8
Deauville era tão diferente de Coutances… Na minha memória Deauville terá sempre o mesmo sol que uma ilha grega.
Em apenas uma semana tinha-me habituado a tudo aquilo. Miss Abbott comprou-me a indumentária adequada, suponho que com o dinheiro do duque de Ashford, o mesmo que tinha pago aquela passagem em primeira classe no barco: roupa para montar, vestidos de dia, de praia, de noite, casacos e fatos de banho, roupa para jogar ténis… Quando me fosse embora teria de alugar um baú para levar tudo aquilo. E, falando de baús, essa foi a primeira coisa dela que vi, o seu baú de pele de bezerro, enorme, elegante, sofisticado, cheio de etiquetas de todos os tamanhos de barcos, alfândegas e hotéis.
— Frances!
Sarah correu para o automóvel e, antes que aquelas pernas perfeitas e torneadas que se assomavam num descuido pusessem o pé no chão, lançou-se nos seus braços. Era muito morena, parecia espanhola ou grega, estava toda de branco, com um vestido de gaze até meio da perna, meias e sapatos brancos, e um turbante de brocado que deixava à vista o seu rosto selvagem. Não era nada bonita, tinha o nariz aquilino, talvez demasiado grande, os lábios grossos e o cabelo preto como o carvão. Tudo naquele rosto parecia um pouco… não sei… excessivo.
Caminharam abraçadas até à entrada.
— Olha, Frances, esta é a Rose.
Frances sorriu-me. Não consigo explicar como era o seu sorriso, só posso dizer que, quando ela nos olhava, sentíamo-nos únicos.
— A Frances vive em Paris — acrescentou Sarah com admiração. — É minha prima.
Até esse momento não tínhamos visto o homem que acabava de sair do carro atrás dela no meio de um tumulto de malas. Tinha um canotier e um ridículo fato de riscas, muito estreito, como o de um dândi.
— Este é o Sacha, mon cher ami.
Na casa levantou-se um pequeno alvoroço com a chegada dos novos convidados. Havia criados a levar bagagens de um lado para o outro, a governanta não conseguia dominar a situação e até Lady Ferguson, habitualmente tão sossegada e contida, parecia alterada com a exibição de energia incontrolável que se tinha gerado à volta de Frances.
— Viste o vestido dela? — perguntou-me Sarah cheia de admiração. — Não é assombroso?
Frances estava ao lado de Lady Ferguson e o contraste entre as duas é que era assombroso. Uma beleza clássica, cheia de elegância e de harmonia, com a sua cintura fina marcada pelo espartilho, diante de uma torrente de originalidade e extravagância, um corpo livre dentro daquela gaze que o desenhava com precisão a cada movimento.
— Pois a mim parece-me que está de camisa de dormir — disse um pouco para a irritar. — Veem-se as pernas através do tecido.
Sarah protestou furiosa com a minha observação.
— O quê?! Está na última moda de Paris.
E afastou-se para se abraçar de novo à sua cintura.
O que disse não era verdade. Não sei se gostava da roupa, mas ela entusiasmou-me desde o primeiro instante. Ainda hoje, quando alguém comenta alguma coisa sobre a sensualidade ou a atração física, penso em Frances. Lady Ferguson era a beleza na sua aceção mais perfeita, mas Frances era a sensualidade e a transgressão. Imagino que os homens a vissem como uma promessa de gozos e prazeres desconhecidos, porque até eu, que era quase uma menina, ficava perturbada com a sua voluptuosidade.
Há mulheres que, quando entram numa sala, deslumbram. E outras, como Frances, que, quando aparecem, iluminam. Frances era pura luz. Parecia ter engolido o sol de uma só vez. Sarah e eu esvoaçávamos à sua volta como duas libélulas desorientadas. Acompanhámo-la ao seu quarto.
— Vais ver o que te trouxe — disse Frances a Sarah abrindo o seu enorme baú.
Olhou para mim como se alguma coisa não batesse certo.
— Bom, acho que pode ser para as duas.
Tirou uma caixa estreita, com dois dedos de grossura, depositou-a nas minhas mãos, e depois procurou rapidamente entre a bagagem que os criados tinham deixado espalhada pelo quarto. Por fim, encontrou uma caixa grande, quadrada, embrulhada em papel pardo. Tinha uma etiqueta com um desenho ovalado pendurada de um fio de cordel onde dizia «Maison Pathé». Abriu-a.
Primeiro saiu uma espécie de enorme trompete, e depois um artefacto de madeira com uma manivela num dos seus lados. Com uma estranha perícia, Frances juntou-os até que o gramofone ficou perfeitamente montado. Sarah dava saltos de alegria.
Frances pediu-me que fosse desembalando a caixa dos discos, a que tinha tirado do baú.
— A música que está na moda em Paris — disse alegremente.
E pôs um disco de baquelite naquele aparelho. Começou a soar uma canção cantada por um homem.
— É uma canção do Sacha — confessou Frances orgulhosa. — Em Paris, toda a gente o adora.
— É cantor de vaudeville? — perguntei assombrada.
Ela sorriu com doçura.
— Não, minha querida, é compositor e pianista. Toca no Les Folies du Music-Hall, o estabelecimento que está na moda este ano em Paris. Foi inaugurado em maio e já ninguém fala de outra coisa.
Eu não parecia muito entusiasmada.
— Não gostas?
Não sabia o que responder. Era uma música alegre e descontraída, um pouco frívola, tendo em conta as letras equívocas.
— Anda — disse de repente Frances estendendo os braços para mim. — Vamos dançar. Esta é uma música para dançar, não para ouvir sentada.
Fiquei petrificada.
— Não sabe dançar — acusou Sarah com o tom de irritação que utilizava cada vez que alguém não lhe prestava toda a atenção. — É muito aborrecida, não sabe fazer quase nada.
— Sei sim — protestei caindo na sua armadilha. — Por exemplo, monto melhor do que tu.
— Mas não sabes nadar. Nem jogar ténis.
Frances interrompeu-nos com um gesto da mão. Tinha um enorme anel com uma grande pedra azul que cintilava assombrosamente. Ela baixou a mão, deixando-a desmaiada diante dos nossos olhos, como um maestro que contém o som, prendendo-o entre os dedos, para soltá-lo de novo no grande crescendo.
— Então, então… — disse com aquela voz afetuosa que enchia o mundo de matizes. — Vamos ver, com que então não sabes dançar?
Neguei com um aceno e baixei o olhar envergonhada.
— Comment cela se fait? — disse num francês perfeito, enquanto se aproximava de mim e me erguia o rosto pelo queixo.
Agora sentia-me mesmo mais frágil e provinciana.
— Gostavas de aprender? — perguntou, sem deixar que eu baixasse de novo o olhar.
— Claro.
— Então vou ensinar-te. Uma beleza como tu sem saber dançar… Il ne manquerai plus que cela!
Gostava de a ouvir falar francês. Fazia-me sentir como em casa.
— Todos os dias, uma hora antes do almoço, vens ao meu quarto e vou-te ensinar o essencial. Nada dessas danças antiquadas: vou ensinar-te as novas danças de Paris.
— Mas disseste que o gramofone era para mim — protestou Sarah. — Tem de estar no meu quarto.
Frances olhou-a inclinando o rosto, um gesto que eu identificaria como exclusivo desta mulher insólita, mas isso foi mais tarde, quando a nossa querida Frances já não podia encher um quarto de luz… Enfim, agora ali estávamos as três.
— Terias a amabilidade de mo emprestar durante uns dias? — pediu a Sarah. — Acho que podíamos colocá-lo aqui, para estarmos mais livres, e podias vir com a Rose. Seria muito divertido. Bom, e talvez possamos convidar o Sacha, assim somos dois casais. O que vos parece?
— Os meus pais vão deixar? — Sarah parecia de repente o que era na realidade, uma boa menina obediente, apesar dos seus caprichos e irritações infantis. Ou precisamente por isso.
— Bem… Não sei porque é que têm de saber, não é?
Frances olhava para mim. Assenti a sorrir.
— Então está tudo dito, amanhã aulas de dança uma hora antes do almoço. E agora deixem-me descansar, foi uma viagem muito longa.
Observar os adultos. Ouvir as suas conversas das quais — embora estejamos presentes — ficamos excluídos. Era muito habitual. Sarah e eu sentávamo-nos à mesa e tornávamo-nos de repente dois seres invisíveis, e a conversa circulava por cima das nossas cabeças como se não estivéssemos ali. Na casa dos Hervieu isso nunca acontecia.
— Fomos ver a nova ópera de Stravinsky.
— Stravinsky? Esse não é o músico russo que protagonizou aquele escândalo muito falado no ano passado?
— O próprio. Criou uma grande confusão. Os que estavam a favor e contra acabaram aos murros durante a estreia.
— Como é que se chamava? A Sagração da Primavera?
— Sim, mas esta é outra obra, que estreou este ano. Chama-se O Rouxinol. A personagem do rouxinol é interpretada por uma mulher.
— E que nova excentricidade protagonizou o russo desta vez?
— Pouca coisa, os cantores no fosso e os figurantes no palco a fazerem mímica e a dançar.
— E gostaste, querida?
— Oh, sim, claro. Foi divertido. Embora o melhor desta primavera em Paris tenha sido a inauguração de um desses estabelecimentos a que o Walter chama frívolos, Les Folies du Music-Hall.
— Por favor, Frances — protestou Lorde Ferguson —, por acaso estás a tentar dizer-me que não o são?
— És demasiado rigoroso, querido primo. As pessoas querem-se divertir, rir e beber champanhe… E no Les Folies du Music-Hall pode-se fazer tudo isso sem cair na vulgaridade dos velhos cafés-concerto.
— Querida, tenho de te lembrar que o music-hall é uma contribuição, não sei se feliz ou não, dos britânicos? Ou será que agora pretendes fazer-me acreditar que o music-hall também foi inventado nessa tua Paris?
— Bem, Walter — a voz moderada e harmoniosa de Lady Ferguson dava sempre um toque de prudência àquelas discussões mundanas —, não pretendo dar razão à Frances, mas lembra-te de que há dois anos essa cantora de music-hall, Mary Lloyd, acho que se chama assim, atuou perante o rei Jorge V em pessoa. Imagino que isso tenha servido para dar uma certa dignidade a esse tipo de espetáculos.
— Sim, mas o rei não a recebeu, todos os jornais referiram isso.
— Mas foi vê-la ao Palace Theatre.
— Não vou dizer o contrário. — Lorde Ferguson parecia encurralado pelas duas mulheres. — Só espero sinceramente que nunca me peças para irmos ver uma dessas atuações.
A sua esposa sorriu baixando o olhar. Não se conseguia dizer se era porque estava de acordo ou porque pensava que isso não dependia precisamente dele.
Essas conversas.
Surgiam de um modo que me fascinava, como que por acaso. Por exemplo:
— A equipa do James ganhou a competição de polo.
— A sério? Que cavalo montas, James?
— Uma égua espanhola, tem cinco anos.
— É tua?
— Claro. Nunca me passaria pela cabeça montar um cavalo que não fosse meu.
Um silêncio. Um sorriso irónico nos lábios de Frances.
— Nunca?
— Nunca — responde James, o irmão mais velho de Sarah, muito sério.
Algo no ambiente. Algo que me escapa e que eles partilham. Algo que não agrada a Lady Ferguson e que faz Elliott sorrir com malícia.
Frances vira-se para Lady Ferguson.
— Querida prima, invejo-te. Tens uns filhos realmente adoráveis.
E então, de forma inesperada e aparentemente espontânea, Lady Ferguson lança:
— Hoje encontrei-me no Normandy com a Edith Grenfell. Sabiam que se separou do marido?
— Acho que foi um divórcio muito falado. Dizem que ela deixou o pobre Grenfell meio arruinado.
— O Grenfell? Esse não é o das minas da África do Sul?
— O próprio. Acho que tem tanta vergonha que abandonou a Inglaterra.
— Por uma infidelidade da sua mulher? Não devia ser ela, em todo o caso, a sair do país?
— Algumas mulheres não têm escrúpulos, querido James. Não te esqueças disso.
— Deixou de o amar — intervém Frances subitamente. — Isso não se pode controlar.
Lady Ferguson olha para ela com uma certa condescendência.
— Acreditas mesmo nisso?
Frances fita-a.
— Eu não podia viver com um homem que já não amo.
— Nós sabemos, querida, nós sabemos.
Sarah dá-me um pontapé por debaixo da mesa.
— A Frances também é divorciada — diz-me em voz baixa.
E depois, enquanto eles falam, pergunto a Sarah se a sua prima Frances e o músico são amantes.
— Não! És tão tonta! Não vês que ele é efeminado?!
Olho para ela sem saber muito bem o que é que ela quer dizer.
— Ele gosta de homens, não de mulheres.
Não respondi. Tinha de pensar nisso mais devagar.
Depois, quando eu própria me tornei adulta, compreendi que o guião do que se vai comentar ou do que se silencia num jantar de alta sociedade está definido de antemão. Ninguém o escreveu e ninguém o antecipou aos participantes da reunião, mas ao longo da minha vida sempre consegui adivinhar de que é que se falaria num jantar ou num convite para passar o fim de semana no campo. Algumas coisas, a vida de sociedade entre elas, estão perfeitamente estruturadas. Mas, por vezes, há exceções. Por exemplo, nenhum de nós previu que a conversa da noite de 29 de junho se centrasse exclusivamente num assassínio: o do arquiduque e herdeiro do Império Austro-Húngaro Francisco Fernando e da sua esposa Sofia, em Sarajevo. A notícia do magnicídio, que teve lugar apenas no dia anterior, tinha atravessado a Europa e corrido como um raio no tácito esforço de destroçar uma geração e de alterar a ideia que a Europa tinha de si própria.
Ainda não disse quase nada sobre os irmãos de Sarah. Eram dois e também estavam a passar aquele verão em Deauville. James, o mais velho, era comandante de um navio da Armada de Sua Majestade o rei Jorge V. Era alto e atraente, como a sua mãe. Elliott, dois anos mais novo do que o seu irmão, era ruivo e tinha sardas como Lorde Ferguson, e optara pela vida civil. Nesse inverno ia trabalhar na City, num dos bancos mais importantes do Reino Unido.
Normalmente, eles faziam uma vida paralela à do resto da família. Iam às corridas do Hippodrome de la Touques, aos salões do hotel Normandy, praticavam polo, vela e, à noite, depois do jantar de família, passavam o serão no Casino, a jogar ao chemin de fer. Iam sempre juntos a todo o lado. Às vezes, durante as conversas familiares, era surpreendente ver que, sendo tão diferentes, tinham as mesmas opiniões.
Nenhum dos dois reparava especialmente em mim, mas numa tarde em que estava sozinha na biblioteca, a escolher um livro, James e eu falámos durante algum tempo. Lembrei-me muitas vezes dessa conversa.
Aproximou-se da parte mais escura da biblioteca, onde eu tentava passar despercebida, quando vi que a porta se abria e alguém entrava. Acho que me viu logo.
— Estás à procura de alguma coisa para ler?
Assenti.
— Alguma coisa em concreto?
Neguei.
— Queres que te aconselhe?
Encolhi os ombros. Não era indiferença, era timidez.
— Conheço esta biblioteca como a palma da minha mão — disse como se falasse consigo próprio ou como se descobrisse que os livros continuavam ali. — Li a maior parte destes livros quando tinha a tua idade.
Eu achava-me estranha por gostar tanto de ler; de facto, ainda não tinha conhecido ninguém que gostasse de o fazer. O único livro que havia na casa dos Hervieu era uma Bíblia. Em Coutances, na casa da viúva Tréport, havia livros, mas ninguém os lia a não ser eu. Os Ferguson tinham na Villa Esmeralda uma pequena biblioteca com cerca de trezentas obras; não eram muitas, mas nessa divisão havia sempre alguém a ler. Principalmente Lorde Ferguson, que lia ali os jornais durante grande parte da manhã e, às vezes, nas tardes de chuva, quando não jogava bridge, a sua esposa; mas sobretudo o pai de Lady Ferguson, Sir William, o ancião que na noite da minha chegada se tinha esquecido de que estávamos na Normandia. Nunca vi James nem Elliott por lá.
Até essa tarde. O carácter mundano do irmão mais velho de Sarah não fazia suspeitar que fosse um desses aprazíveis burgueses que se entregam à leitura num cadeirão Chester durante as tardes de inverno. De facto, era difícil imaginá-lo a ler todos aqueles livros, mas o seu tom, reflexivo e sincero, não deixava margem para dúvidas. Nem sequer o que disse de seguida.
— Sabes uma coisa? Em alto-mar, um livro faz companhia.
Procurou na estante.
— Toma este. Acho que vais gostar.
Estendeu-me O Monte dos Vendavais.
— Disseram-me que vais para uma espécie de internato.
Internato? Isso era novo para mim.
— Quando te sentires sozinha, lê um livro. Vai fazer com que te sintas melhor.
Foi-se embora deixando que uma surpreendente inquietação me alterasse por dentro, quando de repente se virou da porta.
— Emily Brontë também foi para um desses internatos para meninas de boas famílias. Espero que o teu seja melhor. Mas lê, lê sempre que puderes.
Antes de fechar a porta atrás de si, ouvi que sussurrava:
— Isso vai salvar-te.
Chegou a hora de descer até ao salão. Eu queria perguntar a Miss Abbott que diabo era isso do internato; estava furiosa e não conseguia pensar noutra coisa, mas, quando entrei, percebi de que se estava a passar alguma coisa grave.
Os homens, de pé junto à grande janela do jardim, discutiam acaloradamente. As mulheres, incluindo Miss Abbott, pareciam abatidas. Sacha tocava ao piano uma triste melodia espanhola, enquanto Frances sorria sem nenhum entusiasmo.
— O arquiduque da Áustria foi assassinado.
Não conseguia perceber muito bem todo aquele alvoroço. Porquê tanta comoção? Afinal de contas, a Áustria ficava muito longe de Deauville.
Frances aproximou-se.
— Foi na Bósnia-Herzegovina, em Sarajevo.
Ainda percebi menos. A Bósnia parecia-me mais longe.
— Amanhã vamos para Le Havre. O Sacha tem de ver uma pessoa antes de regressar a Paris — disse Frances a Lady Ferguson.
— Achas que é conveniente, querida?
Ouvir, juntar uma coisa à outra. Durante o jantar consegui saber que a zona dos Balcãs esteve recentemente em guerra e que, embora se tenha assinado um tratado de paz em 1913, receava-se que a Sérvia e a Rússia se revoltassem contra os Habsburgo. O assassínio do herdeiro ao trono austro-húngaro era afinal uma provocação que, se tivesse resposta por parte da Áustria e da Alemanha, podia muito bem conduzir a uma nova guerra.
Era tudo uma simples conjetura, mas era suficiente para aquecer os ânimos. Por exemplo, lembro-me de Lady Ferguson visivelmente preocupada com o destino de James. De Sacha, que era servo-bósnio — como Princip, o assassino que tinha matado o arquiduque — e queria a todo o custo regressar a Paris, mas tinha algum tipo de impedimento nos seus documentos. De Frances, que sorria com tristeza e mal falava. De todos os homens da casa, alterados, a discutir, a analisar possibilidades e hipóteses em abundância. Naquele momento sabíamos realmente quem tinha disparado contra o arquiduque? Sabíamos que se chamava Gavrilo Princip e que era membro da organização nacionalista sérvia Mão Negra? Duvido. Tenho a certeza de que nessa noite tudo aquilo de que se falou na casa dos Ferguson se baseava em simples conjeturas e medos.
Indeterminação. Insegurança. Medo. É o que provocam os factos que podem virar as nossas vidas do avesso. O futuro é o lugar menos seguro de todos os que possamos imaginar. Recordo muitas vezes com uma grande pena que Elliott, o filho mais novo dos Ferguson, anunciou que se alistaria caso houvesse uma guerra. E que Sarah sentia um estranho júbilo com tudo aquilo.
Entre essa noite de 29 de junho e 4 de agosto — que foi o dia do meu aniversário e também o dia em que a Inglaterra declarou guerra à Alemanha — aconteceram tantas coisas e a vida avançou a tal velocidade que já não sei como organizar as minhas lembranças.
Vejo-me a mim, a Sacha e a Frances, apertados no Morris Bullnose, a circular até Honfleur com o vento de frente. E a casa daquele músico louco que se chamava Erik Satie e era amigo de Sacha. Tinha idealizado um carrossel musical e instalou-o num quarto escuro. Sentámo-nos nos selins de couro e pedalámos até que se abriu uma sombrinha no meio do carrossel. A música de Satie soava graças a um artefacto que pulsava as teclas escondidas no interior do estranho carrossel. Sacha e Frances riam-se com o acontecimento.
E antes: Miss Abbott a admitir que era verdade — o duque de Ashford tinha decidido mandar-me para um internato em Brighton. E eu, insegura, sem saber se devia ficar contente ou triste. Pensava na casa da viúva Tréport e parecia-me impossível regressar a tamanha miséria. E depois lembrava-me das palavras de James, um sigiloso aviso sobre os internatos e a solidão. Entretanto, O Monte dos Vendavais enchia a minha alma de emoções desconhecidas.
Outro dia: o comboio de Paris, a gare, Sacha a dizer-nos adeus com a mão enluvada do compartimento de segunda classe. E atrás dele uma mulher vestida de preto e um padre com um chapéu.
Depois: os serões sem música. Os jogos de críquete, os banhos no mar, as competições de saltos no hipódromo e, à noite, as conversas na Villa Esmeralda, intensas, temerosas, cheias de maus presságios. E as manhãs no passeio marítimo onde Frances encontrou um jogador de polo, Arthur «Boy» Capel, e a sua jovem amiga, uma costureira chamada Coco Chanel, que tinha inaugurado uma loja de chapéus em Deauville. Lembro-me dessa mulher, ossuda, seca, pouco atenciosa. E pergunto-me: foi assim que a vi? O que posso garantir é que Frances e ela não gostavam uma da outra. Talvez fosse porque Frances e «Boy» Capel tivessem tido alguma coisa que ver no passado.
E James, a partir para Portsmouth subitamente, quando, depois de fazerem muitos braços de ferro, a Áustria declarou por fim guerra à Bósnia. E as lágrimas de Lady Ferguson. Já tinham medo de que a Inglaterra entrasse no conflito? Acho que sim. Nessa noite foi a primeira vez que vi Lorde e Lady Ferguson abraçarem-se.
A 4 de agosto era o meu aniversário. Foi uns dias depois da partida de James. Tinham instalado a mesa no jardim porque estava uma manhã esplêndida. Ainda ninguém tinha descido para tomar o pequeno-almoço. Debaixo de uma tília, num banco de madeira azul, vi Sir William com o jornal na mão. Aproximei-me dele. Achava graça àquele homem velho e desmemoriado.
— A Alemanha declarou guerra à França — disse apontando para o jornal.
Achei que era uma brincadeira. Ou um dos seus disparates.
— Ainda bem que estamos em Inglaterra — acrescentou.
— Estamos em Deauville, Sir William. Deauville é França.
Olhou para mim como se eu estivesse a tentar enganá-lo.
— A sério?
Assenti.
— Então somos franceses? Vão invadir-nos?
Não tive tempo de lhe explicar. Miss Abbott vinha na nossa direção.
— Faz as malas, querida. Temos de regressar a casa com os Ferguson. O barco sai de Le Havre ao início da tarde.
Então era verdade? A França estava em guerra?
Nesse mesmo dia, enquanto nos preparávamos para sair de Deauville, a Alemanha invadiu a Bélgica. De seguida, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha. Toda a Europa estava disposta a esvair-se em sangue por alguma coisa que era difícil de compreender.
Não tive tempo de dizer a Miss Abbott que a Inglaterra não era a minha casa.