23.
VatiLeaks
UM MORDOMO UM POUCO CURIOSO DE MAIS: é esta, mais ou menos, a versão oficial do caso, conhecido hoje em dia sob o nome VatiLeaks. Esta tese congeminada pela santa sé foi retomada pelos vaticanistas mais ingénuos. Aliás, a expressão «VatiLeaks» foi imaginada no círculo imediato do papa (Federico Lombardi reclama a paternidade, quando o interrogo). A realidade é, evidentemente, um pouco mais complexa.
O culpado, que, naturalmente, agiu «sozinho», chama-se Paolo Gabriele: era o «mordomo» (em inglês, «butler») do papa. O diabrete teria fotocopiado centenas de documentos oficiais, «pedidos de empréstimo» ao secretariado particular do papa Bento XVI e que acabaram finalmente na imprensa em 2012. O escândalo é evidentemente de grande dimensão. Cartas internas manuscritas destinadas ao papa, notas secretas entregues por mão própria a Georg Gänswein e até cópias de telegramas diplomáticos cifrados entre as nunciaturas e o Vaticano, são postos na praça pública. O culpado ideal é um leigo de quarenta e oito anos, casado e pai de três filhos: um sedutor italiano, belo homem, que gosta de redes secretas! Um camareiro! Um butler! Um fusível!
Na verdade, ninguém pode acreditar que o mordomo tenha agido sozinho: o caso é uma campanha, quiçá uma conjura, organizada ao mais alto nível do Vaticano. Trata-se de destabilizar o secretário de Estado Tarcisio Bertone e, através dele, o papa. Um informático também foi inculpado pessoalmente no VatiLeaks, o que já confirma que o «butler» tinha pelo menos um cúmplice. A principal vítima do VatiLeaks, o cardeal Bertone, falará de um «nó de víboras e corvos»: a fórmula é usada no plural. O que é muito para um único mordomo!
Uma vez eliminada a versão oficial, o caso que abala o pontificado de Bento XVI, e põe em andamento a sua queda, continua a ser muito opaco. Muitas perguntas continuam sem resposta até hoje: quais são as pessoas que recrutaram inicialmente Paolo Gabriele para este lugar estratégico junto do papa? De que cardeais «Paoletto», como chamam ao mordomo, era secretamente próximo? Qual é o papel exato, neste caso, de Georg Gänswein, o assistente pessoal do papa, apresentado como a outra «vítima» do mordomo, quando é, necessariamente, também culpado? Porque é que Gänswein permitiu uma tão grande margem de manobra a Paolo Gabriele no seu próprio gabinete, de onde foram roubados os documentos, e qual era a natureza exata da sua relação? Será que o próprio Paolo selecionou os documentos para fotocopiar, ou tê-los-á fotocopiado inicialmente a pedido de Georg, antes de os duplicar, novamente, sem o seu conhecimento? Que papel desempenhou o antigo secretário particular de Joseph Ratzinger, Josef Clemens, em relação ao qual era consabido que nutria um ressentimento tenaz para como Gänswein e que estava em contacto com Paolo Gabriele? Finalmente, porque é que o Vaticano encobriu a maior parte dos protagonistas desta conspiração de alto nível e acusou apenas o mordomo, que aparece assim como um «fusível» ideal?
O que é certo: o VatiLeaks vai contribuir para a queda do papa Bento XVI e fazer aparecer, à luz do dia, um grau de violência inaudito no coração do próprio Vaticano. Sobretudo porque não tardará a seguir-se-lhe um segundo caso, idealmente batizado como VatiLeaks II.
Vários altos dignitários da Igreja desempenharam um papel neste primeiro episódio do VatiLeaks: o cardeal americano James Harvey, que recrutou o mordomo e parecia próximo dele; o cardeal italiano Mauro Piacenza, que também brincou a Pigmalião com Paolo Gabriele; o arcebispo Carlo Maria Viganò, que era o secretário-geral do governatorado da cidade do Vaticano; o arcebispo Paolo Romeo, o futuro núncio Ettore Balestrero ou inclusive o antigo secretário particular do cardeal Ratzinger, Josef Clemens. Todos esses prelados foram suspeitos, sobretudo na imprensa e nos livros informados por Georg Gänswein e pelo séquito de Bertone, de ter participado, nesta ou naquela qualidade, no caso e, apesar de o seu papel não ter sido determinado, o simples facto de terem sido transferidos, marginalizados ou afastados por Bento XVI ou Francisco poderia levar a pensar que existe uma ligação com este caso.
Quanto ao mordomo, embora não tenha nomeado eventuais mandantes durante o seu célere processo, repetiu ter agido por dever. Ouçamo-lo: «Aquilo que sinto com mais força em mim é a convicção de ter agido por amor exclusivo, diria mesmo visceral, à igreja de Cristo e ao [papa]». «Não me considero um ladrão», insistiu Gabriel, que pensava que o Vaticano era o «reino da hipocrisia», que havia uma «omertà» quanto à realidade do que se lá passava. Agiu, por conseguinte, para fazer com que a verdade aparecesse à luz do dia e para proteger «o santo padre que não estava corretamente informado». Numa entrevista realizada pelo canal de televisão La Sette, Paolo Gabriele acrescentou: «Vendo o mal e a corrupção em todo o lado na Igreja, eu tinha chegado… a um ponto de não-retorno, os meus travões inibidores tinham cedido. Estava convencido de que um choque, mesmo mediático, podia ser salutar para repor a Igreja nos carris». Paolo Gabriele, que evoca nas entrelinhas a hipocrisia e a corrupção gay, nunca quis endossar a responsabilidade plena do delito e recusou-se sempre a expressar remorsos.
É provável, portanto, que Paolo Gabriele tenha agido para mandantes, apesar de ter sido o único a ser condenado por furto agravado e apanhado dezoito meses de prisão. Finalmente, Bento XVI, que considerava o mordomo como «seu próprio filho», indultou Gabriele. O papa, que se encontrou com ele antes de lhe perdoar, deixou entender ele próprio que ele poderia ter sido manipulado: «Não quero analisar a sua personalidade. É uma mistura curiosa, aquilo de que o convenceram ou de que ele próprio se convenceu. Compreendeu que não devia ter feito aquilo», disse Bento XVI em Últimas Conversas.
– Os atores de VatiLeaks I e II são, na sua maioria, homossexuais – confirma-me um arcebispo da cúria romana. Este ponto explica os dois casos, mas foi sistematicamente dissimulado pelo Vaticano e minorado pela imprensa. Não se trata de um lóbi, como puderam dizer. Trata-se simplesmente de relações gays e das vinganças interpessoais que delas resultaram. Francisco, que conhece perfeitamente o caso, castigou os culpados.
QUANTO AO SEGUNDO CASO VATILEAKS, COMEÇA EM MADRID. Se rebenta sob Francisco, é elaborado sob Bento XVI. O vilão da história chama-se, desta vez, Lucio Ángel Vallejo Balda e tem um perfil totalmente diferente do de Paolo Gabriele.
Quando de uma investigação profundada que realizo em Espanha, o percurso de Vallejo Balda surge tão límpido quanto as suas ações serão opacas. O jornalista José Manuel Vidal, também ele ex-padre, descreve-me a personagem, durante diversas conversas em Madrid:
– A história de Vallejo Balda é a de um insignificante pároco de província que se tornou um convencido. É belo, atraente, sobe rapidamente os degraus do episcopado espanhol. É próximo do Opus Dei: logo, é apoiado pelos meios ultraconservadores. Aqui, em Madrid, torna-se próximo do cardeal Rouco Varela, um homófobo que gosta de estar rodeado por esse tipo de rapazes, simultaneamente encerrados a cadeado e extravagantes, que evolucionam nos meios católicos gay-friendly espanhóis.
Quando o papa Bento XVI e o cardeal Bertone pedem a Rouco que lhes recomende um padre de confiança para se ocupar de questões de dinheiro, o cardeal espanhol envia-lhes Balda. As competências financeiras e a moral do jovem padre são pelo menos discutíveis, mas, para Rouco, é uma oportunidade inesperada de colocar um peão seu no círculo próximo do papa. Só que Balda vai revelar-se uma figura perturbadora, como o herói do filme Teorema, de Pasolini, ou a personagem crística de O Idiota, de Dostoievski: vai fazer virar as cabeças e, literalmente, implodir o Vaticano.
Ordenado padre aos vinte e seis anos, Lucio Ángel Vallejo Balda, um «small town boy» que se tornou madrileno, era «irresistível», confirmam aqueles que o conheceram na época. Hoje em dia, aos cinquenta e cinco anos, e tendo voltado a ser rural, ainda é um belo homem.
– Era um provinciano acabado de chegar da sua província. Era um anjo, como o seu nome próprio. Um encanto simultaneamente rural e arrivista. Causou imediatamente uma forte impressão ao cardeal Rouco Varela, ainda mais por ser próximo do Opus Dei – confia-me outro padre, interrogado em Madrid.
A sua promoção, querida pelo seu inventor Rouco, e a sua espetacular ascensão romana, apoiada nomeadamente pelo cardeal espanhol Antonio Cañizares, suscitam, todavia, reservas em Espanha, no seio da Conferência Episcopal. Hoje em dia que as línguas se soltam, fico a saber que certos bispos e cardeais espanhóis criticaram publicamente a nomeação de Balda para Roma, por o considerarem «um pequeno madraço» que levava uma «vida de dissipação» de «mau tipo».
– Os responsáveis da Conferência Episcopal Espanhola consideraram essa escolha ilegítima e perigosa para o papa. Houve inclusive uma pequena fronda contra Rouco, aqui em Madrid – conta-me um padre próximo da Conferência Episcopal Espanhola.
Seja como for, Balda, vindo de uma família pobre, dá por si em Roma, com o diabo no corpo e, aí, este anjo exilado começa a levar a dolce vita: os hotéis de luxo, os grandes restaurantes, os serões entre rapazes e uma vida XXL de VIP. Provoca alguma agitação para lá do Tibre.
– Em Roma, o jovem passou-se dos carretos – resume-me, mais severamente, um padre romano que o conheceu bem.
Sem uma inteligência por aí além, mas com essa ousadia que tudo pode, Vallejo Balda torna-se, contra todas as expectativas, o número dois da APSA, a administração da cúria que gere o património e o dinheiro do Vaticano. Encarregado também do controlo do banco da santa sé, agora o jovem espanhol sabe tudo. Com a «fronte cheia de eminências», tem esperteza e dinheiro. Bertone deposita nele uma confiança tão mais cega quanto a Itália católica está prestes a tornar-se, graças a ele, um albergue espanhol!
Quando rebenta o Vikileaks II, o anjo hispânico de ambições franjadas e vida tórrida é o primeiro suspeito. Alguns documentos financeiros ultrassensíveis sobre o banco do Vaticano são publicados nos livros de dois jornalistas italianos, Gianluigi Nuzzi e Emiliano Fittipaldi. O mundo descobre, estupefacto, as inúmeras contas-correntes ilegais, as transferências de capitais ilícitos e a opacidade do banco do Vaticano, e com os necessários elementos de prova. O cardeal Tarciso Bertone também é denunciado, como vimos, por ter mandado refazer o seu apartamento de luxo, no Vaticano, com o dinheiro da fundação do hospital pediátrico Bambino Gesù.
Também no centro do caso, uma mulher – é tão raro no Vaticano: Francesca Immacolata Chaouqui, uma ítalo-egípcia de trinta e um anos. Leiga, sedutora e comunicativa, agrada aos conservadores da cúria devido à sua proximidade do Opus Dei; ela desnorteia o ramerrão vaticano com os seus métodos de gestão adotados na Ernst & Young; sobretudo, enlouquece os raros heterossexuais da cúria com o seu peito avantajado e a sua cabeleira de girly girl – até ao momento em que, em breve, será denunciada e apodada de «garganta funda». Misteriosamente, a consultora está bem inserida no Vaticano, ao ponto de ser nomeada perita da comissão de reforma das finanças e economia da santa sé. Esta mulher fatal mantém uma relação secreta com o padre fatal Vallejo Balda? É a tese implicitamente defendida pelo Vaticano.
– O Vaticano inventou a história da ligação entre Vallejo Balda e Francesca Immacolata Chaouqui. Este storytelling visa dar um sentido a um caso que o não tem, a não ser que pensemos que Balda tinha outras relações que era preciso esconder – explica-me um padre da cúria.
Um confessor de São Pedro confirma-me:
– Quando foi detido, Vallejo Balda foi colocado em residência fixa na nossa casa, aqui, entre o palácio de justiça e a gendarmaria, na praça de Santa Marta. Pôde obter um telefone, um computador e almoçava todos os dias connosco. Sei de ciência certa que nunca foi amante de Chaouqui.
Segundo toda a verosimilhança, o VatiLeaks II tinha como ambição destabilizar Francisco, tal como o VatiLeaks I visava destronar Bertone e Bento XVI. A operação pode ter sido maquinada por cardeais ratzingerianos da cúria, opostos à linha política do novo papa, e posta em execução por Balda.
Um deles, rígido e que leva uma vida dupla, é central neste caso: presidia a um dos «ministérios» do Vaticano. O padre dom Julius, que conviveu com ele no interior do Vaticano, fala dele como uma «old-fashion old-school gay lady» que viveria apenas para denegrir. Quanto ao vaticanista Robert Carl Mickens, diz-me dele: «É uma nasty queen» (uma doida venenosa).
Bento XVI estava, naturalmente, a par da sexualidade contranatura desse cardeal e das suas extravagâncias fora das normas. No entanto, gostava bastante dele, segundo várias testemunhas, porque julgou durante muito tempo que a sua homossexualidade não era praticante, mas casta ou «questioning». Em contrapartida, Francisco, que não aprecia as nuances de «gayness», mas estava bem informado sobre o «caso», afastou-o da cúria. Desleal, homófobo e ultragay, esse cardeal é, de qualquer modo, o traço de união entre os dois VatiLeaks. Sem a chave homossexual, estes casos continuam opacos; com esta chave de leitura, começam a iluminar-se.
Quando do processo, cinco pessoas foram acusadas pelo Vaticano de associação de malfeitores: Vallejo Balda, o seu secretário particular, a consultora Francesca Immacolata Chaouqui e os dois jornalistas que divulgaram os documentos. Balda será condenado a dezoito meses de cadeia; depois de ter cumprido metade da pena, será posto em liberdade condicional e devolvido à sua diocese de origem, no noroeste de Espanha, onde se encontra hoje em dia. Os cardeais que podem ter sido os mandantes do caso ou os cúmplices de Balda, não foram incomodados pelos tribunais do Vaticano.
Os dois casos VatiLeaks são as temporadas I e II de uma mesma série televisiva de que a Igreja católica tem o segredo. Atam-se em parte em redor da questão homossexual ao ponto de um vaticanista inglês bem informado falar deles ironicamente como «o caso do butler e do hustler», sem que se saiba muito bem, na confusão das responsabilidades cruzadas desses dois casos imbricados, quem é visado por detrás desses qualificativos pouco amáveis.
Resta um mistério que não esclareci totalmente. Entre os motivos que podem explicar que um homem aja contra o seu campo, qual é aquele que se sobrepôs a tudo dentro de Paolo Gabriele e Lucio Ángel Vallejo Bada, ao ponto de os incitar a falar? A acreditar no código MICE, expressão célebre usada pelos serviços secretos de todo o mundo, há essencialmente quatro razões que podem levar alguém a virar-se contra o seu próprio campo: Money (dinheiro); Ideology (as ideias); Corruption (corrupção) e comprometimento (e nomeadamente a chantagem sexual); e, finalmente, Ego. Tendo em vista a amplitude da traição, e o grau da felonia, podemos pensar que os diferentes atores destes dois psicodramas recorrem, ao mesmo tempo e simultaneamente, às quatro facetas do código MICE.
POISADO SOBRE A SECRETÁRIA DO CARDEAL JOZEF TOMKO: o livro de Francesca Immacolata Chaouqui. O cardeal eslovaco agarra no livro que, visivelmente, está a ler e mostra-no-lo.
O ancião, jovial e simpático, acolhe-nos, a mim e Daniele, no seu apartamento privado. Falamos do seu percurso de «papa vermelho», como chamam ao cardeal que tem a seu cargo a evangelização dos povos; evocamos as suas leituras, para além de Chaouqui: Jean Daniélou, Jacques Maritain e Verlaine dos quais, este cardeal perfeitamente francófono, me fala com paixão. Sobre a estante do salão onde nos recebe, vejo uma bela fotografia do papa Bento XVI, envolvido no seu casaco comprido vermelho, segurando nas suas as mãos de Tomko, com afeto.
Esta proximidade com Joseph Ratzinger valeu a Tomko estar entre os três cardeais encarregados de investigar a cúria romana depois do VatiLeaks. Com os seus colegas cardeais, o espanhol Julián Herranz e o italiano Salvatore De Giorgi, foi encarregado pelo papa de uma investigação interna muito secreta. O resultado, um relatório de controlo apertado, dois tomos de 300 páginas, é um documento explosivo sobre as derivas da cúria e os escândalos financeiros e homossexuais do Vaticano. Alguns comentadores e jornalistas pensaram inclusive que esse relatório estivera na origem da demissão do papa.
– Com Herranz e De Giorgi, ouvimos toda a gente. Tentámos compreender. Foi fraterno. Não foi de modo algum um processo, como alguns podem ter dito subsequentemente – precisa Jozef Tomko.
E o velho cardeal acrescenta, a propósito do relatório, numa frase sibilina:
– Não compreendem a cúria. Ninguém compreende a cúria.
Os três cardeais, com oitenta e sete, oitenta e oito e noventa e quatro anos, respetivamente, são conservadores. Fizeram o essencial da sua carreira em Roma e conhecem perfeitamente o Vaticano. De Giorgi é o único italiano que foi bispo e arcebispo em diversas cidades do país – é o mais rígido dos três. Quanto a Tomko, foi um missionário mais friendly, que viajou por todo o mundo. O terceiro ladrão, Herranz, é membro do Opus Dei. Foi ele que foi encarregado de coordenar a missão e a dirigir.
Quando o vou visitar, no seu apartamento, perto da praça de São Pedro, Herranz mostra-me uma fotografia antiga onde o jovem padre espanhol que ele foi posa ao lado do fundador da Ordem, Josemaría Escrivá de Balaguer, de braço dado.
Na fotografia, aos vinte e sete anos, o jovem Herranz é espantosamente sedutor; o homem, agora com oitenta e oito anos, contempla esta imagem que lhe fala de um tempo distante, irreversível, como se o jovem soldado do Opus Dei se tivesse tornado um estranho para ele. Faz uma pausa. Como é triste! Esta fotografia ficou eternamente jovem; e ele envelheceu terrivelmente. Herranz fica em silêncio durante alguns segundos e talvez se ponha a sonhar com um outro mundo, invertido, onde esta fotografia teria envelhecido e ele se teria mantido eternamente jovem?
Segundo os testemunhos de padres ou assistentes que trabalharam com Tomko, Herranz e De Giorgi, os três cardeais estão literalmente «obcecados» com a questão homossexual. De Giorgi é conhecido por ter observado as relações de poder no seio da cúria através do prisma das redes gays e é acusado, tal como Herranz, de confundir amiúde pedofilia e homossexualidade.
– De Giorgi é um ortodoxo e também uma coquete que gosta que falem dele. O seu único objetivo na vida parecia ser que o Osservatore Romano escrevesse positivamente a seu respeito! Passava a vida a pedir-nos que o fizéssemos – diz-me um colaborador do jornal oficial do Vaticano. (Apesar de diversos pedidos, De Giorgi foi o único dos três cardeais que se recusou a receber-me, uma recusa que expressou em termos complicados, cheios de animosidade e censuras, e com uma homofobia tal que acabou por o tornar suspeito a meus olhos.)
Herranz, Tomko e De Giorgi precisaram de oito meses para levar a cabo a sua investigação. Uma centena de padres que trabalhavam no Vaticano são interrogados. Só cinco pessoas tiveram acesso oficialmente a esse relatório (de facto, uma dúzia); o relatório é tão sensível que um exemplar estaria encerrado até no cofre do papa Francisco.
O que os três relatores descobrem é a amplitude da corrupção no Vaticano. Duas pessoas que leram esse relatório, entre esses cardeais, os seus assistentes, o círculo próximo de Bento XVI e outros cardeais ou prelados da cúria, descreveram-mo em grandes linhas, como determinadas passagens de uma forma mais pormenorizada. O próprio papa Bento XVI, em Últimas Conversas, revelou os elementos do relatório que se relacionaria, deixa entender, com uma «camarilha homossexual» e um «lóbi gay».
– Sabemos que os escândalos homossexuais constituem um dos elementos centrais do relatório dos três cardeais – diz-me, a coberto do anonimato, um padre da cúria que trabalhou para um deles.
A conclusão mais chocante do relatório, verdadeiro código que permite compreender o Vaticano, é o vínculo entre os casos financeiros e a homossexualidade – com a vida gay oculta a andar a par das malversações financeiras. Esta articulação entre o sexo e o dinheiro é efetivamente uma das chaves de compreensão de No Armário do Vaticano.
O relatório revela também que um grupo de cardeais gays, ao mais alto nível da cúria, quis fazer cair o cardeal Bertone. O relatório volta também aos anéis de luxúria do Vaticano e tenta descrever a rede que tornou possível a fuga e o escândalo VatiLeaks I. Vários nomes figuram no relatório, entre os quais os dos cardeais James Harvey, Mauro Piacenza e Angelo Sodano. Altos prelados teriam igualmente sido alvo de chantagem. Embora os factos me não sejam precisados, referem-me que os nomes de Georg Gänswein e do irmão do papa, Georg Ratzinger, figuram realmente no relatório.
Por mais sério que pretenda ser, esse relatório é, contudo, segundo uma pessoa que teve acesso a ele, uma «mascarada» e mesmo uma «hipocrisia». Os três cardeais homófobos aspiram a decifrar a realidade de Sodoma, mas passam ao lado do sistema de conjunto, por não compreenderem a sua dimensão e códigos. Por vezes, identificam os membros da conjura e ajustam as contas pessoalmente. Denunciam as ovelhas desgarradas, como sempre, e constroem alguns «registos criminais sexuais» a partir de simples rumores, de boatos, de diz-que-diz, sem terem levado a cabo o procedimento contraditório, que, no entanto, é elementar antes de qualquer sentença. Estes prelados esquizofrénicos, que em nada estão acima das suspeitas que denunciam, são estranhamente juízes e partes.
A principal conclusão do relatório é, portanto, a revelação da existência de um importante «lóbi gay» no Vaticano (a expressão aparece várias vezes no relatório, segundo duas fontes). Mas os três cardeais, afinal bastante incompetentes, têm dificuldade em decifrar as realidades que apenas analisam pela rama. Sobrestimam aqui, ou subestimam ali o único verdadeiro problema do Vaticano: a sua matriz intrinsecamente homossexual. No final, a opacidade do relatório é pura e simplesmente maior, por não terem compreendido, ou querido descrever, o que Sodoma é verdadeiramente.
De qualquer modo, Bento XVI e Francisco retomam publicamente a expressão mais forte do relatório, o seu pretenso «lóbi gay», confirmando de facto que ela figura em posição central no documento. Quando da transferência de poder entre Bento XVI e Francisco, ver-se-ão, nas fotografias de Castel Gandolfo, uma caixa e dossiers bem selados pousados sobre uma mesa baixa. Segundo uma fonte, tratar-se-ia do célebre relatório.
Podemos compreender a reação apavorada de Bento XVI à leitura deste documento secreto. Perante tanta luxúria, tantas vidas duplas, tanta hipocrisia, tantos homossexuais no armário, por todo o lado, no próprio seio do Vaticano, todas as crenças deste papa sensível em relação à «sua» Igreja se desmoronam? Houve quem o dissesse. Contam-me também que chorou ao ler o relatório.
Para Bento XVI, é demasiado. O calvário nunca terá fim? Já não tem vontade de lutar. Ao ler o relatório dos três cardeais, a sua decisão é tomada – vai deixar o barco de São Pedro.
Mas a via sacra de Bento XVI, figura trágica, ainda não chegou ao seu termo. Ainda lhe faltam algumas estações antes da sua «renúncia».
MuITO ANTES DA ENTREGA DO RELATÓRIO SECRETO, os casos de pedofilia enlamearam o pontificado nascente de Bento XVI. A partir de 2010, tornam-se endémicos. Já não se trata de casos isolados ou de derivas, como o cardeal Sodano repetiu durante tanto tempo para proteger a Igreja: trata-se de um sistema. Doravante sob os projetores.
«Booze, Boys or Broads?»: nas redações de língua inglesa, a pergunta irrompeu a cada novo caso, verdadeira enxurrada incessante de revelações de abusos, de todos os géneros, sob o pontificado ratzingeriano; álcool, pedofilia ou gajas? (De facto, só raramente raparigas!) Dezenas de milhares de padres (5948 nos Estados Unidos, 1880 na Austrália, 1670 na Alemanha, 800 nos Países Baixos, 500 na Bélgica, etc.) Dezenas de cardeais e centenas de bispos estão implicados. Há episcopados destruídos, dioceses em ruínas. À data da demissão de Bento XVI, a Igreja católica será um campo de ruínas. Entretanto, o sistema Ratzinger ter-se-á desmoronado literalmente.
O objeto deste livro não é voltar, em pormenor, a esses milhares de casos de pedofilia. O que é seu objeto, em contrapartida, é compreender porque é que Bento XVI, tão prolixo e tão obcecado na guerra aos atos homossexuais legítimos, pareceu impotente perante os abusos sexuais de menores. É certo que denunciou muito cedo as «manchas na Igreja» e, dirigindo-se ao Senhor, declarou: «As roupas e o rosto tão sujo da Tua Igreja horrorizam-nos!» Também publicou textos de uma grande firmeza.
Mas entre negação e sideração, amadorismo e pânico, e sempre pouca ou nenhuma empatia pelas vítimas, o balanço do pontificado neste tema continua a ser desastroso.
– Os abusos sexuais da Igreja não são uma página sombria do pontificado de Bento XVI: trata-se da maior tragédia, da maior catástrofe da história do catolicismo desde a Reforma – diz-me um padre francês.
Duas teses se confrontam quanto a este tema. A primeira (a de, por exemplo, Federico Lombardi, antigo porta-voz do papa, e da santa sé em geral): Bento XVI agiu com destreza e foi o primeiro papa a levar a sério a questão dos abusos sexuais dos padres. Durante cinco conversas, Lombardi lembra-me que o papa «laicizou» – isto é, reduziu ao estado laical – «mais de 800 padres» considerados culpados de abusos sexuais. É impossível verificar esse número e, segundo outras testemunhas, estaria grosseiramente exagerado e o número não iria além de algumas dezenas (no prefácio de Últimas Conversas, um livro oficial de Bento XVI, em 2016, é referido o número de 400, ou seja, metade). Uma vez que foi estabelecido um sistema de mentira generalizada do Vaticano sobre este tipo de casos, é, no mínimo, possível duvidar da realidade desses números.
A segunda tese (que é aquela, na maior parte do tempo, da justiça dos países envolvidos e da imprensa): a Igreja de Bento XVI é responsável, e talvez culpada, no conjunto desses processos. Sabe-se, com efeito, que todos os casos de abusos sexuais, como fora querido por Joseph Ratzinger, desde a década de 1980, subiam à Congregação para a Doutrina da Fé, onde eram tratados. Uma vez que Joseph Ratzinger foi prefeito desse «ministério» e depois papa, teve, por conseguinte, esse dossier a seu cargo entre 1981 e 2013, ou seja, durante mais de trinta anos. Os historiadores mostrarão, sem dúvida alguma, uma grande severidade quanto às ambiguidades do papa e os seus atos; alguns pensam, aliás, que, por causa disso, nunca poderá ser canonizado.
A isto temos de acrescentar a falência da justiça vaticana. Na santa sé, verdadeira teocracia que não é um Estado de direito, não há, de facto, separação de poderes. Segundo todas as testemunhas interrogadas, incluindo cardeais de primeira plana, a justiça vaticana é muito deficiente. O direito canónico é continuamente deformado, as constituições apostólicas, incompletas, os magistrados são inexperientes e, na maior parte dos casos, incompetentes, os tribunais não têm procedimento nem seriedade. Falei com o cardeal Dominique Mamberti, prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, e com o cardeal Francesco Coccopalmerio, presidente do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, e pareceu-me que esses prelados não poderiam, em total independência, julgar casos desse tipo.
– A justiça não existe no Vaticano. Os processos não são fiáveis, as investigações não são credíveis, há uma grave falta de meios, as pessoas são incompetentes. Nem sequer há uma prisão! É uma paródia de justiça – confirma-me um arcebispo próximo da Congregação para a Doutrina da Fé.
Giovanni Maria Vian, o diretor do Osservatore Romano, próximo do secretário de Estado Tarcisio Bertone, e um ator central do sistema, confessa-me, também, durante uma das nossas cinco conversas (sempre gravadas com o seu acordo), que se recusa a publicar as atas das audiências e dos processos, no jornal oficial do Vaticano, porque isso correria o risco de desacreditar toda a instituição…
Esta paródia de justiça vaticana é denunciada por inúmeros especialistas de direito, entre os quais um antigo embaixador colocado junto da santa sé, ele próprio jurista experiente:
– Esses casos de abusos sexuais revestem-se de uma grande complexidade jurídica e técnica: exigem investigações de vários meses, um grande número de audiências, como mostra atualmente o processo contra o cardeal George Pell, na Austrália, que mobilizou dezenas de magistrados e de advogados e milhares de horas de processo. Imaginar que o Vaticano possa julgar um único desses processos é um disparate. Não está preparado para tal: não tem os textos, nem os meios processuais, nem os juristas, nem os magistrados, nem os meios de investigação, nem o direito para se ocupar deles. O Vaticano não tem outra solução para além de reconhecer a sua incompetência fundamental e deixar agir as justiças nacionais.
Este julgamento severo poderia ser matizado pelo trabalho sério conduzido por alguns cardeais e bispos, por exemplo, o realizado por Charles Scicluna, arcebispo de Malta, nos casos de Marcial Maciel, no México, e de Fernando Karadima, no Chile. No entanto, até mesmo a comissão antipedofilia do Vaticano, criada pelo papa Francisco, suscitou críticas: apesar da boa vontade do velho cardeal Sean O’Malley, arcebispo de Boston, que preside a ela, três dos seus membros demitiram-se para protestar contra a lentidão dos processos e o jogo duplo dos dicastérios envolvidos. (O’Malley, de setenta e quatro anos, pertence a outra época e também já não parece capaz de gerir este tipo de processos: na sua «Testimonianza», Mons. Viganò contesta a «sua transparência e credibilidade» por razões evidentes; e quando de uma estada nos Estados Unidos, no verão de 2018, quando peço uma entrevista ao cardeal, a sua secretária, constrangida, confessa-me que ele «não lê os emails, não sabe utilizar a internet e não tem portátil»… Propõe-me que lhe envie um fax.)
Por fim, é difícil não recordar aqui o caso que envolve o próprio irmão de Bento XVI. Na Alemanha, Georg Ratzinger encontrou-se no centro de um imenso escândalo de sevícias e abusos sexuais sobre menores por ter dirigido o célebre coro dos pequenos cantores da catedral de Ratisbona entre 1964 e 1994, ou seja, durante trinta anos. Ora, a partir de 2010, a justiça alemã e um relatório interno da diocese revelaram que mais de 547 crianças da escola associada a esse prestigioso coro foram vítimas de violência e, no caso de 67 delas, de abusos sexuais e violações. Quarenta e nove padres e leigos são hoje em dia suspeitos dessas violências, nove deles de agressões sexuais. Apesar das suas negações, é difícil acreditar que Georg Ratzinger não estivesse a par da situação. Provavelmente, o papa também estava informado: aliás, como se soube depois, este caso foi tomado tão a sério pela santa sé que foi acompanhado ao mais alto nível da Congregação para a Doutrina da Fé. Vários cardeais e o círculo imediato do sumo pontífice teriam protegido até o irmão mais velho do papa sem consideração pela verdade, a justiça e a sorte das vítimas. (Três cardeais são citados nos inúmeros processos judiciais em curso na Alemanha.)
Hoje em dia, elevam-se vozes, inclusive entre padres e teólogos, que consideram que a falha da Igreja católica no dossier dos abusos sexuais prejudica, antes de mais, a governação e as ideias de Joseph Ratzinger. Um deles diz-me:
– Eis um homem que dedicou a sua vida a denunciar a homossexualidade, fazendo dela um dos piores males da humanidade. Ao mesmo tempo, falou muito pouco na pedofilia e só muito tardiamente tomou consciência da dimensão do problema. Nunca estabeleceu verdadeiramente a diferença, no plano teológico, entre relações sexuais entre adultos, livremente consentidas, e os abusos sexuais de menores com menos de quinze anos.
Outro teólogo crítico em relação a Bento XVI, e que interroguei na América Latina, diz-me:
– O problema de Ratzinger é a escala de valores, que está totalmente pervertida desde o início. Sancionou duramente os teólogos da libertação e castigou padres que distribuíam preservativos em África, mas encontrou desculpas para os padres pedófilos. Achou que o multirreincidente e pedocriminoso mexicano Marcial Maciel era demasiado velho para ser reduzido ao estado laical!
Seja como for, para o papa Bento XVI, a sucessão ininterrupta de revelações sobre os abusos sexuais da Igreja é bem mais do que uma «estação no inferno». Ela atinge, no coração, o sistema ratzingeriano e a sua teologia. Independentemente dos desmentidos públicos e das posições de princípio, o papa sabe muito bem, dentro de si, atrever-me-ia a dizer por experiência própria, que o celibato, a abstinência e o não reconhecimento da homossexualidade dos padres estão no cerne de todo esse caso. O seu pensamento, elaborado minuciosamente no Vaticano durante quatro décadas, voa em estilhaços. Esta falência intelectual não pode deixar de ter contribuído para a sua demissão.
Um bispo de língua alemã resume-me a situação:
– Que restará do pensamento de Joseph Ratzinger, quando fizermos realmente o balanço? Diria que a sua moral sexual e as suas posições quanto ao celibato dos padres, a abstinência, a homossexualidade e o casamento gay. São essas a sua única verdadeira novidade e a sua originalidade. Ora, os abusos sexuais vieram aniquilar definitivamente tudo isso. Os seus interditos, as suas regras, os seus fantasmas, nada disso se aguenta. Hoje em dia, não resta nada da sua moral sexual. E apesar de ainda ninguém ousar confessá-lo publicamente na Igreja, toda a gente sabe que não se poderá pôr termo aos abusos sexuais dos padres enquanto se não abolir o celibato, enquanto a homossexualidade não for reconhecida na Igreja para permitir que os padres possam denunciar os abusos, enquanto as mulheres não forem ordenadas. Todas as outras medidas quanto aos abusos sexuais são vãs. Grosso modo, há que inverter completamente a perspetiva ratzingeriana. Toda a gente sabe. E todos os que dizem o contrário são, doravante, cúmplices.
O julgamento é severo, mas hoje em dia são numerosos aqueles que, na Igreja, comungam, quando não destas palavras, pelo menos destas ideias.
EM MARÇO DE 2012, Bento XVI desloca-se ao México e a Cuba. As suas estações no inferno prosseguem: após um inverno marcado por novas revelações sobre a pedofilia, eis uma primavera de escândalos. Nova estação na sua longa via sacra, Joseph Ratzinger vai descobrir em Havana um mundo demoníaco de que não suspeitava, nem sequer em pesadelo. Será no regresso da sua viagem a Cuba que tomará a decisão de se demitir. E eis porquê.