21
Demorei menos do que esperava porque hoje pedi ao empregado que seja ele a trazer-nos o café e os churros. Deixei tudo pago e acrescentei uma generosa gorjeta porque espero repetir este pedido em qualquer outra ocasião.
Está a chover muito. Felizmente, a minha capa é de boa lã escocesa e demora a encharcar-se; claro que depois também demora a secar. Não faz mal; colocá-la-ei numa das estantes que há na parte estreita da loja e ali, com o calor da canalização da água quente que passa por essa parede, vai secar de certeza. Se não estivesse aqui, teria passado a manhã sozinha na minha casa e isso, nestes dias tristes e cinzentos que me lembram tanto a Inglaterra, é terrivelmente aborrecido. Não porque não goste da solidão, gosto, mas porque pela primeira vez, desde que me instalei em Madrid, sinto que tenho alguma coisa viva entre as mãos.
Nestes dias em que chove constantemente sinto muito a falta de Henry e da nossa casa de Sussex. Gostava de falar com ele, cada um sentado no seu cadeirão. Eu tenho o meu velho livro de poesia de Emily Dickinson na mão e ele algum tipo de manuscrito dos que a editora lhe passava. E de repente um dos dois deixa a leitura e surge um tema de conversa. Falamos durante uns minutos e voltamos a ler, sabendo que o outro está perto, muito perto…
Soa Debussy, e a voz de Henry mistura-se com as notas do piano. E são as duas suaves, aprazíveis, emotivas e brilhantes.
Henry…
A sua voz.
Já mal consigo recordá-la, vou-me esquecendo do seu tom, do seu timbre, da sua modulação. E não quero. Não quero esquecer nada.
Às vezes ainda ouço Henry nos meus sonhos e então acordo sobressaltada, com o peito a transbordar de emoção, porque não só recupero a sua voz, mas também o prazer infinito que me provoca ouvi-la de novo. Às vezes nem sequer tem rosto, mas eu ouço que me chama. E por uns breves instantes tenho-o comigo.
Também é verdade que em outras ocasiões sinto falta de coisas absurdas, de coisas banais que pertenciam à nossa vida quotidiana. Naquela altura não tinham qualquer valor, mas agora parecem-me tão importantes… Por exemplo, sinto a falta da forma que tinha o assento do seu cadeirão de pele. A princípio eu moldava-o e o recheio recuperava a sua forma inicial, mas depois já não havia maneira. Quis arranjá-lo muitas vezes, mas, de cada vez que dizia que ia avisar o estofador, Henry opunha-se. Argumentava que estava tão acostumado a ele, que tinha medo de o arranjar. Depois viemos para Espanha e o velho cadeirão de pele ficou lá. Talvez Constance o tenha deitado fora.
Quando entro no átrio vejo que há um homem de pé ao balcão. Tem um desses feios fatos de riscas e não tirou o chapéu.
Percebo imediatamente que se passa alguma coisa. Lola está vermelha como um tomate e parece muito nervosa, muito mais ainda quando me vê aparecer. Ouvi-a, mas não consegui perceber o que é que dizia, só a sua voz viva e nervosa, como se estivesse a suplicar. A princípio, tenho de reconhecer, pensei que se tratasse de um assalto ou algo assim, mas logo de seguida descartei essa ideia. E julguei observar no rosto do homem, quando se vira para mim, um sorriso estranho, maligno, diria eu, o tipo de sorriso esboçado pelas pessoas perversas quando julgam que têm algum poder. Não é charmoso, nem pouco mais ou menos; antes pelo contrário: é velho, baixo de estatura, magricelas, e tem um desses bigodinhos finos que me deixam muito nervosa. Por isso, não se pode tratar de um assunto galante. Porque também pensei por um segundo: um cliente que lhe lança um piropo, ela agradece-lhe, e o outro tenta ir mais longe. Mas aqui não se passa nada disso, sem dúvida que não.
Ele está a ameaçá-la.
Percebo-o com total clareza.
E, então, como por arte de magia, surge em mim esse descaramento e essa insolência que, a esta altura da minha vida, me posso permitir sem necessidade de correr muitos riscos. Sou quase velha, tenho o cabelo branco, sou estrangeira. Sem dúvida, a mim não me pode assustar. Os dois sabemos de antemão que estou a salvo.
Olho-o de cima a baixo, virando a cabeça, como eles fazem quando querem intimidar uma mulher.
O resultado é imediato: fica nervoso.
Noto-o.
Notamo-lo as duas.
— Desculpe — digo-lhe de seguida, levantando o balcão e obrigando-o a afastar-se.
O meu inesperado comportamento faz com que o homem tenha de dar um passo atrás. De certeza que não podia imaginar que eu ia entrar na livraria e sei que, nesse preciso instante, está a tentar averiguar quem sou.
Há um silêncio terrivelmente incómodo.
Não me preocupa. Tiro a capa, deixo-a sobre a cadeira e, sem pensar duas vezes, como diria a Amparo, a minha vizinha, coloco-me à sua frente com os dois cotovelos no balcão, ao pé deles.
— Trazem-nos agora o café e os churros — digo à Lola, como se o homem não existisse.
Olho-o de soslaio e vejo que está da cor da cinza. Reparo no seu ofegar agitado.
— Vemo-nos outro dia — diz por fim, fazendo um gesto brusco com o queixo. Lola baixa a cabeça.
— Um bom dia para si, cavalheiro — respondo-lhe com toda a ironia de que sou capaz.
Já nos virou as costas. E, que coisa, reparo nos chumaços do seu fato de riscas, demasiado largos para esse corpo magricelas. Parece um gangster de meia-tigela.
Sei que ela está envergonhada. Não quero que me conte nada, não é necessário. Toda a gente tem direito à sua intimidade.
Eu sei bem disso. Melhor do que ninguém.
Sorrio-lhe e ponho a minha mão sobre uma das suas, precisamente quando o empregado do café da esquina entra com o pedido e um sorriso de orelha a orelha.
— O café e os churros das senhoras — diz com desenvoltura. — E quentinhos como deve ser.