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Matías está sentado na cadeira do cinema. Os fotogramas desfilam perante os seus olhos sem que ele lhes preste a mínima atenção. Está a pensar em Adela. Foi vê-la esta tarde. Está muito doente, provavelmente não se vai safar desta e precisa de tudo… Precisa de cuidados, afeto, apoio económico. E ele tem de contar isto a Lola, mas ainda não sabe como fazê-lo.

Tem a cabeça como uma trituradora. As imagens chegam, alvoroçam-se e partem. Depois voltam sob qualquer pretexto, todas misturadas, desordenadamente. Uma curta viagem a Viena, com Lola. Quando ele ainda está casado com Adela e vive com ela num apartamento da rua Prim, muito perto da editora. Não têm filhos.

E de repente foge de tudo isto. Só por uns dias, com ela. Um hotel no centro, perto de uma estação de metro. As ruas limpas, arranjadas, silenciosas, de uma cidade onde ninguém os conhece. Outro mundo, o mundo no qual, por um instante, Matías pensa que gostava de viver. Vão a um concerto na Konzerthaus; os bilhetes custaram um balúrdio, mas não faz mal, vai ser uma vez na vida e quer que esta viagem seja inesquecível para ela. Estão num café onde lhes oferecem um bombom com o torrão de açúcar. É um espaço cheio de candeeiros enormes, prateleiras feitas com listeis de bronze entrecruzado, onde se deixam os sobretudos e o chapéu, e fofas poltronas de veludo vermelho. Estão neste café perto da sala a fazer tempo para ver Bruno Walter a dirigir, num programa inteiramente dedicado a Mozart. Lola tinha este capricho; nunca tinha estado em Viena, embora tivesse ouvido os seus pais falarem toda a vida disso, porque foi em Viena que passaram a lua de mel e onde, ao que parece, a conceberam. O seu pai referiu isso uma infinidade de vezes e a sua mãe ficava sempre corada como uma colegial. Foi por isso que Matías escolheu Viena, quis surpreendê-la com esta viagem, a primeira que fazem juntos. Preparou-a cuidadosamente até ao último detalhe e optou — depois de pensar muito e de descartar Paris e Roma, que pareciam os destinos mais indicados para uma viagem romântica — por esta cidade do centro da Europa onde está um frio de rachar, onde no hotel lhes põem um cobertor com uma capa branca, sem lençóis e sem manta, dobrado aos pés da cama. É um edredão, disse-lhe Lola, está cheio de penas de ganso ou de pato, tapas-te com ele e adapta-se ao corpo, não precisas de mantas porque conserva todo o calor. Esta cidade onde tudo é tão caro e cheira sempre a manteiga e a chocolate derretido, Viena, sim, Viena, nem Paris nem Roma, Viena, o lugar onde começou a vida e foi concebida a mulher pela qual se apaixonou perdidamente.

No café. Ela tem o cabelo apanhado num duplo coque, uma parte mais alta e a outra quase à altura da nuca; foi ela própria que o fez no quarto do hotel e, segundo lhe disse, é o penteado que Grace Kelly usa numa revista. Também pôs uma espécie de toucado cinzento-pérola, em forma de meia-lua, muito simples e muito elegante. É primavera, mas está frio. Têm os dois sobretudos de lã, os dois são altos, magros, atraentes. Os dois têm os olhos a brilhar.

Lola mexe o café com a colherzinha, enquanto esperam encontrar-se frente a frente com Mozart. Longe, noutra cidade, há uma mulher que se chama Adela que não sabe nada de tudo isto.

Até que ponto se sente culpado agora por tê-la abandonado? Matías disse a si próprio mil vezes e repetiu-o a Lola outras tantas: têm direito, toda a gente tem direito de se apaixonar de novo, de mudar de vida, de alterar o seu rumo. Mas essas palavras e esse convencimento nunca foram capazes de apagar totalmente a culpa.

E agora, ainda por cima, esta maldita doença que deixa a sua ex-mulher consumida como um cadáver numa cama que era a sua e que agora cheira a morte. Há uma vizinha que vem ajudar um pouco todos os dias, mas para o resto Adela está totalmente sozinha. Não tem ninguém. Matías combinou com a mulher que esta prepare a comida e lhe limpe a casa em troca de uma pequena quantia de dinheiro. Ele não pode fazê-lo. Também não deve. Escolheu um caminho e, embora nesse espaço onde reside a má consciência às vezes se arrependa, não pode andar às apalpadelas e em direções diferentes.

Vê a morte, e ao mesmo tempo uma Lola muito mais nova, sentada ao lado dele na plateia da Konzerthaus de Viena, o vestido de seda azul-acinzentado rodado sobre as suas pernas cruzadas, as luvas e a pequena mala prateada a dormir sobre a roda da saia, enquanto Mozart converte tudo numa festa. Vê também as suas mãos — a dela, suave e de dedos compridos, e a dele, larga, quadrada, de camponês — entrelaçadas pelas ruas escuras, quando regressam ao hotel, ela entusiasmada como uma menina, a falar sem parar; ele cheio de emoções contraditórias, às vezes com um pequeno assomo de culpa, mas sobretudo com o orgulho, a satisfação do sedutor que utilizou as suas melhores armas, o homem experiente que sabe como atrair uma mulher, e isso quase sem o confessar nem sequer a si próprio.

No ecrã do cinema, há uma mulher que dança. É um pouco parecida com Lola, mas tem as pernas demasiado magras para o seu gosto.

Agora.

Quinze anos depois.

E nada mudou. Ainda sente a culpa por ter abandonado Adela e o desejo imperioso de fazer o que for preciso para ter Lola ao seu lado. Duas emoções diferentes, caminhos que partem em direções opostas.

O que aconteceu? Quando é que o filme acabou? Voltam para casa a pé desde a Gran Vía, de braço dado, às vezes de mãos dadas, como antes, como em Viena. Esta noite também está frio.

— A Adela está a morrer.

Já está. Disse-lho.

Lola parou de repente. Na sua cabeça acaba de desembarcar a mesma confusão que Matías sentia durante a projeção do filme. Agora é ela quem se sente invadida por esses enigmáticos sons que avançam às apalpadelas como exércitos derrotados… Onde é que ouviu isso? Rose Tomlin. Essa menina foi criada numa quinta na Normandia sem saber que era filha do duque de Ashford. Cinco palavras, mas pesadas como fardos… A Adela está a morrer.

— Como é que sabes?

— Fui vê-la.

Um longo silêncio, prolongado, como o frio da noite de finais de outubro.

— Já não se levanta da cama. Parece um cadáver.

Soam os passos dele, amortecidos, como a sua voz. Os dela, uns sapatos de salto alto que ecoam nas pedras da calçada.

— Estou a dar dinheiro a uma vizinha para que cuide dela. Já sei que estamos com a corda ao pescoço, mas tenho de o fazer.

Espera pela reação dela.

— Claro — disse Lola com uma voz diáfana, sem sombra de dúvidas —, faz o que achares conveniente.

A conveniência…

Se Adela morrer, pensa Lola quase sem querer, eu deixarei de ser o que sou agora, a outra, a amancebada, a amante; poderemos legalizar a nossa situação… Não exatamente assim, não com palavras tão claras e tão vulgares. De outra forma. Imprecisa. As ideias fluem sem premeditação e, portanto, sem censura. Poderíamos vender a casa da rua Prim, ou alugá-la, e conseguir um pequeno desafogo económico…

Pensa às furtadelas, mas pensa… Matías não vai querer que nos casemos de novo, argumentará com os seus princípios e dirá que não precisamos que o regime franquista nos benza com as suas falsas leis e as suas pantomimas; dirá que éramos marido e mulher antes de declararem ilegal tudo aquilo que os representantes do povo legislaram, dirá isso… Mas se não o disser, eu poderia ir à casa dos meus pais e dar-lhes essa alegria; a minha mãe poderia deixar de olhar para as vizinhas com receio e vergonha… E depois pensa, de repente, que ela não quer saber, que no fundo está de acordo com Matías… Mas a verdade, se é que há alguma verdade, é que está cansada de resistir para nada, de esperar quando todos os que estavam ao seu lado se cansaram de esperar. Esta é a única coisa que pode garantir.

As palavras arrastam-se pelo chão.

Sobem o elevador, primeiro em silêncio. Matías abre a porta e acende a luz da entrada, uma tulipa de vidro fosco com uma lâmpada de quinze watts. Depois percorrem o corredor, enquanto as palavras caem à sua passagem, lentas, pesadas, como pedaços de chumbo lançados ao mar. Lola vai ao quarto e guarda o casaco, tira os sapatos e calça uns chinelos de pele azul-marinho que a sua mãe lhe ofereceu, bonitos, como tudo o que a sua mãe compra, com uma pequena cunha que lhe permite andar mais confortável e a faz parecer mais elegante do que esses rudes chinelos de tecido que ela tinha e que relegou imediatamente para o fundo do armário. Depois regressa à cozinha, onde Matías fuma em silêncio. Falam de qualquer coisa, e as palavras continuam a cair até que se vão deitar abraçados, ela com a cabeça na cavidade do ombro de Matías, ele com o braço a rodeá-la por trás. Por fim o silêncio, ou alguma coisa parecida com ele.

— Já não há café.

É o dia seguinte. Lola não tem de ir à livraria, mas levantou-se ao mesmo tempo que ele. Está cansada, dormiu mal.

— Não faz mal, bebo leite.

— É de ontem.

— Mas está bom?

— Estava no guarda-comidas, não estava?

— Sim, claro. Mas mesmo assim vou fervê-lo.

Liga o rádio. Há música, uma melodia que se pode dançar tocada por uma dessas orquestras americanas. É uma música alegre para um dia normal.

Matías acendeu um cigarro.

— Faço-te umas sopas? Ainda há um pouco de pão.

— Pode ser.

Uma baforada de fumo passa-lhe à frente do rosto. Vai até à janela e abre-a um pouco, empurrando-a para a outra parede para que o ar frio não lhes dê diretamente. Depois parte o pão em fatias muito finas, o mais fino que a dureza da côdea lhe permite, apoiando o cacete contra um guardanapo que, por sua vez, se apoia no espaço que há entre os seus seios. Mete o pão no leite a ferver e vai à casa de banho. Quando sai, lavada e com roupa de estar por casa, Matías já se foi embora. Sente o chão do corredor semeado de palavras caídas.