19
Não sei muito bem o que é que quero. Isto de nos tornarmos velhos tem destas coisas, como nos resta pouco tempo adquirimos um descaramento e uma falta de precaução invejáveis. Não nos preocupamos com nada. Ser velho é quase tão libertador como ser rico.
«Uma gaiola foi procurar um pássaro», diz um autor que li há pouco tempo. É checo e chama-se Franz Kafka.
Talvez seja isso.
Talvez esteja a tentar prender uma vida que não é a minha. Não sei.
Aos domingos, se está bom tempo, costumo ir dar um passeio ao Parque do Retiro. Está apenas a dez ou quinze minutos da minha casa.
Ao meu ritmo, claro.
Desço pelo bairro das Salesas, atravesso em frente desse palacete que tem uma bela glicínia enredada no gradeamento e entro no Retiro pela porta da rua Alcalá. Cruzo-me com famílias que vão passar o domingo em redor do lago artificial e com crianças que correm nervosas em direção ao jardim zoológico Casa de Fieras. Umas vezes atravessa-se no meu caminho uma dessas bicicletas de aluguer e outras uma bola de pele pontapeada por dois jovenzinhos…
Vou anotando mentalmente com frequência as pessoas com as quais me cruzo, ou as cenas das ruas que me surpreendem. Brinco como se levasse uma máquina fotográfica invisível, com a qual capto todo o tipo de situações. Quem vir esta mulher de uma certa idade, de aspeto fora do comum, alta, de pele e cabelo branco, calçada com uns confortáveis sapatos rasos e vestida com um grosso casaco de lã irlandesa, nunca, digo, suspeitaria que vai registando tudo o que vê com intenção de o guardar com cuidado para o futuro.
Sim. É isso que faço. E agora estou sentada num banco, como uma simpática avozinha, sob o sol morno de novembro, porque já é novembro, domingo 4 de novembro, para sermos mais exatos. Já passou o Dia de Todos-os-Santos e o Dia de Finados, já passou o luto anual dos espanhóis pelos seus mortos. Eu não fui ao cemitério nesse dia; estava a perseguir um homem de casa em casa, pelas ruas de Madrid, um homem que não é da minha família, nem meu namorado, nem meu amante, nem meu marido. Um livreiro encantador que me apetece seguir em segredo. Se Constance me visse… Não entenderia. Claro que não.
Não faz mal, eu tenho o meu próprio Dia de Finados. E não calha precisamente no outono.
Se fecho os olhos consigo vê-lo. Perfeitamente. O suave calor da primavera. Os azinhais, as faixas ocres e verdes dos cultivos de trigo, os barrancos secos e as alamedas que denunciam o curso da água. O matagal onde vivem as lebres e os coelhos, as rochas meio escondidas.
Eu e Henry.
Percorremos esta paisagem que agora é para sempre a paisagem da morte. Por detrás destes olhos que mantenho fechados vejo-o virar-se para mim e sorrir. Não quero que o faça.
Por favor, Henry.
Não te vires, não sorrias…
Abro os olhos com um grande esforço e regresso a este agradável Parque do Retiro onde as pessoas parecem felizes e despreocupadas. Guy de Maupassant dizia que a nossa memória devolve a vida aos que já não a têm. E é verdade. É por isso que as pessoas vão aos cemitérios. Para sentirem que os mortos não partiram totalmente. O que sentirá Matías agora que a sua anterior mulher está a morrer? Gostava de ter a mesma confiança com ele que fui adquirindo em pouco tempo com Lola, que fosse tão comunicativo como ela e me contasse como se sente perante este facto evidentemente trágico, mas que em certo sentido simplificará a sua vida, imagino. Não deve ser fácil nesta Espanha intransigente e católica ter duas mulheres. E Lola? O que pensará da outra, dessa tal Adela que vive na rua Prim? Conhecê-la-á? Terá falado alguma vez com ela? Inclino-me a pensar que sim.
Henry também era casado quando nos conhecemos. Constance avisou-me sobre isso, mas quando o fez já era demasiado tarde. Também era totalmente irrelevante, pelo menos para mim, e se me tivesse avisado antes não me teria importado nada. A vida muda e nós mudamos com ela. E, no entanto, se uma pessoa se apaixona por outra e quinze anos depois já não a ama, isso escandaliza-nos. Onde está escrito que o amor tem de durar para sempre? Por favor… Todos os que somos adultos sabemos bem que o amor aparece e desaparece, que essa é a sua condição natural… A não ser, claro, que as duas partes sejam suficientemente inteligentes para o irem transformando em uníssono. Às vezes acontece. Poucas, mas acontece. E às vezes uma separação dolorosa torna o amor em algo eterno. Ou é isso, pelo menos, que contam alguns romances.
Vejo uma menina com um gorro de lã branco. Tem um triciclo com a tinta descascada debaixo do selim, e pedala com dificuldade. Os seus pais instalaram-se numa das mesinhas de pé de galo que há junto ao gradeamento do lago artificial e pediram refrigerantes. Às vezes aproxima-se do banco em que estou sentada, olha-me muito séria e vai-se embora empurrando o triciclo com os pés no chão, como uma tartaruga.
Trouxe uma sanduíche. Está-se tão bem aqui que não me apetece ir a casa almoçar. Depois farei um jantar leve, a meio da tarde. Do tipo inglês. Bem, as senhoras espanholas da minha idade saem para lanchar um chocolate quente com churros. Também não está mal.
Trouxe o meu livro, o de Katherine Mansfield. Quero voltar a ler esse conto, The Garden Party, aqui, ao ar livre, entre os gritos e os risos das crianças, para ver se me acontece com ele o mesmo que na solidão da minha casa.
Começa de um modo nada convencional:
«E, afinal de contas, o tempo apresentava-se magnífico.»
Será que há uma forma mais subtil e extraordinária de apresentar uma história?
Essa primeira frase… «E, afinal de contas, o tempo apresentava-se magnífico.»
Como se fosse a continuação de alguma coisa, como se já tivéssemos falado sobre o assunto. Ou tivéssemos pensado nele.
Se não fosse tão cética, diria que estou obcecada por essa pequena história. Não sei muito bem porquê. Acho que só tento descobrir porque é que me interessa tanto.
Não é uma questão trivial, isso posso garantir. Há pessoas nesse conto que conheço. E coisas que vi com os meus próprios olhos. Essas ruas estreitas, ligeiramente empinadas, com casas de uma feia cor escura, todas iguais, umas coladas às outras. Há canteiros descuidados e fumo com cheiro a gordura de borrego a sair de cada chaminé. Intuí também toda a ampla gama de cinzentos e pretos desbotados, e o cheiro a suor das roupas dos pobres, a sua qualidade desgastada, porque são os operários das fábricas inglesas, não os pobres do campo como aqui, os verdadeiros desfavorecidos na sociedade inglesa. Bem, Katherine Mansfield não diz tudo isto. Mas diz sem dizer.
Por exemplo:
«Diz-lhe que ponha aquele chapéu delicioso que trazia no domingo.»
Aquele chapéu delicioso.
Quantas vezes terei dito essas mesmas palavras ou outras parecidas?
Fecho o livro e deixo-o no banco. O céu ficou nublado. A água do lago artificial parece de repente a do mar, tem um brilho metálico, como de mercúrio. Por um momento, diria que é um espelho. Não, muitos espelhos. Porque de repente levantou-se um vento frio, que sacode a superfície do lago anunciando água, e cada uma dessas pequenas ondas brilha de forma espetacular e reflete a luz para fora. O fundo do lago com as suas carpas enormes e o seu lodo viscoso desapareceram. Vai chover. As pessoas sabem disso. Alguns remam com força para chegar o mais depressa possível à margem e outros abandonam as cadeiras de madeira e as mesinhas pé de galo que há junto ao parapeito. Eu não me mexo. Ainda não. Tenho uns bons sapatos, uma gabardina e um chapéu para a chuva. No inverno nunca ando sem ele, é o meu seguro de vida.
Só apanhei uma constipação uma vez na vida, e foi tão forte que se converteu numa pneumonia. Em geral, tenho uma saúde invejável. Henry, pelo contrário, sofria dos brônquios e tinha frequentemente ataques de asma. Embora fizesse exercício, nunca praticava desportos violentos, como o ténis ou o futebol; gostava de caminhar durante horas ou de montar a cavalo se estávamos na Croft House. De resto, acho que nem sequer o vi nadar. De acordo com Constance, as pessoas de certa classe — e por certa classe entenda-se pessoas que têm de ganhar o sustento através do trabalho — não costumam praticar nenhum tipo de desporto náutico como a vela e a natação.
— Acho que não gostam muito da água, querida.
E dizia-o com essa voz irritante, sem vontade, terrivelmente snobe.
A verdade é que Constance nunca me conseguiu tirar do sério. Nisso sou inglesa. Posso ouvir as suas parvoíces como se ouvisse chover. E a Henry acontecia-lhe o mesmo. Lembro-me do dia em que lho apresentei. Bem, eles já se tinham cruzado um com o outro antes, mas nenhum se lembrava disso. Foi naquele casamento… de facto, duvido que tivessem trocado sequer um simples cumprimento. Tínhamos regressado de Paris por causa da herança e pretendíamos ficar hospedados na Croft House, já que a casa era praticamente minha, mas não sei como é que acabámos no Lambeth Hall, o lugar no qual Constance se tinha tornado forte. Acho que foi por pura maldade, para que nos sentíssemos seus hóspedes ou para que eu fosse ganhando consciência de que ela era, na verdade, a única herdeira.
Sem dúvida, eu não tinha vontade nenhuma de regressar a Inglaterra, isso era óbvio; estava lindamente na nossa bonita e soalheira casa da rua Censier. Que bela era aquela casa tipicamente parisiense, com as suas mansardas alinhadas no telhado de ardósia e a sua vista para o Jardin des Plantes. Um pouco boémia, é verdade, mas o bairro era tão alegre e pitoresco que cada vez que púnhamos o pé na rua sabíamos de antemão que íamos presenciar algo extraordinário, divertido ou simplesmente francês, porque a França, e mais concretamente Paris, sempre foi esse cenário onde tudo se podia representar.
Éramos muito felizes ali, não sei porque é que aceitámos regressar. Henry não queria. De forma alguma. Tínhamos uma vida um pouco desordenada, como tantos outros estrangeiros, americanos e ingleses sobretudo, que tinham ancorado na cidade de Paris dos anos vinte e que viviam de costas para os convencionalismos, às vezes até de costas para os seus próprios países de origem. Em Paris diluíam-se as nacionalidades, só nos podíamos sentir franceses.
Aquela vida invulnerável… Estávamos a salvo de tudo e de todos…
Sim, era um belo sonho.
Não é difícil voltar a ele; só tenho de fechar os olhos um instante, convocar as imagens e aqui estamos, jovens de novo, inconformados, a transbordar de vida e de entusiasmo… Henry trabalhava toda a manhã e depois, a meio da tarde, saíamos sem rumo fixo, à aventura, uma tertúlia literária num café, a exposição de um pintor conhecido, um serão em casa de uns amigos… Era fácil. Era delicioso. A vida era surpreendente e imprevisível.
Não me lembro de passarmos nenhum sufoco económico, nenhuma necessidade; antes pelo contrário, acho que vivíamos com uma alegria totalmente despreocupada e que não nos privávamos de nada. A cara com que Constance ficou quando lhe disse que Henry era poeta e que trabalhava como tradutor para ganhar a vida…
— Querida… mas isso é horrível… A sério que tem de trabalhar?
Ai, minha boa Constance… Quantos momentos de diversão nos proporcionaste sem saber… Henry imitava-te tão bem que eu chorava a rir, e às vezes tinha dores de barriga devido às gargalhadas. Eras divertida, querida Constance, tonta mas divertida.
A questão da herança aproximou-nos primeiro e afastou-nos depois. Como era de imaginar, se penso nisso durante um segundo. É razoável, tendo em conta que se trata de Constance. O que já não é razoável é que o assunto ainda dure, tantos anos depois. Quando o nosso pai morreu já sabíamos bem o que pensava deixar a cada uma de nós. Era algo que se tinha negociado previamente. Eu receberia um rendimento anual, suficiente para poder fazer o que me apetecesse durante o resto dos meus dias, e como única propriedade Croft House, a casinha de Kenton, com os seus pastos inúteis e as suas árvores abatidas pelo vento, cerca de seis hectares que formavam uma minúscula península assomada sobre o mar. Constance, por sua vez, herdaria o Lambeth Hall e as terras que pertenciam à família há mais de quinhentos anos. Pastos, bosques, animais e criados… Uma herança à medida de cada uma, isso tenho de reconhecer.
Quando Constance viu Henry pela primeira vez ficou, sem dúvida, impressionada. Era alto, bem-parecido, com uns modos e uma distinção que teria desejado que o pateta do seu marido tivesse. Eu tinha-lhe falado dele, como é evidente, por isso sabia que não tinha nenhum título, nem propriedades, nem sequer possibilidades de herdar algo mais do que uma simples casa de campo em Chester, que era onde os seus pais viviam. Mas o que realmente impressionou Constance não foi a sua estatura ou distinção. O que cativava em Henry era a sua particular forma de conduzir uma conversa, o modo tão incrivelmente inteligente com que sabia derrubar as barreiras e muros dos convencionalismos sociais sem que parecesse algo violento ou inadequado. Passadas duas horas, fosse quem fosse o seu interlocutor, Henry conseguia essa comunicação intensa e profunda que algumas pessoas demoram anos a conseguir.
Claro que isso acontece com o comum dos mortais. Constance não era farinha do mesmo saco, como diria a minha vizinha Amparo. Quando ficámos sozinhas e eu julgava que tinha caído nas suas redes, ela perguntou-me com esse tom falsamente vazio:
— Querida… mas isso é horrível… A sério que tem de trabalhar?
O que queria dizer na verdade era: «O que estás a fazer com esse pobre diabo que certamente não é outra coisa senão um caça-fortunas?»
Sim, era insuportável, mas os seus disparates proporcionavam-nos tantos momentos bons, tantas situações divertidas, que eu e Henry lhe perdoávamos tudo. Até a forma como decidiu comunicar-me que Henry era casado. Foi realmente memorável. Ainda não o esqueci…
— Não queria — de novo essa voz aguda e falsa — meter-me onde não sou chamada, querida, mas é uma coisa que tenho de te dizer, porque não posso ficar calada, garanto-te; nunca me perdoaria se o meu silêncio…
Lembro-me do que respondi. Estávamos as duas sozinhas a tomar o pequeno-almoço numa das mesas do jardim.
— Vai direta ao assunto, Constance.
Olhou para mim alarmada, como se de repente eu me tivesse transformado numa perigosa delinquente, com linguagem e maneiras de delinquente. A verdade é que me divertia escandalizá-la.
— Bem — balbuciou —, os Yelverton, tu não os conheces, não me parece que tenhas ido a casa deles porque passam longas temporadas em Andover, bom, têm um amigo que conhece o teu adorado Henry. E, querida — pôs uma mão sobre as minhas, numa atitude maternal —, sei que isto te vai magoar terrivelmente, mas quero que o saibas agora, é necessário. E também te digo já que podes contar comigo para qualquer coisa, do fundo do coração, para qualquer coisa de que precises.
— Vai direta ao assunto, Constance.
Sim, certamente eu estava a ser cruel, mas acho que até ela se deu conta de que o merecia. Sentiu um calafrio, como se de repente tivesse sido ofendida, mas o desejo de me contar o que tinha descoberto foi mais forte do que a sua própria dignidade.
— É casado.
Disse-o assim, bruscamente, e olhava-me com aqueles olhos azuis que soltavam lampejos de uma incorpórea e surpreendente malícia. Claro que, no que se refere à malícia, eu estava muito à frente de Constance.
— E…? — perguntei com o meu melhor sorriso.
— Não me vais dizer que já sabias…
Pôs uma mão no peito, perto do decote, como se estivesse prestes a ficar sem fôlego. Mas eu sabia que era só um estúpido gesto sem sentido.
— Como é evidente, claro que sei. Por quem me tomas?
— Mas então…?
Dei uma lenta dentada na minha torrada. Com deliberação passei a língua pela borda onde tinha ficado um pouco de doce.
— Agrada-me que seja casado — disse eu encolhendo os ombros e servindo-me um pouco mais daquele delicioso doce que, segundo disse, tinha sido feito por ela.
— Queres dizer que não te importas de todo? — insistiu.
— Sim — respondi reproduzindo esse tom afetado tão seu. — Não me importo de todo. É uma situação fantástica, querida. Ele é perfeitamente livre de fazer o que quiser, e eu ainda mais.
Acho que foi nesse dia que Constance se deu conta de uma vez por todas de que eu não era a estúpida despreocupada que ela tinha julgado num primeiro momento. E suponho que também foi nessa altura que decidiu pôr a sua herança a salvo.
Já não vai chover. O vento levou as nuvens e o sol volta a brilhar no Parque do Retiro. A menina do gorro de lã e a sua família desapareceram. Pergunto-me onde terão acabado por se refugiar. De repente, preocupo-me com as crianças e os seus triciclos com a tinta descascada, com os avós a coxear, com as batatas fritas e as garrafas de refrigerante. Um festim dominical que desapareceu debaixo das nuvens escuras.
Henry morreu na primavera de 1939. Passaram doze anos, mas eu continuo aqui. E não partirei enquanto não souber que descansa em paz.