13
As férias acabaram e o meu pai não me veio ver.
Também não foi Frances que me levou de volta ao internato; Lady Ferguson ordenou que fosse o motorista da família a fazê-lo e eu fiquei contente porque não queria ver Frances nem pintada.
Tinha escalado uma bela colina, dia após dia, hora após hora, naquelas intensas férias de Natal, e agora, de repente, estava penosamente sentada no chão da minha própria realidade.
Aquele inverno foi terrível. Nunca me senti tão sozinha. Felizmente, havia livros, livros, livros… Histórias nas quais se refugiar, histórias pelas quais fugir. Livros.
O tato das folhas, o calor seco do papel, livros com as suas lombadas arredondadas, de meia-encadernação, brochados, de tecido, livros com nervos, com etiquetas, sem elas, livros escritos há cem anos onde o calor das mãos alheias deixou uma história feita de tempo. Como é que sei tanto sobre livros? Ah… Isso também é coisa de Henry.
Esse foi o meu mundo, com isso me alimentei, disso vivi. E como não podia ser de outra forma, mais cedo ou mais tarde chegaram as férias da primavera e o motorista dos Ferguson apareceu à porta principal do internato. Fiz o caminho de regresso a Elsinor Park com um nó no estômago. Nesse momento os livros não eram de grande ajuda.
Ao chegar senti que era um lugar confortável e conhecido. Quando vivemos nesta casa, já não a achamos tão extraordinária. De facto, dessa vez pareceu-me que tudo era muito mais pequeno do que recordava. Por exemplo, a entrada, os jardins e as verdes encostas que a primavera tinha convertido em caminhos muito mais transitáveis… E o interior de Elsinor Park, que agora era quase quotidiano e familiar… Os quadros e os móveis, os tapetes, as escadas de mármore e os corredores intermináveis, que pequenos se tinham tornado de repente, quão familiares e sem grandiosidade. O hábito é o principal inimigo da fabulação.
A casinha do rio continuava ali, mas eu não me aproximei nem uma vez do lugar. Porque havia de o fazer? James não estava em Elsinor Park. Tinha regressado à Armada e, segundo o que Sarah me disse, foi destacado para um lugar do Mediterrâneo. Por um lado, fiquei contente, mas teria dado quase tudo para que não fosse assim, para vê-lo, para recuperar as nossas leituras e as nossas conversas. Frances também não estava. Não perguntei a ninguém porquê.
Foram poucos dias, mas muito saudáveis. Sarah e eu montávamos a cavalo, jogávamos ténis, íamos caminhar pela estrada, até à aldeia, e ali tomávamos um chá ou bisbilhotávamos nas lojas de chapéus. Nessa primavera falei muito com Sarah. Desta vez não houve nada especialmente destacável, nem uma palavra sobre o meu pai, só coisas de raparigas, receitas de bolos, notícias de moda… Quando regressei ao internato sentia-me muito bem e lembro-me de pensar que a vida tinha de ser assim, fácil e leve, e não essa tortura intensa e solitária em que se tinha convertido para mim. Tinha sido criada numa quinta, com uma boa família que me tinha ensinado o prazer da sensatez, e isso estava enraizado nos meus costumes. O resto, o pesar, a dor, a amargura, não eram nada aconselháveis, por isso, impelida exclusivamente pelo meu próprio discernimento, decidi mudar aquele estado de espírito. Tentei relacionar-me mais com as minhas colegas e ler menos, mas além disso escolhi melhor as minhas leituras; deixei de lado os poetas românticos e os escritores russos, e esforcei-me por estudar coisas diferentes. Bem vistas as coisas, eu não era assim tão tonta.
A primavera inglesa é longa e tem paciência com as feridas do coração que cicatrizam sem pressa, mas sem interrupções, e além disso os factos impunham-se: em abril submarinos alemães tinham afundado o transatlântico Lusitania e em maio a Itália e a Bulgária também entraram na guerra, cada uma num lado diferente. O mundo estava disposto a fazer-se em cacos. Os homens propuseram matar-se uns aos outros e já ninguém falava de outra coisa senão de batalhas. Anos depois, muitos anos depois, ouvi Leonard Woolf, o editor da Hogarth Press, dizer que a guerra de 1914 tinha destruído a esperança de que as pessoas se estivessem a civilizar e que a tinha destruído de tal forma que, certamente, a Europa não poderia recuperar de uma coisa assim.
A verdade é que naquela altura essas palavras não teriam significado grande coisa para a maior parte das alunas daquele colégio de meninas de boas famílias, mas para mim eram importantes. Tinha acreditado ver de perto as consequências do conflito e, na verdade, não fazia a mínima ideia do que era verdadeiramente essa guerra. Ainda não tinha visto nada; apenas um marinheiro em convalescença, mimado e felizardo, que se deixava embalar enquanto os seus companheiros morriam aos milhares; mas a juventude é arrogante e eu pensava que já sabia tudo sobre os assuntos da vida.
Finalmente, o verão chegou. E com ele o que eu mais temia: umas novas férias.
Frances veio-me buscar um dia antes do que estava previsto. Nunca foi capaz de chegar no dia em que estavam à sua espera. Ou chegava depois ou adiantava-se sem motivo e, como é evidente, sem avisar.
Tenho de reconhecer que estava bonita, distinta, tão atraente como sempre. Mas isso, longe de me provocar a admiração de antigamente, reforçava o meu rancor. Tinha cortado o cabelo e levava-o solto, à altura da nuca. A sua saia também estava mais curta, continuando a ser direita, porém já não lhe chegava aos tornozelos, mas ficava abaixo da barriga da perna. A blusa tinha um simples corte à marinheiro com um debrum azul-marinho que combinava com o casaco de lã fina, que também tinha um debrum azul do mesmo tom. Na verdade, parecia chegada das regatas. Depois fiquei a saber que essa era a moda francesa para um triste verão em guerra e que o estilo inventado por Mademoiselle Chanel tinha cada vez mais adeptas entre as damas da alta sociedade francesa.
Eu ainda tinha uniforme, a minha trança de sempre, e um mau humor considerável. Acho que Frances se apercebeu da minha atitude, mas fingiu ignorar, algo que sabia fazer na perfeição.
— Querida, não vais trocar de roupa?
Sentei-me bruscamente no banco do Morris Bullnose como resposta. Ela encolheu os ombros e meteu a mala que eu tinha deixado junto das escadas no espaço atrás do meu assento.
Conduziu cerca de dois quilómetros em silêncio. Era evidente que tinha conseguido deixá-la nervosa, porque passado um tempo disse:
— Rose, querida, passa-se alguma coisa contigo?
Podia ter-lhe dito que sim, que estava terrivelmente ressentida porque ela andava a dormir com o homem que eu amava, um homem, já agora, que era muito mais novo do que ela e, além disso, era o filho da sua prima, mas até eu achei que era uma atitude ridícula. Contudo, precisava de fazê-la pagar pela minha dor de qualquer forma. E não me lembrei de outra coisa que não fosse abordar o assunto do meu pai. Sabia que era um tema tabu, por isso lancei-me disposta a cravar os dentes e a não soltar a presa até que esta uivasse de dor.
— Onde me levas desta vez? Em que família vão albergar o lixo do duque de Ashford? Os Ferguson outra vez?
Empalideceu. Tinha-me percebido perfeitamente.
Houve um silêncio. Longo. Tenso. Eu sentia-me cheia de adrenalina da cabeça aos pés. O couro cabeludo ardia-me.
— Há quanto tempo sabes?
Tinha cravado os dentes. Agora era uma questão de não fraquejar.
— O que pensavam? Que eu nunca ia descobrir?
Frances recompôs-se. Depois das minhas perguntas, ficou mais calma. Pelo menos já sabia o que estava a enfrentar.
— Não é assim tão grave, sabias? Agora pode parecer assim, mas pensa que dentro de pouco tempo vais achar uma coisa quase normal.
— Normal? Julgas que isto acontece a muita gente?
— A mais pessoas do que tu pensas.
— Ah, sim? Tu tens um pai e uma mãe? Foram eles que te criaram?
— As pessoas não são todas iguais — respondeu.
Isso ainda me irritou mais.
— Claro, há senhores, como o meu pai, os Ferguson e tu própria, e servos, como eu.
— Não dramatizes, querida. Sabes que não é assim.
Sabia que estava a exagerar, mas voltei à carga. No meu íntimo, julgava ter uma carta na manga.
— E o que se passa com a minha mãe?
Frances parou o carro. Soube que a coisa estava a ficar séria, certamente mais séria do que eu tinha previsto.
Desligou o motor. Virou-se para mim. Não parecia zangada, apenas triste.
— A tua mãe — disse.
— Sim, a minha mãe — respondi. Mas a minha voz já não estava tão segura como a princípio. Será que queria mesmo saber?
— O que é que te disseram exatamente?
Não era a Frances que eu conhecia. Não era essa pessoa inconsistente e frívola, descuidada e banal. Estava séria, e os seus olhos pareciam maiores, como se estivessem à procura da forma de não chorar.
Baixei o olhar.
— Ninguém me disse nada. É esse o problema, ninguém se deu ao trabalho de o fazer.
Estendeu a mão, que estava coberta por uma das suas luvas sem dedos. Tocou levemente na minha com suavidade, com ternura.
— Sabes quem era?
— Não — respondi, de repente envergonhada. Talvez já suspeitasse que estava a ser injusta.
Tinha dito era? Era?
— A tua mãe era minha irmã. Chamava-se Margaret, todos a tratávamos por Maggie.
Era? Tratávamos?
— Morreu quando tu nasceste. Três dias depois.
Com a mão meio enluvada, acariciou-me o cabelo. A discussão tinha-me transtornado de tal forma que pensei que ela repararia no calor ardente que o meu corpo emanava mesmo antes de lhe tocar levemente, só aproximando a mão a duas polegadas.
— Tinha o mesmo cabelo que tu. Comprido e abundante. Louro como os campos de trigo.
Nunca tinha ouvido Frances falar com aquele tom grave e melancólico.
— Era muito alegre — disse. — Sempre a rir e a brincar. Gostava de cantar. Fazia-o muito bem.
Finalmente, depois de tanto imaginar… Os meus sonhos infantis, as cabalas noturnas, os mistérios das tardes solitárias de inverno, as suspeitas e as indagações, tudo se concentrou naquele instante. Por fim, sabia.
O que senti? Bem-estar. A sensação de que alguém me punha uma compressa fria num dia de febre. E também algo mole por dentro, como se os meus órgãos relaxassem e cedessem até se expandirem dentro de um corpo que era meu, mas parecia muito mais amplo. Que tinha chegado ao fim de um longo caminho.
— És minha tia — disse ela a Frances.
Ela sorriu pela primeira vez.
— Sim, querida — disse abraçando-me com força. — Sou a única família que tens.
Dentro desse abraço senti algo novo. Que dizia adeus a uma época da minha vida. De repente, esqueci-me daquilo que tinha visto na casinha do rio. Ou melhor, não me esqueci, mas coloquei-o no lugar que lhe correspondia. Frances já não era Frances Agora era a minha única família. Finalmente.