2.
A teoria do género
UMA ANTECÂMARA? UM GABINETE? UM TOUCADOr? Estou na sala do apartamento privado do cardeal americano Raymond Leo Burke, uma residência oficial do Vaticano, Via Rusticucci, em Roma. É uma divisão estranha e misteriosa, que observo minuciosamente. Estou sozinho. O cardeal ainda não chegou.
– Sua Eminência está retida no exterior. Não vai demorar – diz-me don Adriano, um padre canadiano, elegante e um pouco contido: o assistente de Burke. – Está a par das novidades?
No dia da minha visita, o cardeal americano acabara de ser chamado pelo papa para ser repreendido. Há que dizer que Burke multiplicou as provocações e os protestos contra o santo padre, ao ponto de ser considerado o seu opositor número um. Para Francisco, Burke é um fariseu – o que não é um cumprimento vindo de um jesuíta.
No círculo próximo do papa, os cardeais e monsignori que interroguei, divertem-se:
– Sua Eminência Burke é louca! – Diz-me um deles, um francês, que atribui, com toda a lógica gramatical, o adjetivo no feminino.
Esta feminização dos títulos de homens é surpreendente e precisei de algum tempo para me habituar a ouvir falar deste modo dos cardeais e bispos do Vaticano. Se Paulo VI tinha o hábito de se expressar na primeira pessoa do plural («Dizemos…»), fico a saber que Burke gosta que, a seu respeito, utilizem o feminino: «Vossa Eminência pode estar orgulhosa»; «Vossa Eminência é grande»; «Vossa Eminência é demasiado bondosa».
Mais prudente, o cardeal Walter Kasper, próximo de Francisco, limita-se a abanar a cabeça em sinal de consternação e incredulidade quando refiro o nome de Burke, deixando sair, mesmo assim, o qualificativo «louco» – no masculino.
Mais racional na sua crítica, o padre Antonio Spadaro, um jesuíta considerado uma das eminências pardas do papa, com quem conversei regularmente na sede da revista La Civiltà Cattolica, de que é diretor, explica-me:
– O cardeal Burke assumiu a chefia da oposição ao papa. Esses opositores são muito veementes e, por vezes, muito ricos, mas não são muito numerosos.
Um vaticanista revelou-me o apodo com que o cardeal americano, um homenzinho rechonchudo, seria mimoseado no seio da cúria: «The Wicked Witch of the Midwest». Todavia, em relação a esta eminência rebelde que quer defender a tradição, o papa Francisco não joga com as palavras. Sob a aparência de um homem sorridente e jovial, há um duro. «Um sectário», afirmam os seus detratores, agora muito numerosos no Vaticano.
O santo padre castigou o cardeal Burke, despedido sem aviso prévio do seu lugar de prefeito encarregado do supremo tribunal da Assinatura Apostólica, o tribunal de apelo do Vaticano. Prémio de consolação: foi nomeado em seguida, promoveatur ut amoveatur (promovido para se livrar dele), representante do papa junto da Ordem de Malta. Com o título retumbante de «Cardinalis Patronus» – o cardeal patrono da Ordem –, Burke continuou a desafiar o sucessor de Pedro, o que lhe valeu uma nova repreensão do sumo pontífice, no dia da minha visita, precisamente.
Na origem deste novo confronto está algo que não poderia ser inventado: uma distribuição de preservativos! A Ordem de Malta, ordem religiosa soberana, realiza ações caritativas em inúmeros países. Na Birmânia, alguns membros teriam distribuído preservativos a pessoas seropositivas para evitar novas contaminações. No final de uma investigação interna turbulenta, o «grão-mestre» acusou o seu número dois, o «grão-chanceler», de ter autorizado a dita campanha de preservativos. A humilhação é frequente no catolicismo, pasoliniana, por vezes digna de Salò o le 120 giornate di Sodoma. O primeiro demitiu o segundo das suas funções, na presença do representante do papa: o cardeal Burke.
Acabou a missa? Pelo contrário, sobe de tom, quando o papa é informado de que o ajuste de contas entre rivais contribuiu para esta situação e percebe o que está envolvido.
Muito descontente, Francisco convoca Burke para lhe pedir explicações e decide reinstalar pela força o grão-chanceler, apesar da oposição frontal do grão-mestre que invoca a soberania da sua organização e o apoio de Burke. Esse braço de ferro, que manteve a cúria na expectativa, terminou com a demissão do grão-mestre e a colocação da Ordem sob tutela. Quanto a Burke, severamente desautorizado, embora tenha conservado o título, viu-se privado de todo o poder, transferido para o substituto do papa. «O santo padre deixou-me o título de Cardinalis Patronus, mas agora não tenho qualquer função. Já nem sequer sou informado, nem pela Ordem de Malta, nem pelo papa», lamentará Burke, mais tarde.
Foi durante um desses episódios desta verdadeira série televisiva rocambolesca, no momento em que Burke foi convocado pelo círculo próximo do papa, que tive um encontro marcado com ele. E enquanto pregavam o sermão a Burke, eu esperava o cardeal em sua casa, sozinho, na sua antecâmara.
NA VERDADE, JÁ NÃO ESTAVA SOZINHO. Daniele Particelli acabara por vir ter comigo. Esse jovem jornalista italiano havia-me sido recomendado, alguns meses antes, por colegas experientes e acompanha-me frequentemente nas minhas entrevistas. Investigador e tradutor, intermediário obstinado, Daniele, com quem nos cruzaremos regularmente neste livro, será o meu principal colaborador em Roma durante quase quatro anos. Ainda me lembro da nossa primeira conversa:
– Não sou crente – disse-me –, e isso permite-me ter o espírito mais aberto e mais livre. Interesso-me por tudo o que diz respeito à comunidade LGBTQ aqui em Roma, os serões, as apps, a cena gay underground. Também estou muito orientado para o eletrónico, sou muito geek, muito digital. Gostaria de me tornar um melhor jornalista e aprender a contar histórias.
Foi assim que começou a nossa colaboração profissional. O namorado de Daniele cultivava espécies de plantas exóticas; quanto a ele, tinha de se ocupar, todas as tardes, de Argo, um cão de raça Welsh Corgi Pembroke, que precisava de um tratamento especial. Durante o resto do tempo, estava livre para investigar a meu lado.
Antes de Daniele, contactara outros jornalistas romanos para me ajudarem nas minhas investigações, mas todos se mostraram indiferentes ou desatentos; demasiado militantes ou demasiado pouco militantes. Daniele gostava do meu tema. Não queria vingar-se da Igreja, nem tinha indulgência em relação a ela: só queria fazer um trabalho de jornalista de uma forma neutra, segundo o modelo, disse-me, dos bons artigos do New Yorker e da chamada «narrativa de não ficção»; e isso correspondia ao meu projeto. Tinha a aspiração de fazer «straight journalism», como dizem nos Estados Unidos: jornalismo factual, os factos, nada mais do que os factos, e o «fact-checking». Nunca poderia ter imaginado que o mundo que ia descobrir a meu lado fosse de tal modo inverosímil e tão pouco «straight».
– Peço desculpa. Sua Eminência comunicou-me que ainda está um pouco atrasada – vem explicar-nos, de novo, o assistente de Burke, don Adriano, visivelmente incomodado.
Para meter conversa, pergunto-lhe se estamos no apartamento do cardeal ou no seu escritório.
– Sua Eminência não tem escritório – responde-me o jovem padre. – Trabalha em casa. Podem continuar a esperar aqui.
A antecâmara do cardeal Burke, um apartamento de solteiro que fixei para todo o sempre na memória, é uma espécie de salão, simultaneamente clássico, luxuoso e insignificante. Em americano, diz-se «bland»: insípido. No meio da divisão, uma mesa de madeira escura, cópia moderna de um modelo antigo, colocada sobre um tapete a condizer com o mobiliário; em toda a volta, alguns cadeirões luxuosos vermelhos, amarelos e beges em madeira torneada, cujos braços contornados estão ornados como cabeças de esfinges ou de leões com juba. Sobre uma cómoda, uma bíblia aberta num atril; em cima da mesa, uma composição de pinhas secas, entrançadas e coladas umas às outras – arte decorativa dos velhos dândis. Um quebra-luz complicado. Algumas pedrarias e estátuas religiosas horrorosas. E napperons! Nas paredes, uma estante de prateleiras bem enfeitadas e um imenso retrato de um eclesiástico? O retrato de Burke? Não – mas a ideia atravessa-me o espírito.
Calculo que Burke seja um herói para o seu jovem assistente que deve idolatrá-lo, por certo – a palavra é mais bonita em americano: «to lionize». Tento fazer conversa sobre o sexo dos anjos, mas don Adriano revela-se tímido e pouco loquaz, antes de nos deixar sós, de novo.
Como a espera se torna pesada, saio finalmente do salão e erro um pouco pelo apartamento do cardeal. De súbito, depara-se-me um altar particular numa decoração de iceberg falso, um retábulo em forma de tríptico colorido, como uma capelinha aberta, ornamentada com uma grinalda iluminada que pisca, tendo, colocado no meio, o célebre chapéu vermelho do cardeal. Um chapéu? Que estou a dizer? Uma coifa.
Então, vêm-me à memória as fotografias extravagantes de Raymond Leo Burke, ridicularizadas tão amiúde na internet: o cardeal diva; o cardeal dândi; o cardeal drama queen. É preciso vê-las para crer. Olhando-as, começamos a imaginar o Vaticano sob uma outra luz. Troçar de Burke é quase demasiado fácil!
A minha imagem preferida do prelado americano não é a mais espetacular. Nela, vemos o cardeal, de setenta anos, sentado num trono verde-espargo duas vezes maior do que ele, rodeado de panejamentos prateados. Tem uma mitra amarela fosforescente em forma de Torre de Pisa alta e longas manoplas azul-turquesa, que fazem com que as suas mãos pareçam de ferro; a murça é verde couve, debruada a amarelo, forrada com uma capa verde alho-porro que revela umas mangas de renda vermelha grená violácea. As cores são inesperadas; a imagem, excêntrica e «camp». É fácil caricaturar uma caricatura.
Don Adriano surpreende-me a meditar diante do chapéu vermelho do cardeal e orienta-me, com a sua gentileza de camareiro, para a casa de banho, que procuro.
– Por aqui – murmura, lançando-me um olhar cúmplice.
Enquanto sua Eminência Burke está a ser mal acolhida por Francisco, eis-me na sua casa de banho, o local das suas abluções. Um estranho tanque, digno de um resort-spa de luxo, aquecido como uma sauna. Os sabões de marca, com perfumes subtis, estão arrumados à japonesa e as toalhas pequenas dobradas sobre as médias, colocadas por sua vez sobre as grandes e as grandes sobre as Muito grandes. O papel higiénico é novo e tem uma proteção que garante a sua pureza imaculada. Ao sair, no corredor, descubro dezenas de garrafas de Champagne! Champagne de marca! Mas por que raio é que o cardeal precisa de tantas bebidas alcoólicas? A frugalidade não está inscrita nos evangelhos?
A alguns passos, avisto um armário com espelhos, ou então é um «toucador», aqueles grandes espelhos inclináveis que permitem vermo-nos integralmente, o que me encanta. Se tivesse feito a experiência de abrir as três portas ao mesmo tempo, ter-me-ia visto como o cardeal todas as manhãs: com toda a atenção, rodeado pela sua imagem, abraçado por si mesmo.
Diante do armário: uns soberbos sacos vermelhos, acabados de chegar da loja – será uma vez mais Gammarelli, o costureiro dos papas? Dentro dessas caixas de chapéus: as coifas do cardeal, os seus casacos de peles falsas e os seus trajes de volumes vermelho trapézio. Tenho a impressão de estar nos bastidores do filme Roma, de Fellini, onde se prepara o extravagante desfile de moda eclesiástica. Em breve, vão aparecer padres apaixonados em patins de rodas (para irem mais depressa para o Paraíso); freirinhas de touca; padres em fatos de noiva; bispos com luzes cintilantes; cardeais mascarados de lampadários; e, a chave do espetáculo, o Rei Sol em grande pompa, engrinaldado de espelho e luzes. (O Vaticano pediu a censura do filme em 1972 apesar de este continuar a rodar em circuito fechado, como me confirmaram, nos dormitórios gay-friendly de determinados seminários.)
O roupeiro da eminência americana não me confiou todos os seus segredos. Don Adriano, superintendente encarregado do guarda-roupa do cardeal, reconduziu-me discretamente ao salão, pondo termo à minha exploração e privando-me de ver a famosa Cappa Magna do cardeal.
Burke é conhecido por usar essa farpela de outros tempos. As fotografias em que enverga esse grande traje preferido, destinado às cerimónias, tornaram-se célebres. O homem é grande; com a Cappa Magna, torna-se um gigante – dir-se-ia uma dama víquingue! Performance! Happening! No seu longo vestido jocoso (dir-se-ia que enverga um cortinado), Burke desfila e mostra, simultaneamente, as plumas e o canto.
Esse manto longo é uma capa de seda furta-cores vermelha, coberta por um capelo abotoado por detrás do pescoço, fechada à frente (as mãos saem por uma fenda) e que tem uma cauda que varia, diz-se, segundo a dignidade. A «cauda» de Burke pode chegar, consoante as ocasiões, a atingir doze metros de comprimento. O cardeal «larger than life» procurará assim engrandecer-se à medida que o papa tenta diminuí-lo?
Francisco, que não tem medo de enfrentar a nobreza de sotaina do Vaticano, teria comunicado a Burke que estava fora de questão usar a Cappa Magna em Roma. «Acabou o carnaval!», teria dito, segundo uma fórmula noticiada pelos meios de comunicação social e talvez apócrifa. Ao contrário do seu antecessor, o papa não gosta dos frufrus e das pregas dos cardeais tradicionalistas. Quer encurtar-lhes as batinas. Na verdade, seria uma pena que Burke lhe obedecesse: os seus retratos são tão heterodoxos.
Na internet, as fotografias das suas farpelas fazem furor. Aqui, vemo-lo usar o galero cardinalício, um grande chapéu vermelho com borlas que foi abandonado pela quase totalidade dos prelados depois de 1965, mas que Burke continua a defender, apesar de lhe dar, quase aos setenta anos, o ar de uma velha vingativa. Na Ordem de Malta, onde escandaliza menos numa seita ritual que conta, também, com as suas capas, as suas cruzes e as suas próprias insígnias, pode vestir-se como conviria a um homem da Idade Média, sem correr o risco de agitar os seus sectários.
Lá, Sua Eminência usa sotainas com anquinhas que lhe dão largura e escondem as suas pregas de gordura. Noutra fotografia, destoa com a sua capa e um espesso arminho branco à volta do pescoço, que lhe faz um triplo queixo. Aqui, ainda, sorri com jarreteiras acima do joelho e meias daí para baixo, que lembram as do rei de França antes da guilhotina. Frequentemente, vemo-lo rodeado de jovens seminaristas que lhe beijam a mão – magníficos, ainda por cima, de tal modo o nosso Adriano parece ter o culto da beleza grega, que, sabe-se, foi sempre mais masculina que feminina. Suscitando, simultaneamente, a admiração e a troça de Roma, Burke aparece sempre rodeado de acompanhantes obsequiosos, de Antínoos ajoelhados perante ele ou de caudatários que seguram na longa cauda vermelha da sua Cappa Magna, como os meninos de coro de uma noiva. Que espetáculo! O cardeal de saia enxovalha os seus efebos, e os pajens, em troca, compõem a sua batina arregaçada. Faz-me pensar na infanta Margarida em Las Meninas, de Velázquez!
Para dizer a verdade, nunca vi uma coisa tão extraordinária. Perante este homem mascarado para mostrar a sua virilidade, hesitamos, interrogamo-nos, perdemos o nosso latim. Girly? Tomboy? Sissy? Faltam as palavras, mesmo em inglês, para descrever este cardeal envolto nos seus ornamentos femininos. A teoria do género, ei-la! Tal como Burke a vilipendiou naturalmente: «A teoria do género é uma invenção, uma criação artificial. É uma loucura que causará imensas desgraças na sociedade e na vida daqueles que apoiam essa teoria… Alguns homens insistem [nos Estados Unidos] em entrar nas casas de banho das mulheres. É inumano», como o cardeal não teve rebuço em explicar numa entrevista.
Burke não se importa de cair em contradição. Nesta matéria, coloca a fasquia muito alta. Pode passear-se, a todo o vapor, em Cappa Magna, sotaina extralongilínea, numa floresta de renda branca ou envergando um longo casaco com forma de roupão, ao mesmo tempo que denuncia, ao longo da entrevista e em nome da tradição, uma «Igreja que se tornou demasiado feminizada».
– O cardeal Burke é aquilo que denuncia – resume, severamente, um próximo de Francisco, que pensa que o papa talvez pensasse naquele quando denunciou os prelados «hipócritas» com «almas maquilhadas».
– É um facto, hoje em dia, Burke sente-se isolado no seio do Vaticano. Mas, mais do que só, ele é único – corrige o inglês Benjamin Harnwell, um dos fiéis de Burke, que entrevistei cinco vezes.
Certamente que o prelado ainda pode contar com alguns amigos que tentam igualá-lo através das suas farpelas vermelho vivo, amarelo caca de ganso ou castanho glacé: o cardeal espanhol Antonio Cañizares, o cardeal italiano Angelo Bagnasco, o cardeal cingalês Albert Patabendige, o patriarca e arcebispo de Veneza Francesco Moraglia, o arcebispo argentino Héctor Aguer, o bispo americano Robert Morlino ou o suíço Vitus Huonder, que também fazem, todos eles, concursos de Cappa Magna. Mas a espécie está em vias de extinção. Estas «self-caricatures» ainda podiam tentar a sorte na Drag Race, o reality show televisivo que elege a mais bela drag queen dos Estados Unidos, mas, em Roma, foram todos marginalizados ou demitidos das suas funções pelo papa.
Os seus apoiantes na santa sé garantem que Burke «devolve espiritualidade à nossa época», mas evitam exibir-se com ele; o papa Bento XVI, que o mandou vir para Roma porque o considerava um bom canonista, ficou em silêncio quando ele foi castigado por Francisco; os detratores de Burke, que não querem ser citados, segredam-me que ele tem «um piquinho» e espalham alguns boatos sem que ninguém, até hoje, tenha apresentado a menor prova de uma verdadeira ambiguidade. Digamos apenas que, tal como todos os homens de Igreja, Burke é «unstraight» (um belo neologismo americano inventado por Neal Cassady, o escritor da Beat Generation, nas suas cartas ao seu amigo Jack Kerouac, para designar um não-heterossexual ou um abstinente).
O que proporciona o brilho a Burke é o seu aspeto. Ao invés da maior parte dos seus correligionários, que creem poder dissimular a sua homossexualidade multiplicando as declarações homófobas, pratica, pessoalmente, uma forma de sinceridade. É antigay e age às claras. Não procura esconder os seus gostos, exibe-os com afetação e provocação. Não há nada de efeminado em Burke: trata-se, diz, de respeitar a tradição. Mas isso não impede que o cardeal evoque irresistivelmente uma drag queen, através dos seus trajes extravagantes e da sua aparência insólita!
Julian Fricker, um artista drag alemão, que tenta reatar a tradição dos espetáculos transformistas com um grande nível de exigência artística, explica-me, quando de uma entrevista em Berlim:
– O que me impressiona, quando contemplo a capa magna, os hábitos ou o chapéu sobrepujado por ornamentos florais de cardeais como Burke, é o exagero. Cada vez é maior, cada vez é mais comprido, cada vez é mais alto; tudo isso é muito típico dos códigos das drag queens. Há essa «extravaganza» e essa artificialidade desmesurada, o repúdio da «realness» (realidade), de que se fala no calão drag, para classificar aqueles que querem parodiar-se a si próprios. Também há uma certa ironia «camp», pela escolha, por esses cardeais, de sotainas que a andrógina Grace Jones ou Lady Gaga poderiam ter usado. Esses religiosos parecem jogar com a teoria do género e as identidades que não são fixas, mas fluidas e queers.
Burke não é comum. Nem vulgar, nem medíocre. É complexo, singular – logo, fascinante. É uma bizarria. Uma obra-prima. Oscar Wilde teria adorado.
O CARDEAL BURKE é o porta-voz dos tradicionalistas e o chefe de fila da homofobia no seio da cúria romana. Sobre a questão, multiplicou as declarações retumbantes, colecionando as contas de um verdadeiro rosário antigay. «Não se deve», disse em janeiro de 2014, «convidar casais gay para jantares de família em que estejam presentes crianças». Um ano depois, considerou que os homossexuais que vivem em casais estáveis se parecem com «aqueles criminosos que assassinaram alguém e tentam ser amáveis com os outros homens». Denunciou «o papa que não tem a liberdade de alterar os ensinamentos da Igreja em relação à imoralidade dos atos homossexuais ou da insolubilidade do casamento».
Num livro de entrevistas, teorizou inclusive sobre a impossibilidade do amor entre pessoas do mesmo sexo: «Quando se fala do amor homossexual como de um amor conjugal, é impossível porque dois homens ou duas mulheres não podem viver as características da união conjugal». Para ele, a homossexualidade é um «grave pecado» porque, segundo uma fórmula clássica do catecismo católico, é «intrinsecamente desordenada».
– Burke inscreve-se na linha tradicionalista do papa Bento XVI – diz-me o antigo padre Francesco Lepore. – Sou muito hostil às suas posições, mas tenho de reconhecer que aprecio a sua sinceridade. Não gosto dos cardeais que mantêm um discurso duplo. Burke é um dos poucos que têm a coragem das suas opiniões. É um opositor radical ao papa Francisco e este sancionou-o por isso.
Obcecado com a «agenda homossexual» e a teoria do género, o cardeal Burke denunciou, nos Estados Unidos, os «gay days» da Disneylândia e a autorização dada aos homens para dançarem uns com os outros no Disney World. Quanto ao «same-sex marriage», para ele é claramente «um ato de desafio a Deus». Numa entrevista, precisa, a propósito do casamento gay, que «este tipo de mentira só podia ter uma origem diabólica: Satanás».
O cardeal leva a cabo a sua cruzada pessoal. Na Irlanda, em 2015, quando do referendo sobre o casamento, os seus comentários durante os debates foram de tal modo violentos que obrigaram o presidente da Conferência Episcopal Irlandesa a deixar de estar solidário com ele (o «sim» venceu por 62% contra 38%).
Em Roma, Burke parece um elefante numa loja de porcelanas: a sua homofobia é tal que incomoda inclusive os cardeais italianos mais homófobos. O seu «hetero-panic» lendário, expressão característica de um heterossexual que exagera tanto o seu medo da homossexualidade que chega a suscitar dúvidas quanto à sua inclinação pessoal, faz sorrir. A sua misoginia irrita. A imprensa italiana troça das suas pretensões de dama literata, das suas sotainas de cor púrpura e do seu catolicismo de renda.
Quando da visita de Francisco a Fátima, em Portugal, o cardeal Burke foi ao ponto de provocar o papa recitando de uma forma descarada o seu rosário, com o terço entre as mãos, folheando a Vulgata, enquanto o papa proferia a sua homilia: a fotografia desse gesto de desdém apareceu na primeira página da imprensa portuguesa.
– Com um papa sem sapatos vermelhos e sem vestes excêntricas, Burke fica literalmente louco – ironiza um padre.
– PORQUE HÁ TANTOS HOMOSSEXUAIS, aqui no Vaticano, entre os cardeais mais conservadores e mais tradicionalistas?
Fiz esta pergunta diretamente a Benjamin Harnwell, esse próximo do cardeal Burke, após menos de uma hora de conversa com ele. Nesse momento, Harnwell estava a explicar-me a diferença entre cardeais «tradicionalistas» e «conservadores» no seio da ala direita da Igreja. Para ele, tanto Burke como o cardeal Sarah são tradicionalistas, enquanto Müller e Pell são conservadores. Os primeiros repudiam o Vaticano II, enquanto os segundos o aceitam.
A minha pergunta apanha-o de surpresa. Harnwell olha-me, inquisidor e, por fim, diz:
– É uma boa pergunta.
Harnwell é um inglês, na casa dos cinquenta anos, que fala com um forte sotaque. Solteirão entusiástico, um pouco esotérico e próximo da extrema-direita, tem um CV complicado. Com ele, volto atrás no tempo e, perante o seu conservantismo, tenho a impressão de ter pela frente não um súbdito de Isabel II, mas da rainha Vitória. É um ator de segundo plano deste livro, e nem sequer é padre; mas aprendi muito cedo a interessar-me por essas personagens secundárias que permitem ao leitor compreender, obliquamente, lógicas complexas. Sobretudo, aprendi a gostar deste católico convertido, radical e frágil.
– Apoio Burke, defendo-o – previne-me, logo à partida, Harnwell, que sei que é um dos confidentes e conselheiros ocultos do cardeal «tradicionalista» (não «conservador», insiste ele).
Encontro-me com Harnwell durante cerca de quatro horas, ao final de uma tarde, em 2017, inicialmente no primeiro andar de um café triste da gare Roma Termini, onde combinou encontrar-se comigo, cautelosamente, antes de continuarmos a nossa conversa num restaurante boémio do centro de Roma.
Benjamin Harnwell, que se apresenta com um chapéu Panizza negro na mão, está à frente do Dignitatis Humanae Institute, uma associação ultraconservadora e de lóbi político, de que o cardeal Burke é presidente entre uma dúzia de cardeais. O conselho de administração daquela seita tradicionalista reúne os prelados mais extremistas do Vaticano e inclui as ordens mais obscuras do catolicismo: monárquicos legitimistas, ultras da Ordem de Malta e da Ordem Equestre do Santo Sepulcro, partidários do rito antigo e alguns deputados europeus católicos integristas (durante muito tempo, Harnwell foi assistente parlamentar de um deputado europeu inglês).
Ponta de lança dos conservadores no Vaticano, este lóbi é abertamente homófobo e opõe-se visceralmente ao casamento gay. Segundo as minhas fontes (e a «Testimonianza» de Mons. Viganò, de que voltaremos a falar em breve), uma parte dos membros do Dignitatis Humanae Institute em Roma e nos Estados Unidos seria constituída por homófilos ou homossexuais praticantes. Daí a minha pergunta direta a Benjamin Harnwell, que repito agora.
– Porque há tantos homossexuais, aqui no Vaticano, entre os cardeais mais conservadores e mais tradicionalistas?
Foi assim que a conversa bifurcou e se prolongou. Estranhamente, a minha pergunta libertou o nosso homem. Se até então havíamos tido uma troca de palavras convencional e entediante, nesse momento olhou-me de uma maneira diferente. Em que pensa aquele soldado do cardeal Burke? Deve ter-se informado sobre mim. Bastaram-lhe dois cliques na internet para saber que já escrevi três livros sobre a questão gay e sou um ardente apoiante das uniões civis e do casamento gay. Estes pormenores ter-lhe-iam passado despercebidos, se é que isso é possível? Ou então, foi a atração pelo interdito, essa espécie de dandismo do paradoxo, que o incitou a encontrar-se comigo? Ou ainda o sentimento de ser intocável, a matriz de tantas derivas?
O inglês esforça-se por estabelecer a distinção, como para hierarquizar os pecados, entre os homossexuais «praticantes» e aqueles que se abstêm:
– Se não há ato, não há pecado. E aliás, se não houver escolha, também não há pecados.
Benjamin Harnwell, que inicialmente estava com pressa, e tinha pouco tempo para me conceder entre dois comboios, já não parece querer deixar-me. Agora, convida-me a tomar mais um copo. Quer falar-me de Marine Le Pen, a política francesa de extrema-direita com quem simpatiza; e também de Donald Trump, cuja política aprova. E falar também da questão gay. E eis-nos em pleno cerne do meu tema que Harnwell, agora, já não abandona. Propõe-me irmos jantar.
«THE LADY DOTH PROTEST TOO MUCH, METHINKS». Só descobri o significado profundo desta frase de Shakespeare, que iria transformar na matriz deste livro, mais tarde, depois desta primeira conversa com Benjamin Harnwell e da minha visita a casa do cardeal Burke. É pena, porque não pude interrogar esses anglo-saxões sobre a famosa réplica de Hamlet que pode ser traduzida assim: «A dama faz demasiados juramentos, parece-me» (como na tradução francesa de Yves Bonnefoy); ou então: «A dama, ao que me parece, expressa demasiados protestos» (como na tradução de André Gide).
Assombrado pelo espetro de seu pai, Hamlet está convencido de que o seu tio assassinou o Rei antes de se casar com a Rainha, sua mãe; então, o padrasto teria subido ao trono no lugar de seu pai. Deve vingar-se? Como ter a certeza desse crime? Hamlet hesita. Como saber?
É aqui que Shakespeare inventa a sua célebre pantomima, uma verdadeira peça secundária na peça principal (III, 2): Hamlet vai tentar apanhar o Rei usurpador. Para tal, recorre ao teatro pedindo a uns atores de passagem que representem uma cena perante as verdadeiras personagens. Esse teatro de sombras, com um Rei e uma Rainha de comédia no cerne da tragédia, permite a Hamlet descobrir a verdade. Os atores, com um nome falso, conseguem penetrar psicologicamente nas personagens reais para fazer sobressair os aspetos mais secretos da sua personalidade. E quando Hamlet pergunta à mãe, que assiste à cena: «Senhora, que pensais desta peça?», ela responde-lhe, falando da sua própria personagem:
– A dama faz demasiados juramentos, parece-me.
A frase, que revela a hipocrisia, quer dizer que, quando se protesta demasiado vivamente contra qualquer coisa, existem grandes possibilidades de não se ser sincero. Esse excesso trai-vos. Hamlet compreende, através da sua reação e da do Rei, refletidas na Rainha e no Rei de comédia, que o casal provavelmente envenenou mesmo o seu pai.
Eis uma nova regra deste livro, No Armário do Vaticano, a terceira: Quanto mais veemente um prelado for contra os gays, quanto mais forte for a sua obsessão homófoba, maior probabilidade existe de não estar a ser sincero e de a sua veemência nos esconder algo.
Foi assim que encontrei a solução para o problema da minha investigação construindo-a sobre a pantomima de Hamlet. O objetivo não é fazer o «outing», por princípio, de homossexuais vivos, mesmo que sejam homófobos. Não quero pôr ninguém em causa nem, certamente, aumentar o drama dos padres, frades ou cardeais, que já vivem a sua homossexualidade – perto de uma centena deles confessaram-mo – no sofrimento e no medo. A minha abordagem é, para utilizar uma bela expressão em inglês, «non-judgmental»: não sou juiz! Logo, está fora de questão julgar esses padres gays. O seu número será uma revelação para inúmeros leitores, mas, a meus olhos, não é um escândalo, em si mesmo.
Se temos o direito de denunciar a sua hipocrisia – o que é o tema deste livro –, não se trata aqui de os censurar pela sua homossexualidade e é inútil referir demasiados nomes. O que é preciso, como diz o Poeta, é «inspecionar o invisível e ouvir o inaudito». Por conseguinte, é pelo teatro daqueles que fazem «demasiados juramentos» e pelos «contos de fadas» de um sistema construído quase inteiramente sobre o segredo, que eu poderia explicar as coisas. Mas, neste estádio, como disse o Poeta, «só eu tenho a chave dessa parada selvagem!»
QuASE UM ANO DEPOIS do meu primeiro encontro com Benjamin Harnwell, a que se seguiram vários almoços e jantares, fui convidado para passar um fim de semana com ele na abadia de Trisulti, em Collepardo, onde agora reside, longe de Roma.
A associação Dignitatis Humanae Institute, que dirige com Burke, viu ser-lhe atribuída, pelo governo italiano, a gestão desta abadia cisterciense, com a condição de fazerem a manutenção desse património classificado como monumento nacional. Ainda lá residem dois monges e, no dia da minha chegada, fiquei surpreendido por vê-los, ao final da tarde, sentados nos extremos da mesa em «U», comendo em silêncio.
– São os dois últimos frades de uma comunidade religiosa muito mais vasta cujos membros morreram todos. Cada um tinha o seu lugar e os dois últimos ficaram sentados onde sempre se haviam sentado, à medida que as cadeiras entre eles foram ficando vazias – explica-me Harnwell.
Porque é que aqueles dois velhotes permaneceram naquele mosteiro isolado continuando a dizer a missa à alvorada, todas as manhãs, para raros fiéis? Interrogo-me sobre o desígnio inquietante e magnífico desses religiosos. Pode não se ser crente – o que é o meu caso –, e achar admiráveis essa dedicação, essa piedade, esse ascetismo, essa humildade. Aqueles dois frades, que respeito profundamente, representam para mim o mistério da fé.
No final da refeição, ao arrumar os talheres na cozinha austera, mas vasta, vejo um calendário de parede em glória do Duce. A cada mês, uma fotografia diferente de Mussolini.
– É frequente aqui, no sul de Itália, encontrar fotografias de Mussolini – tenta justificar Harnwell, visivelmente incomodado pela minha descoberta.
O projeto de Harnwell e Burke é transformar o mosteiro em quartel-general italiano e local de formação dos católicos ultraconservadores. Nos seus planos, que me descreve longamente, Harnwell propõe-se oferecer um «retiro» a centenas de seminaristas e fiéis americanos. Passando algumas semanas ou alguns meses na abadia de Trisulti, esses missionários de um novo género frequentarão aulas, aprenderão latim, voltarão às origens e rezarão juntos. A longo prazo, Harnwell quer criar um vasto movimento de mobilização para repor a ordem na Igreja, «a boa direção», e compreendo que se trata de combater as ideias do papa Francisco.
Para levar a bom termo este combate, a associação de Burke, o Dignitatis Humanae Institute, recebeu o apoio de Donald Trump e do seu célebre conselheiro de extrema-direita Steve Bannon. Tal como confirma Harnwell, que organizou o encontro entre Burke e o católico Bannon, naquela mesma antecâmara onde estive em Roma, o entendimento entre os dois homens foi «instantâneo». A sua proximidade aumentou, ao longo de encontros e colóquios. Harnwell fala de Bannon como o seu mentor e ele faz parte da guarda romana próxima do estratega americano, sempre que este intriga no Vaticano.
Harnwell dispôs-se a angariar dinheiro para financiar o seu projeto ultraconservador, já que a angariação de fundos era a base das suas atividades. Fez um apelo a Bannon e a fundações de extrema-direita nos Estados Unidos para que o ajudassem. Tinha, inclusivamente, que ter carta de condução para chegar ao mosteiro de Trisulti pelo seu pé. Durante um almoço em Roma, anunciou-me, com um sorriso radiante, que finalmente tinha passado no seu exame de condução, depois de tentar durante 43 anos.
Trump enviou outro emissário para junto da santa sé, na pessoa de Callista Gingrich, a terceira mulher do antigo presidente republicano da Câmara dos Representantes, nomeada embaixadora. Harnwell também a acarinha desde a sua chegada a Roma. Nasceu uma aliança objetiva entre a ultradireita americana e a ultradireita do Vaticano. (Burke multiplica também as delicadezas para com os europeus, recebendo no seu salão o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, ou o ministro da Família, Lorenzo Fontana, um homófobo próximo da extrema-direita.)
Continuando o que comecei, aproveito o tempo de que disponho com Harnwell no seu mosteiro para lhe fazer novas perguntas sobre a questão gay na Igreja. O facto de o círculo próximo de João Paulo II, Bento XVI e Francisco ser constituído por inúmeros homossexuais é um segredo aberto que Harnwell conhecia. Mas quando lhe disse que um antigo cardeal secretário de Estado seria gay, o inglês não acredita.
À minha frente, repete: «O cardeal secretário de Estado gay! O cardeal secretário de Estado gay! O cardeal secretário de Estado gay!» E o assistente de tal papa, gay, também! E aqueloutro, gay, uma vez mais! Harnwell parece maravilhado com a nossa conversa.
Em seguida, durante outro almoço com ele, em Roma, dir-me-á que fez, entretanto, a sua investigaçãozinha. E confirmar-me-á que, segundo as suas próprias fontes, eu estava bem informado:
– Sim, tinha razão, o cardeal secretário de Estado é efetivamente gay!
Benjamin Harnwell deixa de falar durante um instante; eis que, naquele restaurante farta-brutos, se persigna e diz uma oração em voz alta, antes da refeição. Aqui, o gesto é anacrónico, um pouco deslocado neste bairro laico de Roma, mas ninguém lhe presta atenção quando começa a comer prudentemente a sua lasanha, acompanhada por um copo de vinho branco italiano (muito bom).
Agora, a nossa conversa segue um rumo estranho. A cada momento, ele protege, no entanto, o «seu» cardeal Raymond Burke: «ele não é político», «é muito humilde», apesar de vestir a Cappa Magna.
Harnwell é indulgente e, quanto a esta questão sensível da Cappa Magna, defende tenazmente a tradição e não o disfarce. Em contrapartida, relativamente a outros temas e outras figuras da Igreja, revela-se, corre riscos. Agora, avança de rosto descoberto.
Poderia contar mais longamente as suas conversas e os nossos cinco almoços e jantares; mostrar os boatos que os conservadores difundem. Guardemos isso para mais tarde, porque o leitor por certo me levaria a mal revelar tudo agora. Basta dizer, neste estádio, que se me tivessem descrito a história inaudita que vou contar com todos os pormenores, confesso que não teria acreditado. A realidade, é um facto, ultrapassa a ficção. The lady doth protest too much!
CONTINUANDO SENTADO NO SALÃO DO CARDEAL BURKE, que não está lá, consolado quanto à sua ausência porque um apartamento vale mais, por vezes, do que uma longa entrevista, começo a aperceber-me da dimensão do problema. É possível que Raymond Burke e o seu correligionário, Benjamin Harnwell, ignorem que o Vaticano é povoado por prelados gays? O cardeal americano é, simultaneamente, um sagaz caçador de homossexuais e um erudito apaixonado pela história antiga. Conhece melhor do que ninguém a face sombria de Sodoma. É uma longa história.
Já na Idade Média, os papas João XII e Bento IX cometeram o «pecado abominável» e toda a gente, no Vaticano, conhece o nome do amigo do papa Adriano VI (o célebre João de Salisbury) e os dos amantes do papa Bonifácio VIII. A vida maravilhosamente escandalosa do papa Paulo II é igualmente célebre: morreu, diz-se, de uma crise cardíaca, nos braços de um pajem. Quanto ao papa Sisto IV, nomeou cardeais vários dos seus amantes, nomeadamente o seu «sobrinho» Rafael, feio cardeal aos 17 anos (a expressão «cardeal-sobrinho» passou à posteridade). Júlio II e Leão X, ambos protetores de Miguel Ângelo, ou ainda Júlio III são apresentados geralmente, também eles, como papas bissexuais. Por vezes, como já referia Oscar Wilde, alguns papas escolheram o nome Inocêncio por antífrase!
Mais perto de nós, o cardeal Burke está ao corrente, como toda a gente, dos rumores recorrentes sobre os hábitos dos papas Pio XII, João XXIII e Paulo VI. Existem panfletos e libelos, tendo o cineasta Pasolini dedicado, por exemplo, um poema a Pio XII, no qual evoca um pretenso amante (A un Papa). É possível que esses rumores se baseiem em vinganças da cúria, cujo segredo pertence ao Vaticano e aos seus cardeais maledicentes.
Mas Burke não precisa de recuar tanto. Para fazer uma medição exata dessas amizades particulares, basta-lhe olhar para o seu próprio país, os Estados Unidos. Por aí ter ficado durante muito tempo, conhece de cor os seus correligionários e a lista, infinita, dos escândalos que atingiram um grande número de cardeais e bispos americanos. Contra tudo o que seria de esperar, são esses os prelados mais conservadores, mais homófobos, que foram por vezes «outed» nos Estados Unidos por um seminarista assediado sedento de vingança, um prostituto um pouco falador de mais ou pela publicação de uma fotografia ousada.
Uma moral a duas velocidades? Na América, onde tudo é maior, mais extremo, mais hipócrita, descobri uma moral a dez velocidades. Vivia em Boston no momento das primeiras revelações do imenso escândalo de pedofilia «Spotlight» e fiquei siderado, como toda a gente, com o que aconteceu. A investigação do Boston Globe libertou a palavra em todo o país fazendo aparecer à luz do dia um verdadeiro sistema no domínio de abusos sexuais: foram acusados mais de 8948 padres e recenseadas mais de 15 000 vítimas (sendo 85% rapazes de entre onze e dezassete anos). O arcebispo de Boston, o cardeal Bernard Francis Law tornou-se o símbolo do escândalo: a sua campanha de encobrimento e a sua proteção de múltiplos padres pedófilos obrigaram-no, finalmente, a demitir-se (tendo uma exfiltração bem-sucedida para Roma, oportunamente diligenciada pelo cardeal secretário de Estado Angelo Sodano, para lhe permitir beneficiar de imunidade diplomática e, assim, escapar à justiça americana).
Burke, um bom conhecedor do episcopado americano, não pode ignorar que a hierarquia católica do seu país – os cardeais, os bispos – é maioritariamente homossexual. O célebre e poderoso cardeal e arcebispo de Nova Iorque, Francis Spellman, era um «homossexual sexualmente voraz», a crer nos seus biógrafos, no testemunho do escritor Gore Vidal e também nas confidências do antigo patrão do FBI, Edgar Hoover. Do mesmo modo, o cardeal Wakefield Baum, de Washington, falecido recentemente, vivia havia inúmeros anos com o seu assistente particular – um clássico do género.
O cardeal Theodore McCarrick, antigo arcebispo de Washington, também é um homossexual praticante; conhecido pelos seus «sleeping arrangements» com seminaristas e jovens padres aos quais chamava seus «sobrinhos» (acusado, por fim, de abusos sexuais, foi proibido de todo o ministério público pelo papa, em 2018). O arcebispo Rembert Weakland foi «outed» por um antigo namorado (mais tarde, descreveu nas suas memórias o seu percurso homófilo). Outro cardeal americano foi, quanto a ele, despedido do Vaticano e devolvido aos Estados Unidos devido à sua conduta inadequada com um guarda suíço.
Ainda outro cardeal americano, bispo de uma grande cidade dos Estados Unidos, «vive há vários anos com o seu namorado, um antigo padre», enquanto um arcebispo de outra cidade, partidário do rito antigo e engatatão, «vive rodeado por um bando de jovens seminaristas», como me confirma Robert Carl Mickens, um vaticanista americano conhecedor da vida gay da alta hierarquia católica dos Estados Unidos. O arcebispo de St. Paul e Mineápolis, John Clayton Nienstedt, também seria homossexual e investigado no seguimento de alegações de «sexual misconduct with men» (alegações que nega categoricamente). Ele demitiu-se, subsequentemente, por encobrir os abusos sexuais. Uma demissão aceite, também ela, pelo papa Francisco.
A vida privada dos cardeais americanos, num país onde o catolicismo é minoritário e há muito tempo fonte de notícias negativas na imprensa, é amiúde alvo de investigações minuciosas pelos meios de comunicação social, que têm menos escrúpulos do que em Itália, Espanha ou França quanto a revelar a vida dupla dos prelados. Como em Baltimore, onde o círculo próximo do cardeal foi apontado a dedo em virtude dos seus maus hábitos e dos seus comportamentos agitados. O cardeal em questão, Edwin Frederick O’Brien, o antigo arcebispo, não quis responder às minhas perguntas sobre as amizades especiais da sua diocese. Vive atualmente em Roma, onde ostenta o título e os atributos de grão-mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém – não estou a brincar. Mandou o seu adjunto, Agostino Borromeo, receber-me e, depois, o seu porta-voz, François Vayne, um francês simpático, que teve o cuidado, ao longo de três encontros, de desmentir todos os rumores.
Segundo as informações de que disponho, recolhidas pelos meus investigadores numa dezena de países, um número significativo de «lugar-tenentes», «grão-priores», «grandes oficiais» e «chanceleres» da Ordem Equestre, nos países onde está representada, seriam «closeted» e «praticantes», ao ponto de alguns gozarem com esta Ordem Equestre cuja hierarquia seria um «exército de malucas a cavalo».
– A presença de inúmeros homossexuais praticantes nas estruturas hierárquicas da Ordem Equestre não é segredo para ninguém – garante-me um grande oficial da Ordem, ele próprio abertamente homossexual.
O cardeal americano James M. Harvey, que se tornou prefeito da Casa Pontifícia no Vaticano, um lugar sensível, foi alvo de um procedimento de afastamento acelerado, «promoveatur ut amoveatur», por Bento XVI. Este ter-lhe-ia censurado o facto de ter recrutado Paolo Gabriele, o mordomo do papa, que esteve na origem das fugas do VatiLeaks. Teria Harvey desempenhado um papel neste escândalo, do qual se disse que também estava ligado a um «lóbi gay»?
O que pensa o cardeal Burke desses escândalos repetidos, dessas estranhas coincidências e do elevado número de cardeais que fazem parte «da paróquia»? Como pode erigir-se em defensor da moral quando o episcopado americano está desacreditado a este ponto?
Lembremo-nos também, apesar de se tratar de outro assunto, de que cerca de uma dezena de cardeais americanos esteve implicada em casos de abusos sexuais – quer por terem sido os autores dos mesmos, como Theodore McCarrick, demitido; quer por terem protegido padres predadores, transferindo-os de paróquia em paróquia, como Bernard Law e Donald Wuerl; quer ainda por terem sido insensíveis à sorte das vítimas, minimizando o seu sofrimento para proteger a instituição (os cardeais Roger Mahony, de Los Angeles, Timothy Dolan, de Nova Iorque, William Levada, de São Francisco, Justin Rigali, de Filadélfia, Edwin Frederick O’Brien, de Baltimore, ou Kevin Farrell, de Dallas). Todos criticados pela imprensa, por associações de vítimas ou por Mons. Viganò, na sua «Testimonianza». O próprio cardeal Burke foi referenciado, pela associação americana de renome, Bishop Accountability, pela gestão inadequada das questões relacionadas com pedofilia, na diocese do Wisconsin e Missouri quando foi bispo e, mais tarde, arcebispo: segundo se disse, teria tido tendência para minimizar os factos e teria sido, de certa forma, «insensível» à sorte dos queixosos.
O papa Francisco, visando explicitamente os cardeais americanos, proferiu palavras severas no avião de regresso da sua viagem aos Estados Unidos, em setembro de 2015: «Aqueles que cobriram estas coisas [os abusos sexuais] também são culpados, nomeadamente alguns bispos».
Francisco, exasperado com a situação americana, nomeou aliás, em 2016, três cardeais de rutura: Blase Cupich, para Chicago, Joseph Tobin, para Newark, e Kevin Farrell, chamado a Roma como prefeito para se ocupar do ministério que tem a seu cargo os leigos e a família. Estes novos cardeais, que se encontram nos antípodas do perfil reacionário e homófobo de Burke, são pastores bastante sensíveis à causa dos migrantes e das pessoas LGBT, e partidários da tolerância zero na questão dos abusos sexuais. Se um dentre eles poderia ser homossexual (Mons. Viganò acusa-os a todos de defender uma ideologia «pró-gay»), parece que os outros dois não fazem parte «da paróquia» – o que tenderia a confirmar a quarta regra deste livro: Quanto mais pró-gay é um prelado, menos suscetível é de ser gay; quanto mais homófobo é um prelado, mais provavelmente é homossexual.
E, DEPOIS, HÁ MYCHAL JUDGE. Nos Estados Unidos, este frade franciscano é anti-Burke por excelência. Teve um percurso exemplar na simplicidade e na pobreza, amiúde em contacto com os excluídos. Tendo sido alcoólico a dada altura, Judge conseguiu reabilitar-se e dedicou a sua vida de religioso a ajudar os pobres, os sem-abrigo e os doentes de SIDA que vai ao ponto de tomar nos braços – uma imagem ainda rara no início da década de 1980. Tendo sido nomeado, em seguida, capelão do New York City Fire Department, acompanha os bombeiros aos locais dos incêndios e, na manhã de 11 de setembro de 2001, contou-se entre os primeiros a precipitarem-se para as torres gémeas do World Trade Center. Foi aí que morreu, às 9h59 da manhã, com um traumatismo craniano.
O seu corpo foi transportado por quatro bombeiros, como mostra uma das fotografias mais célebres do 11 de setembro, imortalizada por Shannon Stapleton para a Reuters – uma verdadeira «Pietà moderna». Identificado imediatamente no hospital, o padre Mychal Judge foi designado a primeira vítima oficial do 11 de setembro: N.º 0001.
Em seguida, Mychal Judge tornou-se um dos heróis da história dos atentados: 3000 pessoas assistiram ao seu funeral na igreja de São Francisco de Assis, em Manhattan, na presença de Bill e Hillary Clinton e do mayor republicano de Nova York, Rudolph Giuliani, que afirmou que o seu amigo era «um santo». Um quarteirão de uma rua de Nova Iorque foi rebatizado com o seu nome; o seu capacete de bombeiro foi oferecido ao papa João Paulo II, em Roma; e a França condecorou-o com a Legião de Honra, a título póstumo. Quando de uma investigação em Nova Iorque, em 2018, em que interrogo vários «firefighters» e entro em contacto com o porta-voz dos bombeiros da cidade, verifico que a sua memória continua viva.
Pouco depois da sua morte, os seus amigos e colegas de trabalho revelam, todavia, que Mychal Judge era um padre gay. Os seus biógrafos confirmaram essa orientação sexual, bem como o antigo comandante dos bombeiros de Nova Iorque. Judge era membro da Dignity, uma associação que reúne católicos gays. Em 2002, uma lei reconheceu os direitos sociais dos companheiros homossexuais dos bombeiros e polícias mortos no 11 de setembro. Foi batizada: The Mychal Judge Act. O cardeal homófobo, Raymond Burke, e o padre-capelão, gay-friendly, Mychal Judge: dois lados opostos da Igreja católica nos Estados Unidos.
QUANDO ENTREGO OS PRIMEIROS RESULTADOS da minha investigação e essas informações não tratadas ao cardeal americano James Francis Stafford, antigo arcebispo de Denver, durante duas entrevistas no seu apartamento privado em Roma, este fica estupefacto. Escuta-me religiosamente e aguenta os golpes. Soube imediatamente, a primeira impressão é sempre boa: o meu «gaydar» funciona bastante bem, a sua atitude e a sua sinceridade convencem-me de que Stafford não é, provavelmente, homossexual – o que é tão raro na cúria romana. Nem por isso a sua reação é menos severa:
– Não, Frédéric, não é verdade. É falso. Está enganado.
Avancei o nome de um importante cardeal americano, que ele conhece bem, e Stafford desmente categoricamente a sua homossexualidade. Magoei-o. E, no entanto, sei que não me engano porque disponho de testemunhos em primeira mão, confirmados depois; descubro também que o cardeal nunca fez verdadeiramente a pergunta a si mesmo sobre a possível vida dupla do seu amigo.
Agora, parece refletir, hesitar. A sua curiosidade leva a melhor sobre a sua lendária prudência. No meu foro íntimo, monologando em voz baixa, comento que o cardeal «tem olhos, mas não vê». Ele mesmo me confiará, com devoção, um pouco mais tarde «ser, por vezes, um pouco ingénuo» e muitas vezes só se ter apercebido tardiamente de coisas que toda a gente sabia.
Para desanuviar o ambiente, conduzo o cardeal um pouco para o lado, evoco obliquamente outros nomes, refiro casos precisos, e Stafford reconhece que ouviu determinados rumores. Falamos bastante abertamente da homossexualidade, dos inúmeros casos que mancharam a imagem da Igreja nos Estados Unidos e em Roma. Stafford parece sinceramente abatido e até desesperado com o que lhe conto e que já não pode desmentir.
Agora, falo-lhe de algumas grandes figuras literárias católicas, como do escritor François Mauriac, que tanto o influenciou na juventude; a publicação da biografia de Jean-Luc Barré, bem documentada, confirmou a sua homossexualidade de uma forma definitiva.
– Está a ver, por vezes, compreendemos tardiamente as verdadeiras motivações das pessoas, os seus segredos tão bem protegidos – digo-lhe.
Stafford está esmagado. «Até Mauriac», parece dizer, como se lhe tivesse feito uma revelação estrondosa, quando a homossexualidade do escritor já não é contestada hoje em dia. Stafford parece um pouco perdido. Já não tem a certeza de nada. Vejo, no seu olhar, a sua angústia, insondável, o seu medo, o seu desgosto. Os seus olhos embaciam-se, magníficos e agora rasos de lágrimas.
– Não choro [weep] frequentemente – diz-me. – Não choro facilmente.
Juntamente com o francês Jean-Louis Tauran, James Francis Stafford continuará a ser, sem dúvida, o meu cardeal preferido desta longa investigação. É a bondade personificada e acabo por me afeiçoar a esse homem idoso, frágil e que prezo pela sua própria fragilidade. Sei que o seu misticismo não é fingido.
– Espero que esteja enganado, Frédéric. Espero-o profundamente.
Falamos da nossa paixão comum pela América, das apple pies e dos ice creams, como em On the Road, que se tornam melhores e mais cremosos à medida que avançamos para o Oeste americano.
Hesito em contar-lhe a minha viagem pelo Colorado (foi arcebispo de Denver) e as minhas visitas às igrejas mais tradicionais de Colorado Springs, bastião da direita evangelista americana. Gostaria de lhe falar desses padres e desses pastores violentamente homófobos, que entrevistei na Focus on the Familiy ou na New Life Church. O fundador desta última igreja, Ted Haggard, revelou-se finalmente homossexual, depois de ter sido denunciado por um acompanhante pago, chocado com a sua hipocrisia. Mas será necessário provocá-lo mais? Não é responsável por esses religiosos loucos.
Sei bem que Stafford é conservador, pro-life e anti-Obama, mas se pôde mostrar-se rigorista e puritano, nunca foi sectário. Não é um polemista e não aprova de modo algum os cardeais que se juntaram à direção do instituto ultraconservador Dignitatis Humanae Institute. De Burke, sei que já não espera nada, apesar de ter umas palavras gentis, mas artificiais, sobre a sua pessoa:
– É um bom homem – diz-me Stafford.
A nossa conversa no outono da sua vida – tem 86 anos –, foi a do fim das ilusões?
– Em breve, vou regressar definitivamente aos Estados Unidos – confia-me Stafford, enquanto atravessamos as suas diferentes estantes, dispostas em fileira, no seu imenso apartamento da Piazza di San Calisto.
Prometi enviar-lhe um pequeno presente, uma obra de que gosto muito. Ao longo desta investigação, esse livrinho branco tornar-se-ia, como veremos, um código, acerca do qual preferia manter o silêncio. Tendo-lhe tomado o gosto, irei oferecê-lo, mês após mês, a uma vintena de cardeais, entre os quais Paul Poupard, Camillo Ruini, Leonardo Sandri, Tarcisio Bertone, Robert Sarah, Giovanni Battista Re, Jean-Louis Tauran, Christoph Schönborn, Gerhard Ludwig Müller, Achille Silvestrini e, claro, a Stanislaw Dziwisz e a Angelo Sodano. Sem esquecer os arcebispos Rino Fisichella e Jean-Louis Bruguès, ou ainda Mons. Battista Ricca. Também o ofereci a outras eminências e excelências que terão de permanecer anónimas.
A maior parte dos prelados gostou desse presente com duplo sentido. E vários voltaram a falar-me dele mais tarde, entusiasmados ou mais prudentes. Alguns agradeceram por escrito ter-lhes oferecido esse livro de pecadores. Talvez o único que realmente o leu, Jean-Louis Tauran – um dos poucos cardeais verdadeiramente cultos do Vaticano –, disse-me que aquele pequeno livro branco o inspirara muito. E que o citava frequentemente nas suas homilias.
Quanto ao velho cardeal Francis Stafford, falou comigo afetuosamente acerca do livrinho cor de alabastro, quando voltei a vê-lo, uns meses mais tarde. Acrescentando, enquanto me olhava fixamente:
– Frédéric, rezarei por si.
O DEVANEIO QUE ME LEVARA tão longe foi interrompido de súbito por don Adriano. O assistente do cardeal Burke mete a cabeça no salão, mais uma vez. Pede desculpa novamente, ainda antes de me comunicar as últimas informações. O cardeal não chegaria a horas ao encontro.
– Sua Eminência pede desculpa. Pede desculpa, realmente. Estou muito envergonhado, peço desculpa – repete don Adriano, desamparado, manifestando obediência e baixando o olhar ao dirigir-se a mim.
Ficarei a saber pelos jornais, pouco depois, que o cardeal foi castigado mais uma vez por Francisco.
Lamento deixar o apartamento, sem ter podido apertar a mão de sua Eminência. Vamos marcar uma nova data, promete-me don Adriano. Urbi ou Orbi.
EM AGOSTO DE 2018, quando estava novamente a viver num apartamento no interior do Vaticano, enquanto terminava este livro, a publicação surpreendente da «Testimonianza» do arcebispo Carlo Maria Viganò provocou uma verdadeira deflagração no seio da cúria romana. Dizer que esse documento, centrado nos Estados Unidos, teve «o efeito de uma bomba» seria um eufemismo reforçado por uma lítotes! A imprensa levantou de imediato suspeitas de que o cardeal Raymond Burke e as suas redes americanas (nomeadamente, Steve Bannon, o antigo estratega político de Donald Trump) poderiam ter tido algum envolvimento. E o velho cardeal Stafford não poderia ter imaginado uma carta como aquela, nem sequer nos seus piores pesadelos. Quanto a Benjamin Harnwell e aos membros do seu Dignitatis Humanae Institute, tiveram um momento de alegria… antes de caírem na realidade.
– Você foi o primeiro a falar-me desse secretário de Estado e desses cardeais como sendo homossexuais e tinha razão – diz-me Harnwell, quando do quinto almoço em Roma, logo no dia seguinte ao início das hostilidades.
Numa carta de onze páginas, publicada em duas línguas por jornais e sites ultraconservadores, o antigo núncio em Washington, Carlo Maria Viganò, ataca o papa Francisco, num panfleto cheio de vitríolo publicado deliberadamente no dia da viagem pontifical à Irlanda, país onde o catolicismo é devastado por casos de pedofilia. O prelado acusa o papa de ter dado cobertura, pessoalmente, aos abusos homossexuais do cardeal americano Theodore McCarrick, que conta hoje 88 anos. Este último, antigo presidente da Conferência Episcopal Americana, um prelado poderoso, grande angariador de dinheiro – e de amantes – foi privado do seu título cardinalício e demitido pelo papa Francisco. No entanto, Viganò utiliza como pretexto, precisamente, o caso McCarrick para ajustar as suas contas, sem qualquer superego. Fornecendo um grande número de informações, de anotações e de datas que confirmam a sua tese, o núncio aproveita esse facto, deselegantemente, para sugerir ao santo padre que se demita. Ainda mais hipocritamente, enumera os cardeais e bispos da cúria romana e do episcopado americano que, segundo ele, participaram nesse imenso encobrimento: é uma lista infinita de nomes de prelados, entre os mais importantes do Vaticano, «outed», para o bem e para o mal. (Em defesa do papa, o seu círculo próximo refere-me que Francisco «foi informado inicialmente por Viganò de que o cardeal McCarrick tinha relações homossexuais com seminaristas maiores, algo que, a seus olhos, não era suficiente para o condenar». Em 2018, quando soube, com toda a certeza, que também havia, para além das relações homossexuais, abuso sexual de menores, «castigou de imediato o cardeal». A mesma fonte duvida que o papa Bento XVI tenha tomado medidas sérias em relação a McCarrick, medidas essas que, se alguma vez existiram, não foram aplicadas, em todo o caso.)
A publicação da «Testimonianza» de Mons. Viganò, um verdadeiro «VatiLeaks III», conheceu uma repercussão internacional sem precedentes, no final do verão de 2018: foram publicados milhares de artigos em todo o mundo, os fiéis ficaram siderados e a imagem do papa Francisco foi atingida. Conscientemente ou não, Viganò acaba por dar argumentos a todos os que pensavam, havia muito, que existiam cumplicidades ativas em relação aos crimes e aos abusos sexuais no próprio seio do Vaticano. E embora o Osservatore Romano apenas dedique uma linha ao relatório («um novo episódio de oposição interna», limita-se a escrever o órgão oficial da santa sé), a imprensa conservadora e de extrema-direita exige, enfurecida, uma investigação interna e, por vezes, também, a demissão do papa.
O cardeal Raymond Burke – que afirmava alguns dias antes: «creio que já está na hora de reconhecermos que temos um problema muito grave de homossexualidade na Igreja» – conta-se entre os primeiros a erguer a sua voz: «A corrupção e a infâmia que entraram na Igreja devem ser purificadas na raiz», clama o prelado, que exige uma «investigação» sobre a «Testimonianza» de Viganò, tendo em conta o passado sério do acusador, cuja «autoridade» não apresenta, segundo ele, a menor dúvida.
– O cardeal Burke é amigo de Mons. Viganò – confirma-me Benjamin Harnwell, pouco depois da publicação da carta fatídica. (Aliás, Harnwell diz-me que tem um encontro com Burke, nesse dia, «para uma troca de impressões».)
No seguimento, vários prelados ultraconservadores precipitam-se pela brecha aberta para enfraquecer Francisco. O arcebispo reacionário de São Francisco, Salvatore Cordileone, sobe ao palco para acreditar e legitimar o texto «sério» e «desinteressado» de Viganò e denunciar violentamente a homossexualização da Igreja – o que pode fazer sorrir.
A ala direita da cúria vem declarar guerra a Francisco. Nada impede mesmo de pensar que esta ofensiva seja lançada por uma fação gay contra outra fação gay da cúria, sendo uma anti-Francisco e de extrema-direita e a outra pró-Francisco e de esquerda. Uma esquizofrenia notável que o padre e teólogo James Alison me resumirá, quando de uma conversa em Madrid, com uma fórmula significativa:
– It’s an intra-closet war! O caso Viganò é a guerra do velho armário contra o novo armário!
Embora o arcebispo Carlo Maria Viganò seja um grande profissional cuja seriedade é geralmente reconhecida, o seu gesto não está acima de todas as suspeitas. Este homem irascível e «closeted» não é alguém que lance alertas! É certo que o núncio conhece de cor a situação da Igreja nos Estados Unidos, onde foi embaixador da santa sé durante cinco anos. Antes, foi secretário-geral do governatorado da cidade do Vaticano, o que lhe permitiu tratar de inúmeros dossiers e ser informado de todos os assuntos internos, nomeadamente dos relacionados com os costumes esquizofrénicos dos mais altos prelados. É mesmo possível que tenha guardado dossiers sensíveis sobre um grande número deles. (Viganò sucedeu nesse cargo a Mons. Renato Boccardo, hoje em dia arcebispo de Spoleto, onde o entrevistei: revelou-me alguns segredos interessantes.)
Tendo sido encarregado também da afetação dos diplomatas da santa sé, um corpo de elite donde saiu um grande número de cardeais da cúria romana, Viganò aparece, portanto, como uma testemunha fiável e a sua carta, como irrecusável.
Disse-se muito que esta «Testimonianza» era uma operação levada a cabo pela ala dura da Igreja para desestabilizar Francisco, estando Viganò estreitamente ligado às redes da extrema-direita católica. Segundo as minhas informações, este ponto não está provado. Tratar-se-ia menos de um «complot», ou de uma tentativa de «putsch», como pudemos ler, do que de um ato que creio ser isolado e pouco exaltado. Apesar de ser conservador e «rígido», Viganò é, antes de mais, um «curial», isto é, um homem da cúria e um produto puro do Vaticano. É, segundo uma testemunha que o conhece bem, aquele «tipo de homem que é geralmente leal ao papa: pró-Wojtyla sob João Paulo II, pró-Ratzinger sob Bento XVI e pró-Bergoglio sob Francisco».
– Mons. Viganò é um conservador, digamos, na linha de Bento XVI, mas é, antes de tudo, um grande profissional. Acusa com datas, factos, é muito preciso nos seus ataques – explica-me, durante um almoço em Roma, o célebre vaticanista italiano, Marco Politi.
O cardeal Giovanni Battista Re, que é um dos raros que foram citados positivamente no documento, mostra-se apesar de tudo severo quando o interrogo, no seu apartamento do Vaticano, em outubro de 2018:
– Triste! É muito triste! Como é que Viganò pôde fazer uma coisa destas? Há qualquer coisa que não está bem na sua cabeça… [Faz-me um sinal como se se tratasse de um louco.] É uma coisa incrível!
Pelo seu lado, o padre Federico Lombardi, antigo porta-voz dos papas Bento XVI e Francisco, sugere-me, quando de uma das nossas conversas regulares, depois da publicação da carta:
– Mons. Viganò foi sempre bastante rigoroso e corajoso. Ao mesmo tempo, em cada um dos cargos que ocupou, foi um elemento de grande divisão. Esteve sempre um pouco em guerra. Colocando-se nas mãos de jornalistas reacionários bem conhecidos, põe-se, portanto, ao serviço de uma operação anti-Francisco.
Não tem a menor dúvida de que o caso Viganò foi tornado possível graças à ajuda de meios de comunicação social e de jornalistas ultraconservadores que se opõem à linha do papa Francisco (os italianos Marco Tosatti e Aldo Maria Valli, o National Catholic Register, LifeSiteNews.com ou ainda o riquíssimo americano, Timothy Busch, da rede de televisão católica EWTN).
– Este texto foi imediatamente instrumentalizado pela imprensa católica reacionária – explica-me o monge beneditino italiano Luigi Gioia, um excelente conhecedor da Igreja, quando de uma entrevista em Londres. – Os conservadores empenham-se em negar a causa dos abusos sexuais e do encobrimento da Igreja: o clericalismo. Isto é, um sistema oligárquico e condescendente que apenas tem como fim a preservação do poder a qualquer preço. Para evitar reconhecer que é a própria estrutura da Igreja que está em causa, procuram-se bodes expiatórios: os gays que se teriam infiltrado na instituição e a comprometeram por causa da sua incapacidade intrínseca para se refrearem sexualmente. É a tese de Viganò. A direita não teve a menor dificuldade em aproveitar esta ocasião inesperada para tentar impor a sua agenda homófoba.
Se esta campanha contra Francisco é reconhecida, parece-me, mesmo assim, que o gesto de Viganò é mais irracional e solitário do que se pensou: é um ato desesperado, uma vingança pessoal, acima de tudo, fruto de uma ferida íntima profunda. Viganò é um lobo – mas um lobo solitário.
Então, porque é que rompe subitamente com o papa? Um influente monsignore no círculo próximo de Mons. Becciu, então ainda «substituto», ou seja, o «ministro» do Interior do papa, transmitiu-me a sua hipótese, durante um encontro no Vaticano, pouco depois da publicação da carta (esta conversa, tal como a maior parte das minhas entrevistas, foi gravada com o acordo do minutador):
– O arcebispo Carlo Maria Viganò, que foi sempre vaidoso e um pouco megalómano, sonhava ser criado cardeal. Era o seu sonho absoluto, o seu único sonho, na verdade. O sonho de uma vida. É verdade que os seus antecessores foram geralmente elevados à púrpura. Mas ele não! Francisco começou por mandá-lo regressar de Washington e, em seguida, privou-o do seu soberbo apartamento, precisamente aqui, no interior do Vaticano e ele teve de se mudar para uma residência no meio dos núncios aposentados. Durante todo esse tempo, Viganò reprimiu a cólera. Mas continuava a esperar! Uma vez passado o consistório de junho de 2018, onde não foi criado cardeal, as suas últimas esperanças esfumaram-se: ia fazer 78 anos e compreendeu que o seu momento passara. Ficou desesperado com isso e decidiu vingar-se. É tão simples como isso. A sua carta tem pouco que ver com os abusos sexuais e tudo que ver com essa deceção.
Desde há muito que Viganò foi alvo de críticas pela sua vaidade, as suas maledicências, a sua paranoia e foi, inclusive, suspeito de uma vez ter alimentado a imprensa, o que lhe valeu ter sido despedido de Roma e enviado para Washington, por ordem do cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado sob Bento XVI (as notas do VatiLeaks são explícitas em relação a estes diferentes pontos). Também existem rumores sobre as suas inclinações: a sua obsessão antigay é tão irracional que poderia esconder uma repressão e uma «homofobia interiorizada». É, aliás, a tese do jornalista católico americano Michael Sean Winters que fez o «outing» de Viganò: o «seu ódio a si mesmo» fá-lo-ia odiar os homossexuais; seria aquilo que denuncia.
O papa, que se recusou a comentar o panfleto a quente, deu a entender uma análise semelhante. Numa homilia codificada de 11 de setembro de 2018, sugere que o «Grande Acusador que se enfurece contra os bispos», que «procura revelar os pecados», faria melhor, em vez de acusar os outros, «acusar-se a si mesmo».
Alguns dias depois, Francisco reincide: ataca de novo Viganò, sem o nomear, numa outra homilia que visa os «hipócritas», uma palavra que repete uma dezena de vezes. «Os hipócritas de dentro e de fora», insiste. Acrescentando: «o Diabo utiliza os hipócritas […] para destruir a Igreja». The lady doth protest too much!
ESCRITA, OU NÃo, por uma «drama queen», o mais interessante da «Testimonianza» encontra-se noutro aspeto. Não só nas motivações secretas de Mons. Viganò, provavelmente múltiplas, mas também na veracidade dos factos que revela. E é aqui que a sua carta se torna um documento único, um testemunho importante, sobre a «cultura do segredo», a «conspiração do silêncio» e a homossexualização da Igreja.
Apesar da opacidade do seu texto, que é uma mistura de factos e de insinuações, Viganò fala sem ambiguidades: considera necessário «confessar publicamente as verdades que mantivemos escondidas» e pensa que «as redes homossexuais presentes na Igreja devem ser erradicadas». Ao fazê-lo, o núncio visa nomeadamente os três últimos secretários de Estado – Angelo Sodano, sob João Paulo II, Tarcisio Bertone, sob Bento XVI e Pietro Parolin, sob Francisco –, como sendo suspeitos de terem dado cobertura a abusos sexuais ou de pertencerem ao «corrento filo omossessuale», a «corrente pró-homossexual» do Vaticano. Com os diabos!
Pela primeira vez, um alto diplomata do Vaticano revela os segredos dos casos de pedofilia e da grande pregnância da homossexualidade no Vaticano. No entanto, eu levantaria a hipótese, seguindo assim a análise de vários vaticanistas experientes, de que Mons. Viganò se interessa menos pelo tema dos abusos sexuais (sendo ele próprio acusado pela imprensa de tentar encerrar a investigação ao arcebispo John Nienstedt – alegações que Viganò nega veementemente) do que pela questão gay: o «outing» parece ser a única e verdadeira motivação da sua carta. O seu novo memorando de outubro de 2018 confirma definitivamente este ponto.
Ao fazer isso, o núncio comete dois erros importantes. Em primeiro lugar, mistura numa única crítica várias categorias de prelados que têm poucas relações entre elas, nomeadamente padres suspeitos de terem cometido abusos sexuais (o cardeal de Washington, Theodore McCarrick); prelados que, segundo ele, teriam dado cobertura a esses predadores (por exemplo, de acordo com a sua carta, os cardeais Angelo Sodano ou Donald Wuerl); prelados que, segundo ele, «pertencem à corrente homossexual» (cita, sem apresentar provas, o cardeal americano, Edwin Frederick O’Brien e o italiano, Renato Raffaele Martino) e prelados que diz terem sido «cegados pela sua ideologia pró-gay» (os cardeais americanos Blase Cupich e Joseph Tobin). No total, cerca de quarenta cardeais e bispos são apontados a dedo ou «outed». (Mons. Cupich e Mons. Tobin desmentiram firmemente as acusações do núncio; Donald Wuerl apresentou ao papa a sua demissão, que foi aceite; os restantes não comentaram.)
O que é chocante no testemunho de Viganò é a grande confusão mantida entre padres culpados de crimes ou de encobrimento, por um lado; e padres homossexuais ou apenas gay-friendly, por outro. Esta desonestidade intelectual grave que mistura abusadores, condescendentes e aqueles que eram simplesmente homossexuais ou homófilos só pode ser o produto de um espírito complicado. Viganò ficou bloqueado na homofilia e homofobia da década de 1960, quando ele próprio tinha vinte anos: não compreendeu que os tempos mudaram e que passámos, na Europa e desde a década de 1980, da criminalização da homossexualidade para a criminalização da homofobia! O seu pensamento de outrora relembra também os escritos de homossexuais homófobos típicos, como o padre francês Tony Anatrella ou o cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, de que em breve teremos oportunidade de voltar a falar. Esta confusão inadmissível entre culpado e vítima encontra-se, de resto, no próprio cerne da questão dos abusos sexuais: Viganò é a ilustração caricatural daquilo que denuncia.
Para além desta grave confusão intelectual generalizada, o segundo erro de Viganò, o mais grave no plano estratégico para a perenidade do seu «testamento», teria sido o «outing» de alguns cardeais importantes próximos de Francisco (Parolin, Becciu), mas também daqueles que animaram os pontificados de João Paulo II (Sodano, Sandri, Martini) e de Bento XVI (Bertone, Mamberti). É certo que todos os conhecedores da história vaticana sabem que o caso McCarrick tem como fonte as derivas orquestradas sob o pontificado de João Paulo II: ao escrevê-lo, o núncio priva-se, todavia, de inúmeros dos seus apoiantes conservadores. Menos estratego do que impulsivo, Viganò vinga-se cegamente «outing» todos aqueles de que não gosta, sem plano nem tática, pensando que a sua mera palavra é prova suficiente para denunciar a homossexualidade dos seus colegas. Assim, os jesuítas são suspeitos de serem «desviantes» (leia-se homossexuais)! Ao acusar toda a gente, menos ele próprio, Viganò revela magnificamente, e contra a sua vontade, que a teologia dos integristas poderá ser, também, uma sublimação da homossexualidade. Foi assim que Viganò se privou de aliados: a direita do Vaticano não pode admitir, por mais crítica que seja em relação a Francisco, que se lance a dúvida sobre os pontificados anteriores de João Paulo II e de Bento XVI. Ao escolher como alvos Angelo Sodano e Leonardo Sandri (apesar de, estranhamente, poupar os cardeais Giovanni Battista Re, Jean-Louis Tauran e, sobretudo, Stanislaw Dziwisz), Viganò comete um erro estratégico importante, sejam as suas afirmações verdade, ou não.
A extrema-direita da Igreja, que inicialmente apoiou o núncio e defendeu a sua credibilidade, apercebeu-se rapidamente da armadilha. Após uma primeira investida tonitruante, o cardeal Burke calou-se, por fim, revoltado por o nome do seu amigo próximo ultraconservador, Renato Raffaele Martino, figurar na carta (Burke validou um comunicado de imprensa, escrito por Benjamin Harnwell, contestando firmemente o facto de Martino poder fazer parte da «corrente homossexual» – sem fornecer quaisquer provas disso, naturalmente). De igual modo, Georg Gänswein, o colaborador mais próximo do papa emérito Bento XVI, teve o cuidado de não confirmar a carta, por mais que lhe custe. Dar crédito ao testemunho de Viganò seria, portanto, para os conservadores, dar um tiro no pé e, simultaneamente, correr o risco de entrar numa guerra civil, onde todos os golpes seriam permitidos. Sendo os homossexuais no armário mais numerosos, talvez, na direita da Igreja do que na esquerda, o efeito boomerang seria devastador.
No círculo próximo de Francisco, um arcebispo da cúria com quem me encontrei no momento da publicação da carta, justificou com estas palavras a prudência do papa:
– Que quer que o papa responda a uma carta que lança a suspeita sobre vários antigos secretários de Estado do Vaticano e dezenas de cardeais de serem cúmplices de abusos sexuais ou homossexuais? Confirmar? Desmentir? Negar os abusos sexuais? Negar a homossexualidade no Vaticano? Vê bem que a margem de manobra era limitada. Se Bento XVI também não reagiu, foi pelas mesmas razões. Nem um nem outro podiam expressar-se depois de um texto tão perverso.
Mentira, vida dupla, encobrimento, a «Testimonianza» de Mons. Viganò mostra pelo menos uma coisa que vamos compreender neste livro: toda a gente se apoia e toda a gente parece mentir no Vaticano. O que faz lembrar as análises da filósofa Hannah Arendt sobre a mentira em As Origens do Totalitarismo ou no seu célebre artigo «Verdade e política», onde sugeria que «quando uma comunidade se lança na mentira organizada», «quando toda a gente mente sobre tudo o que é importante», e permanentemente, quando se tem «tendência para transformar o facto em opinião», para repudiar as «verdades de facto», então o resultado não é tanto que se acredite nas mentiras, mas que se destrua «a realidade do mundo comum».
E o arcebispo da cúria conclui:
– Viganò não se interessa nada pela questão dos abusos sexuais e o seu memorando é muito pouco útil quanto a este primeiro ponto. Em contrapartida, o que quis fazer foi elaborar uma lista dos homossexuais do Vaticano e denunciar a infiltração dos gays na santa sé. É o seu objetivo. Digamos que, em relação a este segundo ponto, a sua carta está provavelmente mais próxima da verdade do que no primeiro. (Neste livro, utilizarei com prudência a «Testimonianza» de Viganò, porque mistura factos provados ou prováveis, com puras calúnias. E embora esse documento tenha sido considerado credível por dezenas de cardeais e bispos ultraconservadores, não deve ser tomado literalmente, nem subestimado.)
Eis-nos, por conseguinte, No Armário do Vaticano. Desta vez, o testemunho é irrefutável: um eminente núncio e arcebispo emérito acaba de revelar, sem rodeios, a presença massiva de homossexuais no Vaticano. Acaba de nos revelar um segredo bem guardado. Acaba de abrir a caixa de Pandora. Francisco está, realmente, no meio de malucas!