22

A guerra acabou.

Há um ano que deixei o internato e desde então eu e Frances vivemos em Londres. Aconteceram muitas coisas, às vezes penso que demasiadas, mas sou jovem; posso abarcar o mundo inteiro com as minhas mãos.

James morreu a 17 de julho desse mesmo ano, apenas uns meses antes de a paz ser assinada. Ia a bordo do HMS Helvethia quando um torpedo o afundou a oeste da Irlanda. Frances e eu abraçámo-nos com muita força quando soubemos. Acho que, aconteça o que acontecer, já nada nos poderá separar. Nunca. Nem sequer a lembrança de James.

Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia e a família do czar Nicolau II foi assassinada. Todos dizem que começa uma Nova Ordem Mundial e deve ser verdade, porque o Kaiser abdicou e na Alemanha há agora uma república; o imperador da Áustria fugiu antes de o armistício ser assinado e a Hungria separou-se da Áustria: adeus ao Império Austro-Húngaro. De julho até 11 de novembro, data em que finalmente se dá a guerra por terminada, sucedem-se as abdicações, as criações de novos Estados, os tratados de paz entre potências e as negociações. É uma embriaguez de acontecimentos. Lembro-me de alguns, que depois passarão despercebidos para a História; por exemplo, ainda paira na minha memória a data em que se aprovou o sufrágio feminino na Irlanda, e lembro-me disso porque na Inglaterra só podiam votar as mulheres a partir dos trinta anos. Frances podia. Eu não.

Também aconteceram muitas coisas à nossa volta; a morte de James foi sem dúvida a mais importante. Elliott voltou vivo da frente belga, mas perdeu o braço esquerdo. Além disso, ao chegar a casa, deparou-se com um ambiente muito triste devido à morte de James: Lady Ferguson nega-se a sair de Elsinor Park e, segundo o que Sarah me conta, passa a maior parte do dia prostrada na cama, apesar de o seu outro filho ter regressado de Mézières vivo e com uma medalha.

O mais velho dos rapazes Hervieu também morreu numa dessas odiosas trincheiras do Somme. Madame Hervieu escreve-me com frequência e chora a perda do seu filho mais velho à sua maneira, sem muito espalhafato e sem abandonar a realidade nem sequer por um momento.

Sarah também vivia em Londres, com uma tia. Mudou muito desde aquele verão de Deauville; agora era uma rapariga sensata e afetuosa que acabava de ficar noiva de um dos Glenmire. Éramos boas amigas. Íamos às compras, assistíamos aos poucos bailes que se realizavam e, às vezes, montávamos a cavalo. Isso lembrava-nos o tempo em que éramos mais novas e o mundo ainda era um lugar seguro.

Numa tarde de meados de dezembro decidi visitá-la. Era uma dessas tardes escuras e chuvosas. Não havia nevoeiro, mas não era preciso; também não teria tido espaço naquele ar espesso que cobria as ruas de Londres. Olhávamos pela janela e sentíamos uma espécie de desolação, ao ver as pessoas passarem depressa, debaixo da cortina de água, com os guarda-chuvas inclinados e a parte de baixo dos sobretudos ensopada… Era tão triste que decidi ir ver Sarah para preparar alguma coisa bonita para o Natal. Ainda faltava muito tempo, sem dúvida, mas eu precisava disso. E nestas coisas Sarah tinha sempre boas ideias.

A verdade é que hesitei, porque tinha estado em casa da tia de Sarah dois dias antes, numa dessas visitas rotineiras que compunham a nossa vida social, e não me apetecia ser chata. Mas no fim foi mais forte o facto de ficar toda a tarde em casa do que a discrição. A tia de Sarah seguia religiosamente a moda antiga e na sua casa obedecia-se às normas sociais de há cem anos: as visitas, a partir do meio da tarde; nunca se deveriam prolongar para lá das seis e meia; nunca deviam durar mais de duas horas; nunca se deviam repetir mais de uma vez por semana e nunca devíamos deixar passar mais de duas semanas sem devolver a visita.

Agora, quando penso nisso, tantos anos depois, tenho de reconhecer que o esquema era muito arrevesado e que os riscos de falhar eram consideráveis. Cometi alguns erros no início, depois já não, mas o que mais me surpreendia daquela teia de aranha social, antes e depois de me encontrar mergulhada nela, era o facto de ninguém precisar de anotar nada desta complicada navegação.

Quando cheguei a Sackville Street reparei que havia uma leve desorientação na casa. Não é que se ouvissem vozes, nada disso, nem que alguém corresse escadas abaixo ou pelos corredores, mas algo se estava a passar, sem dúvida. Sarah saiu rapidamente ao meu encontro.

— Tenho uma surpresa para ti, vais ver…

Deixou as minhas coisas num banco, sem esperar que a criada as recolhesse, e levou-me para a sala de cima. Subia as escadas muito contente.

— Olha quem está aqui.

A senhora Eshton, a tia de Sarah, estava a bordar sentada no seu amplo sofá. Olhou-me com um sorriso de orelha a orelha. Depois virou o olhar para a lareira. Estava um homem a fumar perto do lume. A princípio não o reconheci. Tinha uma sobrecasaca escura, sem abas, com um vistoso colete de brocado. O seu cabelo era muito curto e não tinha barba nem bigode.

Também sorriu. Então dei-me conta de que a manga da sua sobrecasaca estava vazia e metida com cuidado num dos bolsos.

E reconheci-o.

— Elliott! — exclamei em voz baixa, como se me avisasse a mim própria.

Ele aproximou-se sem deixar de sorrir. Pegou-me no ombro com a sua única mão.

— Cuidado com a pequena Rose… — disse com um tom que a minha vaidade interpretou como admiração. — Vejam bem como mudou…

— Está bonita, não está? — perguntou alegremente Sarah.

— E a tua trança? O que fizeste com ela?

Encolhi os ombros, dando a entender que tinha sofrido o destino que a esperava.

Suponho que não era eu, nem era ele. Suponho que era apenas a guerra. Ou a vontade de a esquecer. A questão é que durante o serão tive a impressão de que Elliott me prestava mais atenção do que era necessário. E, sinceramente, acho que isso não me apetecia nada.

Tomámos chá e desta vez, já que a ocasião o pedia, mandei um criado com um bilhete para Frances e fiquei para jantar com eles. Passei um belo serão, ouvindo as histórias de Elliott e ajudando Sarah a pô-lo ao corrente de tudo o que acontecia na sociedade londrina. Coitado do Elliott. Tinha tanta vontade de recuperar a sua vida…

Quando chegou o momento de voltar a casa, ofereceu-se para me acompanhar. Não sei se pedimos uma carruagem de praça ou se usámos a da família, mas o que sei é que era tarde, que a cidade estava tão vazia como se tivesse sido evacuada, e que Elliott não tirava os olhos de cima de mim. Eu via o seu rosto aparecer e desaparecer sob a luz de cada candeeiro. Não gostava que olhasse para mim assim. Quando nos despedimos pediu-me que fosse com ele no dia seguinte percorrer os cafés da moda e as lojas nas quais podia renovar o seu guarda-roupa. Sarah tinha combinado com o seu noivo e, se eu quisesse, podíamos almoçar depois os quatro juntos. Disse-lhe que sim. O que poderia fazer?

Saímos algumas vezes. Elliott era simpático. Muito menos ponderado do que James, menos profundo, mas com muitas qualidades para a vida social. Jamais o teria imaginado a ler um conto de Tchekhov, como é evidente. Mas, pelo contrário, fazia-me rir com frequência.

Chegou o Natal. Sarah e Elliott foram a Elsinor Park para passarem a festividade com os seus pais. Frances e eu ficámos em Londres, porque nos tinham convidado para ir a casa de uns amigos, em Kensington.

Os amigos de Frances eram maioritariamente pessoas pouco convencionais. Nas reuniões que faziam quase diariamente, numa ou noutra casa, podíamos encontrar uma pintora, um dramaturgo, uma cantora de ópera ou um jogador de polo. E claro, todos diziam terem estado sempre contra a guerra.

Não me lembro de quem eram os anfitriões dessa vez. Mas lembro-me de que nos alojámos lá duas noites, e que alguém tocava ao piano umas belas canções de Natal em francês. Fiquei triste, porque me lembrei do Natal na Normandia, quando eu e os rapazes Hervieu íamos ver o presépio de Périers e o coro da igreja cantava todo o repertório religioso dessas datas.

E de repente. Sem solução de continuidade.

Que coisa tão tonta me aconteceu enquanto todos riam e brindavam: comecei a ter saudades de Elliott. Bem, não só dele; mais propriamente comecei a ter saudades de todos, de Sarah e do seu noivo, do grupo que tínhamos formado e com o qual me sentia muito bem. Era como se viessem todos juntos no mesmo pacote.

Não é que não gostasse de estar com Frances e com os seus amigos; pelo contrário, divertia-me sempre. Habitualmente eram serões insignificantes e um pouco frívolos, mas às vezes os companheiros de tertúlia eram pessoas importantes, intelectuais ou artistas, e então a conversa derivava para certos campos de uma intensidade evidente e de uma qualidade que, naqueles anos em que estava tudo alterado pela guerra, me ensinaram tanto como a melhor das universidades.

Sarah e Elliott regressaram a Londres para celebrarmos juntos o Ano Novo. Na noite de 31 de dezembro fomos todos a um desses clubes que começavam a estar na moda. Precisávamos de nos despedir de um ano que partia e que levava a guerra com ele. Dessa vez, Frances veio connosco, e com ela uma corte de homens e mulheres que eu mal conhecia, mas que se foram juntando à iniciativa, ávidos de festa, de champanhe e de uma alegria que precisávamos de recuperar. Não celebrávamos a paz, mas sim a ausência da guerra.

Era uma noite especial. Frances pôs um dos seus sofisticados vestidos de festa, que nos últimos tempos tinham permanecido guardados no armário. Já não era uma criança. Tinha feito trinta anos há algum tempo, mas continuava a manter uma figura invejável: os ombros largos e direitos, a cintura alta e as coxas admiravelmente firmes. Eu adorava aquele vestido de cetim dourado. Estava preso nos ombros por duas pregadeiras que recolhiam o tecido e deixavam cair o decote em várias dobras informais. Tinha um ponto, não sei, descuidado, algo que anunciava um certo relaxamento na pessoa que o usava. Bom, era o vestido ideal para Frances. Acho que os homens passavam o tempo à espera de que alguma daquelas dobras, como por descuido, deixasse ver um dos seus pequenos e firmes seios. Agora voltava a ter o cabelo comprido e apanhava-o desde os lados até à parte de trás com um movimento retorcido de madeixas grandes que depois enrolava de uma forma encantadora na nuca. O tom era escuro, mas tinha um brilho e uns reflexos muito vistosos. Nessa noite, penteou-se com esmero e entrançou um cordão de seda dourada à volta da testa, das têmporas e do cabelo apanhado. Era realmente atraente e era-o de uma forma natural, como se não tivesse tido na vida outra opção a considerar.

Contudo, o que eu mais admirava em Frances era a sua desenvoltura. Entrava num salão cheio de desconhecidos e desde o primeiro momento parecia à vontade, como se estivesse na sua própria casa ou tivesse andado na escola com todos eles.

Eu não era tão vistosa como ela, tenho de admitir. O meu único atrativo era a juventude. Dezoito anos. O melhor da vida. Então nunca suspeitamos que esse pescoço de garça se inclinará, nem que os joelhos se deformarão de forma insensata… Mas, enfim, se ligo ao que diziam os que a tinham conhecido, eu tinha herdado a serena beleza da minha mãe. Isso era suficiente para mim.

Acho que pus — sim, tenho a certeza — um vestido de renda holandesa com o forro de seda azul-gelo. Não era comprido como o de Frances, pelo contrário, talvez fosse demasiado curto. Também não tinha um grande decote, pelo menos aparente; mas as minhas pernas e as minhas costas nuas faziam o resto.

— Toma, põe isto — disse-me Frances quando eu fui buscá-la ao seu quarto e viu o meu traje. — Vais demasiado… despida.

Era um diadema que ela nunca usava; simples, direito, muito adequado ao meu gosto.

— Era da tua mãe.

Assustei-me. De repente senti-me parte de uma cerimónia para a qual não me tinha preparado.

— Tens dezoito anos — acrescentou ela despreocupadamente. — Chegou o momento de o exibires. Vai ficar perfeito com esse vestido.

Coloquei-o na linha do cabelo, preso às têmporas por uma espécie de travessa que o mantinha apertado ao cabelo sem desfazer os seus caracóis naturais. Era muito bonito e ficava-me muito bem.

— Obrigada — agradeci emocionada, sem afastar o olhar do espelho.

Senti que estava prestes a desatar a chorar.

— Vá, deixa de te contemplar — disse Frances pegando na sua mala de mão —, que por este andar vão jantar sem nós.

No entanto, reparei que olhava para mim pelo canto do olho e que sorria.

O novo ano. Chegava com tanta esperança, com tanta alegria… Via-se nos olhos das pessoas. Dançávamos. Bebíamos. Ainda cantávamos aqueles hinos patrióticos que, conforme saíam das nossas bocas, iam ficando para trás… tão para trás que começavam a perder todo o sentido.

Charles Glenmire, o noivo de Sarah, dirigia-se a nós com dois copos de champanhe, atravessando o salão de baile e evitando os casais que deslizavam pela pista. Nós tínhamo-nos sentado um momento porque estávamos esgotadas. Eu já não conseguia beber mais. E Sarah também não. Então ouviu-se aquilo… Não eram gritos, pelo menos não claramente. Era um alarido estranho, onde se misturavam a incredulidade e o escândalo.

— O que se passa? — perguntou Sarah alarmada.

— Não sei — respondeu Charles. — Vou ver.

Deu um copo a cada uma de nós e dirigiu-se ao fundo do salão. As pessoas foram-se amontoando na mesma direção que Charles tinha seguido. Ouviu-se então um outro grito. E depois parou. O muro de corpos foi-se abrindo e, cavalgando por essa barreira humana que o álcool convertia em muito mais densa do que na realidade devia ser, apareceram Charles Glenmire e Elliott. Charles levava Elliott pela cintura e o seu único braço passava por cima do ombro de Charles sem opor resistência. Por um momento, pareceu-me que as duas mangas do seu smoking estavam vazias. Sangrava do nariz e da boca.

Levantámo-nos alarmadas. O efeito do champanhe dissipou-se completamente. Acho que também vi um dos amigos de Frances que se dirigia a nós. Mas depois só reparei naquele sangue a manchar a nossa alegria e a camisa branca de Elliott.

— O que aconteceu? — perguntava Sarah. — O que se passou contigo?

Charles estava muito sério.

— Nada grave — respondeu. — Vamos tirá-lo daqui.

Era evidente que Elliott tinha bebido mais do que devia.

Levámo-lo por uma das saídas laterais. Estava frio na rua. O nevoeiro deixava a pele húmida.

— Vou buscar os casacos — disse-nos Charles. — Fiquem com ele uns minutos, tem de apanhar ar.

Sarah perguntava ao seu irmão o que tinha acontecido, mas Elliott tinha os olhos tão mortiços e toldado como o raciocínio. Felizmente, Charles regressou de imediato com os nossos casacos, porque nós estávamos a ficar geladas. Sarah começou a tremer, não sei se devido ao frio ou aos nervos.

— Leva-a para dentro — disse a Charles. — Eu fico com ele.

Afastei Elliott da porta e olhei à nossa volta para ver se encontrava algum sítio onde nos sentarmos. Era uma rua sem saída, uma espécie de viela, embora se vissem duas entradas com degraus que evidentemente correspondiam a moradias. Levei-o para uma dessas portas e ajudei-o a sentar-se num degrau da escada. Depois agachei-me ao seu lado. Tirei o seu lenço de um dos bolsos e tentei limpar-lhe o sangue da cara.

Gaguejava. Como se estivesse a sonhar. Não sei o que dizia.

E de repente.

Fixou os seus olhos em mim.

— A pequena Rose — exclamou como se me visse pela primeira vez.

Parecia um pouco recuperado. Sentei-me ao seu lado. Nunca soube o que tinha acontecido dentro daquele estabelecimento, mas naquele momento tive quase a certeza de que, o que quer fosse, a culpa tinha sido de Elliott.

— A pequena Rose — repetiu com a voz presumida, de troça, enquanto me passava a mão pelo cabelo.

O diadema da minha mãe prendeu-se atrás das orelhas. Não gostei daquela carícia. Tinha motivos, porque de seguida Elliott lançou-se sobre mim e derrubou-me sobre um degrau cuja borda se enterrava nas minhas costas. A sua mão procurava com insistência dentro do meu casaco.

Tentei afastá-lo. Cheirava mal.

Aquela mão…

Então Sarah e Charles apareceram à porta. Por um momento, ouvi a música do salão de baile e senti, próxima e afastada ao mesmo tempo, a alegria das pessoas.

Charles tirou-o de cima de mim. Sarah quis consolar-me, mas eu odiava-os a todos naquele momento. Saí a correr para a rua principal, onde estavam estacionadas as carruagens de praça. Meti-me dentro de uma delas e, com muito cuidado, tirei o diadema da minha mãe.

Dormi mal. Tive pesadelos. Quando me levantei era muito tarde e Frances já tinha tomado o pequeno-almoço. Acho que não se deve ter apercebido de nada, porque me perguntou pela festa, e quando lhe ia contar o que tinha acontecido interrompeu-me — algo que fazia parte do comportamento habitual de Frances e ao qual eu já me tinha acostumado. Nesta ocasião não tive isso muito em conta, sem dúvida, porque a sua novidade era muito melhor do que a minha.

— O que achas de irmos viver para França? — lançou-me enquanto voltava a colocar, nervosa, uma peça de porcelana que havia em cima da lareira.

Fiquei petrificada.

— Para Deauville? — perguntei com um tom de voz que não podia esconder a minha surpresa.

— Não, meu anjo — respondeu ela. — Para Paris.

Em que pensei nesse momento? Só numa coisa: que já estávamos em 1919 e que era preciso começar uma nova vida. Quatro anos de guerra eram mais do que suficientes. Quatro anos em Inglaterra também.