23
É sábado. Hoje vou à procura de livros. À minha maneira, claro.
Tenho de reconhecer que a vida ultimamente se tornou muito mais emocionante. E não é precisamente pelos livros. Faz-me bem ter outras distrações que não sejam as minhas leituras e as minhas lembranças.
Embora novembro esteja a ser mais quente do que outubro, hoje vou levar a gabardina porque o céu está encoberto e é possível que chova.
Antes de tomar o pequeno-almoço estive algum tempo na varanda a tratar das plantas. Quando cheguei a Espanha fiquei surpreendida com a quantidade de gerânios que havia nas janelas, inclusivamente nas casas mais humildes, e nas aldeias, as pessoas cortavam bidões ao meio e utilizavam-nos como floreiras que colocavam à volta da fachada, como um pequeno jardim sem terra. Amontoavam-se aí as margaridas, as malvas e os humildes periquitos, enquanto os gerânios trepadores caíam desordenadamente dos vasos de barro das janelas. É uma imagem que tenho guardada como um tesouro, porque esconde outra… Aqui vamos nós, avançando com as nossas canções e o nosso bendito entusiasmo, rodeados de flores, e aqui vai Henry, o meu querido Henry, pelas aldeias espanholas… E mais além dessa imagem, a dor… não te vires, Henry… não te vires, por favor.
Da varanda vi cair as últimas folhas de uma pequena árvore que um vizinho plantou no inverno passado no passeio. O belo olmo que havia antes — e cuja copa chegava até ao segundo andar — morreu, e a câmara não substitui as árvores, por isso, às vezes são os próprios moradores do bairro que conseguem um pé de uma árvore, que provavelmente trazem da aldeia, e põem-no na alcorca como se fosse o seu horto ou o seu jardim. Duas ruas mais à frente, alguém plantou uma figueira. Está a crescer em largura e quando passamos por ali temos de descer do passeio porque mal se consegue passar. A pequena árvore nua que vejo agora da minha varanda tem as folhas triangulares, como os choupos; mas não é um choupo, disso não tenho dúvida, porque a copa é mais larga. Alguém me disse, acho que foi Amparo, que pode ser uma amoreira. E talvez seja verdade, porque Amparo sabe muito sobre estas coisas do campo.
É divertido olhar pela janela. Esta minha varanda é estreita, quase não dá para colocar uma cadeira, sobretudo se os vasos estão no chão; mas eu pendurei-os do parapeito: um ferreiro de Delicias fez-me os aros para os colocar para fora e assim ganho espaço. Nas tardes de verão, quando o sol foi para o outro lado do prédio, sento-me aqui, e fico a ler e a sonhar até anoitecer. Porque estou cada vez mais velha, é verdade, mas ainda sonho.
Amparo disse-me que hoje viria o gateiro. Antes de sair, se não o ouvir tocar, deixar-lhe-ei essa vasilha de cerâmica para reparar. Caiu-me ao chão no outro dia e, felizmente, não se partiu, mas ficou com uma fenda pela qual o líquido se filtra. E, de passagem, deixar-lhe-ei também o guarda-chuva preto. Acho que é preciso mudar o tecido, porque quando chove muito a água entra. Felizmente, tenho dois. Hoje vou levar o do cabo de ferro; é mais estreito e ocupa menos espaço.
Amparo é cansativa, mas para estas coisas não há ninguém como ela: se pode, sem dúvida, faz-me um favor.
Abre-me. Tem um avental e um lenço na cabeça. Está a fazer a limpeza semanal.
— Que surpresa, mas onde é que a senhora vai tão cedo? E essa vasilha? Partiu-se?
Espero pacientemente que faça todas as perguntas.
— Mas entre, mulher de Deus, entre, não fique à porta.
— Não, Amparo, não posso perder tempo. Tenho muita pressa. Queria-lhe pedir um favor.
— Claro que sim. Diga, vizinha.
— Bem, esta vasilha caiu e ficou com uma fenda.
Amparo tira-ma das mãos.
— Costumo usá-la como vaso — continuo antes de ela abrir a boca —, e não me apetece nada ter de deitá-la fora, por isso pensei que se o gateiro vem talvez possa colá-la com esses gatos de ferro que eles põem, para que deixe de perder água.
A mulher revê a fenda com atenção, como se fosse uma autêntica especialista em louça estragada.
— Não parece muito profunda — diagnostica. — Deixe-a comigo, que eu trato do assunto com muito prazer.
Agradeço-lhe. E ela, em troca, recorda-me que levo dois guarda-chuvas.
— Sim — digo-lhe. — Imagino que o gateiro também seja guarda-soleiro.
— Claro — responde com rapidez. — Deixe-o comigo.
Tenta pegar no guarda-chuva bom.
— Não, este não — defendo-me da sua vontade de ajudar. — É o preto. É preciso mudar o tecido.
— Não se preocupe com nada — lança-me, feliz com os seus dois troféus já na mão. — Eu encarrego-me de tudo, claro. Vá à sua vida e deixe isto comigo.
Vejo que titubeia. Temo que queira saber onde vou tão cedo. Como parece que não se atreve a perguntar isso diretamente, dá-me um pouco de conversa, esperando, talvez, que seja eu a contar-lhe.
— O gateiro é da aldeia do meu marido, de Pastrana, sabia? Família, como ele diz. Porque nas aldeias já se sabe, o que não é primo direito é primo segundo, e todos acabam por ser da mesma família… Bem, a senhora já está há muito tempo em Espanha, já conhece as aldeias daqui, no seu país deve ser parecido, não é? Porque estas coisas estão a mudar agora, com as estradas e os comboios, mas antes as pessoas não saíam da sua região e, claro, casavam-se uns com os outros.
Tenho de interrompê-la. Parece uma matraca.
— Estou com um pouco de pressa, Amparo.
Mas ela não se rende facilmente; ainda tem tempo de concluir.
— E eu acho que é bom que sejamos quase família, porque quando conhecemos as pessoas o normal é que exista um tratamento cordial, não digo de favor, porque cada um cuida do que é seu, mas atendem-nos melhor e fazem o trabalho com mais dedicação, não sei se me está a entender…
— Sim, Amparo, entendo-a perfeitamente. E agradeço-lhe muitíssimo.
Quero-lhe deixar dinheiro, mas não o aceita.
— Ai esta mulher… paga-me depois, quando soubermos quanto é.
O que comprarei hoje? Como desfruto com isto… Fico emocionada assim que viro a esquina.
Ali está ele. O meu livreiro. O que me enche de sonhos e me «alivia da realidade». Está de costas, a colocar os livros que tem em cima da mesa nos espaços vazios da estante. Não me viu entrar. Não faz mal, eu espero, não tenho pressa.
E de repente.
Vi de soslaio que alguém parava em frente da montra. Instintivamente virei o olhar e pareceu-me ver o homem do bigodinho que no outro dia deixou Lola transtornada. Só um instante. Depois Matías apercebeu-se de que eu estava ali.
— Bom dia, desculpe, não a ouvi entrar. Está há muito tempo à espera?
Sossego-o. Os meus olhos deixam de prestar atenção ao homem da montra, mas a minha cabeça não.
— Quer entrar? Ainda não consegui os livros de Conrad que me encomendou, mas se quiser dar uma vista de olhos…
Aceito com agrado. Já não está ninguém na montra.
— Desculpe a desarrumação — diz afastando a cadeira na qual me costumo sentar e deixando-me passar até à estante onde estão os livros em inglês. — É a minha mulher que se encarrega disto e parece que esta semana teve muito trabalho.
Sinto-me culpada porque sei muito bem o que é que a sua mulher faz na livraria quando ele não está.
— Pode deixar o guarda-chuva no caixote de lixo. Lamento, roubaram-nos o bengaleiro que tínhamos no átrio.
Não tiro a gabardina porque fico um pouco embaraçada, como se me preparasse para me instalar aqui, mas desabotoo-a e desenrolo o cachecol. Sinto-me tão à vontade nesta loja que estive quase prestes a fazer o que faço outras vezes, quando Lola está aqui.
Hoje vou inaugurar a temporada dos autores americanos. Não só porque me convém, mas também porque me diverte muito ver essas palavras e essas expressões que nós, os ingleses, não usamos. Claro que também gosto dos cenários em que decorrem alguns romances; são paisagens um pouco selvagens, tão diferentes das verdes planícies inglesas, e dos seus costumes, da forma como as pessoas se comportam, das cafetarias e dos motéis de beira de estrada, e da energia que emana tudo o que é americano. Aconteça o que acontecer com os seus políticos e os seus governos, devo admitir que sinto uma silenciosa admiração por esse povo. Em suma, aqui estou eu, com um livro de Faulkner numa mão e o cachecol — que finalmente decidi tirar — na outra, quando o vejo de novo, desta vez sem margem para erro. Tem uma gabardina como a minha, mais amarrotada e de pior qualidade, sem dúvida. Fica-lhe larga e comprida. Está do outro lado da montra e olha fixamente para mim e para Matías.
— Aquele homem que está em frente da montra é seu cliente? — pergunto quase sem pensar.
Matías vira-se.
— Quem?
O do bigodinho não tem tempo de se escapulir, apenas de baixar o olhar e de fingir que está interessado nos lápis de cor ou nos cadernos de caligrafia.
— O da gabardina? Não, acho que não. Porque é que pergunta?
— Ah, não sei — minto, enquanto desfruto ao ver como o outro sai de mansinho, como diria a minha vizinha. — Pareceu-me que o conhecia de algum lado. Pensei que o tivesse visto alguma vez por aqui.
— Não — diz Matías com um sorriso. — Infelizmente não entra assim tanta gente para eu não me lembrar de um cliente. É, sobretudo, gente do bairro; como pode imaginar, acabamos por conhecê-los todos.
Depois continua a arrumar os livros.
Então, aproveitando que não me vê, abro o meu saco das compras e tiro os livros que trouxe hoje: Islands in the Stream e The Great Gatsby. Coloco-os com rapidez no fundo da estante. Dentro de pouco tempo terei de começar a comprar também livros em francês.
— Levo este — digo-lhe entregando-lhe um exemplar de Sanctuary, cuja página de rosto mostra um homem e uma mulher no que podia ser uma ruela. Ela tem um vestido verde, excessivamente decotado. Está a fumar e tem a mão apoiada na anca.
— Ah… — diz o livreiro ao pegar nele. — Faulkner… Muito boa escolha.
Depois, enquanto lhe dou uma nota de vinte e cinco pesetas, acrescenta:
— Não me lembrava de que tivéssemos este livro. Onde é que estava?
Reajo de imediato, embora já esteja a pôr o cachecol de novo.
— Naquele canto — minto com essa desenvoltura que começa a ser habitual nas minhas visitas à livraria. — Estava atrás deste.
Não digo qual. Aponto para o lugar referido, esperando que não seja necessário especificar.
Ao que parece, conforma-se com a minha resposta, porque me pergunta de seguida, totalmente alheio às minhas artimanhas:
— Já leu alguma coisa de Faulkner?
Penso durante um instante a resposta que mais me convém.
— Não, ainda não.
— Ah — exclama satisfeito por me poder recomendar uma nova leitura —, então tem de ler Na Minha Morte. É um romance magnífico, passado no sul dos Estados Unidos, algures no Mississípi. Eu gostei muito. É uma pena que não lho possa emprestar; perdi quase todos os meus livros com a guerra.
Faz uma pausa, ainda com a nota de vinte e cinco pesetas na mão.
— Agora decidi trazer os que me restam para a loja — esclarece sem muito entusiasmo. — Afinal de contas, passo a maior parte do dia aqui.
— Espere, não faça ainda a minha conta — digo de repente, enquanto tenho uma ideia.
Acaba de aparecer no átrio aquele homem que costuma levar livros numa mala pequena.
— Olá, Garrido — cumprimenta o livreiro. — Já vou ter contigo, deixa-me acabar de atender esta senhora.
Vira-se de novo para mim.
— O que me estava a dizer?
— Não, nada — retifico rapidamente. — Volto na próxima semana com mais calma.
Dá-me o troco e levanta o balcão para eu sair. Garrido chega-se para um lado. Vejo que hoje não leva mala, só um saco de compras, muito parecido com o meu.
— Não me esqueci de Conrad — diz Matías, assomando a cabeça pelo balcão quando estou quase a sair.
— Não se preocupe, não tenho pressa nenhuma — respondo-lhe também em voz alta.
E depois, de uma forma tão espontânea que até parece um pouco imprópria para alguém da minha idade, digo-lhe adeus acenando alegremente com a mão.