14
Lola fechou o livro lentamente, juntando as duas partes sem fazer o mínimo ruído.
— O que lhe parece? — perguntou-me.
Lembrei-me por um instante que eu lhe tinha perguntado o mesmo no primeiro dia, quando estávamos no passeio, com o frio inesperado de outubro.
— Não sei — respondi. — Mais íntimo do que esperava.
Ela deu-me razão com um simples gesto.
O livro de Rose Tomlin levava-nos tão longe que depois era difícil regressar à realidade. E quando voltávamos sentíamos a necessidade de saber que a outra estava ali. Tentávamos partilhar algo mais, talvez a certeza de que A Rapariga dos Cabelos de Linho nos interessava às duas da mesma forma.
O título era acertado, devo reconhecer. Porque podíamos imaginá-la perfeitamente… Uma rapariga com um acentuado sotaque francês e uma grande trança loura, tecida com cabelos dourados de diferente intensidade, como as sementes de linho. Não sei se Lola a imaginava assim. Só posso dizer que, depois de cada leitura, olhávamos uma para a outra como se houvesse um contacto físico entre os olhos dela e os meus. Poucas vezes senti essa sensação de cumplicidade. Talvez com Henry, mas era outra coisa, acontecia de outra forma.
Agora éramos duas mulheres, uma velha e outra jovem, unidas por um livro.
Imagino que para ela fosse diferente. Talvez só tivesse curiosidade. Mas acho que não, que também havia algo mais. Tínhamos as duas medo de que a outra não mantivesse o mesmo interesse e de que a leitura nos dececionasse em algum momento. Então acabaria tudo.
Acho que se tratava disso, sim. A nossa relação pessoal ainda era muito frágil.
— A senhora conhece os escritores dos quais a autora fala? Owen Lawson e esse tal Conrad? — comentei tentando evitar essa sensação.
— O meu marido é um devoto leitor de Joseph Conrad — respondeu. — Escreve livros de tipo… não sei, masculino, sabe como é. Vida em alto-mar, assuntos de honra, agentes secretos, batalhas…
Fez uma pausa. Tinha falado de seguida, com uma espontaneidade natural. Mas devo reconhecer que as suas observações eram extremamente gráficas.
— Pelo contrário, a mim, para ser sincera, Conrad deixa-me indiferente — continuou a dizer agora de forma mais calma. — Não li Owen Lawson; de facto acho que nem sequer está traduzido em Espanha, mas intrigou-me o que se diz sobre ele. Se tiver tempo, vou à biblioteca consultar a Enciclopedia Espasa.
Abriu uma gaveta. Tirou dois rebuçados embrulhados em papel branco com letras pretas.
— São de malvaísco, quer um?
Peguei nele. Era demasiado grande para falar com ele na boca, por isso demorei a desembrulhá-lo porque queria perguntar-lhe uma coisa.
— Os senhores não estão muito de acordo com a situação política que se vive em Espanha, pois não? Desculpe perguntar-lhe assim, de forma tão brusca, mas tenho a sensação de que tanto a senhora como o seu marido sofreram muito durante a guerra.
Ela olhou-me surpreendida. Pelos seus olhos e pela sua expressão passaram com celeridade, como faíscas, a desconfiança, o reconhecimento e finalmente a amargura. Imagino que nesse momento se perguntou quem era eu e se podia ser sincera comigo.
— Esta guerra causou-nos tanto sofrimento que ainda não recuperámos — disse por fim. — A nós e a muitíssimas pessoas mais.
Vi que lhe custava olhar para mim. Os seus olhos estavam de novo nublados. Baixou o olhar com tristeza.
— Eu quis partir — acrescentou uns segundos depois —, quis que nos exilássemos como outros amigos; quase toda a gente que conhecíamos saiu de Espanha de uma forma ou de outra; uns foram para França, outros para o México, todos vivem agora vidas prósperas e felizes. Em países livres.
Por um momento senti a sua raiva, o seu protesto por alguma coisa que não era bem definida, mas que parecia um protesto íntimo, uma dessas coisas de que nos censuramos a nós próprios e que são as mais difíceis de resolver.
— Claro que outros morreram — reconheceu passado algum tempo. — E isso é pior.
É curiosa a forma através da qual nós, os humanos, procuramos consolo nas desgraças alheias. Curioso, sim, e talvez, num primeiro momento, um pouco inconfessável, mas funciona sem dúvida na perfeição.
— Nós não fugimos porque o meu marido foi condenado à morte. Depois comutaram-lhe a pena e teve de permanecer vários anos num campo de concentração.
Falava com liberdade. Deve ter chegado à conclusão de que uma mulher estrangeira talvez fosse a interlocutora mais adequada para desabafar. E fê-lo. Lentamente. Com uma desconcertante sinceridade.
— Esta guerra foi demolidora, não só pelas mortes e pela perda dos nossos direitos; o pior de tudo, pelo menos para mim, foi a perda dos sonhos. Contra isso não consegui lutar. Porque no início do levantamento militar tudo nos parecia uma espécie de aventura quixotesca: defender a liberdade, os direitos da classe trabalhadora, a independência das mulheres…
Olhou-me durante uns segundos, sorriu com tristeza, e baixou de novo o olhar, como se estivesse envergonhada ou, melhor, como se as suas lembranças pesassem muito, tanto que não era capaz de as carregar.
— Depois tudo isso se converteu em algo ruim, mesquinho, miserável — confessou com a voz ligeiramente trémula. — A dor e o medo arruinaram tudo. Vi como muitos dos nossos amigos só se preocupavam em salvar a sua própria pele e como os dedicados lutadores de antigamente eram de repente capazes de delatar, de trair e de abandonar os seus ao deus-dará. E no fundo eu percebo, não pense que não; só lamento que Matías nunca quisesse fazer o mesmo. A nossa vida seria muito diferente se tivéssemos ido para França, por exemplo.
Tinha de novo lágrimas nos olhos quando levantou o olhar e concluiu:
— Por isso entendo muito bem a Rose Tomlin quando diz que a guerra parece um pouco irreal até que vemos as consequências.
Senti-me muito mal por ter abordado o assunto e quis afastá-la daqueles tristes pensamentos.
— Para ser sincera, eu penso muitas vezes nisso, porque era apenas uma menina quando estalou a guerra de 1914 — comentei de seguida —, mas estávamos informados; as más notícias até chegavam à Rodésia. Porém, embora soubéssemos da magnitude do conflito, no fundo pensávamos que eram coisas que aconteciam aos outros. E depois, quando já não havia maneira de ignorarmos essa situação, julgámos que nunca viveríamos uma coisa assim. E, como vê, depois veio a Segunda Guerra Mundial e foi pior do que a Primeira. Afetou toda a gente, houve mortos na Europa, em África, no Pacífico, no ar, debaixo do mar. O mundo não aprende.
Ela parecia estar de acordo, porque murmurou pensativa:
— Sim, não sei porque é que nunca se aprende com os erros do passado.
Tentei dar-lhe uma explicação. Não era nada original, sem dúvida, mas podia ser adequada para aquele momento.
— É próprio dos seres humanos. Esquecemos a dor sempre que podemos. Os animais, pelo contrário, quando sofrem algum dano, identificam o perigo rapidamente. Nunca ouviu dizer que gato escaldado de água fria tem medo?
Finalmente sorriu. A sua beleza natural acentuava-se com a alegria. Devo reconhecer que era um verdadeiro prazer olhar para ela.
Uns minutos depois, levantou-se e pôs o livro na montra.
Gostei de a ver mover-se. Tinha uma esplêndida figura e uma certa elegância inata; sabia vestir-se, usava corretamente os acessórios, era como uma tela, com uma esplêndida moldura que reforçava a sua importância. Ultimamente isso acontece-me. Fico cativada pelos corpos alheios, sobretudo pelos das mulheres jovens. Talvez tenha que ver com a nostalgia do meu próprio corpo jovem, como se quisesse prender a lembrança do que fui. Bem, ao contemplar Lola, às vezes sinto-me como se estivesse a olhar para fotografias antigas.
Já estava de novo atrás do balcão, e a arrumar distraidamente o papel de embrulho, quando de repente deu meia-volta, foi de novo até à montra, pegou no livro, afastou-o para um lado, e de seguida retirou o atril e o cartaz.
Vi-a fazer tudo isso em silêncio.
— Só nós duas é que o lemos — disse virando-se para mim e dando-me uma explicação que eu não tinha pedido.
Depois colocou no espaço que tinha deixado vazio dois livros de poesia e três ou quatro romances recentes de autores espanhóis.
— Está muito melhor assim — comentou quando terminou.
Eu não me levantei para ver, mas reparei ao sair e era verdade, a pequena montra tinha agora um aspeto muito mais razoável.
— A senhora virá mais dias? Quer continuar com a leitura?
— Na próxima terça-feira, se lhe parecer bem.
Não devia ter dito isso; eu não tinha motivos para saber que ela ficava na loja em determinados dias da semana. Podia dar a impressão de que os tinha estado a espiar, como de facto aconteceu, mas ela não se deu conta.
Alguém passou pelo átrio. Apercebi-me de que, enquanto ela tinha estado a ler, não tinha entrado um único cliente.
— Posso perguntar-lhe uma coisa?
— Claro.
— Como é que está a correr este negócio?
Esboçou um sorriso um pouco amargo. Reparei que nesse dia levava o cabelo apanhado de um lado e preso com uma pequena travessa de tartaruga. Não tinha os lábios pintados.
— Como é que havia de correr? Mal. Às vezes, mesmo muito mal.
— O seu marido parece um homem muito culto.
— Conhece-o?
Percebi imediatamente. Acabava de fazer asneira. Se tivesse conseguido engolir as minhas palavras, tê-lo-ia feito sem hesitar.
— Vi-o uma vez… A passar pela rua. Está sempre a ler ou a escrever.
— Pois… Sim, é muito culto. Mas não é um homem de negócios. Pelo menos deste tipo de negócio. Antes da guerra tinha uma editora e eu trabalhava com ele. Depois a guerra levou tudo, como diz a Rose.
— Na história da Rose, parece que a guerra trouxe outras coisas.
— Sem dúvida — reconheceu sem prestar muita atenção às minhas palavras. — Para dizer a verdade, a nós também. Deixou-nos na ruína, mas uniu-nos mais.
Levantou-se. Eu fiz o mesmo.
— Sabe uma coisa? — disse de repente. — Em 1936, antes de os militares se sublevarem, vivemos algum tempo neste prédio. Foi a primeira casa que tivemos.
Sorria. De repente parecia feliz com as suas lembranças.
— Saíamos todas as manhãs para irmos juntos para a editora. Porque o Matías, o meu marido, era editor, sabia? E eu trabalhava com ele, era tradutora de francês.
Não se deve ter apercebido de que tinha acabado de mo contar. Ou talvez precisasse de reforçar essa lembrança. Sei muito bem o que isso é: às vezes precisamos de repetir que é verdade, que vivemos o que vivemos e que sentimos o que sentimos, para não cairmos na tentação de pensar que foi só um sonho. A realidade é frágil, muito frágil, quando lhe viramos as costas.
— E agora, como vê, viemos parar aqui outra vez. A nossa situação não é nem de longe a mesma, como pode imaginar, mas gosto deste prédio. Por isso alugámos este espaço, porque nos trazia boas lembranças. E porque conhecíamos o anterior proprietário da época em que vivemos aqui.
Fez um gesto brusco apagando os pensamentos com uma palmada.
— Trouxe-lhe uma coisa.
Ela ficou surpreendida. Tirei uns bilhetes da mala.
— A senhora foi muito atenciosa ao dedicar-me todo este tempo, ao ler por mim. Comprei-lhe uns bilhetes de cinema para ir com o seu marido. É para ver um filme da Rita Hayworth. A senhora lembra-me muito essa atriz.
Ficou muito quieta e, embora seja pouco adequado dizê-lo, de boca aberta, meio embasbacada. Depois reagiu.
— Mas… de forma alguma. Como é que vou…?
— Não gosta de cinema?
— Não é isso… É que a senhora não tem motivos para me compensar de nada. Fi-lo com muito gosto.
Estendi-lhe os bilhetes com determinação.
— Tome — insisti. — São para esta noite. Para a sessão das dez.
Aceitou-os com uma estranha formalidade, como se fosse um ritual ou uma cerimónia.
— Sabe há quanto tempo não vou ao cinema? Há pelo menos cinco anos. Já me tinha resignado a não regressar antes de outros cinco.
Sorri.
— Vê? Há sempre surpresas.
Levantou o balcão para que eu saísse.
Estava prestes a ir-me embora, quando me virei. Ela tinha os bilhetes na mão.
— Não se deve resignar; a senhora é jovem, parece corajosa. Mais cedo ou mais tarde, tudo isto vai passar. Uma situação política como a que se vive aqui não pode durar muito.