Epílogo

«NÃO GOSTO DE MULHERES. O AMOR TEM DE SER REINVENTADO». Estas frases porta-estandarte, estas fórmulas célebres em forma de manifesto do jovem poeta de Une saison en enfer, banhadas de pulsões crísticas e homossexuais entremeadas, podem servir-nos de guia no epílogo. A reinvenção do amor é mesmo a revelação mais surpreendente deste livro – a mais bela e também a mais otimista –, e aquela pela qual desejaria concluir esta longa investigação.

No coração da Igreja, num universo altamente constrangido, os padres vivem as suas paixões amorosas e, ao fazê-lo, estão a renovar o género e a imaginar novas famílias recompostas.

É um segredo ainda mais escondido do que a homossexualidade de uma grande parte do colégio cardinalício e do clero. Para além da mentira e da hipocrisia generalizadas, o Vaticano também é um local de experiências inesperadas: constroem-se lá novas formas de vidas de casal; são tentadas novas relações afetivas; são inventados novos modos de vida gays; tenta-se formar a família do futuro; prepara-se a reforma dos velhos homossexuais.

No termo desta investigação, desenham-se cinco perfis principais de padres, recortando o essencial das nossas personagens: a «virgem louca»; o «esposo infernal»; o modelo «da louca por afeto»; o «Don Juan falsificado»; e, finalmente, o modelo La Montgolfiera. Neste livro, aproximámo-nos destes arquétipos; adorámo-los ou detestámo-los.

O modelo «virgem louca», feito de ascetismo e de sublimação, é o que caracteriza Jacques Maritain, François Mauriac, Jean Guitton e também o de alguns papas recentes. Homófilos «contrariados», escolheram a religião para não cederem à carne; e a sotaina para escaparem às suas inclinações. «O amor de amizade» é a sua propensão natural. Podemos pensar que não passaram ao ato, mesmo que François Mauriac, como se sabe hoje em dia, tenha conhecido intimamente outros homens.

O modelo do «esposo infernal» é mais praticante: o padre «closeted» ou «questioning» está consciente da sua homossexualidade, mas tem medo de a viver, oscilando sempre entre o pecado e o arrependimento, numa grande confusão de sentimentos. Por vezes, as amizades particulares que estabelece desembocam em atos, algo que se traduz por crises de consciência profundas. Este modelo do indivíduo de «má vida» que nunca se «acalma» é o de inúmeros cardeais com que nos cruzámos neste livro. Nestes dois primeiros modelos, a homossexualidade pode ser uma prática, mas não é uma identidade. Os padres envolvidos não se assumem e não se reconhecem como gays; pelo contrário, têm mesmo tendência para se mostrar homófobos.

O modelo da «louca por afeto» é um dos mais frequentes: ao contrário dos precedentes, trata-se realmente de uma identidade. Tão característico, por exemplo, do escritor Julien Green, é partilhado por inúmeros cardeais e por inúmeros padres da cúria que conheci. Estes prelados privilegiam sobretudo, se podem, a monogamia, amiúde idealizada, com as gratificações que decorrem do facto de ser fiel ao outro. Constroem as suas relações com base no longo prazo e na vida dupla, não isentas de uma «perpétua oscilação entre os rapazes cuja beleza os condena às penas eternas, e Deus, cuja bondade os absolve». São híbridos, simultaneamente aciprestes e arquigays.

O modelo «Don Juan falsificado», é aquele que não pode ver umas calças e não umas saias: «homens de prazer», como se dizia outrora de algumas mulheres. Alguns cardeais, alguns bispos de que falámos são exemplos perfeitos desta categoria: levam uma vida agitada e engatam sem complexos, com a sua famosa lista «mil e três» de cortesãos impenitentes, nas regras da arte. E, por vezes, fora das vias habituais. («Virgem louca», «esposo infernal», «louca por afeto»: peço emprestadas ao Poeta essas três primeiras fórmulas e, a quarta, «Don Juan falsificado», a um poema do seu amante. Algumas estão inspiradas nos evangelhos.)

Finalmente, o modelo «la Montgolfiera» é o da perversão ou das redes de prostituição: é, por excelência, o do cardeal indecente que tem essa alcunha, mas também dos cardeais Alfonso López Trujillo, Platinette e de vários outros cardeais e bispos da cúria. (Deixo de lado aqui as percentagens muito raras de cardeais verdadeiramente assexuados e castos; os heterossexuais que têm relações segundo um dos modelos precedentes, mas com uma mulher – também numerosos, mas que não são o tema deste livro –; e finalmente a categoria dos predadores sexuais, como o padre Marcial Maciel, que ficam de fora de qualquer classificação objetiva.)

Como podemos ver, os perfis homossexuais variam imenso no seio da Igreja católica, apesar de a grande maioria dos prelados do Vaticano e das personagens deste livro se situar num ou noutro destes grupos. Noto duas constantes: por um lado, a maioria destes padres não tem o «amor vulgar»; a sua vida sexual pode ser refreada ou exagerada, fechada no armário ou dissoluta, e por vezes tudo isso em simultâneo, mas raramente é banal. Por outro lado, continua a haver uma certa fluidez: as categorias não são tão herméticas como escrevo; elas representam todo um espetro, um conjunto homogéneo de elementos, e muitos padres, gender-fluid, evoluem de um grupo para o outro ao longo da vida, entre dois mundos, como no limbo. Todavia, várias categorias estão ausentes ou são raras no Vaticano: os verdadeiros transexuais quase não existem e os bissexuais parecem sub-representados. No mundo LGBT do Vaticano, não há B nem T, apenas algumas L e uma imensa multidão de G. (Não referi, neste livro, o lesbianismo, por não poder levar a cabo a investigação num mundo muito discreto, onde é necessário ser-se do sexo feminino para ter acesso, mas levanto a hipótese, a partir de vários testemunhos, de a vida religiosa feminina em Gomorra estar dominada pelo prisma do lesbianismo, tal como a vida do clero masculino está pela questão gay.)

Embora a homossexualidade seja a regra e a heterossexualidade a exceção no sacerdote católico, isso não significa que seja assumida como uma identidade coletiva. Apesar de ser a norma «por definição», aparece como uma «prática» muito individualizada e a tal ponto dissimulada e «closeted» que não se traduz nem em modo de vida, nem em cultura. Os homossexuais do Vaticano e do clero são inúmeros, mas não formam uma comunidade e, por conseguinte, ainda menos um lóbi. Não são «gays» na verdadeira aceção da palavra, se a entendermos como uma homossexualidade assumida, vivida coletivamente. Todavia, têm códigos e referências comuns. Os de Sodoma.

AO LONGO DA MINHA INVESTIGAÇÃO, descobri, por conseguinte, autênticas relações amorosas no seio do clero que, consoante as idades e as circunstâncias, podem assumir a forma de um amor paternal, filial ou fraternal – e esses amores de amizade reconfortaram-me. Histórias de solteirões? De celibatários empedernidos? Muitos vivem, de facto, a sua homossexualidade com obstinação, e praticam-na com assiduidade, segundo o belo modelo descrito por Paul Verlaine, o amante do Poeta: «O romance de viver de dois homens / melhor por não terem esposos modelares».

É um facto: as restrições da Igreja forçaram esses padres a imaginar subterfúgios magníficos para conhecerem belos amores, à guisa dos autores do teatro clássico que atingiam a perfeição literária sendo obrigados a respeitar, para as suas tragédias, a regra muito limitadora das três unidades – tempo, local e ação.

Viver o amor sob a coação: alguns conseguem-no à força de encenações inimagináveis. Estou a pensar num célebre cardeal, entre os mais graduados da santa sé, que vive com um homem. Quando de uma conversa com ele, no seu magnífico apartamento do Vaticano, e quando nos deixámos ficar algum tempo no terraço banhado pelo sol, chegou o companheiro do cardeal. A conversa durou demasiado ou o amigo chegou demasiado cedo? De qualquer modo, senti o embaraço do cardeal, que olhou para o relógio e pôs rapidamente termo ao nosso diálogo, quanto havia várias horas que se deliciava a ouvir-se falar e a tagarelar connosco. Quando nos acompanhou à porta, a Daniele e a mim, à entrada da sua penthouse, foi mesmo obrigado a apresentar-nos o seu companheiro com uma explicação muito rebuscada:

– É o marido da minha falecida irmã – balbuciou o velho cardeal que julgou, sem dúvida, que eu iria engolir a sua mentira.

No entanto, tinham-me alertado. No Vaticano, toda a gente conhece o segredo do santo homem. Os guardas suíços falaram-me do seu terno companheiro; os padres da secretaria de Estado ironizaram sobre a duração fora do comum, nele, de uma relação desse tipo. Deixei o «binómio» em paz, divertido com a falsa distância que os dois homens se esforçavam por exibir perante mim, e imaginando-os agora a iniciarem a sua refeiçãozinha sozinhos, a tirarem do frigorífico um prato preparado pela sua cozinheira, a verem televisão em pantufas e a acariciarem o seu cãozinho chamado talvez «Cão» – um casal burguês (quase) como outro qualquer.

Encontramos esse tipo de relações inovadoras com uma variante num outro cardeal emérito, que também vive com o seu assistente, o que apresenta, também neste caso, algumas vantagens. Os amantes podem passar longos minutos juntos, sem suscitar demasiadas desconfianças; também podem viajar e ir de férias como namorados, porque têm um alibi perfeito. Ninguém pode contestar uma tal proximidade, baseada nas relações de trabalho. Por vezes, os assistentes vivem na residência dos cardeais, o que é ainda mais prático. Também aí, ninguém se espanta. Os guardas suíços confirmaram-me que têm de fechar os olhos «independentemente de quais sejam as visitas» dos cardeais. Há muito que integraram a regra do «Don’t ask, don’t tell», que continua a ser o mantra número um do Vaticano.

Ir para a cama com o seu secretário privado: este modelo é omnipresente na história do Vaticano. É um grande clássico da santa sé: os amantes-secretários são tão numerosos, a tendência está ancorada tão profundamente, que poderíamos ir ao ponto de a transformarmos numa nova regra sociológica – a décima terceira de No Armário do Vaticano: Não procurem quem são os companheiros dos cardeais e dos bispos; perguntem aos seus secretários, aos seus assistentes e aos seus protegidos, e pelas reações destes conhecerão a verdade.

Nietzsche não dizia que «o casamento [deve ser] considerado uma longa conversa»? Ao acasalarem com um assistente, os prelados acabam por construir relações duradouras, urdidas tanto pelo trabalho como pelos sentimentos. Isso pode explicar a sua longevidade, porque também se trata de relações de força. Vários desses cardeais devem o seu êxito sexual à sua posição: souberam alimentar e incentivar a ambição dos seus favoritos.

Estes «arranjos» continuam a ser vulneráveis. Fazer do amante seu assistente é um pouco como, para um casal heterossexual, ter um bebé para salvar um casamento. Que se passa em caso de rutura, de ciúmes, de enganos? O custo da separação é decuplicado, em relação a um casal «normal». Deixar o seu assistente é correr o risco de situações constrangedoras: os rumores; a traição; por vezes a chantagem. Sem falar da «trans-filiação», para utilizar uma imagem religiosa: um assistente próximo de um cardeal pode começar a servir outro cardeal, uma transferência que se passa amiúde nos ciúmes e, por vezes, na violência. Inúmeros escândalos e casos vaticanos são explicados por essas ruturas amorosas entre uma eminência e o seu protegido.

Uma variante deste modelo foi imaginada por um cardeal que, outrora habitado aos rapazes tarifados, parece ter criado juízo. E encontrou a defesa: à menor saída, à menor deslocação, faz-se acompanhar pelo seu amante que apresenta como seu guarda-costas! (Uma anedota que me é confirmada por dois prelados, bem como pelo ex-padre Francesco Lepore.) Um cardeal com um guarda-costas! No Vaticano, todos sorriem desta extravagância, para não falar das invejas que essa relação suscita, porque o companheiro em questão é, dizem-me, «uma bomba».

MUITOS CARDEAIS E PADRES DO VATICANo inventaram a sua própria Amoris laetitia, uma forma de amor entre homens de um novo género. Já não é o «coming out», confissão sacrílega em terra papal, mas o «coming home» – que consiste em fazer vir o amante a casa. É sabido; mas não dito. Aí, estamos no centro da nova jogada amorosa dos gays de todo o mundo. Os padres teriam antecipado os novos modos de vida LGBT? Estariam a inventar aquilo a que os sociólogos chamam agora a fluidez afetiva ou «liquid love»?

Um cardeal francês, com quem estabeleci uma relação de amizade regular, viveu durante muito tempo com um padre anglicano; um arcebispo italiano, com um escocês; um cardeal africano mantém, também, uma relação à distância com um jesuíta do Boston College, e outro com o seu namorado de Long Beach, nos Estados Unidos.

Amor? Bromance? Boyfriend? Significant other? Hookup? Sugar daddy? Friends with benefits? Best Friend Forever? Tudo é possível e proibido, simultaneamente. Perdemo-nos nas palavras, mesmo em inglês; temos dificuldade em decifrar a natureza exata dessas relações que renegociam constantemente as cláusulas do contrato amoroso, mas são ou foram – isso é certo – «praticantes». Uma lógica já analisada pelo escritor francês Marcel Proust no que se refere aos amores homossexuais, e inspiro-me nela para a última regra, a décima quarta deste livro: Enganamo-nos amiúde quanto aos amores dos padres e o número de pessoas com que têm ligações, «porque interpretamos erradamente as amizades como ligações, o que é um erro por adição», mas também porque temos dificuldade em imaginar amizades como ligações, o que é um outro género de erro, desta vez por subtração.

UM OUTRO MODELO AMOROSO da hierarquia católica passa pelas «adoções». Conheço uma dezena de casos em que um cardeal, um arcebispo ou um padre «adotou» o seu namorado. É verdade, por exemplo, no caso de um cardeal francófono, que adotou um migrante por quem nutria um afeto especial, suscitando o espanto da polícia que descobriu, ao investigar o «indocumentado», que o eclesiástico pretendia efetivamente legalizar o seu companheiro!

Um cardeal hispânico adotou, pelo seu lado, o seu «amigo», que se tornou seu filho (e continuou a ser seu amante). Outro cardeal idoso que visito, e que vive com o seu jovem «irmão», que as freiras que partilham o seu apartamento identificaram realmente como sendo seu namorado – algo que elas traem ao falar-me dele como o seu «novo» irmão.

Um padre célebre também me contou como «adotou um jovem latino-americano, órfão, que vendia o seu corpo na rua». Inicialmente seu «cliente», a relação «tornou-se rapidamente de ordem paternal, um comum acordo, e agora já não é sexual», diz-me o padre. O jovem é selvagem e incompreensível e o seu protetor fala-me dele como de um filho, algo que efetivamente se tornou, aos olhos da lei.

– Esta relação humanizou-me – diz-me o padre.

O rapaz estava muito dessocializado, muito «insecure»: por conseguinte, o percurso desta relação esteve cheio de dificuldades, sendo que a toxicodependência não foi a menor. Também ele foi legalizado ao fim de infinitas arrelias administrativas, que o padre me descreve durante várias conversas no seu domicílio comum. Sustenta com dificuldade o seu jovem amigo, ensina-lhe a sua nova língua e dá-lhe uma oportunidade de obter uma formação que deveria permitir-lhe arranjar trabalho. Um sonho insensato esse de querer oferecer uma vida melhor a um desconhecido!

Felizmente, o antigo trabalhador sexual, que não tem mais nada para além da história da sua vida, está a mudar positivamente. Em vez de um coming out, o padre oferece ao seu protegido um «coming of age» – uma passagem para a maturidade. O padre não tem pressa: não exerce qualquer pressão sobre o seu amigo que, no entanto, fez muitas asneiras, indo ao ponto de ameaçar incendiar o seu apartamento comum. Sabe que nunca abandonará o seu filho cujo amor, tornado amizade, não é produto dos vínculos de sangue, mas sim de uma filiação eletiva.

Esta relação generosa, inventiva, baseia-se em sacrifícios e num amor verdadeiro que provocam necessariamente admiração.

– Até a minha irmã teve dificuldade, no início, em imaginar que se tratasse de uma verdadeira relação filial, mas as suas filhas não tiveram qualquer problema em acolher o seu novo primo – conta-me o padre.

Que me diz também que aprendeu muito e mudou muito em contacto com o seu amigo – e adivinho pelo seu olhar, pelos seus olhos tão belos quando me fala do seu companheiro, que esta relação deu um sentido à vida de um padre que já não o tinha.

ESTAS AMIZADES PÓS-GAYS escapam a qualquer classificação. Correspondem, de certa forma, ao que Michel Foucault preconizava no seu célebre texto «Da amizade como modo de vida». E o filósofo homossexual interrogava-se: «Como é possível os homens estarem juntos? Viverem juntos, partilharem o seu tempo, as suas refeições, o seu quarto, os seus lazeres, os seus desgostos, o seu saber, as suas confidências? Que é isso, estar entre homens, “a nu” fora das relações institucionais, de família, de profissão, de camaradagem forçada?» Por mais surpreendente que possa parecer, os padres e os eclesiásticos estão a inventar essas novas famílias, essas novas formas de amor pós-gays, esses novos modos de vida, tal como foram imaginados pelo filósofo homossexual que morreu de SIDA há mais de trinta anos.

Os padres que deixam em geral, e precocemente, os seus pais, têm de aprender a viver entre homens desde a adolescência: criam, assim, uma nova «família» para si. Sem parentela, sem filhos, essas novas estruturas de solidariedade recompostas são uma mistura inédita de amigos, de protegidos, de amantes, de colegas, de «ex»-lovers, a que se juntam eventualmente uma velha mãe ou uma irmã de passagem; aqui, amores e amizades misturam-se de uma forma que não é isenta de originalidade.

Um padre contou-me a sua própria história quando me encontrei com ele numa cidade à beira do oceano Atlântico. Os católicos italianos conhecem-no bem porque foi a personagem anónima de La Confessione (reeditado com o título Io, prete gay), o relato da vida de um homossexual no Vaticano, publicado em 2000 pelo jornalista Marco Politi.

Este padre, que hoje em dia tem setenta e quatro anos, quis retomar a palavra pela primeira vez desde La Confessione. A sua simplicidade, a sua fé, a sua generosidade, o seu amor à vida tocaram-me. Quando me conta as suas vidas amorosas ou me fala dos homens que amou – e não desejou apenas –, não sinto em momento algum que a sua fé seja menor. Pelo contrário, acho-o fiel aos seus compromissos e, de qualquer modo, mais sincero do que muitos monsignori e cardeais romanos que pregam a castidade durante o dia e, à noite, catequisam prostitutos.

O padre teve belos amores e fala-me de três homens que contaram para ele, em especial Rodolfo, um arquiteto argentino.

– Rodolfo mudou o rumo da minha vida – diz-me, simplesmente, o padre.

Os dois homens viveram juntos cinco anos em Roma, quando o padre pusera o seu sacerdócio entre parênteses, para não trair o seu voto de castidade, depois de ter pedido uma espécie de passagem à disponibilidade, embora continuasse a trabalhar todos os dias no Vaticano. O que alicerçava realmente o seu casal não era tanto a sexualidade, como poderíamos pensar, mas o «porquê» de estarem juntos. O diálogo intelectual e cultural, a generosidade e a ternura, a harmonia dos caracteres: tudo isso contava tanto como a dimensão física.

– Dou graças a Deus por me ter feito encontrar Rodolfo. Com ele, aprendi verdadeiramente o que quer dizer amar. Aprendi a deixar de lado os belos discursos que não se articulam com os factos – diz-me o padre, que me confirma também que, embora tenha vivido essa longa relação na discrição, não a ocultou: falou dela aos seus confessores e ao seu diretor espiritual. Escolheu a honestidade, rara no Vaticano, e rejeitou os «amores mentirosos». Claro que a sua carreira sofreu com isso; mas esse facto tornou-o melhor e mais seguro de si.

Agora, caminhamos ao longo de um braço de mar, perto do Atlântico, e o padre, que tirou a tarde para me mostrar a cidade onde vive, fala-me de novo incessantemente de Rodolfo, esse grande amor, frágil, distante, e avalio até que ponto o padre confere uma espécie de eleição a esta relação. Subsequentemente, escrever-me-á longas cartas para me precisar alguns pontos que não teve tempo de me comunicar, para corrigir esta impressão, para acrescentar aquele elemento. Tem tanto medo de ser mal compreendido.

Quando Rodolfo morre em Roma, após uma longa doença, o padre vai às suas exéquias: no avião que o traz de novo para junto do seu ex-amante, sente-se atormentado, e até paralisado, com a questão de saber se iria «dever» ou «poder» ou «querer» concelebrar o ofício.

– À hora marcada, o padre encarregado do ofício não apareceu – recorda. – Era um sinal do céu. Como o tempo ia passando, pediram-me que o substituísse. E foi assim que um pequeno texto que eu escrevinhara, durante a viagem que me conduzia de novo a Rodolfo, se tornou a homilia do seu funeral.

Manterei confidencial esse texto que o padre me enviou, porque é tão pessoal e tão tocante que publicá-lo seria inevitavelmente desnaturar os segredos desses belos amores. Uma intimidade durante muito tempo indizível, mas, no entanto, revelada, e inclusive gritada em pleno dia, perante os olhos de todos, no coração daquela igreja de Roma, quando da missa do funeral.

NO SEIO DO PRÓPRIO VATICANO, dois casais homossexuais lendários continuam também a resplandecer na memória daqueles que os conheceram e gostaria de terminar este livro com eles. Trabalhavam os dois na Rádio Vaticano, o meio de comunicação social por excelência da santa sé e porta-voz do papa.

– Bernard Decottignies era jornalista na Rádio Vaticano. Quase todos os seus colegas estavam ao corrente da relação que mantinha com Dominique Lomré, que era um artista-pintor. Eram ambos belgas e incrivelmente próximos. Bernard ajudava Dominique em todas as suas exposições, estava sempre lá para o acalmar, lhe dar assistência, o amar. Dava sempre a prioridade a Dominique. Dedicara-lhe a sua vida – conta-me, no decurso de inúmeras conversas, Romilda Ferrauto, antiga redatora-chefe do programa francês da Rádio Vaticano.

O padre José Maria Pacheco, que também era amigo do casal e foi, durante muitos anos, jornalista no programa lusófono da Rádio Vaticano, confirma-me a beleza dessa relação, numa conversa em Portugal:

– Lembro-me da serenidade de Bernard e do seu profissionalismo. O que me marca, ainda hoje, é a «normalidade» com que vivia, dia a dia, a sua vida profissional e a sua relação afetiva com Dominique. Lembro-me de Bernard como alguém que vivia a sua condição homossexual, e a sua vida de casal, sem inquietação, nem militantismo. Não queria comunicar, nem esconder, que era gay… pura e simplesmente porque não havia nada a esconder. Era simples e, de certa maneira, «normal». Vivia a sua homossexualidade de uma forma calma, pacificada, na dignidade e na bondade de um amor estável.

Em 2014, Dominique morre, diz-se, com uma doença respiratória.

– A partir desse momento, Bernard deixou de ser o mesmo. A sua vida já não tinha sentido. Esteve de baixa por doença e depois continuou em depressão. Um dia, veio ver-me e disse-me: «Não percebes: a minha vida parou com a morte de Dominique» – conta-me Romilda Ferrauto.

– A partir da morte de Dominique – confirma o padre José Maria Pacheco –, ocorreu qualquer coisa irreversível. Por exemplo, Bernard deixou de se barbear e a sua longa barba era, em certo sentido, o sinal da sua angústia. Quando o encontrava, Bernard estava esmagado, devorado interiormente pela dor.

Em novembro de 2015, Bernard suicidou-se, mergulhando de novo o Vaticano no estupor e no desgosto.

– Ficámos todos consternados. O amor era tão forte. Bernard suicidou-se porque já não conseguia viver sem Dominique – acrescenta Romilda Ferrauto.

O jornalista americano Robert Carl Mickens, que trabalhou igualmente durante muito tempo na Rádio Vaticano, também se lembra do desaparecimento de Bernard:

– O padre Francesco Lombardi, porta-voz do papa, quis celebrar pessoalmente o funeral de Bernard, na Igreja Santa Maria in Traspontina. No final do ofício, veio dar-me um beijo porque eu era muito próximo de Bernard. Essa relação amorosa muito forte, homossexual, era do conhecimento de todos e, claro, do padre Lombardi.

Romilda Ferrauto acrescenta:

– Bernard tentava tanto quanto possível não esconder a sua homossexualidade. Nisso, era honesto e corajoso. A sua homossexualidade era aceite pela maioria dos que estavam ao corrente e, na redação francesa, todos conhecíamos o seu companheiro.

Um outro casal de homens, Henry McConnachie e Speer Brian Ogle, também era muito conhecido no seio da Rádio Vaticano. Os dois trabalhavam no serviço inglês da estação. Quando morrerem de velhice, o Vaticano prestou-lhes homenagem.

– Henry e Speer viviam juntos em Roma desde a década de 1960. O casal, muito «colourful», não era verdadeiramente «openly gay». Pertenciam a outra geração, para a qual primava uma certa discrição. Eram, digamos, «gentlemen» – esclarece Robert Carl Mickens, que foi um amigo chegado de Henry.

O cardeal Jean-Louis Tauran fez questão em celebrar pessoalmente o funeral de Henry McConnachie, que conhecia de longa data, tal como também conhecia a sua sexualidade.

– Quase toda a gente estava ao corrente da homossexualidade desses dois casais e eles tinham muitos amigos na Rádio Vaticano. E ainda hoje nos lembramos deles com uma imensa ternura – conclui Romilda Ferrauto.

*

O MUNDO QUE DESCREVI NESTE LIVRO NÃO É O MEU. Não sou católico. Nem sequer sou crente, embora avalie a importância da cultura católica na minha vida e na história do meu país, um pouco como Chateaubriand fala do «génio do cristianismo». Também não sou anticlerical e, aliás, este livro não é contra o catolicismo, mas sim, em primeiro lugar e antes de tudo, independentemente do que possam pensar, uma crítica da comunidade gay – uma crítica da minha própria comunidade.

Eis porquê acho útil evocar, em epílogo, a história de um padre que teve uma influência importante em mim, durante a minha juventude. É raro falar da minha vida pessoal nos meus livros, mas aqui, tendo em conta o tema, todos compreenderão que é necessário. Devo essa verdade ao leitor.

Com efeito, fui cristão até aos treze anos. Nessa época, em França, o catolicismo era, como se diz, «a religião de todos». Era um facto cultural quase banal. O meu padre chamava-se Louis. Dizíamos simplesmente: «o abade Louis» ou, mais frequentemente, «o padre Louis». Qual figura de El Greco, com uma barba exageradamente longa, chegou uma manhã à nossa paróquia, perto de Avinhão, no sul de França. Donde vinha? Na época, não sabia. Como todos os habitantes da nossa cidade da Provença, acolhemos esse «missionário»; adotámo-lo e amámo-lo. Era um simples abade e não um pároco; um vigário e não um prelado nem um ministro do culto. Era jovem e simpático. Dava uma bela imagem da Igreja.

Também era paradoxal. Um aristocrata, de origem belga –segundo o que sabíamos –, um intelectual, mas que falava a linguagem simples dos pobres. Tratava-nos por tu enquanto fumava o seu cachimbo. Tomava-nos um pouco pela sua família.

Não recebi educação católica: frequentei a escola e o liceu públicos e laicos, que mantêm, muito felizmente em França, a religião a uma boa distância; algo que agradeço aos meus pais. Raramente íamos à missa, que nos parecia tão aborrecida. Entre a minha primeira comunhão e a segunda, tornei-me um dos alunos preferidos do padre Louis, o seu favorito talvez, ao ponto de os meus pais lhe terem pedido para ser meu padrinho de confirmação. Tornar-me amigo de um padre, uma amizade pouco banal, foi uma experiência significativa quando a minha inclinação natural teria sido sobretudo, já, a crítica da religião, no espírito do jovem Poeta: «Realmente, são uma estupidez, essas igrejas das aldeias» onde as criancinhas ouvem «as divinas tagarelices».

Era católico por tradição. Nunca fui «escravo do meu batismo». Mas o padre Louis era fantástico. Eu era demasiado indisciplinado para ser menino de coro e julgo que fui expulso do catecismo por indisciplina. O meu padre não se ofendeu com isso – pelo contrário. Ensinar o catecismo às crianças da paróquia? Viver em redor da sacristia e animar a quermesse? Eu era um pequeno Rimbaud à procura de outros horizontes; o abade aspirava, como nós, a espaços maiores. Encorajou-me a entrar para uma capelania que ele animava e, com ele, durante cinco ou seis anos, vivemos a aventura. Era uma capelania popular – e não um movimento de exploradores ou de escoteiros, mais burgueses. Instilou-me a paixão pelas viagens e ensinou-me alpinismo, preso a ele com uma corda. Sob o pretexto de «retiros espirituais», fomos para acampamentos de jovens, de bicicleta ou a pé, nos Alpilles provençais, no maciço das Calanques, em Marselha, perto da montanha de Lure, nos Alpes da Alta Provença, ou ainda na alta montanha, com as nossas tendas e as nossas pequenas picaretas, dormindo em refúgios, escalando, a mais de 4000 metros de altitude, a Cúpula de Neve dos Écrins. E à noite, durante essas temporadas longe da minha família, comecei a ler livros que, por vezes, sem insistir muito, esse abade de «leituras mal benevolentes» nos recomendava, talvez com fins evangelizantes.

Porque é que se tornou padre? Nessa época, não sabíamos muito sobre a vida de Louis «antes». Era reservado: o que fizera «antes» de chegar à nossa paróquia avinhoense? No momento de redigir este livro, com a ajuda dos seus amigos mais próximos, tentei encontrar o seu rasto. Fiz pesquisas nos arquivos da diocese e consegui reconstruir o seu itinerário, com bastante precisão, desde Lusambo, no Zaire (então Congo Belga), onde nasceu em 1941, até Avinhão.

Lembro-me do proselitismo cultural e do «catecismo dos tempos livres» do abade Louis. Nisso era, por essa própria expressão, simultaneamente moderno e tradicional. Homem de arte e de literatura, gostava de cântico gregoriano e de cinema de arte e ensaio. Levava-nos a ver filmes «de tema» para ter connosco conversas tendenciosas sobre o suicídio, o aborto, a pena de morte, a eutanásia ou a paz no mundo (nunca, parece-me, sobre a homossexualidade). Tudo para ele estava aberto à conversa, sem tabu, sem preconceito. Mas, licenciado em filosofia e teologia – Louis concluiu a sua educação religiosa com uma licenciatura em direito canónico na Universidade Pontifícia Gregoriana em Roma –, era muito forte a debater. Era simultaneamente o produto de Vaticano II, da sua modernidade, e o herdeiro de uma conceção conservadora da Igreja que o fazia ter a nostalgia do latim e dos paramentos de cerimónia. Teve uma verdadeira paixão por Paulo VI; um pouco menos por João Paulo II. Era a favor de um catecismo renovado, que abalasse a tradição, mas amparava-se também nos vínculos indefetíveis do casamento, ao ponto de ter recusado a comunhão a alguns casais divorciados. Na verdade, em Avinhão, devido às suas contradições e à sua liberdade de espírito, desnorteava os seus paroquianos.

Padre-operário para uns – irritada, a burguesia local acusava-o de ser comunista; pároco de aldeia para outros, que o veneravam; padre letrado para todos, admirado e invejado simultaneamente, porque os rurais desconfiam sempre dos urbanos que leem livros.

Censuravam-lhe ser «altivo», isto é, inteligente. A sua alegria de viver irónica inquietava. A sua cultura antiburguesa, que o fazia desprezar o dinheiro, a vaidade e a ostentação era mal-aceite entre os católicos praticantes que, não sabendo o que pensar, o achavam simplesmente demasiado «espiritual» para o seu gosto. Viam com desconfiança as viagens (demasiado numerosas) que fizera e as novas ideias que delas trouxera. Diziam que tinha «ambição», ou previam que um dia seria bispo ou até cardeal e, na nossa paróquia, aquela personagem de Balzac – mais Lucien Rubempré que Rastignac –, era confundida com um ativista. Lembro-me também de que, ao contrário de muitos padres, não era misógino e se sentia bem na companhia das mulheres. Foi por essa razão que, em breve, lhe atribuíram uma amante, na pessoa de uma militante socialista local, um rumor com que esta última, que interroguei para este livro, ainda se diverte hoje em dia. Também lhe censuravam – como podiam censurar-lhe isso? – a sua hospitalidade, que foi o seu grande caso; porque albergava, na paróquia, pobres, jovens marginais e estrangeiros de passagem. Atribuíram-lhe também, não o soube na altura, histórias contranatura com marinheiros no porto de Toulon; disseram que percorria o mundo à procura de aventuras. Ria de tudo isso e cumprimentava a pretensa sogra, na paróquia, com um tonitruante: «Sogrinha!»

Para parafrasear Chateaubriand, no seu belo retrato do abade Rancé, poderia escrever que «esta família da religião em redor do [padre Louis] tinha a ternura da família natural e algo mais».

Para mim, o diálogo com Deus – e com o padre Louis – parou à entrada para o liceu, em Avinhão. Nunca detestei o catolicismo – esqueci-o, simplesmente. As páginas dos evangelhos, que nunca lera realmente, foram substituídas por Rimbaud, Rousseau e Voltaire (menos o Voltaire de «Écraser l’infame» do que o de Cândido onde os jesuítas são todos gays). Creio menos na Bíblia do que na literatura – que me parece mais fiável, as suas páginas infinitamente mais belas e, ao fim de contas, menos romanceadas.

Em Avinhão, continuei, portanto, a frequentar assiduamente a capela dos Pénitents Gris, a capela dos Carmes, a capela dos Pénitents Blancs, o jardim de Urbano V, o claustro dos Célestins e sobretudo o pátio principal do palácio dos Papas, mas já não era para aí seguir os ensinamentos cristãos: ia lá ver espetáculos pagãos. Avinhão foi, como sabemos, a capital da cristandade e sede do papado no século XIV, com nove papas que lá residiram (e o meu segundo nome próprio, de acordo com uma tradição frequente em Avinhão, é Clément, como três desses papas, um dos quais um antipapa!). No entanto, Avinhão representa algo diferente para a maior parte dos franceses de hoje em dia: a capital do teatro laico. Os meus evangelhos chamam-se agora Hamlet e Angels in America, e não tenho medo de escrever que o Dom Juan de Molière conta mais para mim do que o Evangelho segundo são João. Daria inclusive a Bíblia inteira para ter em seu lugar todo o Shakespeare e, para mim, uma única página de Rimbaud vale mais do que toda a obra de Joseph Ratzinger! E, aliás, nunca coloquei nenhuma bíblia na gaveta da minha mesa de cabeceira, mas sim Une saison en enfer, na edição da Pléiade que, com o seu papel bíblia, parece um missal. Possuo poucos livros dessa bela coleção, mas as Oeuvres complètes de Rimbaud estão sempre ao alcance da mão, pousadas perto da minha cama, para o caso de insónia ou de sonhos. É uma regra de vida.

Dessa formação religiosa, hoje em dia dissipada, restam alguns vestígios. Em Paris, perpetuo à minha maneira a tradição provençal que consiste em fazer todos os anos, pelo Natal, o presépio com modelos Carbonel, comprados na feira das figurinhas de presépio de Marselha (e em comer, nessa noite, as famosas «treze sobremesas»). Mas trata-se de um Natal «cultural» ou «laico» e daquilo a que o Poeta chama um «Natal na terra». Também colaborei, durante vários anos, com a revista Esprit; tal como fui formado nos meus gostos cinematográficos pelo pensamento do crítico católico André Bazin. Se, leitor de Kant, Nietzsche e Darwin, e filho de Rousseau e Descartes, mais do que de Pascal – francês, caramba! –, não posso ser crente hoje em dia, nem sequer um «cristão cultural», respeito a cultura cristã e, portanto, o «génio (cultural) do cristianismo». E gosto muito dessa fórmula de um primeiro-ministro francês que disse: «Sou um protestante ateu». Digamos, então, que sou um «católico ateu», um ateu de cultura católica. Ou, por outras palavras, sou «Rimbaudian».

Na minha paróquia perto de Avinhão (que Louis também deixou depois de ter sido nomeado pároco de outra paróquia da Provença, em 1981), o catolicismo entrou em declínio. O pároco, escreve o Poeta, «levou a chave da igreja». Uma Igreja que não soube evoluir com o seu tempo: apoiou-se no celibato dos padres, que é, apercebemo-nos hoje em dia, profundamente contranatura, e proibiu os sacramentos aos divorciados, no preciso momento em que as famílias da minha aldeia são, na sua maioria, reconstruídas. Quando havia, na época, três missas todos os domingos com três padres na minha igreja, agora há apenas uma, a cada três domingos, com o pároco ambulante, vindo de África, aliás, a correr de uma paróquia para outra, nesta periferia do sul de Avinhão, transformada em deserto católico. Em França, morrem cerca de 800 padres a cada ano; são ordenados menos de cem… O catolicismo apaga-se lentamente.

Também para mim o catolicismo é uma página virada, sem ressentimento nem rancor, sem animosidade nem anticlericalismo – não estou no «ódio dos padres», como se diz em Flaubert. E em breve também o padre Louis se afastou.

Soube da sua morte quando vivia em Paris e esse desaparecimento do meu padre, ainda jovem, aos cinquenta e três anos, entristeceu-me terrivelmente. Quis prestar-lhe homenagem e, portanto, redigi um pequeno texto para as páginas locais do diário Le Provençal (hoje, La Provence), publicado anonimamente com o título «A morte do padre Louis». Releio hoje esse artigo que acabei de encontrar e em cuja conclusão faço referência, um pouco ingenuamente, ao filme italiano Cinema Paradiso e ao seu velho projecionista siciliano, Alfredo, que ensinara a vida a Totò, o herói, um menino de coro, que se emancipou da sua aldeia graças à sala de cinema paroquial e se tornou realizador de cinema, em Roma. E, assim, disse adeus ao padre Louis.

QUANDO ESTAVA A ACABAR DE ESCREVER ESTE LIVRO, e já perdera o rasto do padre Louis há muitos anos, este entrou de novo na minha vida, subitamente e de uma forma inesperada. Uma das amigas de Louis, uma paroquiana progressista com quem me mantivera em contacto, decidiu contar-me o fim da vida dele. Longe de Avinhão, vivendo em Paris, não soubera nada; e ninguém, aliás, na paróquia, conhecera os seus segredos. Louis era homossexual. Tinha uma vida dupla que, retrospetivamente, dava sentido a alguns dos seus paradoxos, às suas ambiguidades. Como tantos padres, tentava conjugar a sua fé e a sua orientação sexual. Parece-me, ao recordar esse abade atípico de quem tanto gostámos, que uma dor interior o embaraçava, uma lágrima, talvez. Mas é possível que esta leitura seja apenas retrospetiva.

Também fiquei a conhecer as circunstâncias da sua morte. Na sua biografia que a diocese me comunicou, quando quis encontrar o seu rasto, está escrito pudicamente no final da sua vida: «Reforma no lar sacerdotal em Aix-en-Provence, de 1992 a 1994». Mas ao interrogar os seus amigos, apareceu uma outra realidade: Louis morreu de SIDA.

Nesses anos em que a doença era quase sempre mortal, e imediatamente antes – infelizmente – de poder beneficiar das triterapias, Louis começou por ser tratado no Institut Paoli-Calmettes de Marselha, hospital precursor em matéria de SIDA, antes de ter passado a ser atendido numa clínica de Villeneuve de Aix-en-Provence, pelas irmãs da capela Saint-Thomas. Foi aí que morreu na «espera desesperada», dizem-me, de um tratamento que não chegou a tempo. Nunca falou verdadeiramente da sua homossexualidade e negou sempre a natureza da sua doença. Os seus colegas religiosos, provavelmente informados da natureza do seu mal, abandonaram-no, na sua maioria. Dar provas de solidariedade teria sido, também aqui, apoiar um padre gay e correr talvez o risco de ser suspeito. As autoridades da diocese preferiram dissimular as causas da sua morte e a maior parte dos párocos com que convivera, agora aterrados, nunca mais se manifestaram quando ficou acamado. Contactou-os, sem resposta da parte deles. Ninguém veio visitá-lo. (Um dos raros padres que estiveram a seu lado até ao fim pergunta-se, quando o interrogo, se não foi o próprio Louis que quis distanciar-se dos seus antigos correligionários; o cardeal Jean-Pierre Ricard, atualmente arcebispo de Bordéus, e que foi vigário-geral do arcebispado de Marselha, que entrevisto durante um almoço em Bordéus, lembra-se do padre Louis, mas diz-me que esqueceu os pormenores da sua morte.)

– Morreu bastante só, abandonado por quase todos, em grande sofrimento. Não queria morrer. Revoltou-se contra a morte – testemunha uma das mulheres que o acompanharam no final da sua vida.

Hoje, penso no sofrimento desse homem só, repudiado pela Igreja – a sua única família –, negado pela sua diocese e mantido à distância pelo seu bispo. Tudo isso se passava sob o pontificado de João Paulo II.

A SIDA? Um padre com SIDA? «Tive simplesmente de franzir o sobrolho como perante o enunciado de um problema difícil. Precisei de muito tempo para compreender que ia morrer de um mal que raramente encontramos nas pessoas da minha idade». Lembramo-nos da reação do jovem pároco de aldeia, ao saber que tem um cancro no estômago, no belo romance de Georges Bernanos e no filme, ainda mais magnífico, de Robert Bresson. O jovem diz também: «Por mais que repetisse para comigo que nada mudara em mim, o pensamento de regressar a casa com esta coisa provocava-me vergonha». Não sei se Louis pensou assim nas coisas ao longo do seu próprio calvário. Não sei se, na sua fragilidade e na sua angústia, julgou e pensou, como o padre de Bernanos: «Deus retirou-se de mim».

Na verdade, Louis nunca foi um «pároco de aldeia», como refere, por facilidade, o subtítulo da coletânea das suas homilias. A comparação com o pároco de Bernanos, que procura a ajuda da graça, é, portanto, um pouco enganadora. Louis não teve uma vida banal, modesta. Foi um padre aristocrata que, no caminho inverso ao seguido por tantos prelados oficiais que nasceram pobres e acabam no luxo e na luxúria do Vaticano, iniciou a sua vida na aristocracia e a terminou em contacto com pessoas simples. E sei que nessa mudança radical, tanto no caso dele, como no desses outros, a homossexualidade desempenhou o seu papel.

O facto de o arcebispado ter ficado insensível à sua via sacra continua a ser incompreensível para mim. Que o seu sofrimento crístico, mau sangue, máculas, desfalecimentos não tenham encontrado eco na diocese será durante muito tempo, a meus olhos, um escândalo, um mistério. Só o imagino tremendo.

Só as irmãs da capela de Saint-Thomas, magnificamente dedicadas, o rodearam com o seu afeto anónimo até à sua morte, no início do verão de 1994. Um bispo aceitou finalmente presidir à concelebração. Seguidamente, Louis foi cremado em Manosque, nos Alpes da Alta Provença (os cuidados funerários eram proibidos na época aos doentes de SIDA e a cremação, privilegiada).

Alguns dias depois, tal como ele desejava, as suas cinzas foram espalhadas no mar, com toda a discrição, a alguns quilómetros de Marselha, ao largo das Calanques, onde tínhamos ido juntos algumas vezes, por quatro mulheres – duas das quais me contaram a cena –, a partir de um barquinho que ele comprara no final da vida. E nessa região, nesse «país» magnífico, o sul de França – a que por vezes chamamos, entre nós, o Midi –, diz-se que os únicos acontecimentos são as tempestades.