Prólogo

– É MEMBRO DA PARÓQUIA – sussurra-me o prelado, ao ouvido, com uma voz de conspirador.

O primeiro a usar, perante mim, esta expressão codificada é um arcebispo da cúria romana.

– Sabe, é muito praticante. É membro da paróquia – insistiu em voz baixa, falando-me dos hábitos de um célebre cardeal do Vaticano, antigo «ministro» de João Paulo II, que conhecemos bem, tanto ele como eu.

Antes de acrescentar:

– E se lhe contasse o que sei, não ia acreditar!

E, é claro, falou.

Vamos cruzar-nos várias vezes, neste livro, com esse arcebispo, o primeiro de uma longa série de padres que me descreveram a realidade que eu pressentia, mas que muitos tomarão como uma ficção. Um conto de fadas.

– O problema é que, se disser a verdade sobre o «armário» e as amizades particulares no Vaticano, não vão acreditar em si. Dirão que é inventado, porque, aqui, a realidade ultrapassa a ficção – confiou-me um padre franciscano que, também, trabalha e vive no interior do Vaticano, há mais de trinta anos.

No entanto, foram muitos os que me descreveram esse «armário». Alguns ficaram inquietos em relação ao que eu ia divulgar. Outros revelaram-me os segredos, sussurrando, e depois, em breve e em voz alta, os escândalos. Outros ainda mostravam-se loquazes, demasiado loquazes, como se tivessem esperado muitos anos para sair do silêncio. Mais de uma quarentena de cardeais e centenas de bispos, de monsignori, de padres e de «núncios» (os embaixadores do papa) aceitaram encontrar-se comigo. Entre eles, alguns homossexuais assumidos, presentes todos os dias no Vaticano, fizeram-me penetrar no seu mundo de iniciados.

Segredos de polichinelo? Boatos? Maledicências? Sou como são Tomé: preciso de ver para crer. Assim, tive de fazer uma longa investigação e viver em imersão na Igreja. Instalei-me em Roma, uma semana por mês, vivendo regularmente no interior do Vaticano graças à hospitalidade de altos prelados que, por vezes, se revelava serem também membros «da paróquia». E, em seguida, viajei por mais de trinta países, entre os cleros da América Latina, da Ásia, dos Estados Unidos ou do Médio Oriente para recolher acima de um milhar de testemunhos. Durante essa longa investigação, passei perto de cento e cinquenta noites por ano em reportagem, fora de casa, fora de Paris.

Nunca, durante esses quatro anos de investigação, escondi a minha identidade de escritor, de jornalista e de investigador para abordar cardeais e padres, por vezes inacessíveis. Todas as entrevistas foram realizadas com o meu nome verdadeiro e bastava aos meus interlocutores fazerem uma breve pesquisa no Google, Wikipédia, Facebook ou Twitter para conhecerem os pormenores da minha biografia de escritor e repórter. Amiúde, esses prelados, pequenos e grandes, tentaram engatar-me recatadamente e alguns, muito pouco contrafeitos, ativa ou mais intensamente. Isso faz parte dos riscos da profissão!

Porque é que estes homens, habituados a manter o silêncio, aceitaram quebrar a omertà? É um dos mistérios deste livro e a sua razão de ser.

O que me disseram foi durante muitos anos indizível. Uma obra como esta dificilmente seria publicável há vinte ou apenas há dez anos. Durante muito tempo, os caminhos do Senhor permaneceram, se me é permitido dizê-lo, impenetráveis. Atualmente são menos, porque a demissão de Bento XVI e a vontade de reforma do papa Francisco contribuíram para libertar a palavra. As redes sociais, a ousadia acrescida da imprensa, e os inúmeros escândalos de «costumes» eclesiásticos tornaram possível, e necessário, revelar esse segredo, hoje em dia. Como tal, este livro não visa a Igreja em geral, mas um «género» particular de comunidade gay; conta a história da componente maioritária do colégio cardinalício e do Vaticano.

Muitos cardeais e prelados que oficiam na cúria romana, a maioria dos que se reúnem em conclave sob os frescos da capela Sistina, pintada por Miguel Ângelo – uma das cenas mais imponentes da cultura gay, povoada de corpos viris, rodeados pelos Ignudi, esses robustos efebos desnudados –, partilham as mesmas «inclinações». Parecem uma «família». Com uma referência mais disco queen, um padre segredou-me: «We are family!»

A maior parte dos monsignori que usaram da palavra na varanda da Loggia de São Pedro, entre o pontificado de Paulo VI e o de Francisco, para anunciar tristemente a morte do papa ou lançar, com uma franca alegria, Habemus papam!, têm um mesmo segredo em comum. È bianca!

Sejam eles «praticantes», «homófilos», «iniciados», «unstraights», «mundanos», «versáteis», «questioning», «closeted» ou estejam simplesmente «no armário», o mundo que descubro, com as suas cinquenta sombras de gay, está para lá do entendimento. A história íntima desses homens, que projetam uma imagem de piedade, em público, e levam uma outra vida privada, tão diferentes entre si, é uma meada difícil de desemaranhar. As aparências de uma instituição talvez nunca tenham sido tão enganadoras, e enganadoras são também as profissões de fé sobre o celibato e os votos de castidade que escondem uma realidade totalmente diferente.

O SEGREDO MAIS BEM GUARDADO DO VATICANO não é segredo para o papa Francisco, que conhece a sua «paróquia». Quando da sua chegada a Roma, compreendeu que tinha de se haver com uma corporação bastante extraordinária no seu género e que não está limitada, como se julgou durante muito tempo, a algumas ovelhas tresmalhadas. Trata-se de um sistema; e de um rebanho bem vasto. Quantos são? Não importa. Afirmemos apenas: representam a grande maioria.

De início, é claro, o papa ficou surpreendido com a grande dimensão desta «colónia maledicente», com as suas «qualidades encantadoras» e os seus «insuportáveis defeitos», de que fala o escritor francês Marcel Proust no seu célebre Sodoma e Gomorra. Mas o que é insuportável para Francisco não é tanto essa homofilia tão espalhada como a hipocrisia vertiginosa dos que pregam uma moral estreita, ao mesmo tempo que têm um companheiro, aventuras e, por vezes, acompanhantes pagos. Eis a razão pela qual fustiga sem descanso os falsos devotos, os santarrões, os beatos falsos. Francisco denunciou amiúde, nas suas homilias matinais de Santa Marta, essa duplicidade, essa esquizofrenia. A sua fórmula merece ser posta em destaque neste livro: «Por detrás da rigidez, há sempre qualquer coisa escondida; em inúmeros casos, uma vida dupla».

Vida dupla? As palavras foram proferidas e, desta vez, a testemunha é irrefutável. Francisco repetiu com frequência essas críticas a propósito da cúria romana: apontou com o dedo os «hipócritas» que levam «vidas escondidas e amiúde dissolutas»; aqueles que «maquilham a alma e vivem de maquilhagem»; a «mentira» erigida em sistema que provoca «muita dor, a hipocrisia provoca muita dor: é uma maneira de viver». Façam o que eu digo, mas não o que eu faço!

Será necessário dizer que Francisco conhece aqueles a quem se dirige deste modo sem os nomear: cardeais, mestres de cerimónias papais, antigos secretários de Estado, substitutos, minutadores ou camerlengos. Na maior parte dos casos, não se trata apenas de uma inclinação difusa, de uma certa fluidez, de homofilia ou de «tendências», como se dizia na época, nem sequer de sexualidade reprimida ou sublimada, todas elas também frequentes na Igreja de Roma. Muitos desses cardeais que «não amaram mulheres, apesar de cheios de sangue!», como disse o Poeta, são praticantes. Que voltas dou para dizer coisas tão simples! Que, ontem tão chocantes, são hoje tão banais!

Praticantes, certamente, mas ainda «no armário». É inútil apresentar-lhes aquele cardeal que aparece em público na varanda da Loggia e que foi apanhado num caso, rapidamente abafado, de prostituição; ou o outro cardeal francês que teve, durante muito tempo, um amante anglicano na Europa; ou ainda aqueloutro que, no tempo da sua juventude, foi desfiando aventuras como uma freira desfia as contas do seu rosário; sem esquecer aqueles que encontrei nos palácios do Vaticano e que me apresentaram o seu companheiro como sendo o seu assistente, o seu minutador, o seu substituto, o seu motorista, o seu criado de quarto, o seu factótum, ou até o seu guarda-costas!

O Vaticano tem uma comunidade homossexual que se conta entre as mais elevadas do mundo e duvido que mesmo no Castro de São Francisco, esse bairro gay tão emblemático, hoje em dia mais misturado, haja tantos homossexuais!

No caso dos cardeais mais velhos, este segredo tem de ser procurado no passado: a sua juventude tempestuosa e os seus anos brejeiros, antes da libertação gay, explicam a sua vida dupla e a sua homofobia à antiga. Ao longo da minha investigação, tive frequentemente a impressão de voltar atrás no tempo e encontrar-me nas décadas de 1930 ou 1950, que desconheço, com aquela mentalidade dupla de povo eleito e povo maldito, o que fez dizer a um dos padres com quem me encontrei frequentemente: «Bem-vindo a Sodoma»!

Não sou o primeiro a evocar este fenómeno. Vários jornalistas já revelaram escândalos e casos no seio da cúria romana, mas o tema da minha obra não é esse. Ao contrário desses vaticanistas, que denunciam «derivas» individuais, mas ocultam o «sistema», é preferível preocuparmo-nos menos com os casos desagradáveis do que com a vida dupla muito banal da maior parte dos dignitários da Igreja. Deixando de lado as exceções e centrando-nos no sistema e no modelo, «the pattern», como dizem os sociólogos americanos. Nos pormenores, certamente, mas também nas grandes leis – e haverá, como veremos, catorze regras gerais neste livro. O tema é a sociedade íntima dos padres, a sua fragilidade e o seu sofrimento ligado ao celibato forçado, transformados em sistema. Não se trata, portanto, de julgar esses homossexuais, mesmo quando ainda se encontram no armário – Gosto bastante deles! – mas sim de compreender o seu segredo e o seu modo de vida coletivo. O que está em questão não é denunciar esses homens, nem submetê-los a um «outing» em vida. O meu projeto não é o «name and shame», essa prática americana que consiste em tornar públicos os nomes para os expor. Que fique bem claro que, para mim, um padre ou um cardeal não deve ter a menor vergonha de ser homossexual; penso mesmo que deveria ser um estatuto social possível, entre outros.

Todavia, impõe-se a necessidade de divulgar um sistema construído, desde os mais pequenos seminários até ao santo dos santos – o colégio cardinalício –, simultaneamente, a vida dupla homossexual e a mais vertiginosa homofobia. Cinquenta anos depois de «Stonewall», a revolução gay nos Estados Unidos, o Vaticano é o último bastião a libertar. Muitos católicos têm agora a intuição desta mentira, sem ainda terem podido ler a descrição deste livro.

SEM ESTA GRELHA DE LEITURA, a história recente do Vaticano e da Igreja romana fica opaca. Ao ignorarmos a dimensão largamente homossexual, privamo-nos de uma das principais chaves de compreensão da maior parte dos factos que mancharam a história do Vaticano de há várias décadas a esta parte: as motivações secretas que animaram Paulo VI a confirmar a proibição da contraceção artificial, o repúdio do preservativo e a obrigação estrita do celibato dos padres; a guerra contra a «teologia da libertação»; os escândalos do banco do Vaticano na época do célebre arcebispo Marcinkus, também ele homossexual; a decisão de proibir o preservativo como meio de luta contra a SIDA, no preciso momento em que a pandemia ia fazer mais de trinta e cinco milhões de mortos; os casos VatiLeaks I e II; a misoginia recorrente, e amiúde insondável, de inúmeros cardeais e bispos; a demissão de Bento XVI; a fronda atual contra o papa Francisco… De cada uma dessas vezes, a homossexualidade desempenha um papel central que muitos adivinham, mas que nunca foi contado verdadeiramente.

A dimensão gay não explica tudo, é claro, mas é uma chave de leitura decisiva para quem quiser compreender o Vaticano e as suas posturas morais. Podemos partir também da hipótese, embora não seja esse o tema deste livro, de que o lesbianismo é uma importante chave de compreensão da vida dos conventos, das religiosas em clausura ou não, das irmãs e das freiras. Por fim – infelizmente –, a homossexualidade é também uma das chaves de explicação do encobrimento institucionalizado de crimes e delitos sexuais que hoje em dia se contam às dezenas de milhar. Porquê? Como? Porque a «cultura do segredo» que era necessária para manter o silêncio sobre a forte pregnância da homossexualidade na Igreja permitiu que os abusos sexuais fossem escondidos e os predadores beneficiassem desse sistema de proteção sem o conhecimento da instituição – embora a pedofilia também não seja o tema deste livro.

«Quantas máculas na Igreja», disse o cardeal Ratzinger, que também descobriu a dimensão do «armário» quando de um relatório secreto de três cardeais, cujo conteúdo me foi descrito, e que constituiu uma das principais razões da sua demissão. Esse relatório mencionaria menos a existência de um «lóbi gay», como foi dito, do que a omnipresença dos homossexuais no Vaticano, as chantagens, os assédios erigidos em sistema. Existe realmente, como diria Hamlet, algo podre no reino do Vaticano.

A sociologia homossexual do catolicismo também permite explicar uma outra realidade: o fim das vocações. Durante muito tempo, como veremos, os jovens italianos que descobriam que eram homossexuais, ou tinham dúvidas quanto às suas inclinações, escolhiam o sacerdócio. Assim, esses párias tornavam-se iniciados e transformavam uma fraqueza em força. Com a libertação homossexual da década de 1970 e a socialização gay da de 1980, as vocações católicas secaram naturalmente. Hoje em dia, um adolescente gay tem outras opções, mesmo em Itália, para além de receber ordens. O fim das vocações tem causas múltiplas, mas a revolução homossexual é, paradoxalmente, uma das suas principais forças motrizes.

Esta matriz explica, por fim, a guerra contra Francisco. Neste caso, para compreendermos, temos de ser contraintuitivos. Este papa latino-americano foi o primeiro a utilizar a palavra «gay» – e não apenas a palavra «homossexual» – e podemos considerá-lo, se o compararmos com os seus antecessores, o mais gay-friendly dos sumos pontífices modernos. Houve palavras cuidadosamente escolhidas sobre a homossexualidade: «Quem sou eu para julgar?» E podemos assumir que este papa não tem nem as tendências nem a inclinação que foram atribuídas a quatro dos seus predecessores recentes. Todavia, Francisco é alvo, hoje em dia, de uma violenta campanha levada a cabo, em virtude precisamente do seu pretenso liberalismo quanto às questões de moral sexual, pelos cardeais conservadores que são muito homófobos – e, na sua maioria, secretamente homófilos.

Em parte, o mundo do avesso! Podemos dizer até que há uma regra não escrita que se verifica quase sempre neste livro: quanto mais homófobo é um prelado, mais possibilidades existem de ser homossexual. Esses conservadores, esses tradicionalistas, esses «dubia», são, em muitos casos, os famosos «rígidos que levam uma vida dupla», de que Francisco fala tão amiúde.

«O carnaval acabou» teria dito o papa ao seu mestre de cerimónia, no preciso momento da sua eleição. Em seguida, o argentino veio abalar os joguinhos de conivência e de fraternidade homossexuais que se desenvolveram às escondidas desde Paulo VI, se ampliaram sob João Paulo II, antes de se tornarem ingovernáveis sob Bento XVI, precipitando eventualmente a sua queda. Com o seu ego tranquilo e a sua relação serena com a sexualidade, Francisco destoa. Não é da paróquia!

O papa e os seus teólogos liberais deram-se conta de que o celibato dos padres falhara? Que se tratava de uma ficção que quase nunca existe na realidade? Adivinharam que a batalha lançada pelo Vaticano de João Paulo II e Bento XVI contra os gays era uma guerra perdida de antemão? E que agora se virava contra a Igreja à medida que cada um se apercebia das motivações reais: uma guerra levada a cabo por homossexuais que se encontravam dentro do armário contra gays declarados! Uma guerra entre gays, em suma.

Extraviado nesta sociedade maledicente, Francisco está, no entanto, bem informado. Os seus assistentes, os seus colaboradores mais próximos, os seus mestres de cerimónias e peritos em liturgia, os seus teólogos e os seus cardeais, onde os gays são também a maioria, sabem que, no Vaticano, a homossexualidade inclui, simultaneamente, muitos dos chamados e muitos dos escolhidos. Eles sugerem mesmo, quando os interrogam, que, ao proibir que os padres se casem, a Igreja se tornou sociologicamente homossexual; e ao impor uma continência contranatura e uma cultura do segredo é responsável, em parte, pelas dezenas de milhar de abusos sexuais que a minam do interior. Sabem também que o desejo sexual, e principalmente o desejo homossexual, é um dos principais motores e móbiles da vida do Vaticano.

Francisco sabe que tem de fazer evoluir as posições da Igreja e que só conseguirá fazê-lo pagando o preço de uma luta sem tréguas contra todos os que utilizam a moral sexual e a homofobia para esconder as suas hipocrisias e as suas vidas duplas. Mas aí está: esses homossexuais escondidos são maioritários, poderosos e influentes e, no caso dos mais «rígidos», muito ruidosos nas suas posições homofóbicas.

Eis o papa: ameaçado, atacado por todos os lados e geralmente criticado. Francisco, disse-se, está «entre os lobos»

Isso não é exatamente verdade: ele encontra-se entre as malucas.