9

— Pareces muito contente, porquê?

Lola estava a servir batatas guisadas com costeletas e uma rodela de chouriço, que foi parar ao prato de Matías. Deu-se conta de que estava a sorrir.

— Não sei — mentiu. — Deve ser porque esta tarde não tenho de sair. Estou a pensar ler, ouvir rádio e, se me apetecer, até posso dormir uma sesta.

Matías olhou-a com uma certa incredulidade.

— Toda a tarde em casa? — repetiu como se o perguntasse a si próprio. — Vais aguentar?

Lola empurrou-o levemente com o cotovelo.

— Quem te ouvir…

— Claro que… talvez precises de um pouco de companhia… Durante a sesta, quero dizer.

Lola sentou-se em frente dele e devolveu-lhe um olhar carregado de sensualidade. Era um jogo. Havia nesse olhar uma promessa e, ao mesmo tempo, a sua negação. Matías pensava que, enquanto as coisas fossem dessa forma, haveria algo, uma faísca, uma âncora que os manteria fortemente unidos. Às vezes envergonhava-se pensando que ela dependia dele, do seu amor. Era como ter poder sobre outro ser humano. Depois passava-lhe porque acabava por reconhecer que ele também dependia de Lola para tudo, inclusivamente para as coisas práticas que ela conseguia fazer muito melhor. A sua vida não teria sido a mesma depois da guerra se Lola não se tivesse ocupado da gestão. Ele punha a imaginação, ela a capacidade de organização e o bom senso. Às vezes não era de estranhar que ficasse abatido; tinha-lhe calhado o papel menos gratificante, porque não há nada mais esgotante do que a contenção.

— Nem pensar — protestou Lola. — Tu vais trabalhar à hora de sempre. Esta tarde é minha e não a partilho com ninguém. Mas nem penses em vir depois das nove. Vou ter o jantar na mesa.

Não lho disse, mas queria ficar sozinha por algo mais. Porque é que insistia em escondê-lo de Matías? Tinha sentido pena dessa pobre mulher. E o pior de tudo é que não se arrependia.

— Tirei o livro da montra.

Matías olhou-a perplexo.

— Porquê?

Lola encolheu os ombros. Passaram várias respostas pela sua mente. Escolheu a mais direta.

— Está lá há quase uma semana e ninguém o lê. Tens de admitir que é absurdo.

— Pois — disse ele. A contrariedade tinha vincado os traços do seu rosto.

— Estás zangado?

— Não — respondeu —, não estou zangado. Mas também não percebo. Porque é que não me consultaste?

Lola ficou agitada e deixou os talheres no prato.

— Pelo mesmo motivo pelo qual tu o puseste na montra. Para sentir que ainda posso fazer o que me apetece.

Matías passou a mão pelo queixo. Era algo que costumava fazer quando pensava.

— Passa-se alguma coisa contigo? Estás muito estranha.

Lola começava a ver que já não conseguia controlar a situação. Pegou de novo na faca e no garfo.

— Comecei a lê-lo.

Confessou meia-verdade, porque assim podia esconder a outra metade. Não sabia muito bem porquê. Talvez porque tivesse que ver com a sua independência.

— Tu? — perguntou-lhe Matías.

Assentiu com um simples gesto. No prato restava um pedaço de costeleta. Lola separou a carne do osso, cortando cuidadosamente uma das pontas.

— Gosto — reconheceu sem levantar os olhos do prato.

Matías sorriu.

— Eu disse-te.

Nessa mesma manhã, Matías tinha cumprido o seu ritual de todas as terças e quintas-feiras. Por mais encomendas que tivesse, era sempre ele quem levantava a persiana, punha os fusíveis no contador da eletricidade e fechava ao meio-dia. Realmente não fazia falta nenhuma, mas Lola sabia que ele gostava de a proteger, às vezes demasiado. Era a sua forma de cuidar dela. Inútil e absurda, claro, porque levantar a persiana, pôr os fusíveis e pôr o cadeado eram coisas que Lola podia fazer com os olhos fechados. Nessa manhã Matías tinha feito algo mais do que abrir a livraria: foi à pequena montra e, sem sequer tirar o livro do atril, passou uma folha. Lola pensou em dizer-lhe que não servia de nada expor as páginas cinco e seis, porque ela e a mulher inglesa — que eram as únicas leitoras até ao momento — tinham instaurado o seu próprio ritmo de leitura. Mas não disse nada. Calou-se, consciente de que ele teria gostado de saber que havia alguém interessado no livro. Calou-se porque às vezes a aborrecia, a inquietava e apetecia-lhe ter uma vida secreta na qual ele não estivesse. Embora fosse uma coisa tão banal como atender uma cliente em segredo.

Uns minutos depois, ela apareceu em cena. Lola estava a despachar um frasco de tinta da China Pelikan quando a viu. Por um momento, pareceu-lhe que tinha estado à espera na esquina até Matías sair. Fez-lhe um sinal para que entrasse, mas a mulher não se decidiu até que o cliente saiu com o seu tinteiro embrulhado em papel pardo.

Cumprimentou-a com um discreto bom dia e um tom de voz excessivamente baixo. Nessa manhã tinha um grande cachecol de angorá à volta do pescoço. Não o tirou.

— Como está? — respondeu-lhe afavelmente Lola. — Esta manhã está muito frio, não está?

— Sim. Mas aqui a senhora tem uma temperatura agradável.

— Já viu a montra? O meu marido expôs outras duas páginas, mas acho que já lemos essa parte, não é?

A mulher fez um gesto ambíguo com aquele sorriso cativante que a fazia parecer mais nova.

— Vai um pouco mais lento do que nós — justificou-se Lola. — Mas eu passo-lhe as páginas sem qualquer problema. Trouxe finalmente os óculos?

Viu como a mulher se mexia inquieta. Pensou que não era nada simpático da sua parte fazê-la sair à rua para ler numa manhã tão fria.

— Prefere que lhe deixe o livro para o ler aqui dentro? Podemos fazê-lo, o chefe não está — acrescentou com um ponto de cumplicidade, para que a mulher se sentisse mais à vontade.

— Bem… — Começou a tirar o cachecol. Tinha ficado vermelha como uma adolescente. — É que…

Lola suspeitou que havia algo mais do que o incómodo ou o frio.

— Custa-me muito ler na sua língua. — Parecia um pouco envergonhada. — Falo muito bem, toda a gente me diz isso, mas ler em castelhano cansa-me tanto que abandono a leitura dez minutos depois. Se a senhora quiser…

Disse esta última parte tão baixo que Lola sentiu pena.

— Entre — disse enquanto levantava decidida o balcão. — Sente-se na cadeira e vamos ler juntas, como ontem. Acho que ficámos no momento em que começa a Primeira Guerra Mundial.

A mulher recuperou o sorriso. E de novo aquela rede que se espalhava pelo seu rosto frágil fez com que Lola pensasse na urdidura de um tear ou no linótipo de uma gráfica. Alguma coisa naquele rosto de aparência simples e natural estava organizada de acordo com um modelo muito preciso.

Acontecerá desta forma. Um inocente engano que semeará algo desconhecido entre Matías e Lola. E depois a suspeita, uma mancha escura que os cobrirá aos dois como uma manta.

O sol desapareceu por detrás do telhado da casa da frente. Olha para o relógio. São só seis da tarde. Matías não regressará a casa até às oito e meia. Fica uns minutos mais na poltrona; os seus dedos longos percorrem com indolência a superfície de uma das flores azuis do apoio de braços enquanto pensa num dia como este, há dezasseis anos.

Viram-se pela primeira vez num café. É uma desagradável tarde de inverno. Matías está a falar na tertúlia na qual ela participa como convidada de um escritor de Valladolid que ainda alberga certas esperanças e cujo rosto esquecerá totalmente cinco minutos depois de chegar. Precisamente o contrário do que acontecerá com Matías. Repara nele, esse rapaz alto, bem-parecido, de nariz aquilino e tez morena. Alguém lhe disse que é editor e isso confere-lhe uma espécie de aura de intelectual que ela acha muito interessante. Além do mais, os seus olhos, brilhantes e ardentes quando fala de política, atraem-na.

Ela. Uma rapariga de vinte e dois anos que acaba de regressar de Paris, onde passou um ano e fez um curso de tradução na Sorbonne. Tem o cabelo curto, puxado para trás, uns brincos de ouro, pequenos e discretos, e um lenço graciosamente apertado ao pescoço. Também é outubro. A luz do dia começa a desaparecer, como agora mesmo. No café estão sentados cinco homens vestidos de maneira informal e uma rapariga com óculos que olha para ela com um certo desdém, como se não merecesse estar ali. Lola cumprimenta-os um por um, dá a mão aos homens, dois beijos à rapariga, e depois senta-se cruzando as pernas e pondo o sobretudo dobrado sobre os joelhos discretamente. Está calor, mas não quer tirar o casaco porque a blusa é transparente e viu como olham para ela. Todos menos o que se chama Matías.

Dessa primeira vez. Lembra-se da sua voz, dos seus gestos, dos olhares clandestinos, possivelmente alheios à sua vontade. Ele estava a falar em travar o avanço de Gil-Robles e da CEDA quando ela chegou, e agora discutem uma proposta do Partido Comunista para que todos os grupos de esquerda se unam numa única candidatura para as próximas eleições.

Ela não percebe nada, não pode opinar. Ouve em silêncio a rapariga dos óculos e outro dos companheiros de tertúlia que rejeitam o plano com uma virulência e uma raiva pouco contidas. Lola fica muito surpreendida pois trata-se de correligionários. Defendem posições radicais que Matías tenta desmontar passo a passo, com muita calma e integridade.

Como o faz? Não usa a veemência exclusiva dos seus opositores, mas sim um tom pausado e uma voz calma. Transmite sensatez e prudência. Encantador e inteligente: uma combinação que de repente lhe parece perigosa.

Enreda-se nas suas palavras, enquanto ele admite que os anarquistas estão, como muitas outras vezes, divididos. A sua voz vai-se metendo nos recantos da sua mente, lenta, cadenciada, sustida como uma nota musical. Tenta não parecer uma tonta ignorante e quer perceber de que é que falam, sobretudo o que ele diz. Chama-se Matías, ouviu o seu nome várias vezes no calor da discussão. Fala em votar uma futura coligação de esquerda que estão a tentar criar. Lola ouve-o com atenção, enquanto os outros ficam em silêncio. Tem a sensação de que se dirige a ela quando lhes pede para terem uma atitude mais aberta, e quando defende que é necessário tirar da prisão os quase trinta mil presos políticos que foram parar ao cárcere pelas greves e as ações da revolução de 1934.

— Muitos desses companheiros que estão a apodrecer na prisão são da UGT — reconhece perante os seus oponentes —, é verdade. Mas agora não é o momento de desavenças partidárias; temos de estar unidos e de ser muitos, quantos mais melhor, porque esses presos são braços de que precisamos na rua, homens e mulheres que defenderam os direitos de todos, e a luta operária não se pode permitir perdê-los, quer sejam comunistas, socialistas ou anarcossindicalistas.

Enquanto se esforça por entender a situação política que se vive em Espanha em finais de 1935, repara que ele olha para ela constantemente, sobretudo quando os outros falam, observa-a através do fumo do cigarro que segura nas mãos, umas mãos largas e quadradas que ela de repente quer acariciar.

Quando acaba a reunião, ele demora-se premeditadamente para ficar ao lado dela. Falam. Ela diz-lhe que esteve algum tempo fora, no estrangeiro, e que não está a par das questões políticas. Repara que ele adota uma postura um pouco paternalista quando lhe tenta resumir o assunto sobre o qual estiveram a discutir. Só o faz durante uns breves minutos, não a atordoa, não abusa. É esperto, sabe fazer bem as coisas. Depois já não falam mais de política; saem juntos do café e ele pergunta-lhe por Paris e pelos seus estudos de tradutora. Na rua chove muito e as rajadas de vento molham-lhe as pernas ao correr até à entrada do metro. Lembrar-se-á sempre dessa cena, a corrida debaixo da chuva, ele a pegar-lhe na mão, uma mão firme que de repente lhe proporciona uma desconhecida sensação de segurança, o peito prestes a rebentar pela corrida, ou pelas emoções… E depois à entrada do metro, os dois, um em frente do outro, a olharem-se dessa forma.

Agora Lola apodera-se dessa frase que leu nessa mesma manhã no livro da montra: «O primeiro beijo não se dá com a boca, mas sim com o olhar.» Então, foi assim, há dezasseis anos. Junto às escadas do metro, rodeados de pessoas com guarda-chuvas e sobretudos ensopados, eles beijaram-se sem se tocar, sem que os lábios entrassem em contacto. Beijaram-se porque ninguém conseguiu fazer nada para o evitar e porque nenhum dos dois quis resistir. Beijaram-se antes de Matías lhe dizer que era casado e antes de ter tempo de estabelecer os alicerces daquela relação na qual tudo se foi misturando e enredando.

Depois.

Lola interessou-se pela editora.

Matías convidou-a a visitá-lo.

Lola vestiu a saia mais justa e a blusa mais elegante.

Matías propôs-lhe traduzir os Calligrammes de Apollinaire do francês.

Lola aceitou e começou a ir todos os dias ao escritório.

Matías convidou-a para ir ao Ateneo, para ver uma representação de O Fósforo Sueco, de Tchekhov.

Ela começou a frequentar a tertúlia política e as assembleias da CNT. A rapariga dos óculos odiou-a sem disfarçar. Lola suspeitou que estava perdidamente apaixonada por Matías, apesar de ele ser casado.

E um dia, uma noite melhor dito, quando ele a acompanhou à casa da rua Montesquinza, onde ela vivia com os seus pais, precisamente no momento de se despedir, ela colocou-se em bicos de pés e beijou-o nos lábios. Desta vez foi verdade, embora às vezes pense que o beijo mais verdadeiro que deu na sua vida tenha tido lugar junto às escadas do metro.

Sim, poder-se-ia dizer que foi esse o primeiro contacto físico. E que foi ela quem tomou a iniciativa. Também se poderia dizer que não soube parar aqui, apesar das objeções de Matías; o seu desejo libertou-o de uma parte da responsabilidade e, ao comportar-se desta forma, deixou que ele ficasse a salvo de qualquer arrependimento. Soube desde o princípio que devia ser assim. Matías nunca teria dado o primeiro passo. Não pela sua mulher, ou não só, mas também por ela, por Lola, para não a humilhar, rebaixar e expor a alguma coisa da qual certamente não a poderia defender.

Houve eleições em fevereiro. Ganhou a Frente Popular, enquanto eles os dois se encontravam às escondidas numa pensão da rua San Bernardo e os operários se concentravam à porta de fábricas e ateliers para que os que sofreram as represálias de 1934 fossem readmitidos, ou à porta das prisões para que os presos fossem libertados. Tudo era possível. Novo. Apaixonante. Lola seguia Matías sem conseguir pensar noutra coisa senão nesse imperioso desejo de o amar e de mudar o mundo.

Em maio foram juntos ao IV Congresso Nacional da CNT, que se celebrou em Saragoça e no qual se discutiu longamente sobre comunismo libertário. Outra cidade. Gente que pensava como eles. Uma sensação de liberdade que ampliava a vida até ao infinito. À noite partilhavam o mesmo leito e de manhã saíam do quarto com o sorriso nos lábios e a cabeça muito direita.

Matías tinha-se separado da sua mulher. Lola e ele viveriam definitivamente juntos. Arrendaram uma casa numa discreta e silenciosa rua, na qual só havia dois prédios, um em cada passeio. No átrio do prédio onde eles viviam havia um pequeno atelier de relojoaria. Iam juntos à editora todos os dias e no regresso desciam de mãos dadas pela rua Argensola até ao cruzamento com a Fernando VI e, deixando de lado a agitação comercial da rua Barquillo, entravam no seu universo próprio, uma rua sem saída pela qual não circulavam carros, e mal se via gente que não fosse do bairro. Para Lola, essa rua era especial, sê-lo-ia sempre. Matías costumava parar a conversar com o relojoeiro, um velho militante socialista que tinha servido em Melilla quando se deu o desastre de Annual. Gostava de ouvir aqueles longos relatos de ineficácia militar que evidenciavam a corrupção do exército espanhol. Segundo o relojoeiro, o relatório do general Juan Picasso não pôde sair à luz porque até o rei estava metido no assunto.

Ela começou a voar por sua conta.

Filiou-se no Mujeres Libres e traduziu Paul Morand, Valery Larbaud e Blaise Cendrars, um homem curioso que viajava para poder concentrar o mundo num verso.

Ia ao teatro.

Ao Parque do Retiro para passear entre as árvores nuas quando o sol aquecia o suficiente.

Ao espaço do Noviciado onde tinham criado um grupo de alfabetização, instrução básica e ensino sindical para mulheres.

Deu uma palestra sobre Flora Tristán. Escreveu um artigo sobre Mary Wollstonecraft.

Desfrutava. Era feliz. Estava cheia de energia e de projetos, de sonhos.

Matías amava a sua forma de olhar para o mundo, o seu singular modo de construir a realidade até por cima da realidade.

Matías amava o seu púbis, os seus seios, a sua cintura, as suas ancas.

Matías amava-a.

E ela alimentava-se de belas e solitárias palavras em francês, debates libertários, carícias e gemidos imprevistos a meio da tarde. Era um mundo sem peso, uma vida de ar.

Os pássaros de Braque e os corpos alados de Brancusi flutuavam por cima das longas noites de vigília.

Foram surpreendidos pelo começo da guerra neste clima, e a felicidade partiu subitamente, sem qualquer aviso prévio.