22.

Dissidentes

– TEMO QUE NÃO PASSE DO INVERNO – diz-me Radcliffe, sussurrando.

O padre tira uma moeda do bolso e dá-a um ancião que está sentado na rua, chamando-o pelo nome próprio. Conversa um pouco com ele e, depois continuamos o nosso caminho pelas ruas de Oxford, em Inglaterra. Faz um frio glacial.

Timothy Radcliffe conhece os sem-abrigo do seu bairro e tenta ajudá-los com os meios de que dispõe. Um pequeno gesto que não parece grande coisa, banal na sua simplicidade, e que se tornou raro numa Igreja «autorreferencial» e que teve tendência para se afastar dos pobres.

Este frade dominicano não é um rebelde, na verdadeira aceção da palavra: é um padre e teólogo inglês de fama internacional e uma das grandes figuras da Igreja uma vez que foi «mestre» da Ordem dos Dominicanos entre 1992 e 2001. Todavia, Radcliffe pertence aos espíritos críticos.

No momento em que o Vaticano de Bento XVI já está em estado de sítio, o secretário de Estado Tarcisio Bertone perde o pé e intensifica-se a oposição na cúria romana, aparecem outras frentes. Por todo o mundo, «dissidentes» começam a rebelar-se contra a intransigência e rigidez do papa. Timothy Radcliffe conta-se entre aqueles que se opõem à deriva conservadora do pontificado.

– Durante muito tempo, detestei Ratzinger, era mais forte do que eu e escrevi inclusive um artigo contra ele. E depois, quando cheguei a Roma, como mestre dos dominicanos, e me encontrei com ele, a minha opinião evoluiu. Então, ele era cardeal e podia falar-lhe com confiança, uma vez que eu representava uma das ordens importantes da Igreja. Conversei muito com ele e devo dizer que era possível argumentar com Ratzinger, mesmo quando estávamos em desacordo. Acabei por ter respeito, e até afeto, por ele.

Após uma primeira conversa com Radcliffe, no convento dos Blackfriars, perto do campus da Universidade de Oxford, onde vive, continuamos a trocar ideias num restaurante francês da cidade. Radcliffe tem tempo: o conferencista internacional em que se tornou só vai tomar um avião na manhã do dia seguinte. Passamos o serão a conversar e, nessa noite, fico a dormir no convento dos Blackfriars, para não ter de voltar a Londres no último comboio.

Quando a Ordem dos Dominicanos elege para ficar à sua frente, em 1992, o muito liberal e gay-friendly Timothy Radcliffe, o Vaticano fica siderado. Como pode ter acontecido um erro desses? Os dominicanos terão ficado todos doidos? Escandalizados, os cardeais Angelo Sodano e Giovanni Battista Re tentam imaginar um estratagema para contestar essa escolha. O cardeal que tem a seu cargo as ordens religiosas, Jean Jérôme Hamer, um belga, é exortado a tomar medidas de retaliação!

– Hamer, que era dominicano, boicotou-me! Após a minha eleição, só vinha visitar a Ordem quando eu estava ausente! E, depois, falámos. Aceitou-me melhor. A partir de então, só vinha quando eu estava presente! – Conta-me Radcliffe.

É preciso dizer que Timothy Radcliffe é uma espécie rara no catolicismo romano: um teólogo abertamente «pró-gay». Sempre defendeu as pessoas LGBT e fez gestos significativos para as incluir na Igreja. Declarou, nomeadamente, que os homossexuais podiam ser fiéis a Cristo e que as relações entre homens podiam ser tão «generosas, vulneráveis, ternas ou mútuas» como as relações heterossexuais. Também publicou um livro sobre a questão da SIDA e assumiu posições corajosas quanto à questão do preservativo.

– Pouco importa se se é gay ou heterossexual: o essencial é amar – diz-me Radcliffe durante a nossa conversa, numa grande liberdade de tom, sob influência talvez de um côtes-du-rhône enérgico.

Raros são os prelados deste nível que falam sem clichés. Em relação à homossexualidade e à homofilia da Igreja, Radcliffe não tem qualquer tabu. Nunca milita: diz os factos. Pausada e serenamente. Prega.

A sua cultura é imensa: teológica, claro, mas também filosófica, geopolítica e artística. É capaz de escrever longos artigos sobre Rembrandt ou uma apaixonante comparação entre Jurassic Park e a Ceia de Leonardo da Vinci!

Durante os seus anos romanos, o dominicano aproximou-se da ala moderada da Igreja, tornando-se amigo dos grandes cardeais liberais Carlo Maria Martini e Achille Silvestrini. Conta-me as suas voltas comuns na capital, no carrinho deste último.

A sua longa passagem pelo Vaticano foi marcada, no final do pontificado de João Paulo II, em que a Igreja dos cardeais Sodano e Ratzinger se torna ultraconservadora, pela necessidade de proteger os teólogos dissidentes que eram ameaçados frequentemente. Radcliffe toma a defesa de algumas figuras-chave, na primeira linha das quais se encontra o teólogo da libertação Gustavo Gutiérrez, que se torna justamente dominicano…

– Quando uma pessoa entra para a Ordem, fica protegida. É claro que os dominicanos protegem os seus irmãos – comenta, simplesmente, Radcliffe.

O padre mantém-se discreto em relação a essas lutas, mas, segundo outras fontes, Thimothy Radcliffe defendeu padres que estavam em risco de ser excomungados, multiplicou as cartas e, nos casos mais difíceis, foi ver pessoalmente o cardeal Ratzinger para defender um processo, evitar um castigo ou pedir um adiamento. Perante a «técnica do Tipp-Ex» do cardeal, que consistia em eliminar o nome dos dissidentes de que não gostava, o dominicano preferiu argumentar.

Dissidente? Radcliffe é apenas crente e exigente. Acrescenta, insistindo fortemente nesse ponto, quando nos separamos:

– Amo a minha Igreja. Sim, amo-a.

JAMES ALISON é um dos dissidentes que houve que proteger. Inglês, tal como Timothy Radcliffe, e também formado nos dominicanos, este padre é uma das figuras mais corajosas que encontrei na Igreja. Teólogo e padre abertamente gay, Alison é um bom especialista da América Latina, onde viveu inúmeros anos, no México e no Brasil, nomeadamente. Também passou longas temporadas nos Estados Unidos, antes de se instalar em Madrid.

Estamos numa vinoteca do bairro gay de Chueca e Alison está acompanhado pelo seu cão Nicholas, um buldogue francês adotado no Brasil. O padre conta-me o seu percurso e a sua paixão pelas viagens. Este «travelling preacher» percorre o mundo para fazer conferências, colóquios e não hesita, pelo caminho, em celebrar missas para grupos LGBT. Em Madrid, por exemplo, vejo-o oficiar no seio da associação Crismhom, um grupo de cristãos gays que conta com mais de duzentos aderentes, que se reúnem num pequeno estabelecimento de Chueca, aonde me dirijo.

Tendo sido, durante muito tempo, padre na América Latina, Alison conta-me as batalhas entre Joseph Ratzinger e os teólogos da libertação. Durante várias décadas, o cardeal perseguiu obcecadamente o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, obrigado a explicar-se perante o grande professor alemão, chamado a Roma e humilhado. O brasileiro Leonardo Boff, figura muito respeitada na América Latina, também foi humilhado e, depois, reduzido ao silêncio por Ratzinger devido às suas teses controversas, antes de decidir abandonar a Ordem Franciscana por razões pessoais. O padre e teólogo jesuíta Jon Sobrino, outro padre da teologia de esquerda, foi literalmente assediado por Alfonso López Trujillo e Joseph Ratzinger durante longos anos. Quanto ao marxista Frei Betto, um dos teólogos progressistas do Brasil que passou vários anos na prisão sob a ditadura, foi repreendido, por sua vez, pelo papa.

O que é paradoxal nesta batalha em que os campos estão invertidos, é que as grandes figuras da teologia da libertação – Gutiérrez, Boff, Sobrino, Betto, nomeadamente – eram religiosos manifestamente não gays, enquanto os cardeais e os bispos que os atacavam, tanto na América Latina como no Vaticano, e os acusavam de «desvios» em relação à norma, eram eles mesmos, na sua maioria, homófilos ou homossexuais praticantes! Basta pensar nos cardeais Alfonso López Trujillo ou Sebastiano Baggio, entre outros… O mundo do avesso, em resumo.

– Sempre tive muito respeito pela teologia de Bento XVI. Lamento apenas que Ratzinger tenha acentuado o inverno intelectual decretado por João Paulo II. E estou contente por o papa Francisco ter reabilitado alguns desses pensadores marginalizados durante demasiado tempo – resume Alison, com prudência.

O cardeal Walter Kasper, figura importante da ala liberal da cúria, e um dos inspiradores do projeto do papa Francisco, matiza a situação:

– Essas figuras da teologia da libertação são muito diferentes. Gustavo Gutiérrez, por exemplo, estava sinceramente empenhado para com os pobres. Não era agressivo, pensava na Igreja. Para mim, era credível. Boff, em contrapartida, conseguiu ser muito ingénuo em relação ao marxismo, por exemplo, e era mais agressivo. Outros tinham feito a escolha de se juntar às guerrilhas e pegar em armas, algo que não podíamos tolerar.

Quanto à problemática gay, a teologia da libertação foi relativamente lenta e dividida, antes de se encontrar na vanguarda da «teologia queer». Prisioneiros da vulgata marxista, raros são os pensadores deste movimento «libertacionista» que compreenderam o peso das raças, do sexo ou da orientação sexual na exclusão ou na pobreza. Algo que o dominicano brasileiro Frei Betto, uma das figuras-chave do movimento, reconhece quando o interrogo no Rio de Janeiro:

– A teologia da libertação evoluiu em função do contexto. No início, nas décadas de 1960 e 70, a descoberta do marxismo foi determinante como grelha de leitura. Ainda hoje, Marx continua a ser essencial para analisar o capitalismo. Ao mesmo tempo, à medida que foram emergindo novas questões, a teologia da libertação adaptou-se. Sobre a ecologia, por exemplo, Leonardo Boff é conhecido hoje em dia com um dos pais da eco-teologia e influenciou muito a encíclica do papa Francisco sobre a ecologia integral: Laudato si! E graças às mulheres envolvidas nas comunidades de base e, em seguida, às teólogas feministas, surgiram questões como a sexualidade e o género. Eu próprio acabei de publicar um pequeno manual sobre as questões de género e de orientação sexual. Nenhum tema é tabu para nós.

Pelo seu lado, o cardeal-arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, próximo da teologia da libertação, ousou incentivar o uso do preservativo e criticar João Paulo II por ter proibido o debate sobre o celibato dos padres que não repousaria, segundo ele, sobre nenhuma base séria (também se deslocou a Roma para assumir a defesa de Boff contra Ratzinger). Efeminado e cheio de trejeitos, Evaristo Arns era tão estranhamente gay-friendly que alguns teólogos brasileiros, que se contavam entre os seus amigos, suspeitam de que ele próprio teria tendências, o que explicaria, segundo eles, o seu liberalismo. Mas esta hipótese, que ouvi várias vezes durante a minha investigação no Rio, em Brasília e em São Paulo não parece basear-se em qualquer facto preciso e nunca foi confirmada. Em contrapartida, é um dado adquirido que foi um opositor à ditadura no Brasil e que «celebrava missas pelas vítimas do poder militar» (segundo o testemunho, recolhido por mim em São Paulo, de André Fischer, uma das principais figuras do movimento gay brasileiro).

De qualquer modo, é no movimento da teologia da libertação, e muito mais tarde (a partir da década de 1990), que aparece finalmente um movimento ativamente pró-gay de que o irmão James Alison foi um dos teóricos: uma verdadeira «gay theology».

– Alison foi dos que previram e acompanharam esse movimento da teologia da libertação em direção ao feminismo, às minorias, aos gays – confirma-me Timothy Radcliffe.

Nesta evolução intelectual um pouco inesperada, a teologia da libertação começou a pensar a pobreza e a exclusão já não em termos de classe social e de grupos, mas em termos de indivíduos, algo que é resumido pelo teólogo alemão Michael Brinkschröder, que interrogo em Munique:

– Começaram a interessar-se pelo indivíduo com a sua origem, a sua raça, o seu género, a sua orientação sexual. Por conseguinte, as referências marxistas foram ficando cada vez menos operantes. Em sua substituição, alimentaram-se com «french theory» (os filósofos Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida) e pensamento feminista radical (Judith Butler). E foi assim que se passou da teologia da libertação para a «gay theology» e, em breve, para a «queer theology».

Teólogos como o americano Robert Gross (um antigo jesuíta abertamente gay), a feminista radical Marcela Althaus Reid, na Argentina, os brasileiros Paulo Suess e André Musskopf (um luterano), ou até o frade dominicano Carlos Mendoza-Alvarez, no México, contribuíram para definir ou alimentar esta «queer theology». Podemos referir ainda o nome do brasileiro Luiz Carlos Sussin, um frade capuchinho que foi, diz-me, «o organizador de um “side event” sobre a teologia “queer”, em 2005, quando de uma das primeiras edições do fórum social mundial, em Porto Alegre». Este workshop sobre as questões de género contribuiu para a expansão da «queer theology» na América Latina.

Hoje em dia, inúmeros grupos de leitura «queer» da Bíblia fazem com que essa corrente ainda se mantenha viva, embora tenha tido tendência para se esgotar devido à ausência de reconhecimento académico ou em virtude de se ter fragmentado em capelinhas e outras tantas subcorrentes LGBTIQ+, vertente natural da «desconstrução», um pouco «à maneira do protestantismo» (segundo a fórmula de Michel Brinkschröder).

Sem surpresa, a «queer theology» também foi violentamente posta em questão por parte do Vaticano sob Bento XVI. Alguns padres foram castigados; alguns teólogos perderam a sua acreditação. No México, Angel Méndez, da Universidade Jesuíta Ibero-americana, foi mesmo punido severamente em virtude dos seus ensinamentos sobre a «queer theology». «Abertamente gay, seropositivo e vivendo com um namorado», como ele próprio me confirma, Méndez foi despedido ao arrepio da lei mexicana que proíbe qualquer discriminação no trabalho. Pagou com língua de palmo a sua sinceridade e os seus ensinamentos teológicos LGBT. Mais recentemente, o novo reitor, um jesuíta gay-friendly, David Fernández Dávalos, readmitiu-o.

Uma mesma lógica anima padres tão diferentes como Timothy Radcliffe, Paulo Evaristo Arns, James Alison, Carlos Mendoza-Alvarez, Angel Méndez ou Luiz Carlos Susin e tantos outros teólogos «gays» ou «queers»: a sinceridade, a autenticidade e o repúdio da hipocrisia sobre a homossexualidade. Sem serem eles mesmos necessariamente gays, sabem que a percentagem de homossexuais na Igreja é muito elevada.

James Alison, um homem de terreno que percorreu a América Latina, pôde verificar que, nela, a maior parte dos padres leva uma vida dupla.

– Na Bolívia e no Peru, por exemplo, os padres têm geralmente uma concubina. Aqueles que são celibatários são amiúde homossexuais. No fundo, diria que o clero diocesano rural é sobretudo hétero praticante; o clero religioso urbano, sobretudo homossexual praticante – resume Alison.

Quanto à guerra aos gays, travada sob João Paulo II, e de que o próprio padre Alison foi vítima, porque ainda hoje se encontra privado de título oficial, muitos consideram que foi muito contraproducente:

– Para a Igreja, é um desperdício desesperante de energia – acrescenta Alison.

Mas os tempos mudam. A maior parte dos teólogos da libertação e dos padres gays tem hoje em dia relações pacificadas com a santa sé. O papa Francisco mantém boas relações com Gustavo Gutiérrez, que recebeu no Vaticano, e com Leonardo Boff, a quem pede conselhos. Quanto a James Alison, o padre sem paróquia que foi alvo de um processo canónico irregular, acabou de receber uma chamada do Vaticano, em que o homem do outro lado da linha queria saber notícias suas. Ainda não se recompôs! Alison recusa-se a comentar comigo essa conversa privada ou a dar-me a identidade da pessoa que lhe telefonou. Mas a informação circulou pela cúria e fico a saber o nome daquele que ligou através da central telefónica do Vaticano: foi o papa Francisco!

DURANTE AS DÉCADAS DE 1980, 1990 E 2000, os papas João Paulo II e Bento XVI não pegavam no telefone: mandavam os seus cães de guarda. A secretaria de Estado, a Congregação para a Doutrina da Fé e a Congregação para os Religiosos são encarregadas dessas inquisições. Timothy Radcliffe e James Alison, entre tantos outros, têm um processo lá. As chamadas à ordem, as humilhações, os castigos, as «constituições de arguidos» não faltaram.

Durante trinta anos, Joseph Ratzinger foi esse grande inquisidor. Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, sumo pontífice, instituiu um sistema sofisticado de sanções, secundado durante muito tempo pelo seu génio maléfico Tarcisio Bertone. O que choca não é tanto a violência ou as excomunhões, afinal raras, como a perversão de Ratzinger e a sua propensão para as humilhações «martirizantes». Não há autos de fé: há exames de consciência! Ratzinger usa e abusa de toda uma paleta de castigos graduais. E que imaginação na sanção!

Os seus contraditores, amiúde homossexuais ou gay-friendly, foram marginalizados ou punidos, repreendidos ou mortificados, reduzidos ao estado laical, «constituídos arguidos», obrigados ao «silêncio penitencial», ou ainda privados de missio canonica (os seus trabalhos já não têm valor aos olhos da Igreja). O célebre teólogo Eugen Drewermann, que, em Funcionários de Deus, dinamitou a ideologia do Vaticano de João Paulo II, foi castigado duramente. A lista dos excluídos, dos punidos ou dos párias é longa: o padre Charles E. Curran (um americano demasiado aberto em relação ao divórcio, a pílula e a homossexualidade); o frade Matthew Fox (um dominicano heterossexual que aspirava a casar-se); o padre americano Robert Nugent (favorável aos gays); o jesuíta belga Jacques Dupuis (especialista em religião na Índia); a religiosa e teóloga inglesa Lavinia Byrne (favorável à ordenação das mulheres); a religiosa e teóloga brasileira Ivone Gebara (considerada demasiado liberal relativamente à moral sexual e ao aborto); ou ainda o padre italiano Franco Barbero (que defende, num livro com o jornalista Pasquale Quaranta, a tese segundo a qual o amor entre pessoas do mesmo sexo não está em contradição com os Evangelhos). Nem os mortos foram poupados: foram passados em revista, dez anos após o seu desaparecimento, os escritos do jesuíta indiano Anthony de Mello, célebre pelos seus ensinamentos pró-gays da Bíblia e que encorajava as manifestações de afeto entre religiosos seguindo uma «terceira via» que não era nem a sexualidade, nem o celibato – e foram declarados não conformes.

Dando provas de uma espécie de fanatismo individual, Bento XVI também suspendeu padres ou freiras que distribuíam preservativos em África. Sem esquecer a nomeação insólita, por João Paulo II e Joseph Ratzinger, do bispo francês Jacques Gaillot, que defendia os homossexuais e os preservativos como meio de luta contra a SIDA: foi nomeado finalmente bispo in partibus de Partenia, uma sede episcopal situada no deserto argelino, sem paróquia nem fiéis, porque a cidade desapareceu sob a areia no final do século V.

Joseph Ratzinger convoca os recalcitrantes diversas vezes para que se justifiquem durante dias inteiros; obriga-os a confessar, comentar repetidamente um desvario, descrever um desvio, justificar um simples «tom». Convencido de que a Igreja escapa em si mesma à crítica, porque encarna a própria moral, este doutrinário utiliza amiúde argumentos de autoridade. As suas posições são descritas pelos seus detratores como arbitrárias e perentórias, «justificadas pela ausência de justificação» (segundo a frase de Albert Camus em O Homem Revoltado). Uma rigidez tão artificial que o papa Francisco não terá o menor rebuço em infletir ou inverter a maior parte desses diktats.

Todos aqueles que foram excluídos, castigados ou reduzidos ao silêncio ficaram com sequelas ou estigmas severos: o desenraizamento; a ideia de terem perdido uma família; o impasse financeiro por não poderem encontrar facilmente um trabalho; o sentimento de fracasso depois do final da «servidão voluntária»; por fim, e talvez em primeiro lugar, essa carência indefinível daquilo a que chamaria a «fraternidade».

Quer sejam excluídos ou saiam voluntariamente, os padres despadrados aceleraram ainda mais a grande crise das vocações, movimento silencioso e duradouro, que começa na década de 1970. Alguns perderam a fé na sequência da encíclica rígida de Paulo VI sobre a moral sexual, Humanae Vitae; milhares de padres mandaram a sotaina às malvas para se casarem, nas décadas de 1970 e 80; outros abandonaram a Igreja durante a liquidação sistemática dos progressos de Vaticano II, sob João Paulo II; outros, por fim, abandonaram a sua paróquia à medida que os teólogos de direita e a homofobia foram começando a dominar a cúria romana.

Paralelamente, dezenas de milhões de fiéis afastam-se da Igreja por causa do seu desfasamento em relação ao espírito do tempo, às suas posições ultraconservadoras sobre o casamento, os direitos das mulheres, os direitos homossexuais ou os preservativos e a SIDA; inúmeros crentes também ficaram chocados com as revelações sobre os abusos sexuais e a proteção de que beneficiaram centenas de padres predadores. As repetidas colocações no índex realizadas pelo cardeal Ratzinger isolam a Igreja dos seus intelectuais; finalmente, também os artistas se afastam de uma Igreja que já não aprecia a beleza das coisas.

– Joseph Ratzinger fez o deserto ideológico à sua volta. Mandou calar toda a gente. Era o único teólogo a ter direito ao capítulo. Não tolerava qualquer contradição. Ratzinger foi responsável pelo aniquilamento da liberdade de pensamento na Igreja e pelo empobrecimento impressionante do pensamento teológico católico nestes últimos quarenta anos – resume frei Bento Domingues.

Este teólogo dominicano respeitado que interrogo em Lisboa é livre na sua palavra porque, aos oitenta e quatro anos, já se não deixa impressionar pelos autoritarismos. Acrescenta, furioso:

– Ratzinger foi de uma crueldade inimaginável com os seus opositores. Instaurou inclusive um processo canónico a um teólogo quando sabia que ele estava condenado por um cancro.

NO DECURSO DESTA INVESTIGAÇÃO, conheci em todo o mundo – tanto em Portugal como no Japão, nos Estados Unidos como em Hong Kong ou nas missões de África e da Ásia – padres liberais ou gay-friendly que tentam fazer evoluir a sua Igreja na «periferia» desta. Todos estiveram em guerra com Ratzinger ou os seus representantes conservadores locais.

Estranhamente, um dos lugares onde essa oposição a Joseph Ratzinger foi mais poderosa e simultaneamente mais irredutível, foi no Médio Oriente. Durante estadas, para esta investigação, em oito países árabes, encontrei-me com cristãos do Oriente e também, muito frequentemente, com missionários europeus que continuam a «evangelizar» o Médio Oriente, esquecendo por vezes que o colonialismo pertence ao passado.

Em Roma, o «cérebro» do Vaticano que tem a seu cargo os cristãos do Oriente é o cardeal Leonardo Sandri. Já conhecemos este prelado: é uma figura como não existem, a não ser talvez no Antigo Testamento, que está povoado de eminências deste calibre, altamente coloridas, acima do Bem e do Mal, o que as torna bem mais interessantes, pelas suas contradições diabólicas e as suas longas barbas, do que as personagens polidas dos blockbusters assépticos que são os evangelhos.

O argentino foi, como sabemos, «ministro» do Interior de João Paulo II e, ostracizado sob Bento XVI, teve direito a um «maroquin» à laia de compensação: a congregação encarregada dos cristãos do Oriente. Quando visito este «ministro» do papa, no seu gabinete espetacular da Via della Conciliazioni, em Roma, cruzo-me primeiro com toda uma camarilha de louca de assistentes, de secretários, de subchefes, de contínuos e de mordomos que se encarregam de mim e me impressionam. Vários deles poderiam ter sido os companheiros de viagem de André Gide no Oriente!

Aqui, mais do que alhures, o protocolo continua a ser um assunto sério e descubro por que razão a palavra «antecâmara» é um italianismo, como «peruca», «bancarrota», «caricatura» ou «grotesco». Enquanto espero pelo cardeal Sandri, fazem-me aguardar primeiro numa imensa sala de espera, depois desse grande salão, um contínuo conduz-me a um pequeno vestíbulo, seguidamente, dessa antecâmara, um mordomo conduz-me a uma espécie de quarto de vestir, verdadeiro secretariado de sua Eminência, antes de me introduzirem por fim, delicadamente, talvez para não acordar o animal, no grande gabinete do papão, onde entro finalmente.

O cardeal Sandri é imponente: tem uma grande fronte tenaz e um estilo apache. Recebe no seu gabinete, contrariando a ordem oficial do Vaticano que obriga todos os prelados a receber, por razões de confidencialidade, em salões particulares. Rebelde e ignorando as normas, Sandri senta-me no seu sofá. Fala um francês impecável, como muitos cardeais, e é, comigo, de uma simpatia cheia de encanto. Agarra-me a mão para me mostrar, da sua janela, o escritório da «Ordem Equestre dos Cavaleiros de Jerusalém» – essas coisas não se inventam – e oferece-me um presente de boas-vindas: uma medalha de ouro (ou coberta a ouro) com a efígie do papa Francisco.

– É crente? – Pergunta-me Sandri, durante a conversa. (A entrevista é gravada, com o acordo do cardeal.)

Respondo-lhe que, depois do Iluminismo, depois de Espinosa, Nietzsche e Darwin, depois de Voltaire e Rousseau, depois de Rimbaud, se tornou difícil, sobretudo para um francês…

– Sim, a secularização! Eu sei! – Retruca Sandri, com o olhar penetrante, a voz exageradamente forte, num grande movimento rezingão.

Como muitos no Vaticano, e no mundo católico, Leonardo Sandri tem a paixão do Oriente. Este latino que tem um sorriso digno de Leonardo gosta das longas méharées, da separação clara dos sexos apesar de, por função, se não ocupar dos circuncisos.

Graças a este novo posto, Sandri descobre um novo Oriente na sua vida, de que me fala longamente: este grande conhecedor dos caldeus, dos siríacos e dos melquitas descreve-me as subtilezas bizantinas das Igrejas do Oriente. Dá-me endereços para uma viagem que tenho de efetuar pouco depois ao Líbano e aos Emirados Árabes Unidos: recomenda-me bons contactos que posso ir ver da sua parte. Sandri conhece o terreno como os bolsos da sua sotaina. Cardeal, antigo diplomata, núncio e um dos melhores especialistas do Vaticano quanto às mil subtilezas do Médio Oriente com os seus Aladinos, os seus Sinais do Rosto, os seus dervixes com o seu Qamar, as suas adolescentes com o seu Budûr, sem esquecer, é claro, os seus Ali Baba e os seus quarenta ladrões.

Ele e eu conhecemos bem esta paixão pelo Oriente. É a das cruzadas e do catolicismo de conquista, a do monte das Oliveiras, de São Luís e Napoleão. Mas a «viagem pelo Oriente» também foi um género muito apreciado pelos escritores homossexuais: Rimbaud em Áden, Lawrence na Arábia, André Gide na Tunísia, Oscar Wilde no Magrebe, Pierre Herbart em África, Henry de Montherlant na Argélia e em Marrocos, Pierre Loti na Galileia, Jean Genet na Palestina, William Burroughs e Allen Ginsberg em Tânger… O Poeta escreve: «O Oriente, a pátria primitiva».

– Vários escritores que quiseram efetuar a «viagem pelo Oriente», um grande clássico literário, eram homossexuais. O nome de Sodoma encerrou sempre uma formidável carga simbólica – comenta Benny Ziffer, o redator-chefe literário do Haaretz, quando de um jantar em Telavive.

Por conseguinte, o Oriente também é uma paixão gay! Grande mito, em suma, e duradouro, esta evasão para o Oriente: uma pátria primitiva dos católicos; nova Sodoma para os gays. Uma escapadela que amiúde se revela um engodo, um mau negócio; só as misérias sexuais se acasalam.

No Próximo e no Médio Oriente, no Levante, no Magrebe, cruzei-me com «houmous queens», como lhes chamam no Líbano: aqueles que, não podendo saciar as suas tendências na cúria romana, na sua diocese ou mosteiro, se deslocam às terras dos seus antepassados cristãos e dos seus amantes. Como me fascinaram esses cavaleiros da OrdemEquestre de Jerusalém, esses cavaleiros da Ordem de Malta, esses missionários-filantropos da Ordem do Oriente quando prestam dupla vassalagem à Igreja e às belezas árabes. Quão estranhos são esses peregrinos que estão aterrorizados com o islão, mas já não têm qualquer medo nos braços de um muçulmano que os condena às penas eternas. Em Marrocos, na Argélia ou na Tunísia, onde também me cruzei com eles, esses padres, que gostam de que lhes assobiem na rua como se fossem princesas, recordaram comigo, por segundos sentidos, os estabelecimentos gay-friendly que frequentam, os hotéis «conciliadores» e os riads luxuriosos. Por exemplo, o clero católico europeu frequentou, a dada altura, o antigo mosteiro beneditino de Toumliline, isolado nas montanhas do Atlas (segundo o testemunho de diplomatas, de altas patentes militares e próximos da família real, que entrevistei em Marrocos). No Egito, também me descreveram a atmosfera gay-friendly do Instituto dominicano de estudos orientais do Cairo.

Essa paixão pelo Oriente tem ramificações inclusive no interior do Vaticano. Segundo o testemunho de um padre da cúria e de um confessor de São Pedro, seriam importantes no seu seio o consumo de vídeos pornográficos árabes do YouPorn, e também a utilização da versão italiana da plataforma de vídeo citebeur.com e de um site que propõe acompanhantes pagos árabes, em Roma.

NO LÍBANO, por recomendação do simpático cardeal Sandri, encontro-me com o núncio apostólico Gabriele Caccia. Este diplomata foi, aliás, o jovem adjunto de Sandri sob Ratzinger, com o cargo de «assessor», ou seja, uma espécie de número dois do «ministro» do Interior do Vaticano. Afastado por Tarcisio Bertone, está exilado por conseguinte em Beirute, onde me recebe. Sendo uma das cabeças cortadas de Ratzinger parece portar-se como um anjo e o arcebispo diz-me que adora o Líbano. (Francisco nomeou-o recentemente para as Filipinas.)

A nunciatura fica situada longe do centro da cidade de Beirute, em Bkerké, a norte da capital libanesa. É um bastião cristão: Nossa Senhora do Líbano fica a dois passos, bem como a sede do Patriarcado dos maronitas, uma das principais comunidades católicas de rito oriental. Caccia vive e trabalha lá, protegido pelos soldados do exército libanês, numa casinha a um nível inferior da nunciatura (que estava em obras quando a visitei). A vista sobre Beirute e o vale que a rodeia é espetacular.

Como todos os diplomatas do Vaticano, Caccia não tem o direito de se expressar sem autorização e a nossa conversa é em «off», mas fico impressionado com o seu conhecimento do país e a sua coragem: viaja por todo o lado, por sua conta e risco, vestido de arcebispo, tendo bem visível, na cabeça, a barretina de seda violeta furta-cores dos núncios apostólicos. Aqui, a guerra está perto: não se dão ares nem festas sociais. Caccia não me oferece uma joia como presente de boas-vindas, mas o Evangelho segundo são Lucas, traduzido em árabe.

As Igrejas católicas de rito oriental são fiéis a Roma, mas os seus padres podem ser ordenados sendo casados. Aí, estamos no cerne da grande contradição do Vaticano que foi obrigado realmente, por muito que lhe custe, a reconhecer essa heterossexualidade praticante!

– O celibato dos padres é uma decisão relativamente recente. Mesmo em Roma, os padres casaram-se até ao século XI! Aqui, mantemo-nos fiéis à tradição: os padres são, amiúde, casados. Em contrapartida, depois de ter sido ordenado, o casamento já não é possível e os bispos são sempre escolhidos entre os padres celibatários – explica-me o bispo Samir Mazloum, porta-voz do patriarca maronita, entrevistado em Beirute.

Os papas João Paulo II e Bento XVI, muito zangados com esta exceção oriental, que consideravam anormal, fizeram tudo para a restringir. Assim, opuseram-se durante muito tempo a que padres católicos do Oriente pudessem servir, quando eram casados, nas igrejas europeias, uma solução que, no entanto, teria permitido atenuar a crise das vocações na Europa. Mas o precedente dos anglicanos ou luteranos convertidos levou-os a tolerar essas exceções que o papa Francisco generalizou: hoje em dia, inúmeros padres católicos que prestam serviço em igrejas de França, Espanha ou Itália são… casados. No que se refere ao celibato e casamento dos padres, os cristãos do Oriente representam, portanto, uma oposição latente às regras ditadas pelo Vaticano.

O padre maronita Fadi Daou, professor de teologia e presidente da importante fundação Adyan, que interrogo em Beirute na presença do meu investigador árabe Hady ElHady, resume-me assim a situação:

– Somos cristãos do Oriente associados a Roma, mas independentes. Podemos estimar que 55% dos padres maronitas são casados; escolhemos livremente os nossos bispos. Somos mais liberais em relação a determinados temas, como, precisamente, o celibato dos padres; e mais conservadores quanto a outros, como a condição da mulher ou a homossexualidade. O papa Francisco reconheceu a singularidade das nossas Igrejas ao autorizar os nossos padres casados a servir na Europa ocidental. (Com a mesma prudência, Mons. Pascal Gollnish, da Obra do Oriente, e o cardeal Louis Raphael Sako, o chamado patriarca da Babilónia, que representa a Igreja católica caldeia, confirmaram-me estas informações, durante conversas em Paris.)

Alguns padres, jornalistas ou docentes universitários católicos, que encontrei na região, fizeram-me notar que «os católicos eram ameaçados no Oriente, tal como os homossexuais». Estas duas «minorias» teriam inclusive, no mundo árabe, os mesmos inimigos. Um padre libanês confirma:

– O mapa da perseguição dos católicos corresponde estranha e quase perfeitamente ao mapa das perseguições aos homossexuais.

NO EXTREMO ORIENTE – bem longe do Próximo Oriente, de que os franceses gostam, e do Médio Oriente, dos ingleses –, a situação também apresenta fortes contrastes. As «periferias» mais distantes vivem o catolicismo mais livremente, dissidentes a seu modo. Aí, a Igreja de Roma é geralmente muito minoritária, exceto nas Filipinas e em Timor-Leste e, em menor medida, na Coreia do Sul e no Vietname.

Na santa sé, o responsável pela «evangelização» da Ásia e África é o cardeal Fernando Filoni. Cognominado o papa «vermelho», está à frente de um dos ministérios estratégicos para o futuro do catolicismo. Tendo sido núncio, próximo do cardeal Sodano, Filoni esteve colocado, no início da década de 2000, no Iraque, onde demonstrou uma verdadeira coragem, quando a maior parte dos diplomatas ocidentais fugira do país ainda antes da intervenção militar americana contra Saddam Hussein.

Encontro-me com ele na sede histórica da Propaganda Fide, a Congregação para a Evangelização dos Povos, um edifício célebre desenhado por Bernini, na Piazza di Spagna, em Roma.

– O nome do «papa vermelho» surge de uma forma indireta por oposição ao do santo padre, que é o «papa branco», ou do superior dos Jesuítas, que é o «papa negro» – explica-me Filoni, num francês perfeito.

Quando de cerca de vinte viagens a uma dezena de países da Ásia, e em particular ao Japão, a Hong Kong, a Taiwan, a Singapura e à China, pude avaliar até que ponto o catolicismo asiático tendia a amolecer determinadas rigidezes impostas por Roma. Em contacto com as igrejas locais e as missões estrangeiras, observei uma grande distorção entre as regras e as práticas: o celibato dos padres heterossexuais, contrário à cultura local, é geralmente pouco respeitado lá e o número de missionários católicos homossexuais também é particularmente importante.

Na China, país onde o catolicismo romano é clandestino, a vida privada dos padres e bispos católicos é alvo de uma vigilância ativa por parte do regime que não hesita em «utilizar» a eventual vida dupla dos eclesiásticos – amiúde ativamente heterossexual – para os controlar ou «comprar» a sua cooperação (segundo vários testemunhos diretos recolhidos em Pequim, Xangai, Cantão, Shenzhen, Hong Kong e Taiwan). Na China, o trabalho dos padres locais, como o padre jesuíta Benoît Vermander, com quem me encontrei, não deixa de ser exemplar, tendo em conta os riscos. O dos missionários estrangeiros, aqui chamados «paraquedistas» porque chegam à terra de evangelização e ficam isolados durante muito tempo, é mesmo corajoso, frequentemente.

No Japão, no séquito de um bispo influente, confirmam-me que a Igreja nipónica é muito liberal e que os seus bispos, por essa mesma razão, tiveram alguns desaguisados com Bento XVI:

– O episcopado prefere evitar os conflitos. Somos fiéis aos princípios de tolerância, de equanimidade e de consenso que prevalecem na ilha. Recebemos com bonomia as injunções de Roma; mas continuamos a fazer o que achamos bom para o Japão, sem nos preocuparmos muito com o Vaticano – explica-me um padre próximo da Conferência Episcopal Nipónica.

Durante o sínodo de 2014, a Igreja católica japonesa produziu aliás, como me confirma o padre Pierre Charignon, um capelão enviado para Tóquio pelas Missões estrangeiras de Paris, um documento oficial de quinze páginas a lamentar as posições de Roma; criticou a sua «falta de hospitalidade» e as suas normas «artificiais» sobre a contraceção, o preservativo ou os casais divorciados.

– Nós preferimos Francisco – confirma-me, em Tóquio, Noriko Hiruma, uma das responsáveis do comité Justiça e Paz da Conferência dos Bispos japonesa.

Durante a minha estada, visito uma igreja católica pró-LGBT, no bairro gay de Shinjuku ni-chome. Aí, um padre milita abertamente em prol do casamento para os casais do mesmo sexo e distribui preservativos aos jovens do gayborhood.

A OPOSIÇÃO A JOSEPH RATZINGER ainda foi menos discreta nas «periferias» espirituais da Europa ocidental. Na Alemanha, na Áustria, nos Países Baixos, na Bélgica, na Suíça, mas também nos países escandinavos e na Irlanda, a rigidez do papa é denunciada em todo o lado. Segmentos inteiros da Igreja entraram mesmo em dissidência.

– Aqui, está numa paróquia católica como outra qualquer – diz-me Monica Schmid.

E, de facto, visito com ela a igreja moderna e depurada de Effretikon, na Suíça, onde tudo parece em regra com a doutrina católica. Só que esta mulher generosa, Monica Schmid, é o pároco daqui!

Monica Schmid descreve-me longamente e com paixão a sua igreja, a grande panóplia de sacramentos e rituais disponíveis e apercebo-me de que ela é bem mais instruída em teologia e liturgia do que a maior parte dos padres. A «sua» igreja é moderna e aberta; são inúmeros os paroquianos que lhe são fiéis (segundo Meinrad Furrer, um assistente pastoral católico que me acompanha durante diversas viagens pela Suíça).

Quando dessas estadas em Illnau-Effretikon, Zurique, Genebra, Lausanne, Saint-Gall, Lucerna ou Basileia, verifico que são cada vez mais numerosos os leigos e mulheres que oficiam na Suíça. Inúmeros religiosos assumem publicamente a sua homossexualidade e organizam-se. Alguns, que evoluem na zona cinzenta, ainda são autorizados a celebrar a missa; outros limitam-se a prédicas sem consagração. Existem associações, como a Network em Zurique, que reúnem nomeadamente católicos LGBT. Por vezes, padres com quem me encontrei celebram bênçãos de casais homossexuais. Todos estiveram abertamente em rebelião contra Joseph Ratzinger e exigem agora que oiçam finalmente a «Igreja de baixo» («Kirche von Unten»).

Claro que Roma e, em especial, o papa Bento XVI fizeram tudo para meter na ordem essas paróquias dissidentes, pedindo aos bispos que as castigassem. Estes últimos, por vezes zelosos, bem tentaram fazer aplicar a norma unfriendly de Roma – antes de verem a imprensa fazer, por vezes, o seu «outing» devido à sua vida dupla! De tal modo que foi decretado um cessar-fogo e, agora, deixam em paz os dissidentes suíços pró-gays!

Na Alemanha, a oposição ainda é mais frontal. No seio da própria Igreja, o episcopado alemão foi ultrapassado pela base, em profunda rebelião contra o Vaticano. Embora os Alemães tivessem, de início, acolhido favoravelmente a sua eleição, Bento XVI desiludiu rapidamente. O papa suscitou lá uma onda de protestos sem precedentes, ao ponto de se ter tornado persona non grata no seu próprio país. As suas posições morais, consideradas reacionárias, foram repudiadas inclusive entre os católicos: quando da sua viagem a Berlim, dezenas de associações de famílias, feministas, laicas ou homossexuais, desfilaram pelas ruas. No mesmo momento, mais de uma centena de deputados anunciaram o boicote ao seu discurso no Bundestag, no preciso momento em que o presidente do Parlamento exigia ao papa uma alteração da linha em relação ao celibato dos padres. Finalmente, o presidente da República alemã, ele próprio casado em segundas núpcias, criticou publicamente as posições morais do santo padre sobre os casais divorciados.

– Aqui, a maioria dos teólogos alemães é hostil a Ratzinger – explica-me, em Berlim, o antigo deputado Volker Beck, que tomou parte no boicote ao papa.

No seu próprio país, Joseph Ratzinger tornou-se inaudível. Cerca de 90% dos alemães põem em causa o celibato dos padres e a proibição da ordenação das mulheres. Os movimentos de padres homossexuais e as associações de crentes LGBT também se multiplicaram ao ponto de aparecerem como uma das componentes mais dinâmicas da Igreja, apoiadas por vezes pelo clero local. O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e presidente da Conferência Episcopal Alemã, é um dos raros ratzingerianos que se mostraram abertos à questão gay: em 2018, deu a entender, pesando bem as palavras, que os padres católicos poderiam organizar, em certos casos, «cerimónias de bênção para casais homossexuais». Este prelado sabe, melhor do que outros, que segmentos inteiros do catolicismo de língua alemã estão em rutura com o Vaticano, que os padres gays são maioritários nas igrejas alemãs e alemânicas e mais numerosos ainda entre os jesuítas, franciscanos ou dominicanos alemães.

O caso do cardeal-arcebispo de Viena, Hans Groër, contribuiu para desenganar os espíritos: rígido, homófobo e homossexual praticante, o cardeal levou uma vida dupla até ter sido apanhado pelos seus velhos demónios. Acusado por jovens padres de toques e abusos sexuais, foi alvo de inúmeras queixas. E à medida que a lista das vítimas foi crescendo – mais de um milhar entre os rapazes e jovens da diocese –, o caso Groër tornou-se um escândalo em todo o mundo germânico.

Durante o processo, as proteções de que o cardeal beneficiou nas altas esferas são reveladas publicamente. Corajoso, o novo arcebispo de Viena, Christoph Schönborn, critica, relativamente a esse processo, o papel do papa João Paulo II e do seu adjunto Angelo Sodano, que teriam segundo ele, protegido o cardeal pedófilo.

Detenhamo-nos um pouco na figura de Schönborn. O sucessor de Groër em Viena é um dos cardeais mais gay-friendly da Igreja atual. Leitor entusiasta de Jacques Maritain e Julien Green (que está enterrado na Áustria), apaixonado pelo Oriente e frequentador habitual do Hospício austríaco de Jerusalém, Schönborn deseja estar, em privado, atento às preocupações das pessoas homossexuais. No final da década de 1990, por exemplo, o arcebispo de Viena encoraja a criação do jornal Dialog, editado pela diocese e distribuído em várias centenas de milhares de exemplares aos católicos austríacos. Nas suas colunas, realiza-se o debate sobre o celibato dos padres ou a outorga de sacramentos aos casais divorciados.

– Lançámos esse jornal sob os auspícios e com o financiamento da diocese, com o apoio constante do arcebispo Schönborn e do seu vigário-geral Helmut Schüller. Estávamos na lealdade para com a Igreja, mas, ao mesmo tempo, o debate abria-se cada vez mais… – explica-me Martin Zimper, o seu redator-chefe, quando de vários encontros em Lucerna, onde agora vive com Peter, o seu companheiro.

A abertura tem limites: Schönborn põe fim à experiência quando o prisma homossexual da publicação se torna demasiado pregnante, mas o impacto da mesma sobre o catolicismo austríaco não será menos duradouro por isso.

Foi também no círculo próximo do arcebispo de Viena que foi lançada, em 2006, a Pfarrer Initiative (Iniciativa dos párocos), cofundada precisamente pelo padre Helmut Schüller. Este movimento muito influente pretende estruturar grupos de padres em rutura com a Igreja. Em 2011, o próprio Schüller estará na origem de um «Apelo à desobediência», assinado por cerca de quatrocentos padres e diáconos, para exigir o fim do celibato e a ordenação das mulheres. Pelo seu lado, o grupo Wir Sind Kirche (Nós somos Igreja), nascido no momento do escândalo Groër, pretende também reformar a Igreja austríaca, reunindo mais de 500 000 signatários esta linha liberal.

A maior parte destes movimentos e grupos foi severamente repreendida pelo cardeal Joseph Ratzinger e depois por Bento XVI.

– O papa mostrou-se muito mais crítico em relação às associações católicas pró-gays do que em relação ao cardeal pedófilo multirreincidente Hans Groër, que nem sequer foi reduzido ao estado laical! – Faz-me notar um teólogo de língua alemã.

Neste contexto, Christoph Schönborn navega com prudência, numa forma de não dito benevolente em relação, nomeadamente, aos inúmeros padres e bispos gays do seu país: uma espécie de «Don’t ask, don’t tell» que tem tudo que ver com ele, segundo a expressão de um dos seus antigos colaboradores. Abstém-se de fazer perguntas aos que o rodeiam, com medo das respostas que poderiam ser-lhe dadas. Assim, continua a associar gays às iniciativas do arcebispado de Viena e afirmou ter ficado impressionado com a solidariedade, que testemunhou, no seio dos casais homossexuais perante a provação da SIDA: «Era exemplar. Ponto final», declarou. Quando de frequentes estadas em França, o cardeal-viajante encontra-se com os seus correligionários gay-friendly, nomeadamente no convento dos dominicanos de Toulouse, onde me encontrei com eles. Schönborn também escreveu uma carta de felicitações, que pude consultar, a um casal de homossexuais austríacos que acabara de se comprometer numa união civil. E a 1 de dezembro de 2017, Schönborn foi ao ponto de celebrar uma missa gay-friendly em Viena, durante a qual prestou homenagem aos doentes de SIDA. Naturalmente, Schönborn é próximo hoje em dia do papa Francisco.