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Pensei nisso no último momento. Já era quase meio-dia e meia. Estava um pouco farta da conversa da minha vizinha. Chama-se Amparo e é de uma aldeia de La Rioja; é uma boa mulher, não posso dizer o contrário, mas é chata como a potassa. Faz-me muita companhia — até quando não preciso dela — e está sempre disposta a ajudar, mas é terrivelmente intrometida. Há vezes em que bate à porta e eu não abro. Só para que não se instale na minha casa durante o resto da tarde. Desta vez cometi o erro de abrir; vinha perguntar se preciso de alguma coisa da mercearia, e disse-lhe que não, mas ela não quer saber: sentou as suas enormes nádegas numa banqueta da cozinha e ficou ali a falar pelos cotovelos durante um bom bocado. No fim tive de lhe recordar as horas e então assustou-se, tal como faz sempre, ficou com uma pressa terrível e quase me deu a entender que a culpa era minha se ficasse sem batatas. Quando se foi embora, decidi dar um passeio e talvez ir até à livraria.

Gosto da cidade de Madrid. Nem demasiado grande, nem demasiado pequena. Nas manhãs de outono, quando as crianças vão para a escola e as donas de casa começam a preparar o almoço, a cidade fica nas mãos dos desocupados ou dos que trabalham por conta própria: velhos como eu, rapazes que fazem recados, prolongando a distribuição enquanto fumam um cigarro, mulheres que passeiam pelos bairros elegantes do centro a ver as montras, freiras e padres que não sei para onde se dirigem, nem me importa, é preciso ver a quantidade de freiras e padres que há em Espanha… Cruzo-me com um homem que arrasta um carrinho de mão e com outro que leva a tiracolo uma caixa de ferramentas… Na esquina da rua Gravina, perto do mercado, quase esbarro com um pescador que, sem dúvida, vem do rio Manzanares com a sua cana e a sua cesta de vime… E acontecem coisas insignificantes mas divertidas. Por exemplo, esse homem que vem da pesca cruza-se na esquina com uma mulher de aspeto um pouco… digamos alegre, que certamente acaba de se levantar depois de uma noite agitada, e coincidem na mesma taberna; ele vai tomar um copo de vinho e ela um café… Imagino-os ao balcão, um ao lado do outro, com as suas vidas tão diferentes, e penso que talvez falem entre eles de coisas sem importância, do frio que já chegou, do gato que se aproxima para cheirar a cesta de vime ou se interroguem se o taberneiro mete água no vinho… Enfim, esta é a cidade onde decidi viver.

Hoje, antes de a vizinha aparecer na minha casa, Constance telefonou-me. Era uma ligação de Londres. Continua com as suas polémicas e os seus advogados. Quer que lhe dê uma resposta ou que nos encontremos em Londres, mas eu respondi-lhe que agora não posso, que tenho muitas coisas para fazer em Madrid. Não é verdade, mas Constance não pode sabê-lo.

Depois pensei na família, esse círculo estreito onde convivem o amor e a intransigência. As palavras de Constance ecoam junto aos meus passos sobre o passeio de lajes levantadas. «Casar-se com um homem adequado», justamente o que eu não fiz. Claro que eu não sou a Constance, não somos nada parecidas. Nem para o bem nem para o mal. Por exemplo, jamais terei a sua arte para organizar esses chás e esses jantares que Constance preparava para todos, incluindo Henry, quando a Espanha ainda não existia nas nossas vidas e ninguém suspeitava de que um dia viéssemos aqui parar. Lembro-me perfeitamente deles: uma grande mesa de mármore no meio dos sofás forrados com um difuso tecido de chenile azul, uma bandeja de prata trabalhada com três andares, scones recheados num, sandes variadas noutro, bolachas feitas por ela própria no terceiro, e depois os pequenos recipientes individuais com manteiga e doce de arando feito também — como é evidente — pela própria Constance. Mas sobretudo, as impecáveis toalhas de linho bordado e as chávenas de porcelana, os talheres de prata sempre brilhantes e esse refinado gosto que se herda com as terras, com o rendimento anual e com a cor do cabelo. A isso é preciso acrescentar as disputas, as desavenças e os rancores secretos. As famílias são isto. Henry ria-se sempre disso. Eu acabei por fazer o mesmo.

Ao virar a esquina da sua rua, vejo que o livreiro está a baixar a persiana. Consulto o meu relógio de pulso e vejo que ainda não está na hora de fechar; também não é terça, nem quinta-feira, por isso pergunto-me o que se passará. Continuo a pensar em Constance e nos seus jantares de vinte convidados, enquanto me coloco no passeio como um pointer disposto a seguir o rasto. Posso fazê-lo quase sem pensar, enquanto percorro mentalmente a mesa da sala coberta com a toalha de renda, a louça inglesa e os copos de cristal da Boémia, e vejo Constance a dar ordens aos criados, com esse tom familiar e firme que antigamente me surpreendia tanto noutras mulheres. Posso ir atrás dele conforme começa a andar pelo passeio da livraria, e quando vira a esquina, e sigo-o enquanto a minha cabeça está distraída com imagens de Constance a receber os convidados no vestíbulo, impecável, serena, a dominar a situação. Sim, vou-o seguindo sem qualquer tipo de intenção, de forma quase automática. E depois Constance afasta-se e eu caio de repente na realidade. A cidade é também agora um espaço conquistado pela exceção. Não há mulheres atarefadas, nem crianças que saem da escola, quase não há carros. Deve ser hora do almoço porque algumas lojas, a farmácia da rua Barquillo, por exemplo, estão a baixar a persiana. A farmácia fecha antes das outras lojas, não sei porquê. Não seguimos a rota habitual, a que leva o livreiro à casa dos seus clientes; agora vamos pelo passeio esquerdo da rua Barquillo até ao cruzamento com a Almirante. Depois o homem dirige-se à Conde de Xiquena e vai dar à rua Prim.

Quando passa o Teatro Marquina entra num prédio e espero que ele suba as escadas para me aproximar do átrio. Ouve-se uma porta. Sei que já não pode ouvir nada do que eu disser.

Vejo que há uma portaria, e aproximo-me tentando demonstrar essa naturalidade que me faz parecer totalmente inocente. Uma mulher abre a janelinha.

— Minha senhora — conto à porteira, depois de lhe desejar bom dia com o meu sorriso mais cordial —, acho que acabo de ver o meu sobrinho a entrar neste prédio. Agora mesmo, chamei-o, mas ele não me deve ter ouvido.

— Agora mesmo? — pergunta ela.

— Há um segundo — garanto. — Ainda deve estar a subir.

Sai da portaria. É uma mulher gorda e corada, com um avental de riscas pretas e dois alfinetes que lhe seguram o peitilho à camisola de lã.

— Senhor Matías — grita assomando-se ao vão da escada.

Eu sei que o senhor Matías não a consegue ouvir.

Vira-se e olha para mim com curiosidade.

— Diz que é seu sobrinho?

— Bem, sobrinho pela parte do meu marido — minto decidida.

— Ah, claro… — pondera a mulher, que já se deu conta de que eu não sou espanhola. — Mas não sabia que o senhor Matías tinha família no estrangeiro.

— Não, não, nós vivemos em Madrid há muito tempo. Mas eu, não sei porquê, nunca perdi o sotaque. Eu sou inglesa, mas o meu marido é de Cuenca.

— Então, porque não sobe?

Titubeio.

— É que… não quero incomodar.

Ela pensa de novo.

— Claro, eu percebo. Aquela pobre mulher está a morrer.

Que mulher? A quem é que se refere? Acho que a minha expressão indica claramente que não sei de que é que me está a falar.

— A senhora Adela — explica-me muito desenvolta. — Uma doença muito má, não tem cura.

Espero em silêncio que continue. Ela olha-me e abana a cabeça como se soubéssemos as duas de que se trata.

— As pessoas dizem que é porque ele, o seu sobrinho, a trocou por outra. Separaram-se há anos, antes da guerra, sabia? Mas que disparates estou eu a dizer, claro que a senhora já sabe. E muito melhor do que eu.

Não dou saída ao comentário, sobretudo porque quero saber algo mais.

— A senhora disse que ela está a morrer?

— Foi isso que eu ouvi, a mim ninguém mo confirmou oficialmente, e além disso não têm motivos para o fazer; eu aqui sou só a porteira, mas há uma vizinha que se encarrega de cuidar dela e diz que o médico não lhe dá muito tempo de vida. Pelos vistos tem muitas dores e está o dia todo em sofrimento. Essa doença deve ser horrível.

Volta a abanar o seu rosto redondo e corado em sinal de pesar.

— Agora ele vem todos os dias, desde que ficou a saber, porque antes não punha cá os pés. Podemos entender, se já não viviam juntos nem havia nada entre eles… Embora, se quer que lhe diga a verdade, o seu sobrinho não se tenha portado muito bem. Se uma pessoa se casa, é para sempre, aqui não somos como no estrangeiro, que as pessoas se divorciam por qualquer coisa e voltam a casar sempre que lhes apetece. Se não acredita olhe para as atrizes de cinema, todas essas que hoje têm um marido e amanhã outro…

Começa a falar como se lhe tivessem dado corda, enquanto na minha cabeça aparece o rosto de Lola, os olhos e o sorriso melancólico, bela como se ela também fosse uma dessas atrizes de cinema à qual a câmara está a focar, e ouço as suas palavras por cima da irritante verborreia da porteira, «em 1936, antes de os militares se sublevarem, vivemos algum tempo neste prédio. Foi a primeira casa que tivemos. Saíamos todas as manhãs para irmos juntos para a editora. Porque Matías, o meu marido, era editor…» E agora, finalmente, entendo aquilo de que ela tem saudades com tanta intensidade.

— … porque, digo eu, as coisas são como são, e aqui há muitos desavergonhados, não o digo pelo seu sobrinho, valha-me Deus, que sempre se portou bem connosco quando vivia com a senhora Adela, parecia um homem irrepreensível, muito culto, sem dúvida, e um pouco… a senhora já me deve estar a perceber, um pouco comuna, desses que estavam a favor da república. Eu não digo nada, porque agora não se pode falar disso, mas cá entre nós, e sem que ninguém nos ouça, o seu sobrinho esteve preso, toda a gente sabe, e agora veja a desgraça que cai em cima da senhora Adela, depois do que a pobre coitada passou…

Despeço-me de qualquer forma, precipitadamente, antes de Matías sair de novo e me apanhar na coscuvilhice. Acho que a porteira começa a suspeitar de mim, mas felizmente eu já virei a esquina.

Não gosto de dormir a sesta. Depois levanto-me mal, atordoada, desorientada. O corpo pesa-me como se tivesse três pessoas dentro dele.

Sonhei. Disso gosto. Sonhei com uma paisagem que ainda consigo ver, durante uns minutos; depois desaparecerá ao aproximar-se da realidade. Nas pradarias de montanha há uma erva alta, como tiras de vassoura; está inclinada pelo vento e queimada pelas geadas. Sei que estamos aí, mas não nos consigo ver. Só distingo os penachos dessa erva de cor cinzenta que se mantém esmagada contra a terra de finais do inverno e a sensação incómoda que provoca pisá-la.

Aproximo-me da janela. Quero tomar um chá, mas de momento não o farei, porque sei que, quando começar a fazer alguma coisa, o sonho vai-se desvanecer. Aproximo-me da janela e olho distraidamente para o entardecer de outono, com as árvores castanhas e as folhas pelo chão. O céu está nublado e já não há muita luz. Dentro de pouco tempo anoitecerá. Flutuando desordenadamente pela consciência restam-me algumas sensações agradáveis: a luz do sol primaveril, a erva coberta de geada e o murmúrio da água a abrir caminho desde os cumes. Sobreviver, esse é o verdadeiro sentido do meu sonho. Permitir-se o luxo de sobreviver.

Hoje fiquei a saber onde vivem os meus amigos livreiros. Segui Matías quando por fim saiu da casa da rua Prim. Sou tenaz, já o disse num primeiro momento, e nesta ocasião em concreto precisava de ver com que aspeto saía da casa dessa outra mulher. A verdade é que parecia muito abatido. Quase esbarrámos um com o outro quando passou por mim, mas não me reconheceu, não se apercebeu, de facto acho que passou sem me ver realmente. Tinha um ricto muito amargo na boca. Deu-me pena.

Depois caminhei atrás dele, algo que já se converteu para mim numa rotina, e vi-o entrar num prédio, certamente humilde, na rua que fica atrás do edifício da Telefónica. Supus que viviam ali, porque tirou as chaves do bolso e subiu o primeiro lanço de escadas com os ombros caídos, como se o corpo lhe pesasse tanto como me pesa agora a mim. Que casal tão triste.

As sombras do meu sonho partiram. É agora que aqueço a chaleira e me instalo no meu cadeirão preferido com o livro de Katherine Mansfield que comprei na semana passada. Gosto muito do conto que dá o título ao livro, The Garden Party, «A Festa no Jardim», seria a tradução, e qualquer uma das duas versões me parece adequada ao espírito do livro no seu conjunto. Às vezes, antes de começar a ler um livro, sobretudo se é novo, gosto de o ter durante algum tempo nas mãos. Henry dizia que eu aquecia os livros como os ingleses as chaleiras antes de começarem a preparar o chá. Sim, gosto de fazer isso. É um pequeno ritual que faz parte da minha peculiar maneira de me aproximar da leitura; preciso de lhe tocar, de o reconhecer com a palma da mão. Percorro-o com as pontas dos dedos, devagar, muito devagar, até que reconheço a rugosidade do papel, da pele ou do tecido. Toco no livro para que nos conheçamos melhor.

Enquanto leio o primeiro conto, parece-me ouvir Constance que diz: «Anular a festa? Minha querida Laura, não sejas louca. Não podemos fazer nada disso. Ninguém espera tal coisa. Não sejas extravagante.» Podiam ser as suas próprias palavras. Perfeitamente. E o morto podia ser qualquer um de nós. Ela não se alteraria.

Esta história deixou-me triste. Tem esse poder, sem dúvida. Por alguma estranha coincidência, a protagonista do relato de Mansfield, Laura, lembra-me um pouco Rose Tomlin, A Rapariga dos Cabelos de Linho. Penso que tem a mesma forma espontânea de se comportar e essa curiosidade pela vida que fará dela uma mulher perspicaz no futuro.

Ou talvez não, talvez eu esteja enganada. Da próxima vez que vir Lola, pedir-lhe-ei para lermos dois capítulos seguidos. Preciso de ir avançando.

Sim. Leremos mais depressa. É necessário.