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Em que momento lho direi? Ainda não decidi. Não me parece que seja importante, pelo menos por agora, ela está preocupada com outras coisas. Acho que não lhe importa muito saber quem eu sou.

Constance continua a ligar-me sem parar. É tristíssimo ter uma meia-irmã tão chata. Reconheço que sou obstinada, mas, sem dúvida, ela ainda é mais. Como é que não percebe que eu não penso sair de Madrid?

Às quartas-feiras vou ao ensaio. Até há bem pouco tempo era o melhor dia de toda a semana, agora já não sei. Primeiro encontro-me com aquela rapariga da ótica, no café que há ao lado do teatro. Ela pede autorização e depois, numa ou noutra tarde, fica um pouco mais. Permitem-lho porque não é uma simples empregada, mas sim a filha do dono e, além disso, não tem de atender o público; ela trata das faturas, dos inventários e das guias de remessa. Não percebo o que são essas guias de remessa, mas Sagrario dá-lhes muita importância. Ficámos amigas no teatro, durante os ensaios. Há tantas pausas que é inevitável falar com o colega da cadeira do lado.

Ainda não chegou, por isso vou-me sentar naquela mesa que ficou livre junto à janela. É cedo.

São onze da manhã e o café está praticamente cheio. Em menos de um ano notou-se uma mudança enorme nesta cidade e acho que estamos finalmente a deixar de viver num país de pós-guerra. Ontem, sem ir mais longe, vi na rua Arenal uma biblioteca ambulante. Era uma espécie de elétrico, ao qual tinham tirado o gancho da catenária, e tinha um cartaz pintado de lado a lado. O mais atraente de tudo é que as janelas eram montras e estavam cheias de livros, três prateleiras em cada uma delas. Aproximei-me. Outras pessoas também o tinham feito: uma mulher idosa vestida de luto, um homem com boina e um casaco velho de bolsos deformados, um jovem que fumava um cigarro… Entrei. Por curiosidade. Nenhum daqueles mirones me seguiu, mas não me importei, porque a ideia era para mim tão estimulante que fiquei lá dentro o resto da tarde, a bisbilhotar e a conversar com a jovem que atendia na biblioteca ambulante. Verdade seja dita, não havia nada de interessante. Muitos livros de história, alguns romances do século XIX, exemplares amarelados de poesia e algum teatro clássico. Sinceramente, nada que ver com a livraria de Matías e de Lola. Entrava-se nesse elétrico e parecia que se tinha entrado na máquina do tempo, mas mesmo assim gostei que as bibliotecas saíssem à rua. É algo que nunca se tinha visto.

E o melhor de tudo: no cartaz que percorria o veículo de lado a lado dizia «Biblioteca Pública Ambulante n.º 2». Isso quer dizer que não é a única a percorrer as ruas de Madrid.

Onze e um quarto. Tenho a certeza de que neste momento Constance me está a ligar de novo. Um destes dias acho que vou cancelar a linha de telefone. Afinal de contas, quase nunca recebo outras chamadas senão as suas… E pergunto-me: o que lhe importa se a casa está abandonada ou não? Eu gosto de deixá-la tal como está. Há mais de cem anos que está assim. E, além disso, eu e Henry não voltaremos a viver nela.

Eu e Henry não voltaremos a viver… Como me magoam essas palavras.

A minha amiga atrasa-se. Não estamos longe, sem dúvida, mas ainda temos de comprar o bilhete e escolher o sítio. O teatro fica na rua Maestro Victoria, perto da Caja de Ahorros e de um convento ao qual chamam Descalças Reais.

E, para aproveitar os seus recursos e tirar mais partido das instalações, é alugado às quartas-feiras a músicos e orquestras que queiram utilizá-lo como sala de ensaio. Abrem-no ao público e assim cobram uma pequena entrada que imagino que lhes sirva para fazer face aos gastos. Para ser sincera, não me parece uma má ideia, e para mim é uma boa opção para desfrutar da música de câmara a um preço razoável.

Sagrario já está aqui, mas hoje ela não tem tempo de tomar um café.

— Acredite que lamento — diz-me sem sequer tirar o casaco. Vem ofegante.

— Aconteceu-lhe alguma coisa?

— Ai… Achei que não conseguia chegar. Foi ali, mesmo em frente da Caja de Ahorros…

— Mas o que aconteceu? — insisto.

— Um assalto. Horrível. Mesmo agora.

O empregado aproximou-se e os clientes das mesas vizinhas começam a prestar atenção.

— Sim, dois homens com uma pistola. Iam a correr pelo passeio. Um guarda mandou-os parar e como não obedeceram disparou dois tiros.

— O que está a dizer, menina?! — exclama um cavalheiro bem vestido que se levanta como se fosse impulsionado por uma mola.

— Foi exatamente assim — responde Sagrario, deixando-se cair na cadeira que o homem deixou vazia. — O morto está mesmo ali, estendido no passeio.

— Um dos assaltantes? — pergunta uma senhora pegando instintivamente na sua mala de mão.

— Não, claro que não — responde Sagrario. — Um pobre homem que estava a passar pela rua e que não tinha nada que ver com o assalto. A mulher dele teve um ataque de nervos.

Vários clientes saem e vão até à esquina para ver o que tinha acontecido. Penso que passei por esse mesmo lugar há menos de meia hora.

De repente, Sagrario começa a soluçar. Tem o casaco vestido, mas treme como se estivesse gelada. Tapa a cara com as mãos e o empregado traz-lhe um copo de água.

— Desculpe, mas hoje não consigo assistir ao ensaio — diz-me entre lágrimas. — Vá a senhora. Neste momento, tenho um peso no coração, como se estivesse carregado de chumbo.

— Não se preocupe, eu fico a fazer-lhe companhia. Beba a água.

Depois vou com ela até à ótica e deixo-a ao cuidado do seu pai. Ouço como conta tudo de novo, cada vez com mais pormenores. Os empregados e uma senhora que estava a experimentar uns óculos fazem uma roda à volta dela, visivelmente impressionados com a aventura inesperada. O seu pai, sem dúvida, ficou pálido ao ouvi-la, e agora abraça-a muito preocupado e com muita ternura. Eu também quase choro.

— Obrigado por tudo, senhora Rosa — diz Sagrario quando nos despedimos. — Vemo-nos na próxima quarta-feira, se lhe parecer bem.

Amanhã é quinta-feira…