dela, com as missões militares no estrangeiro». Eleito arcebispo de Génova em 2006, substituindo Tarcisio Bertone, quando este se torna secretário de Estado de Bento XVI, é subsequentemente criado cardeal pelo papa, de quem dizem ser próximo. Sobretudo, presidiu durante dez anos, entre 2007 e 2017, à Conferência Episcopal Italiana – a famosa CEI. Até ser afastado dela pelo papa Francisco.
O facto de um jornalista e escritor francês vir vê-lo após essa passagem forçada à reforma, a ele, o proscrito, o banido, é acalentador. Não fala francês, nem inglês, nem espanhol, nem nenhuma língua estrangeira, ao contrário da maior parte dos cardeais, mas esforça-se muito por ser entendido, traduzido por Daniele, o meu investigador italiano.
O cardeal Bagnasco é um homem apressado, daqueles que põem os pedaços de açúcar no café sem se darem o trabalho de tirar o papel – para ganhar tempo. Aqueles que o conhecem, mas não gostam dele, descreveram-mo como um homem irascível e vingativo, um grande marau, um «passivo autoritário», segundo um padre que o conheceu bem na CEI, onde alternava a cenoura e a vara para impor os seus pontos de vista. Mas, connosco, mostra-se cortês e paciente. Neste preciso momento, Bagnasco bate constantemente com o pé, a uma velocidade cada vez maior. Por tédio ou porque gostaria de dizer mal do papa, mas contém-se?
Desde a sua queda, Bagnasco procura o seu novo paraíso. Ele, que foi um aliado cínico de Bento XVI e do cardeal Bertone, censura-os agora por terem precipitado a Igreja na aventura e no desconhecido com Francisco. Não se trata de um cumprimento nem para este nem para aqueles.
É claro que o cardeal de anel e abotoado não critica connosco os seus correligionários nem, muito menos, o papa, mas as expressões do seu rosto traem o seu pensamento. Assim, quando refiro o nome do cardeal Walter Kasper, e as suas ideias geopolíticas, Bagnasco corta-me, com uma horrível careta de desdém. O nome do mais progressista dos seus adversários provoca, no seu rosto, um esgar tão explícito que, a contragosto, darwiniano sem o querer, Bagnasco é uma prova viva de que o homem descende do macaco.
– É alguém que não conhece a diplomacia – diz simplesmente, e marcando bem as palavras, Bagnasco.
E quando começamos a falar nas tensões no seio da Conferência Episcopal Italiana, na tentativa do cardeal Bertone de retomar as rédeas da CEI, Bagnasco volta-se para Daniele e diz-lhe, a meu respeito, em italiano, ao mesmo tempo que sonda o ambiente com modos inquietos:
– Il ragazzo è ben informato! (O rapaz está bem informado.)
Então, Bagnasco lança-me um olhar significativo. Um desses olhares estranhos, decisivos e subitamente diferentes. É um daqueles momentos em que os olhos de um cardeal se cruzam com os meus, como me aconteceu várias vezes. Fixam-me, perscrutam, penetram-me. Dura apenas um breve instante, o espaço de um segundo, mas passa-se qualquer coisa. O cardeal Bagnasco interroga-se, olha-me, hesita e, de súbito, vejo o medo. Esse medo complicado que vi com tanta frequência, num piscar de olhos, no olhar dos meus interlocutores no Vaticano, como se o segredo da sua alma estivesse, de súbito, a nu.
O cardeal baixa os olhos e precisa o seu pensamento:
– O cardeal Bertone quis, efetivamente, ocupar-se das relações entre a Igreja e o governo italiano, mas eu segui o meu caminho. O governo italiano faz parte do papel da CEI; e não do Vaticano. (Este ponto é, aliás, confirmado pelo cardeal Giusepe Betori, antigo secretário-geral da CEI, que entrevistei em Florença.)
E após uma pausa, o cardeal que se sonhou «papabile», mas teve de rebaixar as suas ambições, visando indiretamente Bertone, acrescenta:
– Quando se está na cúria, quando se está no Vaticano, já não se está na CEI. E quando se esteve na cúria, e se concluiu a sua missão, também não se regressa à CEI. Acabou.
Falamos agora das uniões civis homossexuais de que sei que o cardeal Bagnasco foi o principal adversário em Itália. E, num alarde de audácia, procuro saber se a posição da Igreja evoluiu, com o papa Francisco.
– A nossa posição sobre as uniões civis era a mesma há dez anos e agora – afirma categoricamente o cardeal.
E é então que o cardeal Bagnasco tenta convencer-me do bem-fundado da sua posição. Lança-se numa longa exposição para justificar as discriminações homossexuais incentivadas pela Igreja italiana, como se a CEI fosse independente do Vaticano. Teólogo razoável, mas fraco filósofo, cita-me os Evangelhos e o Catecismo da Igreja católica para apoiar a sua tese (com pertinência) e baseia-se no pensamento dos filósofos Habermas e John Rawls (que parafraseia despudoradamente). Tal como aconteceu com a maioria dos cardeais – sendo Kasper uma exceção – fico surpreendido com a mediocridade filosófica do seu pensamento: instrumentaliza os autores, leu os textos em diagonal e, por razões ideológicas, retém apenas alguns argumentos de um raciocínio complexo e anacrónico. Atendendo ao ponto a que chegou, sinto que Bagnasco me vai citar A Origem das Espécies, um livro que vi na estante da sua sala de espera, para proibir o casamento gay, em nome da evolução das espécies!
Um pouco tortuoso, sendo a minha vez de ser marau, interrogo agora o cardeal Bagnasco, desviando-o do tema, sobre as nomeações de Francisco e a sua situação pessoal. Que pensa do facto de para ser criado cardeal sob Bento XVI ter de ser-se antigay, e gay-friendly para o ser sob Francisco?
O ministro das Finanças das manifestações antigay em Itália olha-me: sorri, fazendo um esgar. Com o cabelo bem esticado, a clérgima bem apertada, embonecado e todo bem posto, com a corrente ao pescoço, Bagnasco parece desvairado com a minha pergunta, mas não se desmancha. A sua linguagem corporal fala por ele. Despedimo-nos em bons termos com a promessa de nos revermos. Sendo um homem sempre apressado, anota os nossos endereços de email e, duas vezes, o número do telemóvel de Daniele.
A CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA (CEI) é um império dentro do império. Durante muito tempo, foi inclusive o Reino. Depois da eleição do polaco Wojtyla, confirmada pelas do alemão Ratzinger e do argentino Bergoglio, não tendo os italianos voltado a ter papas, a CEI continua a ser antecâmara do poder desta teocracia de outra época que é o Vaticano. Uma questão de geopolítica e de equilíbrio mundial.
A menos que os cardeais da CEI tenham sido afastados do poder por o terem exercido de uma forma demasiado imprudente com Angelo Sodano e Tarcisio Bertone? Ou então que os façam pagar hoje as suas camarilhas praticantes e os seus ajustes de contas assassinos que perverteram o catolicismo italiano e talvez tenham costado a vida a João Paulo I e a coroa a Bento XVI?
Seja como for, a CEI já não produz papas e cada vez menos cardeais. Isso talvez venha a mudar, um dia, mas, de momento, o episcopado italiano fechou-se na península. Inconsoláveis, esses cardeais e bispos consolam-se apesar de tudo ao verem a dimensão do trabalho que ainda têm de realizar em casa. Há tanta coisa a fazer. E, para começar: lutar contra o casamento gay.
Depois de Bagnasco ter sido eleito para a presidência da CEI, pouco tempo após a eleição de Bento XVI, as uniões civis tornaram-se uma das primeiras preocupações do episcopado italiano. Tal como Rouco em Espanha, e como Barbarin em França, Bagnasco escolhe a relação de força: quer descer à rua e reagrupar a multidão. É mais manhoso do que o primeiro e mais rígido do que o segundo, mas conduziu bem o seu barco.
Há que dizer que a CEI, com as suas propriedades imobiliárias, os seus meios de comunicação social, o seu soft power, o seu ascendente moral e os seus milhares de bispos e de padres instalados inclusive na mais ínfima aldeia, tem um poder exorbitante em Itália. Também tem um peso político decisivo, o que anda amiúde lado a lado com todos os abusos e todos os tráficos de influências.
– Desde sempre que a CEI intervém na vida política italiana. É rica, é poderosa. O padre e o político caminham juntos em Itália, onde se ficou em Don Camillo! – Ironiza Pierre Morel, antigo embaixador de França na santa sé.
Todas as testemunhas que inquiri, no seio do episcopado, no Parlamento italiano ou no gabinete do presidente do Conselho, confirmam esta influência decisiva na vida pública italiana. Foi o caso nomeadamente, sob João Paulo II, quando o cardeal Camillo Ruini, o predecessor de Bagnasco, presidia à Conferência Episcopal: a idade de ouro da CEI.
– O cardeal Ruini era a voz italiana de João Paulo II e tinha o Parlamento italiano na mão. Foram os grandes anos da CEI. A partir de Bagnasco, sob Bento XVI, esse poder diminuiu. Sob Francisco, desagregou-se totalmente – resume um prelado que vive no interior do Vaticano e conhece pessoalmente os dois antigos presidentes da CEI.
O arcebispo Rino Fisichella, que também foi um dos responsáveis da CEI, confirma-me este ponto, durante duas conversas:
– O cardeal Ruini era um pastor. Tinha uma profunda inteligência e uma visão política clara. João Paulo II confiava nele. Ruini era o principal colaborador de João Paulo II, quando se tratava dos assuntos italianos.
Um diplomata colocado em Roma, fino conhecedor da máquina vaticana, confirma, por sua vez:
– Logo no início do pontificado, o cardeal Ruini disse, grosso modo, a João Paulo II: «Vou libertá-lo dos assuntos italianos, mas quero-os inteira e integralmente». Tendo obtido o que pretendia, fez o trabalho. E fê-lo muito bem, até.
DA SALA DE JANTAR do cardeal Camillo Ruini, a vista sobre os jardins do Vaticano é tão espetacular como estratégica. Estamos no último andar do Pontificio Seminario Romano Minore, uma penthouse luxuosa, que se ergue na fronteira do Vaticano:
– É um lugar fabuloso para mim. Vê-se o Vaticano de cima, mas não se está no interior. Está-se, pelo contrário, perto, mas fora – diverte-se, sarcástico, Ruini,
Para me encontrar com o cardeal de oitenta e oito anos, tive de multiplicar as cartas e aos telefonemas – em vão. Um pouco desconcertado por essas ausências repetidas de respostas, bastante fora do comum na Igreja, deixei finalmente ao porteiro da sua residência o livro branco de presente para o cardeal na reforma, com um bilhetinho. A sua assistente marcou-me finalmente um encontro, precisando que «sua eminência aceitar receber[-me] devido à beleza da [minha] escrita com tinta azul». O cardeal era um esteta, portanto!
– Estive à frente da CEI durante vinte e um anos. É verdade que graças a mim, e graças a circunstâncias favoráveis, pude fazer da CEI uma organização importante. João Paulo II confiava em mim. Foi um pai, um avô para mim. Foi um exemplo de força, de sabedoria e de amor de Deus – diz-me Ruini, num francês mais do que correto.
Visivelmente feliz por ter uma conversa com um escritor francês, o velho cardeal leva o tempo necessário (e quando me for embora, no final da conversa, escreverá o seu número de telefone privado, num pedacinho de papel, encorajando-me a voltar a vê-lo; e de facto voltarei).
Entretanto, Ruini conta-me o seu percurso: como foi um jovem teólogo; qual foi a sua paixão por Jacques Maritain e os pensadores franceses; a importância de João Paulo II, cuja morte foi o primeiro a tornar pública, enquanto cardeal vigário de Roma, como manda a tradição, por meio de uma «declaração especial» (antes de o substituto Leonardo Sandri fazer o anúncio oficial em São Pedro); mas também a laicização e a secularização que enfraqueceram consideravelmente a influência da Igreja italiana. Sem acrimónia, mas com uma certa melancolia, fala do glorioso passado e do declínio do catolicismo hoje em dia. «Os tempos mudaram bastante», acrescenta, não sem tristeza.
Interrogo o cardeal sobre as razões da influência da CEI e sobre o seu próprio papel:
– Creio que a minha capacidade foi a arte de governar. Fui sempre capaz de decidir, de tomar uma direção e seguir em frente. Era essa a minha força.
Falou-se amiúde no dinheiro da CEI, a chave da sua influência.
– A CEI é o dinheiro – confirma-me um alto responsável do Vaticano.
O que Ruini reconhece, sem hesitar:
– A concordata entre o Estado Italiano e a Igreja deu muito dinheiro à CEI.
Também falamos de política e o cardeal insiste nos seus vínculos com a Democracia cristã, mas também com Romano Prodi ou Silvio Berlusconi. Durante várias décadas, conheceu todos os presidentes do Conselho da península!
– Há uma verdadeira compenetração entre e Igreja e a política italianas, o problema é esse, foi isso que perverteu tudo – explica-me, pelo seu lado, um dos padres italianos que estiveram no coração da CEI: Ménalque (o seu nome foi alterado).
O MEU ENCONTRO COM MÉNALQUE foi um dos mais interessantes deste livro. Esse padre esteve no coração da máquina CEI durante os anos em que o cardeal Ruini e, depois, o cardeal Angelo Bagnasco foram os seus presidentes. Esteve nas frisas de palco. Hoje em dia, Ménalque é um padre que se tornou amargo, se não anticlerical, uma figura complexa e inesperada daquelas que o Vaticano segrega com uma regularidade desconcertante. Decidiu falar-me e descrever minuciosamente do interior, e em primeira mão, o funcionamento da CEI. Porque fala? Por várias razões, como alguns dos que se expressam neste livro: em primeiro lugar, por causa da sua homossexualidade, agora assumida, pós-coming out, que torna intolerável para ele «a homofobia da CEI»; depois, para denunciar a hipocrisia de inúmeros prelados e cardeais da CEI, que conhece melhor do que ninguém, uns antigays em público que são homossexuais em privado. Muitos engataram-no e ele conhece os códigos e as regras opacas do direito de pernada no seio da CEI. Ménalque fala, assim, pela primeira vez porque perdeu a fé, e porque tendo pagado bem caro a sua infidelidade – desemprego, perda dos amigos que viram as costas, isolamento –, se sente traído. Entrevistei-o durante mais de uma dezena de horas, em três ocasiões, com vários meses de intervalo, longe de Roma, e afeiçoei-me a este padre doloroso. Foi o primeiro a revelar-me um segredo que nunca teria imaginado. Ei-lo: a Conferência Episcopal italiana seria uma organização com uma dominante gay.
– Tal como muitos padres italianos, como a maioria deles, entrei para o seminário porque tinha um problema com a minha sexualidade – conta-me Ménalque, durante um dos nossos almoços. – Não sabia o que era e levei muito tempo a compreender. Era, é claro, uma homossexualidade recalcada, uma repressão interna tão forte que era não só indizível, mas também incompreensível, mesmo para mim. E, tal como a maior parte dos padres, não ter de engatar as raparigas, não ter de casar, foi para mim um verdadeiro alívio. A homossexualidade foi um dos móbeis da minha vocação. O sacerdócio celibatário é um problema para um padre heterossexual; era uma bênção para o jovem gay que eu era. Era uma libertação.
O padre quase nunca contou esta parte da sua vida, a sua parte de sombra, e diz-me que esse diálogo o alivia.
– Foi mais ou menos um ano depois de ter sido ordenado padre que o problema surgiu verdadeiramente. Tinha vinte e cinco anos. Tentei esquecer. Dizia de mim para comigo que não era efeminado, que não tinha o estereótipo, que não podia ser homossexual. Então, lutei.
A luta é demasiado desigual. Dolorosa, injusta, tempestuosa. Poderia tê-lo conduzido ao suicídio, mas cristaliza-se no ódio a si mesmo, matriz tão clássica da homofobia interiorizada do clero católico.
Duas soluções se oferecem então ao jovem padre, tal como à maior parte dos seus correligionários: assumir a sua homossexualidade e deixar a Igreja (mas só tem diplomas em teologia sem qualquer valor no mercado de trabalho); ou iniciar uma vida dupla clandestina. A porta ou o armário, em resumo.
A rigidez do catecismo quanto ao celibato e à castidade heterossexual teve sempre como corolário, em Itália, uma grande tolerância relativamente à «inclinação». Todas as testemunhas inquiridas confirmam que a homossexualidade foi, durante muito tempo, um verdadeiro rito de passagem nos seminários italianos, nas igrejas e na CEI, desde que fique discreta e acantonada na esfera privada. O ato sexual com uma pessoa do mesmo sexo não hipoteca a regra sacrossanta do celibato heterossexual, pelo menos o espírito, se não a letra. E muito antes de Bill Clinton ter inventado a fórmula, a regra do catolicismo italiano sobre a homossexualidade, a matriz de Sodoma, foi: «Don’t ask, don’t tell».
Segundo um percurso clássico, e que envolve a maior parte dos dirigentes da CEI, Ménalque torna-se padre e gay. Um híbrido.
– A grande força da Igreja é que trata de tudo. Uma pessoa sente-se em segurança e protegida, é difícil partir. Então, fiquei. Comecei a levar uma vida dupla. Decidi engatar no exterior e não dentro da Igreja, para evitar os boatos. Foi uma escolha que fiz precocemente, enquanto muitos privilegiam a opção inversa e engatam exclusivamente no seio da Igreja. A minha vida de padre gay não foi simples. Era uma batalha contra mim mesmo. Quando me revejo hoje em dia no meio dessa luta, isolado e cheio de solidão, revejo-me desesperado. Chorava diante do meu bispo, que me fazia pensar que ele não compreendia porquê. Tinha medo. Estava aterrado. Estava encurralado.
É então que o padre descobre o principal segredo da Igreja italiana: a homossexualidade é tão geral, tão omnipresente, que a maior parte das carreiras depende dela. Se uma pessoa escolher bem o seu bispo, se evoluir no trilho certo, se estabelecer as boas amizades, se entrar no «jogo do armário», sobe rapidamente os degraus hierárquicos.
Ménalque dá-me o nome dos bispos que o «ajudaram», dos cardeais que o cortejaram de uma forma descarada. Falamos das eleições da CEI, «uma batalha mundana», diz-me; do poder dos impérios que constituíram, à sua volta, os cardeais Camillo Ruini e Angelo Bagnasco; do papel dissimulado desempenhado no Vaticano pelos secretários de Estado Angelo Sodano e Tarcisio Bertone; do, igualmente extravagante, assumido pelo núncio apostólico encarregado de Itália, Paolo Romeo, um íntimo de Sodano, futuro arcebispo de Palermo e cardeal criado por Bento XVI. Falamos também das nomeações dos cardeais Crescenzio Sepe, para Nápoles, Agostino Vallini, para Roma, ou Giuseppe Betori, para Florença, que corresponderiam às lógicas clânicas da CEI.
A contrario, Ménalque decifra-me as nomeações «negativas» do papa Francisco, aqueles bispos influentes da CEI que não são nomeados cardeais, essas «não»-nomeações que são, a seus olhos, igualmente reveladoras. Assim, por castigo ou penitência, algumas grandes figuras da CEI continuam a aguardar ser elevadas à púrpura: nem o bispo de Veneza, Francesco Moraglia, nem o bispo Cesare Nosiglia, de Turim, nem o bispo Rino Fisichella foram criados cardeais. Em contrapartida, Corrado Lorefice e Matteo Zuppi (conhecido pelo nome afetuoso de «Don Matteo» no seio da comunidade de Sant’Egidio donde provém) foram nomeados, respetivamente, arcebispo de Palermo e arcebispo de Bolonha, e parecem encarnar a linha de Francisco ao serem próximos dos pobres, dos excluídos, das prostitutas e dos migrantes.
– Aqui, as pessoas chamam-me «Eminência», quando não sou cardeal! É por hábito porque todos os arcebispos de Bolonha foram sempre cardeais – diz-me, divertido, Matteo Zuppi quando me recebe no seu gabinete, em Bolonha.
Gay-friendly, descontraído, caloroso, loquaz, abraça os seus visitantes, fala sem estereótipos e aceita dialogar regularmente com as associações LGBT. Sincero ou estratego, parece de qualquer modo nos antípodas do seu antecessor, o hipócrita cardeal Carlo Caffarra, control freak, homófobo excessivo e, claro, «closeted».
Ménalque é calmo e preciso. Fala-me da vertente antigay do cardeal italiano Salvatore De Giorgi, que conhece bem; dos bastidores secretos da corrente Comunhão & Libertação e do célebre Projetto Culturale della CEI. Um escândalo surge durante a conversa: o caso Boffo, de que voltarei a falar em breve. De cada vez, Ménalque, que viveu tudo do interior, participou nas reuniões decisivas e inclusive no encobrimento, desvenda-me esses acontecimentos nos mais ínfimos pormenores, mostrando-me as molas escondidas.
A saída de Ménalque da CEI fez-se sem escândalo, nem coming out. O padre sentiu necessidade de se afastar e recuperar a sua liberdade.
– Um dia, fui-me embora. É tudo. Os meus amigos gostavam muito de mim quando era padre, mas quando deixei de o ser abandonaram-me sem remorso. Nunca mais voltaram a ligar-me. Não recebi um único telefonema.
Na verdade, os responsáveis da CEI fizeram tudo para manter o padre Ménalque no interior do sistema; deixá-lo partir quando sabia tantas coisas era demasiado arriscado. Fizeram-lhe propostas que não se recusam, mas o padre manteve a sua decisão e não voltou atrás.
A saída da Igreja é um caminho de sentido único. Quando se faz essa escolha, queimam-se os navios. Toda a saída é definitiva. Para o ex-abade Ménalque, o preço foi exorbitante.
– Já não tinha amigos, nem dinheiro. Todos me abandonaram. É esse o ensinamento da Igreja? Estou triste por eles. Se pudesse voltar atrás, faria, de certeza, uma escolha diferente de tornar-me padre.
– Porque é que eles ficam?
– Porque é que ficam? Porque têm medo. Porque não têm outro local para onde ir. Quanto mais tempo passa, mais difícil é sair. Hoje em dia, tenho pena dos meus amigos que ficaram.
– Ainda és católico?
– Por favor, não me faças essa pergunta. A forma como a Igreja me tratou, o modo como essa gente me tratou, é algo a que não podemos chamar «católico». Estou tão feliz por me ter vindo embora e estar «out»! «Out» da Igreja e também publicamente gay. Agora, respiro. É uma luta quotidiana para ganhar a vida, para viver, para me reconstruir, mas sou livre. SOU LIVRE.
A CEI, UMA ORGANIZAÇÃO DE PREDOMINÂNCIA GAY PELA SUA SOCIOLOGIA, é, antes de mais, uma estrutura de poder que cultiva as relações de força de uma forma paroxística. A questão homossexual desempenha nela um papel central porque está no cerne das redes que se enfrentam, das carreiras que se fazem e desfazem, e porque pode servir de arma de pressão, mas a chave do seu funcionamento estrutural continua a ser, em primeiro lugar, o poder.
– Tal como todos os padres, sou um grande fã de Pasolini, especialmente de Salò o le 120 giornate di Sodoma, o filme de Pasolini baseado na obra do Marquês de Sade. A mentalidade do episcopado italiano é: não apenas o sexo, mas a instrumentalização do poder. Quanto mais subimos na hierarquia, mais nos atinge o abuso do poder – esclarece Ménalque.
Excetuando a breve tentativa de recuperação pelo cardeal Bertone, secretário de Estado de Bento XVI, no final da década de 2000, a CEI sempre foi muito ciosa da sua autonomia. Pretende gerir-se a si própria, sem a mediação do Vaticano, e ocupa-se diretamente das relações entre a Igreja católica e os meios políticos italianos. Desta «compenetração», para retomar a palavra do ex-abade Ménalque, nasceram alguns quase «acordos» de governo, inúmeros compromissos, fortes tensões e uma enorme quantidade de casos.
– Fomos sempre muito autónomos. O cardeal Bertone tentou recuperar a CEI, mas foi um desastre. O conflito entre Bertone e Bagnasco foi muito penoso e causou danos muito graves. Mas Bagnasco resistiu bem – conta-me o cardeal Camillo Ruini (que não recorda comigo que o desastre em questão será o caso Boffo, que gira em redor da questão gay).
Durante muito tempo, a CEI foi próxima da Democracia cristã, o partido político italiano de centro-direita fundado em torno de uma espécie de cristianismo social com um forte anticomunismo. Mas, por oportunismo, esteve sempre próximo do poder instalado. Quando Silvio Berlusconi se torna, pela primeira vez em 1994, presidente do Conselho italiano, uma parte importante da CEI põe-se a namoriscar com o seu partido Forza Italia e a firmar-se mais fortemente à direita.
Oficialmente, é claro, a CEI não se rebaixa a fazer política «partidária» e coloca-se acima da contenda. Mas como confirmam mais de sessenta entrevistas realizadas em Roma e numa quinzena de cidades italianas, o noivado da CEI com Berlusconi é um segredo de polichinelo. Essas relações contranatura que duram pelo menos de 1994 a 2011, sob João Paulo II e Bento XVI, durante os três períodos em que Berlusconi está no poder, são acompanhadas por diversas negociatas, algumas discussões e traduzem-se em nomeações de cardeais.
O arcebispo de Florença, Giuseppe Betori, que me recebe no seu imenso palácio da Piazza del Duomo, foi, na época, próximo do cardeal Ruini, enquanto secretário-geral da CEI. Quando desta conversa, gravada com o seu consentimento, e na presença do meu investigador Daniele, o amável cardeal, com o seu rosto de maçã, narra-me pormenorizadamente a história da CEI.
– Podemos dizer que a CEI foi criada por Paulo VI; antes dele, não existia. Aliás, a primeira reunião informal realizou-se aqui, em Florença, em 1952, precisamente neste gabinete, onde haviam sido reunidos os cardeais italianos que estavam à frente de uma diocese. Ainda era muito modesta.
Betori insiste na natureza «maritainiana» da CEI, evocando o nome do filósofo Jacques Maritain, o que pode ser interpretado como uma escolha democrática da Igreja e uma vontade de romper com o fascismo mussoliniano e o antissemitismo. Também pode tratar-se de uma vontade de organizar a separação das esferas políticas e religiosas, uma espécie de laicidade à italiana (algo que, na verdade, nunca foi a ideia da CEI). Pode, finalmente, fazer-se uma outra leitura, a de uma francomaçonaria católica, com os seus códigos e as suas cooptações.
– Desde o início, a CEI considera que tudo o que diz respeito a Itália, e às relações com o governo italiano, deve passar por ela e não pelo Vaticano – acrescenta o cardeal.
Enquanto secretário-geral da CEI, Betori pôde medir o poder do catolicismo italiano: foi um dos principais artífices das manifestações contra as uniões civis, em 2007, e exortou os bispos a descerem às ruas.
Duas estruturas foram essenciais, na época, para preparar essa mobilização antigay. A primeira era intelectual; a segunda, mais política. O presidente da CEI, Camillo Ruini, próximo, como já disse, de João Paulo II e do cardeal Sodano, previu acertadamente o combate que iria perfilar-se em relação às questões de moral sexual. Com um sentido político certeiro, Ruini imaginou o famoso Progetto Culturale della CEI (o seu projeto cultural). Esse laboratório ideológico definiu a linha da CEI sobre a família, a SIDA e, em breve, as uniões homossexuais. Para a preparar, realizaram reuniões confidenciais à volta do cardeal Ruini, do seu secretário-geral, Giuseppe Betori, do seu escriba, Dino Boffo e de um responsável laico, um tal Vittorio Sozzi.
– Éramos um grupo de bispos e padres, como leigos, homens de letras, cientistas, filósofos. Quisemos repensar, em conjunto, a presença do catolicismo na cultura italiana. A minha ideia era reconquistar as elites, recuperar a cultura – explica-me Camillo Ruini.
Que acrescenta:
– Fizemo-lo com os bispos [Giuseppe] Betori, Fisichella, Scola, e também com o jornalista Boffo. (Tive conversas com Boffo, no Facebook, e com Sozzi, pelo telefone, mas eles recusaram entrevistas formais, ao contrário de Mons. Betori, Fisichella e, claro, Ruini. Por fim, o círculo próximo de Mauro Parmeggiani, o antigo secretário particular do cardeal Ruini e hoje em dia bispo de Tivoli, foi decisivo para a narrativa sobre a CEI.)
– Foi aí, nesse curioso cenáculo, que foi pensada a estratégia anticasamento gay da CEI. A paternidade pertence a Ruini, influenciado por Boffo, numa lógica profundamente gramsciana: reconquistar as massas católicas pela cultura – diz-me uma fonte que assistiu a várias reuniões dessas.
A matriz desta verdadeira «guerra cultural» lembra a posta em ação pela «nova direita» americana na década de 1980, a que se junta uma dimensão do gramscismo político. Segundo Ruini, a Igreja deve, para garantir a sua influência, recriar uma «hegemonia cultural» apoiando-se na sociedade civil, nos seus intelectuais e nos seus intermediários culturais. Este «gramscismo para totós» pode resumir-se numa frase: é pela batalha das ideias que será ganha a batalha política. Mas que raio de empréstimo! O facto de a ala conservadora da Igreja se reivindicar de um pensador marxista e caricaturá-lo deste modo, tinha, desde o início, qualquer coisa de duvidoso. (Durante duas entrevistas, o arcebispo Rino Fisichella, figura central da CEI, confirma-me a natureza neogramsciana do «projeto cultural», mas considera que não devemos sobrestimá-la.)
O cardeal Ruini, tendo a seu lado Betori, Boffo, Parmeggiani e Sozzi, imagina então, com cinismo e hipocrisia, que é possível devolver a fé aos italianos travando a batalha das ideias. A sinceridade é outra história.
– O Progetto Culturale della CEI não era um projeto cultural, contrariamente ao que o seu nome poderia deixar entender, mas um projeto ideológico. Era uma ideia de Ruini e terminou com ele, sem qualquer resultado, quando ele se foi embora – diz-me o padre Pasquale Iacobone, um padre italiano que é hoje um dos responsáveis do «ministério» da Cultura da santa sé.
Pouco cultural, portanto, e até muito pouco intelectual, se nos fiarmos no testemunho de Ménalque:
– Cultural? Intelectual? Tudo aquilo era sobretudo ideológico e uma questão de cargos. O presidente da CEI, primeiro Ruini, que fez três mandatos, e depois Bagnasco, que fez dois, decidia quais eram os padres que deviam tornar-se bispos e quais os bispos que deviam ser criados cardeais. Transmitiam a sua lista ao secretário de Estado do Vaticano, discutiam-na, e estava feito.
A segunda força que desempenhou um papel nesta mobilização antigay foi o movimento Comunhão & Libertação. Ao contrário da CEI ou do seu Progetto Culturale, que são estruturas elitistas e religiosas, o CL, como é chamado, é uma organização laica que conta com várias dezenas de milhares de membros. Este movimento conservador, fundado em Itália em 1954, tem hoje em dia ramificações em Espanha, na América Latina e em inúmeros países. Durante as décadas de 1970 e 80, o CL aproxima-se da Democracia cristã de Giulio Andreotti e depois vai ao ponto de se ligar ao partido socialista italiano por puro anticomunismo. Na década de 1990, após o esgotamento da Democracia cristã e do PS, os dirigentes do movimento começam a pactuar com a direita de Silvio Berlusconi, uma decisão oportunista que vai custar caro ao Comunhão & Libertação e provocar o início do seu declínio. O CL aproximar-se-á, paralelamente, dos meios patronais italianos e das franjas mais conservadoras da sociedade, separando-se da sua base e dos seus ideais originais. O artífice desse endurecimento é Angelo Scola, futuro cardeal de Milão, que se torna assim, também ele, um dos organizadores do combate às uniões civis, em 2007.
Após a chegada ao poder da esquerda, o novo chefe do governo, Romano Prodi, anuncia a sua intenção de criar um estatuto legal para os casais do mesmo sexo, uma espécie de união civil. A fim de a italianizar, e não retomar as denominações americana de «civil union» ou francesa de «pacte civil de solidarité», o projeto é rebatizado com um estranho nome: DICO (de DIritti e doveri delle persone stabilmente COnviventi).
Imediatamente após o anúncio do compromisso oficial de Romano Prodi e da aprovação do projeto de lei pelo governo italiano, em 2007, a CEI e o Comunhão & Libertação mobilizam-se. O cardeal Ruini em primeiro lugar (apesar de ser amigo de Prodi), seguido pelo seu sucessor Bagnasco, põem a Igreja italiana em movimento. O cardeal Scola, aliado cínico de Berlusconi, faz o mesmo. Apesar de não ter a sua versatilidade, Berlusconi partilha a homofobia dos cardeais italianos: não disse que «vale mais estar apaixonado por belas mulheres do que ser gay?» É um bom presságio. E um aliado fiável.
– Prodi era meu amigo, é verdade. Mas não quanto às uniões civis! Detivemos esse projeto! Fiz cair o seu governo! Fiz cair Prodi! As uniões civis: esse foi o meu campo de batalha – conta-me, com entusiasmo, o cardeal Camillo Ruini.
Uma grande quantidade de textos, de notas pastorais, de entrevistas de prelados vai abater-se, portanto, de imediato sobre o governo Prodi. São criadas associações católicas, por vezes artificialmente; grupos de partidários de Berlusconi agitam-se. Na verdade, a Igreja não precisa de pressões: mobiliza-se sozinha, em consciência, mas também por razões internas.
– Os bispos e cardeais mais ativos contra o DICO eram os prelados homossexuais e que eram tão mais barulhentos quanto esperavam provar assim que não eram suspeitos. É um grande clássico – comenta outro padre da CEI que interroguei em Roma.
Esta explicação é evidentemente parcial. Um concurso infeliz de circunstâncias explica a mobilização sem precedentes dos bispos e as suas derrapagens. Com efeito, no preciso momento das primeiras discussões sobre o projeto de lei DICO, está em curso o processo de nomeação do novo presidente da CEI. Assiste-se, portanto, a uma competição renhida entre diversos candidatos potenciais, Ruini, o cessante, bem como dois arcebispos, Carlo Caffarra, de Bolonha, e Angelo Bagnasco, de Génova, que se enfrentam pelo cargo.
A isto junta-se uma incongruência italiana suplementar. Ao contrário das outras conferências episcopais, o presidente da CEI é tradicionalmente nomeado pelo papa, a partir de uma lista de nomes propostos pelos bispos italianos. Ruini foi nomeado por João Paulo II, mas, em 2007, Bento XVI é o fautor de reis. Assim se explica, por um lado, a inverosímil escalada homófoba, cujo preço será pago pelo projeto de lei Prodi.
O cardeal Ruini escreve, nessa época, um texto de tal modo violento contra os casais gays que o Vaticano lhe pede que modere o tom (segundo duas fontes do interior da CEI). O muito «closeted» Caffarra enfurece-se, pelo seu lado, nos meios de comunicação social contra os gays, denunciando o seu lóbi no Parlamento, uma vez que é «impossível considerar [um eleito] católico se aceitar o casamento homossexual» (Caffarra moderará de súbito o tom quando for definitivamente afastado da presidência da CEI). Quanto a Bagnasco, mais intransigente do que nunca, acentua a pressão e assume a chefia da cruzada anti DICO para agradar a Bento XVI, que finalmente o nomeia em março de 2007, no meio desta controvérsia, para a presidência da CEI.
Um quarto homem se agita no palco romano: também ele imagina que está na «short list» do papa Bento XVI e do seu secretário de Estado, Tarcisio Bertone, que acompanha este dossier com toda a atenção. Quer dar garantias? Incitaram-no a fazer campanha? Entra na corrida apenas por vaidade? Seja como for, Rino Fisichella, célebre bispo italiano, próximo de Angelo Sodano, é o reitor da Universidade Pontifícia de Latrão (subsequentemente, será nomeado presidente da Academia Pontifícia para a Vida por Bento XVI, antes de se tornar presidente do Conselho Pontifício para a Nova Evangelização).
– Não se pode ser crente e viver de uma forma pagã. Antes de mais, é preciso pôr o estilo de vida em primeiro plano. Se o estilo de vida dos crentes não é coerente com a profissão de fé, há um problema – diz-me, sem hesitar nem corar, Rino Fisichella quando o interrogo, na presença de Daniele, no seu gabinete. (Também foi gravado, com o seu acordo.)
Então, para adequar a sua fé ao seu estilo de vida, Fisichella faz a sua própria campanha. Um dos ideólogos da CEI, à frente da sua comissão para a «doutrina da fé», redobra em rigidez. Uma rigidez XXL que se mostra com todo o seu vigor quando das manifestações antigays, à frente das quais decide colocar-se, também.
– Durante quinze anos, fui capelão do Parlamento italiano. Logo, conhecia bem os eleitos – confirma-me Fisichella.
Esta guerrilha da Igreja italiana terá efeitos políticos importantes. O governo Prodi, tecnocrático e politicamente fraco, divide-se em breve quanto à questão, e a mais algumas, enfraquecendo-se rapidamente na desunião e caindo por fim menos de dois anos depois da sua formação. Berlusconi regressará pela terceira vez, em 2008.
A CEI ganhou a batalha. O DICO é enterrado. Mas a Igreja não foi demasiado longe? Algumas vozes começam a interrogar-se, nomeadamente após uma homilia, agora célebre, do arcebispo Angelo Bagnasco – que, entretanto, foi criado cardeal pelo papa Bento XVI como recompensa da sua mobilização. Nesse dia, Bagnasco vai ao ponto de aproximar o reconhecimento dos casais homossexuais da legitimação do incesto e da pedofilia. A frase suscita indignação entre os leigos e nas fileiras políticas italianas e dá origem, também, a ameaças de morte; apesar de a polícia de Génova não ter levado essa ameaça a sério, ele exigirá, e obterá à força de alguma pressão, um guarda-costas viril e robusto.
A ALA «ESQUERDA» DO EPISCOPADO foi encarnada durante muito tempo, nesse período, pelo cardeal Carlo Maria Martini que vai quebrar o silêncio para afirmar o seu desacordo em relação à linha de Ruini, Scola, Fisichella e Bagnasco. Antigo arcebispo de Milão, Martini pode ser considerado uma das figuras mais gay-friendly da Igreja italiana; e uma das mais marginalizadas também, sob João Paulo II. Jesuíta liberal nascido em Turim, assinou diversas obras abertas sobre as questões de sociedade e deu uma entrevista que ficou notável, com o antigo presidente da câmara de Roma, em que se mostrava favorável aos homossexuais. Noutros textos, defendeu a ideia de um «Vaticano III», para reformar profundamente a Igreja quanto às questões de moral sexual, e mostrou-se aberto ao debate sobre as uniões homossexuais, sem, no entanto, as encorajar. Defendeu a utilização do preservativo em determinadas circunstâncias, em desacordo explícito com o discurso do papa Bento XVI, de quem foi um adversário frontal. Por fim, manteve uma crónica no jornal Corriere della Sera onde não hesitou em abrir o debate sobre o sacerdócio feminino ou a ordenação de homens casados, os famosos viri probati.
– A Igreja italiana tem uma dívida para com Martini. As suas intuições, a sua forma de ser bispo, a profundidade das suas escolhas, a sua aptidão para dialogar com todos, a sua coragem pura e simplesmente, eram o sinal de uma abordagem moderna do catolicismo – diz-me o arcebispo Matteo Zuppi, próximo do papa Francisco, quando de uma conversa no seu gabinete em Bolonha.
À margem do Conselho das conferências episcopais europeias, a que presidiu entre 1986 e 1993, Carlo Maria Martini pertenceu ao chamado grupo de Saint-Gall, uma cidade suíça onde se reunirão durante alguns anos, entre 1995 e 2006, de uma forma privada, se não secreta, vários cardeais em redor dos alemães Walter Kasper e Karl Lehman, do italiano Achille Silvestrini, do belga Godfried Danneels ou do britânico Cormac Murphy-O’Connor, com a vontade explícita de propor um sucessor progressista a João Paulo II: Carlo Maria Martini, precisamente.
– A iniciativa desse grupo cabe a Martini. A primeira reunião realizou-se na Alemanha, na minha diocese, e depois todos os encontros ocorreram em Saint-Gall – conta-me o cardeal Walter Kasper, durante vários encontros. – Silvestrini ia sempre lá e era uma das principais figuras. Mas não era uma «máfia», como deu a entender o cardeal Danneels. Nunca foi esse o caso! Nunca falámos em nomes. Nunca agimos tendo em vista o conclave. Éramos um grupo de pastores e de amigos, não um grupo de conjurados.
Após a eleição de Joseph Ratzinger e a doença de Martini, o grupo perderá a razão de ser e dissolver-se-á pouco a pouco. Podemos pensar, todavia, que os seus membros previram, se é que não prepararam, a eleição de Francisco. O bispo de Saint-Gall, Ivo Fürer, que também era secretário-geral do Conselho das conferências episcopais europeias, cuja sede é precisamente em Saint-Gall, era a alma dele. (A história desse grupo informal transcende o âmbito deste livro, mas é interessante notar que a questão gay foi discutida regularmente nele. Próximos de Ivo Fürer, que entrevistei em Saint-Gall, e do cardeal Danneels, que entrevistei em Bruxelas – uma vez que Fürer e Danneels estão hoje em dia muito doentes –, confirmaram-me que se tratava «claramente de um grupo anti-Ratzinger, em que vários membros eram homófilos».)
Opondo-se à linha conservadora de João Paulo II e à política repressiva de Bento XVI – que irá ao ponto de ignorar as suas exéquias – Carlo Maria Martini encarnou duradouramente, até à sua morte em 2012, aos oitenta e cinco anos, um rosto aberto e moderado da Igreja que iria encontrar alguns meses depois, com a eleição de Francisco, o seu melhor porta-voz. (Os votos dos apoiantes de Martini já haviam sido dados, em vão, a Bergoglio quando do conclave de 2005 para bloquear a eleição de Bento XVI.)
ENQUANTO A CEI se esforça por se opor às uniões civis e neutralizar o herético Martini, uma outra batalha ubuesca, cujo segredo ela detém, desenrola-se no seu seio. A organização que se inclina resolutamente para a direita revelar-se-ia clandestinamente gay? É o que poderia deixar pensar o caso Boffo.
Militante da Ação católica e da corrente Comunhão & Libertação, o leigo Dino Boffo foi, desde o início da década de 1980, um colaborador próximo de Camillo Ruini, futuro cardeal e presidente da CEI. Confidente, íntimo, escriba e mestre do pensamento de Ruini, torna-se jornalista no jornal da CEI, Avvenire, antes de ser promovido a diretor-adjunto, no início da década de 1990, e depois diretor, em 1994. Segundo várias fontes, após a eleição de Bagnasco para a chefia da CEI, Boffo aproximar-se-á do novo cardeal. (Para esta investigação, dialoguei com Boffo no Facebook onde se mostrou imediatamente loquaz, concluindo as suas mensagens com um inesquecível «ciaooooo», mas recusou-se a falar comigo «on the record»; em contrapartida, um jornalista com quem trabalhei em Roma encontrou-se com ele num parque e puderam ter uma conversa em que, um pouco imprudentemente, Boffo confirmou muitas informações deste livro.)
Em virtude de diferendos políticos no interior da CEI e de revelações sobre casos de costumes com call girls que visavam Silvio Berlusconi, Dino Boffo começa a atacar, um pouco antes de 2009, o presidente do Conselho. Agiu só ou obedecendo a ordens? Ainda depende de Ruini ou é agora um homem do novo presidente da CEI, Bagnasco, que preside ao conselho de administração do Avvenire? Pretendeu-se, através dele, comprometer também os cardeais Ruini e Bagnasco de que é próximo? Sabemos também que Boffo visita diariamente Stanislaw Dziwisz, o secretário particular do papa João Paulo II, de quem vai receber ordens e de quem é íntimo. Foi exortado a escrever esse artigo pelo seu protetor?
Seja como for, Boffo publica, talvez ingenuamente, uma série de artigos acusatórios sobre Berlusconi incriminando-o pelas suas estroinices amorosas. Escusado será dizer que o ataque não passa despercebido, uma vez que vem do jornal oficial dos bispos italianos. É mesmo uma declaração de guerra a Berlusconi e aquilo a que se chama, em linguagem diplomática, uma inversão de alianças.
A resposta do presidente do Conselho não se faz tardar. No final do verão de 2009, o diário Il Giornale, que pertence à família Berlusconi, publica um artigo onde Boffo é atacado violentamente, por ter dado lições de moral a Berlusconi quando foi, ele próprio, «condenado por assédio» e seria homossexual (é publicada uma cópia do seu registo criminal).
O caso Boffo durará vários anos e traduzir-se-á em vários processos. Entretanto, Boffo será demitido do Avvenire pela CEI, por ordem do séquito do papa Bento XVI, sendo posteriormente readmitido parcialmente pelo episcopado italiano, depois de ter sido provado que o registo criminal publicado era falso e não fora condenado por assédio. Dino Boffo foi indemnizado por despedimento sem justa causa e seria ainda hoje assalariado da CEI ou de um dos seus escritórios. Finalmente, várias pessoas foram condenadas neste processo: o artigo de Il Giornale era realmente difamatório.
Segundo alguns bons conhecedores do caso Boffo, este caso vertiginoso seria uma sucessão de ajustes de contas políticos entre fações homossexuais do Vaticano e da CEI quanto à questão Berlusconi, com um papel turvo a ser desempenhado pelo movimento Comunhão & Libertação, transformado na interface entre o partido do presidente do Conselho e a Igreja italiana. O secretário particular do papa João Paulo II, Stanislaw Dziwisz, e o cardeal Ruini estiveram no cerne desta batalha, tal como os cardeais Angelo Sodano e Leonardo Sandri, ou ainda o secretário de Estado Tarcisio Bertone – mas não forçosamente no mesmo campo… de tal modo são profundos os casamentos desiguais.
– Quis-se, no Vaticano, pôr termo à influência de Ruini, ou pelo menos enfraquecê-la, e decidiu-se fazê-lo precisamente com base na questão gay – comenta o ex-padre da CEI, Ménalque. (Segundo as revelações do livro de Gianluigi Nuzzi, Sua Santidade, Boffo, em cartas secretas dirigidas a Georg Gänswein, e hoje públicas, acusou, nomeadamente, Bertone de ter sido o comanditário do caso. Mas, ao não abordar claramente a questão homossexual, o livro continua a ser opaco para aqueles que não conhecem essas redes.)
Afinal de contas, Boffo ter-se-ia visto apanhado numa embrulhada de alianças maquiavélicas contrárias e de delações em série. A sua pretensa homossexualidade teria sido transmitida, diz-se, à imprensa berlusconiana pelo Vaticano, talvez pelas equipas do secretário de Estado Tarcisio Bertone, pela gendarmaria vaticana ou então pelo diretor do Osservatore Romano, Giovanni Maria Vian, tudo coisas que foram, é claro, firmemente desmentidas através de um comunicado da santa sé, em fevereiro de 2010, à qual se juntou, para o efeito, a CEI. (Quando o entrevistei cinco vezes – deu-me o seu acordo para gravar as nossas conversas –, Giovanni Maria Vian, próximo de Bertone e inimigo tanto de Ruini como de Boffo, negou firmemente ter sido «o corvo» do caso, mas deu-me chaves de leitura muito interessantes. Quanto ao cardeal Camillo Ruini, também entrevistado duas vezes, tomou a defesa de Boffo e Dziwisz.)
– O caso Boffo é um ajuste de contas entre gays, entre várias fações gays da CEI e do Vaticano – confirma um dos melhores conhecedores do catolicismo romano, que foi conselheiro do presidente do Conselho italiano, no palácio Chigi.
Aparece assim outra regra de No Armário do Vaticano – a décima segunda: Os rumores transmitidos sobre a homossexualidade de um cardeal ou de um prelado são amiúde obra de homossexuais, que se encontram no armário e atacam assim os seus adversários liberais. São armas essenciais utilizadas no Vaticano, pelos gays, contra os gays.
DEZ ANOS DEPOIS DO FRACASSO da primeira proposta de lei, o segundo ato da batalha sobre as uniões civis é levado à cena no Parlamento, no final de 2015. Alguns predizem o mesmo circo que em 2007 – mas, na verdade, os tempos mudaram.
O novo presidente do Conselho, Matteo Renzi, que se opusera à proposta de lei dez anos antes, chegando mesmo a descer à rua contra o projeto, também mudou de opinião. Prometeu inclusive uma lei sobre as uniões civis no seu discurso de investidura, em 2014. Por convicção? Por cálculo? Por oportunismo? Provavelmente por todas essas razões ao mesmo tempo e, em primeiro lugar, para satisfazer a ala esquerda do Partido Democrata e da sua maioria, uma soma híbrida e «guarda-chuva» que reúne antigos comunistas, a esquerda clássica e moderados saídos da antiga Democracia cristã. Um dos ministros de centro-direita de Matteo Renzi, Maurizio Lupi, é próximo da corrente católica conservadora Comunhão & Libertação. (Para contar esta nova batalha, alimento-me aqui das conversas que mantive com vários deputados e senadores e com cinco dos principais conselheiros de Matteo Renzi: Filippo Sensi, Benedetto Zacchiroli, Francesco Nicodemo, Roberta Maggio e Alessio De Giorgi.)
A questão das uniões civis é levada a sério por Matteo Renzi e merecia sê-lo. É o tema quente do momento que vem perturbar a bela mecânica do seu governo. A sua maioria pode até rebentar devido a esta proposta de lei que o presidente do Conselho não iniciou pessoalmente, mas que, diz em substância, estaria disposto a defender se o Parlamento chegar a um acordo quanto a um texto.
A Itália ainda é, em 2014, um dos raros países ocidentais sem uma lei de proteção para as «coppie di fatto», os casais não casados, tanto heterossexuais como não. O país está na cauda da Europa ocidental, ridicularizado por todos e é condenado regularmente pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Na própria Itália, o Tribunal constitucional pediu ao Parlamento que produzisse uma lei. Matteo Renzi incluiu a questão na sua «agenda dos mil dias», prometendo um texto para setembro de 2014; antes de esquecer a sua promessa.
Todavia, no terreno, a pressão aumenta. O presidente da câmara de Roma, Ignazio Marino, reconhece em breve dezasseis casamentos homossexuais que foram contraídos no estrangeiro, e que manda transcrever no registo civil italiano, suscitando um vivo debate na maioria. Os presidentes das câmaras de Milão, Turim, Bolonha, Florença, Nápoles e uma quinzena de outras cidades fazem o mesmo. Esperando pôr termo ao movimento, Angelino Alfano, o ministro do Interior de Renzi (pertencente ao Novo Centro-direita), decreta que esses «registos» são ilegais e carecem de efeitos jurídicos: os presidentes das câmaras limitaram-se aos casais gays, ironiza, um simples «autógrafo».
Em Bolonha, aonde me dirijo em finais de 2014, o ambiente é elétrico. O presidente da câmara de Bolonha, Virginio Merola, acaba de replicar ao ministro do Interior: «Io non obbedisco» (Eu não obedeço). E, num tweet, anuncia inclusive aos quatro ventos: «Bolonha na pole position para apoiar os direitos cívicos!» A comunidade gay, particularmente bem organizada, cerra fileiras atrás do presidente da sua câmara.
Em Palermo, onde me encontro, no mesmo período, com Mirko Antonino Pace, o presidente da associação Arcigay, este descreve-me uma mobilização sem precedentes numa região, a Sicília, que, todavia, é considerada, geralmente, conservadora no plano dos costumes.
– Durante as primárias – diz-me –, Matteo Renzi era o mais tímido dos candidatos quando aos direitos LGBT. Opôs um «não» firme ao casamento. Mas, ao contrário dos presidentes do Conselho anteriores, agora parece querer fazer qualquer coisa.
Durante alguns encontros com militantes gays italianos, na primavera de 2015, quando me desloco desta vez a Nápoles, Florença e Roma, tenho a impressão de que o movimento LGBT é uma verdadeira caldeira à beira da explosão. Em todo o lado, os militantes reúnem-se, manifestam-se e mobilizam-se.
– A Itália está a mudar passo a passo. Passou-se qualquer coisa após o referendo na Irlanda. A Itália não evolui sozinha: é obrigada, incitada, a mudar. Como pode justificar-se que não haja nenhuma lei em favor dos casais homossexuais, em Itália? Toda a gente se apercebe de que já se não pode justificá-lo! É preciso acreditar na mudança, se quisermos que ela ocorra! – Diz-me Gianluca Grimaldi, um jornalista com quem me encontrei em Nápoles, em março de 2015.
O que ainda preocupa o presidente do Conselho é o calendário e confia, nessa época, à sua equipa: «Arriscamo-nos a perder o voto católico». Então, tergiversa e procura ganhar tempo. Com efeito, o papa convocou um segundo sínodo sobre a família, no Vaticano, para outubro de 2015: impossível lançar o debate sobre as uniões civis, antes dessa data. Então, faz-se saber aos parlamentares que se impacientam, a começar por Monica Cirinnà, que ainda têm de esperar.
Quando entrevisto Monica Cirinnà, a senadora que foi a principal artífice do texto a favor das uniões civis, ela resume-me subtilmente as tensões internas suscitadas pela proposta de lei:
– Sabia que seria uma lei difícil e que ia dividir o país. Uma lei que causaria um problema no seio do Partido Democrático, uma lei que dividiria profundamente os conservadores e os progressistas, em Itália. Mas o debate nunca foi entre leigos e católicos, o que seria um erro de análise. O conflito dividiu tanto a direita como a esquerda: nos dois campos, havia conservadores e progressistas.
A Igreja, que não disse a sua última palavra, continua a influenciar os eleitos, incluindo no seio da esquerda. Ainda à frente da Conferência Episcopal Italiana, o cardeal Bagnasco promete, aliás, fazer descer à rua os bispos e os eleitos e fazer cair, uma vez mais, o governo.
– Sabíamos que os bispos italianos mobilizados pelo cardeal Bagnasco, bem conhecido pelas suas ideias ultraconservadoras, se preparavam para usar todos os seus contactos, dentro e fora do Parlamento, para fazer descarrilar a lei – confirma Monica Cirinnà.
Matteo Renzi, um antigo escoteiro católico, está bem informado da situação no seio da Igreja e das motivações pessoais que animam certos prelados. No Palazzo Chigi, sede da presidência do Conselho italiano, o chefe de gabinete, Benedetto Zacchiroli, antigo seminarista e diácono, é abertamente homossexual: está encarregado oficiosamente das relações com a CEI e acompanha de perto o dossier. Aliás, a direita conservadora atacará várias vezes Matteo Renzi devido ao facto de a pessoa que, junto dele, tem a seu cargo as relações com os católicos ser gay!
Os eleitos de esquerda pagam na mesma moeda, por exemplo em Bolonha e Nápoles. Segundo dois testemunhos de primeira mão, de pessoas que participaram na «negociação», o cardeal Carlo Caffarra, arcebispo de Bolonha, teria sido «abordado» em virtude da sua homofobia lendária: ter-lhe-ia sido comunicado, durante um encontro tenso, que circulam rumores sobre a sua vida dupla e o seu círculo próximo gay e que, se se mobilizar contra as uniões civis, é provável que, desta vez, os ativistas gays difundam as suas informações… O cardeal ouve, banzado. Nas semanas seguintes, o recalcado parecerá baixar a guarda pela primeira vez e atenuará os seus ardores homófobos. (Uma vez que Carlo Caffarra já morreu, interroguei a esta respeito alguns eleitos locais, um alto responsável da polícia, o gabinete do presidente do Conselho, bem como o seu sucessor em Bolonha, o arcebispo Matteo Zuppi.)
Um pacto de outra natureza teria sido concluído em Nápoles com o cardeal Crescenzio Sepe. Esse antigo prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos é conhecido pelas suas gentis maledicências, as suas alegrias de coração e o seu amor pela renda. Homem de João Paulo II, distinguiu-se por ataques violentos contra a Gay Pride de Nápoles, cidade de que foi nomeado arcebispo em 2006. No momento do debate sobre as uniões civis, alguns militantes homossexuais entram em contacto com ele, discretamente, pedindo-lhe que modere o seu discurso. Uma vez que os rumores sobre a sua gestão financeira, ligados a casos mundanos (que surgiram nos meios de comunicação social e em livros), tinham manchado a sua reputação e tido como custo talvez o seu lugar em Roma, Crescenzio Sepe mostra-se, desta vez, menos rígido. Aquele que era muito antigay em 2007, torna-se quase gay-friendly em 2016. Temendo talvez o escândalo, o cardeal vai ao ponto de oferecer, aos ativistas gays, convites que lhes permitem assistir a um encontro com o papa! (Mons. Sepe não quis receber-me, apesar de vários pedidos; dois militantes gays, um jornalista napolitano e um diplomata colocado em Nápoles confirmaram-me, todavia, estas informações.)
Neste estádio do debate, Matteo Renzi não tem nem a intenção de abandonar o seu projeto de lei para satisfazer os bispos que gostam, como disse, um pouco demasiado de rendas, nem vontade de se opor à Igreja. Então, decide, no final de 2015, fazer um pacto com a ala moderada da CEI que conta agora, como no conflito israelo-palestino, com os seus «falcões» e as suas «pombas». Ontem, sob João Paulo II e Bento XVI, a CEI era um monólito brejneviano; doravante, sob Francisco, papa gorbatcheviano, é um local de debates e de clãs. É possível um acordo.
O diálogo desenrola-se a alto nível com Mons. Nunzio Galantino, o novo secretário da CEI, friendly e próximo de Francisco. Segundo as minhas informações, nunca se tratou de chantagem, apesar de ser possível que o bispo tenha entrado em pânico com a ideia de um rosário de cardeais a serem «outed» pela imprensa italiana. Os parlamentares mobilizados e apoiados pelo palácio Chigi apresentam às «pombas» da CEI, numa dialética clássica no seio da esquerda, uma alternativa simples. É a linguagem habitual dos moderados, que agitam a ameaça e o espetro da extrema-esquerda, para fazer aprovar as suas reformas. O negócio é claro: serão as uniões civis com o governo no poder, sem o direito de adoção; ou em breve o casamento gay e a adoção, com a esquerda dura, os ativistas gays e o Supremo Tribunal. Escolham.
A estes encontros entre os responsáveis da maioria política e da CEI juntam-se – como me é possível revelar aqui – encontros secretos entre Matteo Renzi e o próprio papa Francisco, em que a questão das uniões civis teria sido abordada franca e longamente. Por tradição, os presidentes do Conselho italiano sempre dialogaram com «o outro lado do Tibre», segundo uma expressão famosa que significa que pedem, informalmente, a opinião do Vaticano. Mas, desta vez, Matteo Renzi encontra-se pessoalmente com o papa para resolver o problema em direto. Realizaram-se várias reuniões ultraconfidenciais, sempre de noite, entre Francisco e o presidente do Conselho, a sós, sem a presença dos conselheiros dos dois homens (esses encontros secretos, pelo menos em número de dois, foram-me confirmados por um dos principais conselheiros de Matteo Renzi).
É impossível conhecer o teor exato dessas conversas confidenciais. Todavia, três coisas são certas: o papa mostrou-se favorável às uniões civis, desde o início da década de 2000, na Argentina, e depois opôs-se ao casamento: um eventual acordo com Matteo Renzi na mesma linha parece coerente, portanto. Depois, Francisco não se expressou contra as uniões civis em 2015-16 e não se imiscuiu no debate político italiano: ficou em silêncio; e sabemos que o silêncio dos jesuítas também é uma tomada de posição! Sobretudo: a CEI não se mobiliza verdadeiramente contra as uniões civis em 2016, ao contrário de em 2007. Segundo as minhas informações, o papa teria pedido a Mons. Nunzio Galantino, que colocou na direção da CEI, que mantivesse a discrição.
Na verdade, no palácio Chigi, compreenderam que a Igreja podia ser «nominalista», segundo um termo divertido que faz eco dos mistérios entre os papas de Avinhão, os frades franciscanos e os seus noviços em O Nome da Rosa, de Umberto Eco!
– A CEI tornou-se nominalista. Quero dizer que estava disposta a deixar-nos as mãos livres, sem o dizer, se não tocássemos na palavra «casamento» nem nos sacramentos – confia outro conselheiro de Renzi.
No palácio Chigi, seguem com atenção a batalha interna na CEI, que se sucede a este acordo secreto e divertem-se com o confronto duro entre fações héteros, criptogays, «unstraights» e «closeted»! A ordem do papa, que parece ter sido deixar fazer as uniões civis, transmitida de imediato por Nunzio Galantino, suscita uma viva reação da ala conservadora da CEI. Galantino foi imposto como secretário-geral por Francisco, após a sua eleição, mas não detém todos os poderes. O cardeal Angelo Bagnasco continua a ser presidente em 2014-16, apesar de os seus dias estarem contados (o papa fá-lo-á afastar em 2017).
– Mobilizámo-nos contra a proposta de lei, em 2016, precisamente da mesma maneira que em 2007 – insiste e repete Bagnasco, quando da minha conversa com ele.
Partidário de um catolicismo de combate, o cardeal Bagnasco mobilizou todos os seus contactos, tanto na imprensa como no Parlamento, e, claro, entre os bispos italianos. Assim, o jornal Avvenire, parte para a guerra sobre o tema, multiplica as suas tomadas de posição contra as uniões civis. De igual modo, é enviada uma longa participação, em julho de 2015, a todos os membros do Parlamento para os «chamar à razão». Bagnasco agita-se em todas as frentes, como nos grandes momentos de 2007.
Todavia, o espírito do tempo já não é o mesmo. O Family Day de fevereiro de 2007, em que mais de 500 associações incentivadas pela CEI se haviam mobilizado contra a primeira proposta de lei sobre as uniões civis, não encontra o mesmo êxito em junho de 2015.
– Desta vez, foi um fracasso em todo o lado – diz-me Monica Cirinnà.
O movimento sufoca. De facto, foi a linha de Francisco que prevaleceu: o argumento das uniões civis como muralha contra o casamento foi decisivo. Sem esquecer que como o papa nomeia os cardeais e os bispos, fazer-lhe oposição equivalia a comprometer o futuro. A homofobia era uma condição de consagração sob João Paulo II e Bento XVI; sob Francisco, os «rígidos» que têm uma vida dupla já não estão em odor de santidade.
– Bagnasco já estava em declínio. Encontrava-se muito enfraquecido e já não era apoiado nem pelo papa, nem pela cúria. Ele próprio compreendeu que se se agitasse e excitasse demasiado ruidosamente contra a proposta de lei, precipitaria a sua queda – confia-me um conselheiro de Matteo Renzi.
– As paróquias não se mobilizaram – reconhece, pelo seu lado, com pena, um cardeal conservador.
A opção final escolhida pela CEI pode resumir-se numa palavra: «contemporizar». A CEI confirma a sua oposição ao projeto de lei, mas, ao contrário do que ocorreu em 2007, modera as suas tropas. Os falcões de 2007 tornaram-se as pombas de 2016. Mas não cede quanto à adoção. Lança-se mesmo numa atividade secreta de lóbi para que o direito oferecido aos casais homossexuais seja retirado do projeto de lei (uma linha que talvez seja também a do papa).
A CEI vai encontrar um aliado inesperado nesta enésima batalha: o Movimento Cinco Estrelas de Beppe Grillo. Segundo a imprensa italiana e as minhas próprias fontes, o partido populista, que conta com vários homossexuais no armário entre o seus dirigentes, teria negociado um pacto maquiavélico com o Vaticano e a CEI: a abstenção dos seus eleitos em relação à adoção contra o apoio da Igreja à sua candidata às eleições municipais de Roma (Virginia Raggi torna-se, efetivamente, presidente da câmara em junho de 2016). Teria havido vários encontros nesse sentido, nomeadamente um no Vaticano, com três responsáveis do Movimento Cinco Estrelas, na presença de Mons. Becciu, «ministro» do Interior do papa, e, talvez, de Mons. Fisichella, um bispo que durante muito tempo foi muito influente na CEI. (Esses encontros foram tornados públicos numa investigação de La Stampa e foram-me confirmados também por uma fonte interna da CEI; poderiam indiciar uma certa ambivalência do papa Francisco. Interrogado, Mons. Fisichella desmente ter participado em qualquer reunião deste tipo.)
A pusilanimidade de Matteo Renzi e o pacto secreto do Movimento Cinco Estrelas traduzem-se num novo compromisso: o direito à adoção é retirado da proposta de lei. Graças a esta concessão importante, o debate acalma-se. As 5000 alterações da oposição ficam reduzidas a algumas centenas e a chamada lei «Cirinnà», devido ao nome da sua artífice, é aprovada desta vez.
– Esta lei mudou verdadeiramente a sociedade italiana. As primeiras uniões foram comemoradas com festas, organizadas por vezes pelos próprios presidentes das câmaras das grandes cidades, que convidavam as populações a vir felicitar os casais. Nos primeiros oito meses subsequentes à adoção da lei, foram celebradas mais de 3000 uniões civis em Itália – diz-me Monica Cirinnà, a senadora do Partido Democrata, tornada, pela sua luta, um dos ícones dos gays italianos.
O PAPA FRANCISCO fez, portanto, uma grande limpeza na CEI. Num primeiro tempo, pediu ao cardeal Bagnasco, com uma certa perversidade jesuíta, que fizesse pessoalmente o trabalho de limpeza das derivas financeiras e dos abusos de poder da Confederação episcopal italiana. O santo padre já não quer uma Igreja «autorreferencial» (um dos seus códigos secretos para falar de «praticantes»), feita de potentados locais, de clericalismo e de corporativismo carreirista. Onde quer que faça sondagens, nas grandes cidades italianas, descobre amiúde homófilos e «closeted» à frente dos principais arcebispados! Agora, há mais «praticantes» na CEI do que na câmara municipal de São Francisco!
O papa pede sobretudo a Bagnasco que tome medidas radicais em matéria de abusos sexuais, quando a CEI se recusou sempre, por princípio, a denunciar à polícia e à justiça os padres suspeitos. Com efeito, quanto a este ponto, o papa Francisco está aquém da realidade: sabemos, desde a revelação de um documento interno de 2014, que a CEI dos cardeais Ruini e Bagnasco organizou um verdadeiro sistema de proteção, isentando os bispos da obrigação de transmitirem as suas informações à justiça e recusando inclusive ouvir as vítimas. No entanto, os casos de abusos sexuais tornaram-se numerosos durante as décadas de 1990 e 2000, sempre minorados pela CEI. (O caso do bispo Alessandro Maggiolini, antigo bispo de Como, é sintomático: o prelado, simultaneamente ultra-homófobo e «closeted», foi apoiado pela CEI quando era suspeito de ter protegido um padre pedófilo.)
Depois de ter pedido a Bagnasco que fizesse o trabalho sujo, e lhe ter imposto um adjunto que ele não queria (o bispo Nunzio Galantino), o papa despede finalmente o cardeal.
– É uma técnica jesuíta clássica. Francisco nomeia um adjunto, Galantino, que começa a decidir tudo em vez do chefe, Bagnasco. E depois, um dia, substitui o chefe porque lhe censura o facto de nada decidir e se ter tonado inútil – explica-me uma vaticanista francesa, que conhece perfeitamente o Vaticano.
E acrescenta:
– O papa aplicou a mesma técnica maquiavélica com o cardeal Sarah, com o cardeal Müller, com Burke, com Pell!
As relações ficam um pouco mais tensas quando Bagnasco, que talvez se aperceba da armadilha em que caiu, esgrime contra o papa que acaba de propor a venda das igrejas italianas para ajudar os pobres: «É uma brincadeira», comenta, chicaneiro, Bagnasco.
Francisco castiga-o pela primeira vez excluindo-o da sessão plenária da importante Congregação para os Bispos, que desempenha um papel central na nomeação de todos os prelados; nomeia, para o substituir, contra todos os usos, o número dois da CEI. Como o cardeal continua a adiar as reformas, a minorar o problema dos abusos sexuais e a denegri-lo em privado, Francisco espera a sua hora e, no termo normal do fim do seu mandato, impõe o substituto de Bagnasco, sem lhe deixar sequer a esperança de poder ser candidato à sua própria sucessão. Assim, em 2014, Gualtiero Bassetti, um bispo bergogliano bastante favorável às uniões civis homossexuais, é criado cardeal por Francisco (um dos raros italianos elevados à púrpura neste pontificado) antes de ser nomeado, em 2017, presidente da CEI.
Outras cabeças rolam, em seguida. O bispo da cúria Rino Fisichella, influente intrigante da CEI, que esperava ser criado cardeal, é afastado da lista de candidatos potenciais. Angelo Scola, poderoso cardeal-arcebispo de Milão e figura tutelar da corrente conservadora Comunhão & Libertação, é por sua vez enviado para a reforma por Francisco, que obriga esse prelado da ala ratzingeriana a pagar pelas suas negociatas políticas, a sua aliança cínica com Berlusconi e o seu silêncio sobre os abusos sexuais dos padres.
Paralelamente, Francisco decapita o Progetto Culturale della CEI, estrutura tão homófila como homófoba, afastando especificamente Vittorio Sozzi e marginalizando Dino Boffo.
A linha de Francisco é clara. Quer normalizar e reitalianizar a CEI, como se dissesse aos seus bispos: «Afinal de contas, vocês só representam a Itália».
Durante muito tempo, no Vaticano e em matéria de despedimentos, praticou-se, doce eufemismo, o «promoveatur ut amoveatur»: promovido para ser afastado. Nomeava-se um prelado para uma nova missão, para o afastar daquela de que queriam descartá-lo. Agora, Francisco nem sequer está com meias medidas: demite sem aviso prévio e sem local de destino.
– Francisco é verdadeiramente de uma perversidade sonsa. Nomeou para uma cidade italiana um bispo conhecido por ter lutado contra a prostituição, substituindo um prelado que era conhecido por se relacionar com prostitutos! – Diz-me um arcebispo.
Um padre da cúria, que se conta entre os mais bem informados, apresenta-me esta análise partilhada por diversos prelados ou colaboradores próximos do papa:
– Penso que Francisco, que no entanto não é ingénuo e sabia o que o esperava, ficou estupefacto com a homossexualização do episcopado italiano. Por conseguinte, se inicialmente teria julgado que poderia «limpar» o Vaticano e a CEI dos seus cardeais, bispos e prelados homófilos, é realmente obrigado, hoje em dia, a conviver com essa realidade. Dada a falta de candidatos heterossexuais, foi obrigado a rodear-se de cardeais cuja homossexualidade conhecia bem. Já não tem a ilusão de poder mudar o estado de coisas e pretende apenas «conter» o fenómeno. Aquilo que tenta fazer é uma política de contenção.
Um progresso, apesar de tudo.