3.

Quem sou eu para julgar?

«QUEM SOU EU PARA JULGAR?» Giovanni Maria Vian repete esta fórmula cujo sentido profundo parece procurar ainda. «Quem sou eu para julgar?» É uma nova doutrina? Uma frase improvisada um pouco por acaso? Vian não sabe muito bem o que pensar. Quem é ele para julgar?

A fórmula, em forma interrogativa, foi proferida pelo papa Francisco, na noite de 28 de julho de 2013, no avião que o trazia do Brasil. Tornou-se, de imediato, mediatizada no mundo inteiro, a frase mais célebre do pontificado. Pela sua empatia, parece-se com Francisco, o papa gay-friendly que quer romper com a linguagem «homófoba» dos seus antecessores.

Giovanni Maria Vian, cuja função não é comentar as palavras do papa, mas sim transmiti-las, mantém-se prudente. Dá-me a transcrição oficial da conferência improvisada, durante a qual Francisco proferiu essa frase. Se nos ativermos ao contexto, ao conjunto da resposta de Francisco, não é certo, diz-me, que possamos fazer dela uma leitura gay-friendly.

Vian é leigo e universitário, intitula-se «professor» e é o diretor do Osservatore Romano, o jornal da santa sé. Esse quotidiano oficial é editado em oito línguas e a sua sede está situada no seio do Vaticano.

– O papa falou muito esta manhã – diz-me Vian, quando chego.

O seu jornal publica todas as intervenções do santo padre, as suas mensagens, os seus textos. É o Pravda do Vaticano.

– Somos um jornal oficial, é evidente, mas também temos uma parte mais livre, com artigos de opinião, artigos sobre cultura, textos mais autónomos – acrescenta Vian, que sabe que a sua margem de manobra continua estreita.

Talvez para se livrar das imposições do Vaticano, e mostrar um espírito travesso, rodeou-se de figurinhas de Tintim. O seu escritório foi invadido pelas bandas desenhadas de A Ilha Negra, O Cetro de Ottokar, miniaturas de Tintim, Milou e do Capitão Haddock. Uma estranha invasão de objetos pagãos no coração da santa sé! E pensar que nunca ocorreu a Hergé fazer um Tintim no Vaticano!

Falei demasiado depressa. Vian interrompe-me apontando para um longo artigo do Osservatore Romano sobre Tintim que mostraria que, apesar das suas personagens increias e os seus palavrões memoráveis, o jovem repórter belga seria um «herói católico» animado por um «humanismo cristão».

– O Osservatore Romano é tão bergogliano sob Francisco como foi ratzingeriano sob Bento XVI – relativiza um diplomata colocado junto da santa sé.

Um outro colaborador do Osservatore Romano confirma que o jornal está ali para «despoletar todos os escândalos e recolocar aqueles que, no Vaticano, ainda não saíram do armário».

– Os silêncios do Osservatore Romano também falam – relativiza, não sem humor, Vian.

Ao longo da minha investigação, visitarei amiúde as instalações do jornal. O doutor Vian aceitará ser entrevistado cinco vezes «on the record», e «off the record» ainda mais frequentemente, tal como mais seis colaboradores seus encarregados das edições em espanhol, inglês ou francês.

FOI UMA JORNALISTA BRASILEIRA, Ilze Scamparini, correspondente da TV Globo no Vaticano, que ousou fazer a pergunta frontalmente, ao papa, sobre o «lóbi gay». A cena passa-se no avião de regresso, que fazia a ligação entre o Rio e Roma. Está-se no final da conferência de imprensa improvisada e o papa está cansado, tendo a seu lado Federico Lombardi, o seu porta-voz. «Uma última pergunta?», lança Lombardi, com pressa de terminar. É então que Ilze Scamparini levanta a mão. Cito aqui, extensamente, este diálogo a partir da transcrição original que Giovanni Maria Vian me dá:

– Gostaria de pedir autorização para fazer uma pergunta um pouco delicada. Houve uma outra imagem que também deu a volta ao mundo: a de Mons. Ricca, bem como algumas informações sobre a sua vida privada. Gostaria de saber, santo padre, o que conta fazer em relação a isto. Como é que Vossa Santidade conta abordar este problema e como pretende enfrentar a questão do lóbi gay?

– No que respeita a Mons. Ricca – responde o papa –, fiz aquilo que o direito canónico recomenda que se faça: uma investigatio preavia [investigação preliminar]. Nessa investigação não foi apurado nada daquilo de que o acusam. Não encontrámos nada. Eis a minha resposta. Mas gostaria de acrescentar algo mais em relação a isso: vejo que amiúde, na Igreja, fora deste caso, mas também neste caso, se vão procurar, por exemplo, os «pecados de juventude» e são publicados. Não se trata de delitos, hem? Os delitos são uma coisa diferente, o abuso de menores é um delito. Não, os pecados. Mas se uma pessoa leiga, ou um padre, ou uma freira, cometeu um pecado e depois se converteu, o Senhor perdoa… Mas voltemos à sua pergunta mais concreta: fala do lóbi gay. Pois bem! Escreve-se muito sobre o lóbi gay. Ainda não encontrei ninguém no Vaticano que me apresente o seu bilhete de identidade onde esteja escrito por cima «gay». Dizem que os há. Creio que quando nos encontramos com uma pessoa assim devemos estabelecer a diferença entre o facto de ser «gay» e o de constituir um lóbi, porque nem todos os lóbis são bons. Este é mau. Se uma pessoa é gay e procura o Senhor, se faz prova de boa vontade, quem sou eu para a julgar?… O problema não é ter essa tendência [mas] fazer dessa tendência um lóbi. Eis, para mim, o problema mais grave. Agradeço-lhe muito ter feito essa pergunta. Muito obrigado!

TODO DE NEGRO VESTIDO, UM POUCO CONSTIPADO, no dia do nosso primeiro encontro, o padre Francesco Lombardi lembra-se muito bem dessa conferência de imprensa. Como bom jesuíta, soube admirar a arte da fórmula do novo papa. Quem sou eu para julgar? Talvez nunca uma frase de Francisco tenha sido uma obra-prima tão perfeita da dialética jesuíta. O papa responde a uma pergunta… com uma pergunta!

Estamos na sede da fundação Ratzinger, de que Lombardi se tornou presidente, no rés do chão de um edifício do Vaticano, via della Conciliazone, em Roma. Cinco vezes, e gravando com o seu consentimento, irei entrevistá-lo longamente nessas instalações, a propósito dos três papas a quem serviu – João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Foi chefe do serviço de imprensa do primeiro e porta-voz dos seguintes.

Lombardi é um homem gentil e simples que rompe com o estilo glamoroso e mundano de bastantes prelados do Vaticano. A sua humildade impressiona-me, tal como marcou amiúde aqueles que trabalharam com ele. Quando Giovanni Maria Vian vive, por exemplo, sozinho numa pequena torre magnífica nos jardins do Vaticano, Lombardi prefere partilhar a sua vida com os seus companheiros jesuítas, num quarto modesto da sua comunidade. Estamos longe dos apartamentos dos cardeais, com várias centenas de metros quadrados, que visitei tão frequentemente em Roma, como por exemplo os de Raymond Burke, Camillo Ruini, Paul Poupard, Giovanni Battista Re, Roger Etchegaray, Renato Raffaele Martino e tantos outros. Sem falar do palácio do cardeal Betori, que visitei em Florença, o do cardeal Carlo Caffarra, em Bolonha, ou o do cardeal Carlos Osoro, em Madrid. Nada que ver também com os apartamentos, que não visitei, dos antigos secretários de Estado Angelo Sodano e Tarcisio Bertone cujo luxo desmedido e dimensões extravagantes causaram escândalo.

– Quando o papa Francisco proferiu essas palavras «quem sou eu para julgar?», encontrava-me ao lado do santo padre. A minha reação foi um pouco contraditória, digamos, complexa. Sabe? Francisco é muito espontâneo, fala muito livremente. Aceitou as perguntas sem as conhecer de antemão, sem preparação. Quando Francisco fala em roda livre, durante oitenta minutos num avião, sem notas, com setenta jornalistas, é espontâneo, é muito franco. Mas o que diz não é necessariamente um elemento da doutrina, é uma conversa e temos de a tomar como tal. É um problema de hermenêutica.

Ao ouvir a palavra «hermenêutica», proferida por Lombardi, cuja função foi sempre interpretar os textos, hierarquizá-los e dar sentido às frases dos papas de que foi porta-voz, tenho a impressão de que o padre jesuíta quer atenuar o alcance da fórmula pró-gay de Francisco. Acrescenta:

– O que quero dizer é que esta frase não prova uma escolha ou uma mudança de doutrina, mas tem um aspeto muito positivo: parte das situações pessoais. É uma abordagem de proximidade, de acompanhamento, de pastoral. Mas isso não quer dizer que isso [ser gay] seja bom; quer dizer o papa não se sente juiz disso.

– É uma fórmula jesuíta? Jesuítica?

– Sim, se quiser, é uma palavra jesuíta. É a escolha da misericórdia, da pastoral, da via das situações pessoais. É uma palavra de discernimento. [Francisco] procura um caminho. Diz, em certa medida: «Estou contigo para percorrer um caminho». Mas Francisco responde a uma situação individual [o caso de Mons. Ricca] com uma resposta pastoral; quanto à doutrina, continua fiel.

Noutro dia, quando interrogo o cardeal Paul Poupard sobre este mesmo debate semântico, durante um dos nossos encontros regulares em sua casa, este perito da cúria romana, que foi «próximo de cinco papas», segundo a sua própria expressão, comenta:

– Não se esqueça de que Francisco é um papa jesuíta argentino. É isso mesmo: jesuíta e argentino. As duas palavras são importantes. O que quer dizer que, quando profere a frase «Quem sou eu para julgar?», o que conta não é forçosamente o que diz, mas como a recebem. É um pouco como a teoria do entendimento em São Tomás de Aquino: cada coisa é recebida em função do que realmente queremos ouvir!

FRANCESCO LEPORE não ficou convencido, de forma alguma, com a explicação do papa Francisco e também não partilha «a hermenêutica» dos seus exegetas.

Para este ex-padre, que conhece bem Mons. Ricca, esta resposta do papa era um caso típico de linguagem dupla.

– Se seguirmos o seu raciocínio, o papa dá a entender que Mons. Ricca foi gay na sua juventude, mas que já não é, desde que foi ordenado padre. Seria, por conseguinte, um pecado de juventude que o Senhor perdoou. Ora o papa devia saber bem que os factos em questão eram recentes.

Uma mentira? Uma meia mentira? Para um jesuíta, dizem, dizer meia mentira ainda é dizer meia verdade! Lepore acrescenta:

– Há uma norma não escrita no Vaticano que consiste em apoiar um prelado em todas as circunstâncias. Francisco protegeu Battista Ricca perante e contra todos, mantendo-o no seu cargo, tal como João Paulo II deu cobertura a Stanislaw Dziwisz e Angelo Sodano, ou como Bento XVI defendeu Georg Gänswein e Tarcisio Bertone até ao fim, apesar de todas as críticas. O papa é um monarca. Pode proteger aqueles de quem gosta, em todas as circunstâncias, sem que ninguém o possa impedir.

Na origem do caso há uma investigação pormenorizada da revista italiana L’Espresso, em julho de 2013, e cuja capa, dedicada totalmente ao Vaticano, ostenta ousadamente o título: «o lóbi gay». Nessa reportagem, Mons. Ricca é apresentado sob o seu nome verdadeiro como tendo mantido uma relação com um militar suíço quando prestava serviço na embaixada da santa sé, na Suíça, e depois no Paraguai.

A vida noturna de Battista Ricca em Montevideu é especialmente pormenorizada: teria sido agredido uma noite num local público de encontros e teria regressado à nunciatura, de rosto tumefacto, depois de ter recorrido a uns padres para o ajudarem. O L’Expresso noticiou que numa outra vez teria ficado preso num ascensor, infelizmente avariado, em plena noite, nas instalações da embaixada do Vaticano, e só teria sido libertado pelos bombeiros de madrugada, altura em que foi encontrado com um «belo jovem» que ficara bloqueado com ele. Pouca sorte!

O jornal, que cita como fonte um núncio, menciona também as malas do militar suíço, pretenso amante de Ricca, nas quais teriam sido encontrados «uma pistola, uma enorme quantidade de preservativos e material pornográfico». O porta-voz do papa Francisco, Federico Lombardi, como sempre desmentiu os factos, que não eram, segundo ele, «dignos de fé».

– A gestão do caso pelo Vaticano foi bastante cómica. A resposta do papa, também. O pecado era venial! Era antigo! Foi um pouco como quando acusaram o presidente Bill Clinton de ter consumido droga e ele se desculpou acrescentando que fumara marijuana, mas sem engolir o fumo! – Ironiza um diplomata colocado em Roma, bom conhecedor do Vaticano.

A imprensa divertiu-se com as tribulações do prelado, a sua alegada vida dupla e as suas desventuras de ascensor! Em simultâneo, não deveremos esquecer que o ataque vem de Sandro Magister, um temível vaticanista ratzingeriano de 75 anos. Por que motivo denuncia de súbito, e doze anos depois dos factos, Mons. Ricca?

O caso Ricca é, na verdade, um ajuste de contas entre a ala conservadora do Vaticano, digamos ratzingeriana, e a ala moderada representada por Francisco e, nomeadamente, entre dois clãs homossexuais. Diplomata sem ter sido núncio e «Prelato d’Onore di Sua Santità» (prelado de honra do papa) que não foi eleito bispo, Battista Ricca é um dos colaboradores mais próximos do santo padre. Tem a seu cargo a Domus Sanctae Marthae, a residência oficial do papa, e dirige também mais duas residências pontificais. É, finalmente, um dos representantes do sumo pontífice junto do muito controverso banco do Vaticano (IOR). Vê-se quão exposto estava o prelado.

A sua pretensa homossexualidade nunca foi, por conseguinte, mais do que um pretexto para enfraquecer Francisco. Usaram a agressão de que ele fora vítima para um «outing» quando teria sido mais católico defendê-lo dos seus agressores, tendo em conta a violência de que foi alvo. Quanto ao jovem com quem ficou bloqueado no elevador, será necessário recordar aqui que se tratava de um adulto que deu o seu consentimento? Acrescentemos que um dos acusadores de Ricca seria conhecido pessoalmente, segundo as minhas informações, por ser simultaneamente homófobo e homossexual! Um jogo duplo bastante típico dos hábitos vaticanos.

Assim, o caso Ricca inscreve-se numa longa sequência de ajustes de contas entre diferentes fações gays da cúria romana – de que foram vítimas Dino Boffo, Cesare Burgazzi, Francesco Camaldo, ou até o antigo secretário-geral da Cidade do Vaticano, Carlo Maria Viganò – e teremos a oportunidade de fazer esse relato. De cada vez, esses padres ou esses leigos foram denunciados por prelados que eram, eles próprios, na maior parte das vezes, corruptos financeiramente ou estavam, sexualmente, metidos no armário. Alimentaram a imprensa para protegerem o seu segredo – raramente para servir a Igreja. E aqui está uma nova regra de No Armário do Vaticano, a quinta: Os rumores, as maledicências, os ajustes de contas, a vingança, o assédio sexual são frequentes na santa sé. A questão gay é uma das molas principais dessas intrigas.

SABIA QUE O PAPA ESTÁ RODEADO DE homossexuais? – Pergunta-me, com falsa ingenuidade, um arcebispo da cúria romana. A sua alcunha no Vaticano é «la Païva», em homenagem a uma célebre marquesa e cortesã. Por conseguinte, será assim que lhe chamarei neste livro.

Sua Excelência La Païva, com quem almocei e jantei regularmente, conhece todos os segredos do Vaticano. Faço-me ingénuo:

– Por definição, ninguém pratica a homossexualidade no Vaticano, não é?

– Os gays são numerosos – continua La Païva –, muito numerosos.

– Sabia que havia homossexuais no círculo próximo de João Paulo II e de Bento XVI, mas no de Francisco, não sabia.

– Mas sim, em Santa Marta há muitos que fazem parte da paróquia – repete La Païva, que usa e abusa desta bela fórmula esotérica.

«Ser da paróquia»: La Païva ri. Tem orgulho na sua expressão, um pouco como se fosse ele que tivesse inventado a roda! Calculo que a tenha utilizado centenas de vezes no decurso da sua longa carreira, mas esta, reservada aos iniciados, continua a ter algum efeito!

«Ser da paróquia», podia ser inclusive o subtítulo deste livro. A expressão é antiga, tanto em francês como em italiano; encontrei-a no calão homossexual das décadas de 1950 e 1960. Provavelmente é anterior, de tal modo se parece com uma frase de Sodoma e Gomorra, de Marcel Proust, ou de Notre-Dame-des-Fleurs, de Jean Genet – apesar de não figurar, parece-me, nesses livros. É mais popular e própria dos bares manhosos das décadas de 1920 e 1930? É possível. De qualquer modo, mistura heroicamente o universo eclesiástico e o mundo homossexual.

– Sabe que gosto muito de si – declara-me, de súbito, La Païva. – Mas levo a mal que não me diga se prefere os homens ou as mulheres. Porque é que não quer dizer-me? Será que é, pelo menos, simpatizante?

A intemperança de La Païva fascina-me. O arcebispo pensa em voz alta e abandona-se ao prazer de me deixar entrever o seu mundo, pensando obter desse modo a minha amizade. Começa a revelar os mistérios do Vaticano de Francisco onde a homossexualidade é um segredo hermético, uma francomaçonaria admiravelmente impenetrável. O truculento La Païva partilha os seus segredos: oh, o homem curioso! Duas vezes mais curioso do que a média sobre o tema: bicurious. Eis que me fornece os nomes e os títulos daqueles que «praticam» ou «não praticam», reconhecendo ao mesmo tempo que os homófilos, juntamente com os homossexuais, constituem em conjunto, diz-me, a grande maioria do colégio cardinalício!

O mais interessante, claro, é o «sistema». Segundo La Païva, a pregnância homossexual da cúria apresenta uma grande constância de um papa para outro. Assim, os círculos próximos dos papas João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco seriam maioritariamente «da paróquia».

CONDENADO A VIVER COM ESTA FAUNA MUITO PARTICULAR, o papa Francisco faz o que pode. Com a sua fórmula «Quem sou eu para julgar?», tentou alterar a situação. Ir mais longe seria tocar na doutrina e suscitar de imediato uma guerra no seio do colégio cardinalício. Por conseguinte, a ambiguidade continua a ser preferível, o que convém a este papa jesuíta que pode, numa mesma frase, dizer uma coisa e o seu contrário. Ser simultaneamente gay-friendly e antigay – que talento!

As suas palavras públicas contrastam amiúde com os seus atos privados. Assim, Francisco defende constantemente os migrantes, mas, ao opor-se ao casamento gay, impede os estrangeiros homossexuais indocumentados de poderem beneficiar de uma regularização quando têm um parceiro estável; Francisco diz-se também «feminista», mas priva de escolha as mulheres que não podem ter filhos, recusando-lhes a reprodução medicamente assistida. Em 2018, Mons. Viganò acusá-lo-á, na sua «Testimonianza», de estar rodeado de homossexuais e de se mostrar demasiado gay-friendly; no mesmo momento, Francisco sugerirá que se recorra à «psiquiatria» para os jovens homossexuais (afirmações de que diz ter-se arrependido).

Num discurso que antecedeu o conclave e a sua eleição, Jorge Bergoglio fixou a sua prioridade: as «periferias». Este conceito, destinado a ter um belo futuro, engloba, aos seus olhos, as periferias «geográficas», aqueles cristãos da Ásia, da América do Sul e de África que estão longe do catolicismo romano ocidentalizado, e as periferias «existenciais», que reúnem todos aqueles que a Igreja deixou à beira da estrada. Entre esses, segundo a entrevista que dará em seguida ao jesuíta Antonio Spadaro, contam-se nomeadamente os casais divorciados, as minorias e os homossexuais.

Para além das ideias, existem os símbolos. Foi assim que Francisco se encontrou publicamente com Yayo Grassi, um gay de 67 anos, um dos seus antigos alunos, na embaixada da santa sé em Washington; Grassi veio acompanhado do seu namorado Iwan, um indonésio. Selfies e um vídeo mostram o casal a beijar o santo padre.

Segundo várias fontes, a mediatização deste encontro entre o papa e o casal gay não teria sido ocasional. Apresentado inicialmente como um «encontro estritamente privado», quase fortuito, pelo porta-voz do papa, Francesco Lombardi, foi promovido um pouco mais tarde a uma verdadeira «audiência», pelo mesmo Lombardi.

Deve dizer-se que, entretanto, rebentara uma polémica. O papa, nessa mesma viagem aos Estados Unidos, encontrou-se, sob pressão do muito homófobo Mons. Carlo Maria Viganò, com uma funcionária eleita do Kentucky, Kim Davis, que se recusava a autorizar os casamentos homossexuais na sua região, apesar de ela própria ser divorciada duas vezes. Perante o brado de protestos suscitados por este favor concedido a uma figura homófoba de primeira plana, o papa recuou, desmentindo apoiar a posição da Sr.ª Davis (a funcionária foi detida e encarcerada por pouco tempo por se recusar a obedecer à lei americana). Para demonstrar que não tencionava deixar-se encerrar nesse debate, e lamentando os danos causados, nas suas costas, por Viganò (que em breve retirará de Washington), o papa contrabalançou, portanto, o seu primeiro gesto homófobo, recebendo publicamente o seu antigo aluno gay com o companheiro. Um comportamento duplo marcado por um ecumenismo tipicamente jesuíta.

O EXEMPLO DA NOMEAÇÃO CAÓTICA de um embaixador de França junto da santa sé mostra a mesma ambiguidade, senão um certo maquiavelismo, do papa Francisco. O homem em questão chama-se Laurent Stéfanini: é um diplomata de alta craveira, um católico praticante, bastante chegado à direita e membro (leigo) da Ordem de Malta. Profissional estimado, foi chefe do protocolo do Eliseu, sob Nicolas Sarkozy, e já havia sido, anteriormente, n.º 2 desta mesma embaixada. O presidente François Hollande decidiu nomeá-lo embaixador de França junto do Vaticano, em janeiro de 2015, e a sua nomeação foi apresentada oficialmente ao papa. O anúncio público, que apareceu como uma fuga em Le Canard Enchaîné, foi prematuro? Acontece que o papa hesita quanto a dar a sua aprovação. Motivo: o diplomata seria gay!

Não é a primeira vez que um embaixador francês é recusado por Roma em razão da sua homossexualidade: já aconteceu em 2008, quando da candidatura de Jean Loup Kuhn-Delforge, um diplomata que Nicholas Sarkozy queria colocar no Vaticano, e que era abertamente homossexual e vivia em união de facto com o seu companheiro. O papa Bento XVI recusa-se a dar o agrément durante um ano, impondo uma mudança de candidato. A contrario, é necessário precisar que, no passado, vários embaixadores franceses colocados junto da santa sé eram abertamente homossexuais, uma prova de que esta regra não tem nada de intangível.

Desta vez, o caso de Stéfanini suscita um bloqueio a alto nível. O papa Francisco vetou-o. Ficou melindrado por estarem a tentar pressioná-lo? Terá pensado que tentaram manipulá-lo, impondo-lhe um embaixador gay? Terá sido o procedimento de acordo, através do núncio apostólico em Paris, contornado? Terá sido Stéfanini vítima de uma campanha urdida contra ele em França (sabe-se que o embaixador, Bertrand Besancenot, próximo da Ordem de Malta, cobiçava o posto)? A maquinação deveria ser investigada, pelo contrário, no seio da ala direita da cúria que pretende usar o caso para fazer o papa cair numa armadilha?

Seja como for, o imbróglio adquire foros de crise diplomática aguda entre «os dois Franciscos» quando o presidente Hollande mantém à força a candidatura de Stéfanini, nomeação recusada de novo pelo papa. Não haverá embaixador de França no Vaticano, reforça Hollande, se não quiserem o Sr. Stéfanini!

Neste caso, os intrigantes não se preocupam nada com as consequências para o interessado, cuja vida privada é exposta assim na praça pública. Quanto a defender a Igreja, como imaginam, é sobretudo enfraquecê-la colocar o papa em dificuldades como estas. Francisco é obrigado a receber Stéfanini com todas as honras, para se desculpar e, jesuíta enxertado em tartufo, comunica-lhe que não tem nada contra a sua pessoa!

O arcebispo de Paris é mobilizado, por sua vez, para tentar desemaranhar o assunto, tal como o cardeal Jean-Louis Tauran, próximo do papa, que não vê nada de anormal na nomeação de um embaixador gay – muito pelo contrário! Do lado romano, o cardeal Pietro Parolin, o n.º 2 do Vaticano, faz a mesma deslocação a Paris para se encontrar com François Hollande que, durante uma conversa tensa, o interroga frontalmente para saber se o problema seria «a homossexualidade de Stéfanini». Segundo o relato que o presidente fez a um dos seus conselheiros, Parolin, visivelmente muito pouco à vontade em relação à questão, afetado pessoalmente, corado de vergonha, e petrificado, teria balbuciado que o problema não tinha nada que ver com a homossexualidade…

O desconhecimento da França pelo papa Francisco aparece à luz do dia quando deste caso. Ele que não nomeou nenhum cardeal do Hexágono e não fala francês, ao contrário de todos os seus antecessores, ele que dá a impressão de confundir – infelizmente – a laicidade com o ateísmo, parece ser vítima de uma manipulação cujos códigos não compreende.

Uma vítima colateral, Laurent Stéfanini é apanhado sob o fogo cruzado das críticas numa batalha que o transcende e da qual é apenas o pretexto. Em Roma, é uma ofensiva da ala ratzingeriana, ela própria fortemente homossexualizada, que move os seus peões para embaraçar o papa Francisco. A Ordem de Malta, de que o diplomata é membro, dividida entre uma corrente «closeted» rígida e uma corrente «closeted» flexível, defronta-se no seu caso (o cardeal Raymond Burke, patrono da ordem soberana, teria «atomizado» a candidatura de Stéfanini). O núncio em Paris, Mons. Luigi Ventura, antigo núncio no Chile (próximo do cardeal Angelo Sodano e dos Legionários de Cristo de Marcial Maciel, que hoje em dia é criticado pela imprensa por não ter denunciado os crimes pedófilos do padre Karadigma), entrega-se a um jogo duplo, opondo-se à candidatura de Stéfani, que os interessados parisienses e romanos levarão algum tempo a decifrar. Em França, o caso é a ocasião para a direita e a esquerda ajustarem contas, tendo como fundo o debate em volta da lei do casamento gay: François Hollande contra Nicolas Sarkozy; la Manif pour tous, organização que se opõe ao casamento, contra Hollande; e a extrema-direita contra a direita moderada. O presidente Hollande, que apoiou sinceramente a candidatura de Stéfanini, diverte-se, ao fim e ao cabo, ao ver a direita dilacerar-se por causa do destino deste alto diplomata sarkozysta, católico praticante… e homossexual. Dá, assim, uma bela lição à direita sobre a sua hipocrisia! (Utilizo aqui as minhas conversas com vários conselheiros do presidente Hollande e do primeiro-ministro francês Manuel Valls, bem como um encontro com o primeiro conselheiro da nunciatura apostólica em Paris, Mons. Rubén Darío Ruiz Mainardi.)

Mais maquiavélico, um dos conselheiros de François Hollande propõe, se a candidatura de Stéfanini for torpedeada, convocar de imediato um dos três eminentes núncios ou representantes do Vaticano colocados em Paris, e mandá-lo regressar, pelo seu lado, por a sua homossexualidade ser bem conhecida no Quai d’Orsay (como é chamado, em França, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde os diplomatas homossexuais são também numerosos, ao ponto de, por vezes, se falar dele como o «Gay d’Orsay»).

– Conhece os diplomatas do Vaticano em Paris, em Madrid, em Lisboa, em Londres! Recusar Stéfanini por causa da sua homossexualidade é a decisão mais bizarra deste pontificado! Se recusássemos os núncios gays da santa sé, o que seria da representação apostólica em todo o mundo! – Sorri um embaixador de França, que esteve colocado junto da santa sé.

Quanto ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner, confirma-me durante uma conversa na sua casa de Paris:

– O Vaticano parece-me mal colocado para recusar candidaturas homossexuais! Tive o mesmo problema quando quisemos nomear Jean Loup Kuhn-Delforge para embaixador de França no Vaticano, quando ele vivia em união de facto com o seu companheiro. Levámos com a mesma recusa. Era perfeitamente inadmissível discriminar um diplomata de alto nível por causa da sua homossexualidade. Não podíamos aceitá-lo! Então, posso revelar-lhe hoje em dia que telefonei ao meu homólogo, Mons. Jean-Louis Tauran, que era o equivalente ao ministro dos Negócios Estrangeiros da santa sé, e lhe pedi que retirasse o seu núncio apostólico em Paris, o que fez. Disse-lhe: é toma lá, dá cá! (Dois diplomatas do Vaticano interrogados contestam esta versão dos factos, tendo o núncio saído, segundo a sua versão, no termo normal dos seus cinco anos de serviço.)

Um testemunho é significativo neste caso: o argentino Eduardo Valdés é próximo do papa e foi embaixador junto da santa sé no momento do caso Stéfanini:

– Tenho a certeza – diz-me o diplomata, quando de uma conversa em Buenos Aires –, de que todos os que se opuseram à nomeação de Stéfanini para embaixador eram tanto [homossexuais] como ele. É sempre a mesma hipocrisia! Sempre os mesmos dois pesos e duas medidas! São os mais praticantes que condenam os outros homossexuais.

Durante mais de catorze meses, o posto ficará vago, até François Hollande ceder e nomear, para Roma, um diplomata consensual em fim de carreira, casado e bom pai de família. Stéfanini, com humor, declarará, pelo seu lado, que esta nomeação diplomática não lhe pertencia, do mesmo modo como não escolhera a sua homossexualidade! (As minhas fontes sobre este «caso Stéfanini» são, para além dos nomes já referidos, o cardeal Tauran, o arcebispo François Bacqué e uma dezena de outros diplomatas do Vaticano; quatro embaixadores de França junto da santa sé: Jean Guéguinou, Pierre Morel, Bruno Joubert e Philippe Zeller; bem como, naturalmente, os embaixadores Bertrand Besancenot e Laurent Stéfanini.)

FRANCISCO É TÃO GAY-FRIENDLY COMO DIZEM? Alguns pensam que sim e contam-me, para apoiar essa tese, esta outra história. Quando de uma audiência do papa com o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito da importante Congregação para a Doutrina da Fé, este chega com um dossier sobre um velho teólogo que teria sido denunciado pela sua homofilia e pergunta então ao papa qual a sanção que conta aplicar-lhe. O papa ter-lhe-ia respondido (segundo contam duas testemunhas pertencentes à Congregação, que o ouviram da boca de Müller): «Não valeria mais a pena convidá-lo para tomar uma cerveja, falar-lhe como a um irmão, e encontrar uma solução para o problema?»

O cardeal Müller, que não faz segredo da sua hostilidade pública em relação aos gays, teria ficado literalmente siderado com a resposta de Francisco. De volta ao seu gabinete, ter-se-ia apressado a contar, furioso, a historieta aos seus colaboradores e ao seu assistente pessoal. Diz-se que teria criticado duramente o papa pelo seu desconhecimento do Vaticano, o seu erro de julgamento em relação à homossexualidade e à gestão dos processos. Estas críticas terão chegado aos ouvidos de Francisco que castigará Müller metodicamente, em primeiro lugar, privando-o dos seus colaboradores, um após o outro, e depois, humilhando-o publicamente, antes de não o reconduzir no cargo, alguns anos mais tarde, obrigando-o a uma reforma antecipada. (Entrevistei Müller sobre as suas relações com o papa, em duas conversas em sua casa e apoio-me em parte no seu testemunho.)

O papa estaria a pensar em cardeais conservadores como Müller ou Burke quando denunciou a duplicidade da cúria? Numa missa solene no Vaticano, a 22 de dezembro de 2014, menos de um ano depois da sua eleição, o santo papa lança o ataque. Nesse dia, perante os cardeais e os bispos reunidos para as boas-festas de Natal, Francisco passa ao ataque: elabora o catálogo das quinze «doenças» da cúria romana, entre as quais o «alzheimer espiritual» e a «esquizofrenia existencial». Atira-se, sobretudo, à hipocrisia dos cardeais e bispos que têm uma «vida oculta e amiúde dissoluta» e critica a sua «maledicência», verdadeiro «terrorismo da bisbilhotice».

A acusação é grave, mas o papa ainda não encontrou a sua grande fórmula, a que chega no ano seguinte, numa homilia matinal em Santa Marta, a 24 de outubro de 2016 (segundo a transcrição oficial da Rádio Vaticano que cito aqui com alguma extensão, atendendo à importância das afirmações): «Por detrás da rigidez, há qualquer coisa escondida na vida de uma pessoa. A rigidez não é um dom de Deus. A ternura, sim, a bondade, sim, a benevolência, sim, o perdão, sim. Mas a rigidez, não! Por detrás da rigidez, há sempre alguma coisa escondida; em inúmeros casos, uma vida dupla, mas há também [como que] uma doença. Quanto sofrem os rígidos: quando são sinceros e se dão conta disso, sofrem! E sofrem tanto!»

Francisco encontrou finalmente a sua fórmula: «Por detrás da rigidez, há sempre alguma coisa escondida; em inúmeros casos, uma vida dupla». A frase, encurtada para a tornar mais eficaz, será repetida frequentemente pelo seu círculo próximo: «Os rígidos que levam uma vida dupla». E embora nunca tenha referido nomes, não é difícil imaginar que cardeais e prelados visa.

Alguns meses depois, a 5 de maio de 2017, o papa volta à carga, quase nos mesmos termos: «Há rígidos com uma vida dupla: deixam-se ver belos, honestos, mas quando ninguém os vê fazem coisas más… Utilizam a rigidez para tapar fraquezas, pecados, doenças de personalidade… Os rígidos hipócritas, os da vida dupla».

E novamente, a 20 de outubro de 2017, Francisco ataca os cardeais da cúria que seriam «hipócritas» que «vivem da aparência»: «Como bolas de sabão, [esses hipócritas] escondem a verdade de Deus, dos outros e de si próprios, mostrando um rosto de imagem piedosa para assumirem o aspeto da santidade… No exterior, deixam-se ver como justos, como bons: gostam de se mostrar quando rezam e quando jejuam e quando dão esmola. [Mas] é tudo aparência e no seu coração não há nada… Esses maquilham a alma, vivem de maquilhagem: a santidade é uma maquilhagem para eles… A mentira faz muito mal, a hipocrisia faz muito mal: é uma forma de viver».

Francisco não cessará de repetir este discurso, mais uma vez, em outubro de 2018: «São rígidos. E Jesus conhece a sua alma. E isso escandaliza-nos… São rígidos. Mas há sempre, debaixo ou detrás da rigidez, problemas, graves problemas… Tende cuidado com aqueles que são rígidos. Tende cuidados com os Cristãos, sejam eles leigos, padres ou bispos, que se vos apresentam como “perfeitos”. São rígidos. Tende cuidado. [Nesses] não existe o espírito de Deus».

Estas frases severas, e até mesmo acusadoras, foram repetidas tão frequentemente por Francisco, desde o início do seu pontificado, que temos de reconhecer realmente que o papa procura transmitir-nos uma mensagem. Ataca assim a sua oposição conservadora, denunciando o seu jogo duplo quanto à moral sexual e ao dinheiro? Com certeza. Podemos ir mais longe: o papa alerta determinados cardeais conservadores ou tradicionais, que recusam as suas reformas, deixando claro que conhece a sua vida oculta. (Esta interpretação não é minha: vários cardeais, arcebispos, núncios e padres bergoglianos confirmaram-me esta estratégia do papa.)

DURANTE ESTE TEMPO, o faceto Francisco continuou a falar da questão gay à sua maneira, isto é, à jesuíta. Avançou e, depois, recuou. A sua política dos pequenos passos é ambígua, amiúde contraditória. Francisco nem sempre parece mostrar constância na prossecução das suas ideias.

Será uma mera política de comunicação? Uma estratégia perversa para jogar com a sua oposição, excitá-la umas vezes e noutras amansá-la, uma vez que sabe que, para ela, a aceitação da homossexualidade é um problema de fundo e uma questão íntima? Estaremos perante um papa veleidoso, que joga com um pau de dois bicos por fraqueza intelectual e falta de convicções, como me disseram os seus detratores? Seja como for, até mesmo os vaticanistas mais experientes não percebem bem. Figura pró-gay ou antigay, não se sabe.

«Porquê não beber uma cerveja com um gay?», propusera Francisco. Em suma, o que fez, várias vezes, na sua residência privada de Santa Marta ou durante as suas viagens. Por exemplo, recebe oficiosamente Diego Neria Lejarraga, um transexual, que nasceu mulher, acompanhado pela namorada. Noutra ocasião, em 2017, Francisco acolhe oficialmente, no Vaticano, Xavier Bettel, o primeiro-ministro do Luxemburgo, com o seu marido, Gauthier Destenay, um arquiteto belga.

A maior parte dessas visitas foi organizada por Fabián Pedacchio, o secretário particular do papa, e Georg Gänswein, prefeito da casa pontifícia. Nas fotografias, vê-se Georg a saudar calorosamente os convidados LGBT, o que não deixa de ser irónico quando nos lembramos das críticas recorrentes de Gänswein em relação aos homossexuais.

Quanto ao argentino Pedacchio, que é menos conhecido do grande público, tornou-se o colaborador mais próximo do papa desde 2013 e vive com ele em Santa Marta, num dos quartos ao lado do de Francisco, o número 201, no segundo andar (segundo um guarda suíço que entrevistei). Pedacchio é uma figura misteriosa: as suas entrevistas são raras ou foram retiradas da web; fala pouco; a sua biografia oficial é mínima. Também foi alvo de ataques baixos por parte da ala direita da cúria romana e de Mons. Viganò, na sua «Testimonianza».

– É um homem duro. É um pouco o vilão que todo o homem bom e generoso deve ter ao seu lado – confia-me Eduardo Valdés, o antigo embaixador da Argentina junto da santa sé.

Nesta dialética clássica do «polícia mau» e do «polícia bom», Pedacchio foi criticado por aqueles que não tiveram coragem de atacar diretamente o papa. Assim, cardeais e bispos da cúria denunciaram a vida agitada de Pedacchio e exumaram uma conta que ele teria aberto na rede social de encontros Badoo para «procurar amigos» (esta página foi fechada quando a sua existência foi revelada pela imprensa italiana, mas continua acessível na memória da web e naquilo a que chamamos «deep web»). Nessa conta, na Badoo, e em raras entrevistas, Mons. Pedacchio afirma gostar de ópera e «adorar» o cinema do espanhol Almodovar, de quem viu «todos os filmes», que têm, reconhece, «cenas sexuais quentes». A sua vocação viria de um padre «um pouco especial» que mudou a sua vida. Quanto à Badoo, Pedacchio denunciou uma cabala contra ele e jurou que se tratava de uma conta falsa.

Surdo às críticas dirigidas ao seu círculo próximo, o papa Francisco prosseguiu a sua política dos pequenos passos. Após o massacre de quarenta e nove pessoas num clube gay de Orlando, na Florida, o papa afirma, fechando os olhos em sinal de dor:

– Penso que a Igreja tem de apresentar as suas desculpas às pessoas gays que ofendeu, [tal como também deve] apresentar as suas desculpas aos pobres, às mulheres que foram exploradas, aos jovens privados de trabalho, e por ter dado a sua bênção a tantas armas [de guerra].

Paralelamente a estas palavras misericordiosas, Francisco mostrou-se inflexível em relação à «teoria do género». Entre 2015 e 2017, exprimiu-se oito vezes contra a ideologia do «género» que classifica como «demoníaca». Por vezes, fá-lo de uma forma superficial, sem conhecer o tema, como em outubro de 2016, quando denuncia os manuais escolares franceses que propagam «um doutrinamento dissimulado da teoria do género», antes de os editores franceses e a ministra da Educação Nacional confirmarem que «os manuais não contêm qualquer menção nem referência a essa teoria do género». A gafe do papa provém aparentemente de verdadeiras «fake news» transmitidas por associações católicas próximas da extrema-direita francesa e que o sumo pontífice repetiu sem que tivessem sido verificadas.

UM DOS ESCRIBAS DE FRANCISCO é um monsignore discreto que responde, todas as semanas, a cerca de cinquenta cartas do papa, das mais sensíveis. Aceita encontrar-se comigo, a coberto do anonimato.

– O santo padre não sabe que um dos seus escribas é um padre gay! – Confessa-me o interessado, com orgulho.

O prelado tem acesso a todo o Vaticano, tendo em conta as funções que desempenha junto do papa e, durante estes últimos anos, passámos a encontrar-nos regularmente. Durante uma dessas refeições, no restaurante Coso, Via in Lucina, a minha fonte revela-me um segredo que ninguém conhece e que mostra uma enésima faceta de Francisco.

Desde a sua frase memorável «Quem sou eu para julgar?», o papa passou a receber um grande número de cartas de homossexuais que lhe agradecem as suas palavras e lhe pedem conselhos. Esta correspondência abundante é gerida, no Vaticano, pelos serviços da secretaria de Estado e, mais especificamente, pela secção de Mons. Cesare Burgazzi, que tem a seu cargo a correspondência do santo padre. Segundo o círculo próximo de Burgazzi, que também interroguei, essas cartas são «amiúde desesperadas»: provêm de seminaristas ou de padres que, por vezes, estão «dispostos a suicidar-se» porque não conseguem articular a sua homossexualidade com a sua fé.

– Durante muito tempo, respondemos a essas cartas com uma grande consciência e eram levadas ao santo padre para serem assinadas – conta-me a minha fonte. – As cartas provenientes de homossexuais foram sempre tratadas com muita consideração e tato, tendo em conta o número tão importante de monsignori gays na secretaria de Estado.

No entanto, um dia, o papa Francisco achou que a gestão da sua correspondência não o satisfazia e exigiu uma reorganização do serviço, acrescentando uma ordem inquietante, segundo o seu escriba:

– De um dia para o outro, o papa pediu-nos que deixássemos de responder às pessoas homossexuais. Devíamos arquivá-las de imediato. Esta decisão surpreendeu-nos e espantou-nos.

E a minha fonte acrescenta:

– Contrariamente ao que pode pensar-se, este papa não é gay-friendly. É tão homófobo como os seus antecessores. (Dois outros padres da secretaria de Estado confirmam a existência desta ordem, mas sem terem a certeza de que emane do próprio papa, pode ter sido avançada por um dos seus colaboradores.)

Segundo as minhas informações, os monsignori da secretaria de Estado continuam, no entanto, a «fazer resistência», segundo a expressão de um deles: quando homossexuais ou padres gays comunicam, nas suas cartas, a intenção de se suicidar, os escribas do papa arranjam maneira de apresentar ao santo padre, para assinatura, uma resposta compreensiva, mas utilizando perífrases subtis. Sem querer, o papa Francisco continua, portanto, a enviar cartas misericordiosas aos homossexuais.