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Quando Mary Abbott e eu chegámos a Deauville, ninguém sabia que ia estalar uma guerra. Passou apenas um mês entre a minha chegada e o começo daquele horrível conflito. Esse mês. Uma ilha no tempo. O recanto onde se amontoam o assombro, o desejo, as surpresas e a origem do futuro. A minha vida inteira cabe nesse mês.
Perguntas que fiz a Mary Abbott durante a viagem: «Porque vamos à casa de um lorde inglês?», «Porque me convidam?», «Quem é o duque de Ashford?», «A senhora conhece os meus verdadeiros pais?»
Quase não há respostas. Abundam os silêncios, os sorrisos e a ambiguidade. Só consigo chegar a uma conclusão: o duque de Ashford é o meu protetor.
Chegámos à Villa Esmeralda numa quinta-feira. A charrete deixou-nos em frente da porta de uma grande casa de estilo normando, com inúmeros telhados de duas águas e paredes com estrutura de madeira. As vigas da fachada estavam pintadas do mesmo tom do céu, um azul desbotado, quase cinzento, e havia portadas de madeira de uma intensa cor anil. Por todos os lados viam-se torres pontiagudas e chaminés, arcos ogivais e floreiras. Não era nada parecida, mas a mim — não sei porquê — lembrou-me a casa dos Hervieu. Contudo, o que na quinta era extremamente rústico aqui era desproporcionadamente luxuoso. Era como se tivessem juntado dez quintas e as tivessem colocado umas em cima das outras até construir essa espécie de castelo.
Uma criada com touca e saia comprida fez-nos entrar para o vestíbulo. Ali recebeu-nos um homem de labita que pensei que pudesse ser Lorde Ferguson, mas acabou por ser o mordomo. Conduziram-nos até aos nossos quartos sem que víssemos mais alguém.
Lembro-me do quarto que me atribuíram porque nunca tinha tido um espaço tão grande só para mim. Tinha uma cama alta, com dois colchões e uma cabeceira de madeira trabalhada. Junto à janela de vidros com caixilhos brancos, havia um cadeirão de leitura, uma mesa e um candeeiro de pé. Do outro lado do quarto, perto do armário de dois corpos, uma otomana forrada com um grosso tecido de estranhos motivos vegetais. Era um quarto para passar tempo nele.
Miss Abbott veio buscar-me um pouco antes do jantar.
— Oh, meu Deus! — exclamou ao ver-me com o meu vestido azul de gola à marinheiro, o melhor que tinha. — Não podes ir para a sala de jantar com essa roupa deplorável.
Senti-me humilhada.
— O que vamos fazer agora… Como é que te vou apresentar assim?
Começava a odiar aquela mulher. Eu era uma adolescente um pouco insegura e frágil em relação à minha própria identidade, mas estava convencida de que não havia qualquer problema com o meu aspeto.
— Acho que… não sei… Talvez peça a Lady Sarah um dos seus vestidos… Afinal de contas, vocês têm a mesma idade.
Enquanto ela saía do quarto disparada, eu pensei duas coisas: primeiro, que naquela casa havia uma rapariga da minha idade que se chamava Sarah, e não sabia se ia gostar muito dela, e segundo, que ia descer até à sala de jantar com o meu vestido azul, e pronto.
— Não vou vestir roupa emprestada.
Mary Abbott ficou rígida com o vestido de crepom cuidadosamente dobrado sobre o braço esquerdo. Ça t’aprendra, disse para mim, enquanto observava Miss Abbott realmente surpreendida. Ou melhor, estupefacta.
— Não vou pôr isso — repeti. — O meu vestido é indicado para a ocasião. É novo.
Abri a porta decidida e caminhei ao longo do corredor até às escadas. Antes de pisar o primeiro degrau ouvi os passos nervosos de Miss Abbott atrás de mim que tentavam alcançar-me. Fê-lo, claro que o fez. Enquanto entrávamos no salão, ela estava profundamente perturbada e eu absolutamente calma.
Era uma divisão ampla, maior do que eu alguma vez tinha visto. Perto da lareira havia um espaço com sofás e cadeirões, todos forrados com o mesmo tecido de brocatel em cores vivas e três mesas de apoio que se intercalavam entre os sofás e os cadeirões, nas quais tinham sido colocados cinzeiros de cristal trabalhado e candeeiros de diferentes tamanhos. Na prateleira da lareira estavam duas grandes presas de elefante sobre peanhas de mogno e uma coleção de molduras de prata com fotografias de cenas familiares e de caçadas. Uma mulher que parecia uma precetora estava de pé, muito direita, junto a uma rapariga da minha idade que tinha tirado os sapatos e estava sentada com as pernas encolhidas debaixo das nádegas, numa postura que não me teria sido permitida na casa dos Hervieu. Ao fundo, junto à grande janela que dava para o jardim, havia um homem muito velho com um jornal dobrado na mão e a dormitar.
A rapariga levantou-se antes de Miss Abbott ter tempo de nos apresentar.
— Bonjour, je m’apelle Sarah — disse enquanto me estendia a mão. Tinha-se levantado e calçado os sapatos de grandes fivelas com uma rapidez incrível.
Disse-lhe o meu nome com a desconfiança própria dos adolescentes e apertei-lhe a mão. Era uma mão suave, um pouco mole, como se não tivesse força. Sarah acrescentou:
— J’aime bien ta robe. On dirait que vous êtes allé à la plage.
Gosto do teu vestido, parece que foste à praia… Que tipo de boas-vindas eram essas? O que é que ela me queria exatamente dizer?
No entanto, consegui perceber que na sua atitude não havia um laivo de ironia ou de superioridade; parecia simplesmente divertir-se com o meu aspeto, como se fosse um atrevimento ou um desafio. Aproximou-se um pouco mais e, baixando a voz, acrescentou desta vez na sua língua:
— É muito melhor do que o que te levaram do meu quarto. Estas duas não percebem nada de nada.
Pegou-me no braço.
— Anda, vou apresentar-te o meu avô.
Fomos até à grande janela. Sarah beijou o ancião na testa e depois murmurou-lhe ao ouvido:
— Avô, acorda, temos uma convidada.
O ancião levantou a cabeça e sorriu. Não pareceu ficar incomodado com o facto de o acordarem daquela forma.
— Chama-se Rose e vive numa quinta na Normandia.
— Ah… Normandia… Onde é que isso fica?
— Avô, isto é a Normandia. Deauville é a Normandia.
O ancião acenou várias vezes com a cabeça, concentrado, como se estivesse a procurar as terras normandas na Enciclopédia Britânica.
— Nós, ingleses e normandos, somos aparentados; poder-se-ia dizer que em algum momento fomos da mesma família, sabias?
Assenti. Sim, sabia. O que não sabia era a que família é que eu pertencia.
Nesse momento, entraram na divisão dois homens jovens de smoking. Um deles estava a fumar um cigarro sem o mínimo recato. Miss Abbott apresentou-me como a protegida do duque de Ashford. Um deles olhou-me com curiosidade, o outro fez uma leve inclinação com a cabeça e não se aproximou para me apertar a mão. Precisamente nesse instante entrou Lady Ferguson. Era muito bonita. A mulher mais bonita que eu já tinha visto na vida. Tinha o cabelo apanhado na nuca com ganchos e travessas de fantasia que representavam libélulas ou sóis com raios de diamantes. O seu vestido, comprido mas por cima do tornozelo, era de uma organza suave e estava muito justo na cintura. O espartilho ajustava ainda mais a sua esplendorosa figura e caminhava direita, com o queixo levantado e o tronco direito. Vinha seguida por Lorde Ferguson, vestido de smoking como os outros. Nesse momento percebi o que significava o meu vestido azul. Miss Abbott fez de novo as apresentações obrigatórias, sem o mínimo sinal de incómodo com o meu aspeto, o que lhe agradeci intimamente.
Enquanto os cavalheiros bebiam um vinho do Porto antes de jantar, Lady Ferguson indicou-me que me sentasse ao seu lado e foi extremamente atenciosa comigo, eu diria que até foi afetuosa.
Perguntou-me muitas coisas sobre os meus estudos de língua inglesa em Coutances e as minhas respostas, sobretudo o facto de ter tido aulas particulares durante os quatro anos do liceu, pareceram ser do seu agrado. Entretanto, Sarah tinha-se retirado para o cadeirão mais afastado e parecia estar de mau humor.
Lady Ferguson perguntou-me se desejava aperfeiçoar o meu inglês durante o verão e face ao meu sucinto «Sim, claro» chamou a sua filha.
— Sarah, querida, a nossa convidada tem de se familiarizar um pouco mais com a nossa língua, por isso peço-te que fales exclusivamente inglês com ela. O francês está proibido a partir de agora. De acordo?
Sarah fez uma careta.
— Nada de francês — insistiu Lady Ferguson com um sorriso carinhoso.
— De acordo — aceitou Sarah a contragosto, não sei porquê, talvez porque nessa idade o que realmente importava não era o que fizéssemos ou deixássemos de fazer, mas sim tentar fazer precisamente o contrário àquilo que nos ordenavam. — Mas podemos montar todas as manhãs? Por favor… Nem sequer direi bonjour…
Lady Ferguson virou-se para mim.
— Sabes montar, minha querida?
Estive prestes a sorrir. Tinha sido criada numa quinta. De certeza que conseguia montar melhor do que aquela gente toda junta.
— E jogar ténis? — perguntou Sarah precipitadamente quando viu que eu anuía com a cabeça. Nem sequer tive tempo de abrir a boca. — Sabes jogar ténis? E nadar?
— Sarah, por favor, um pouco de compostura. Deixa de interrogar a Rose; vais ter tempo para isso.
Lady Ferguson levantou a cabeça para o mordomo, fez-lhe um gesto afirmativo e disse:
— Senhores, passemos para a outra sala, por favor. O jantar vai ser servido.
Depois aproximou-se do ancião que tinha voltado a dormitar alheio a tudo e a todos.
— Pai, vamos passar para a sala de jantar. Deixa-me ajudar-te.
O ancião agarrou-se ao braço de Lady Ferguson e os dois precederam a comitiva que se dirigiu conversando informalmente até à sala de jantar. Soube de imediato que ia gostar das mulheres desta família.