26
É possível que alguém como eu conseguisse passar mais de três anos sem ler um livro?
Estávamos há esse tempo a viver em Paris. Já tinha vinte e dois anos. A maior parte das raparigas da minha idade eram casadas e tinham filhos, mas não me importava. Possivelmente nenhuma delas tinha sequer sonhado viver o que eu estava a viver; os livros, os filhos e os maridos podiam esperar.
A vida com Frances era muito divertida. Nunca me aborrecia. Claro que, às vezes, também não tinha tempo para pensar.
Vivíamos na rua de Surène, muito perto do bulevar Malesherbes e da Madeleine, a estranha igreja que Napoleão mandou construir em forma de templo grego. Frances tinha aquele apartamento de antes da guerra e conservou-o, porque estava perto de tudo aquilo de que gostava em Paris: os Campos Elíseos, as joalharias da rua Pasquier, o Maxims, o Crillon e os cabarés da rua Boissy d’Anglas. Ela nunca pensou em ficar em Inglaterra, pois aborrecia-a profundamente. Do que Frances gostava a sério era de viver em Paris. É verdade que em algum momento pensou, sobretudo durante os anos do conflito, que poderíamos passar o inverno em Londres e ter casa em Deauville ou em Dinan, mas depois chegou à conclusão de que assim não se livraria do que ela chamava o «tédio britânico» porque, segundo dizia, com esse seu humor um pouco apático, em Deauville e em Dinan havia demasiados ingleses.
O apartamento era grande, com uma fachada cheia de janelas, e isso proporcionava-lhe muita luz. Estava decorado de uma forma nada convencional: biombos orientais, candeeiros venezianos, móveis ingleses e quadros modernos muito coloridos, pintados por alguns dos seus amigos parisienses. Luz e cor. É assim que recordo aquela casa.
Frances continuava a ser Frances, embora estivesse a envelhecer, e é muito difícil manter uma personagem como a sua aos trinta e oito anos. Ainda era essa mulher especial, bela, original, com um ponto de extravagância, mas às vezes, quando passávamos a noite num desses cabarés que abriam até de madrugada, a beber champanhe e a fumar, mostrava um profundo esgotamento, e assomava-se no seu rosto a mulher que seria no futuro. Então, quando a via nesse estado, levava-a para casa.
Isso aconteceu uma noite. Mas não foi como sempre; houve mais coisas, para ela e para mim. Coisas inesperadas que nos apanharam de surpresa. Primeiro fomos ver um combate de boxe. Era um duelo entre Jean Gachet, que tinha ganhado uma medalha nos Jogos Olímpicos de Amberes, e um inglês de cujo nome não me lembro. Quem nos convidou foi o novo amigo de Frances, um americano que se chamava Freddie. Bem, realmente chamava-se Frederick Verminck, era de origem holandesa, e o seu pai tinha feito fortuna com as refinarias de açúcar.
Eu e Frances não gostávamos especialmente de boxe; era a primeira vez que assistíamos a um desses combates e, na verdade, acho que nenhuma das duas achou graça a ver aquela avalanche de murros sem sentido. Mas Freddie gostava. E naquela altura Frances fazia tudo o que Freddie quisesse.
E ali estávamos os três, com os nossos casacos de meia-estação e os nossos chapéus, numa cadeira dura, com um frio de rachar, e rodeados de centenas de indivíduos vociferantes. Freddie ria-se de nós quando fazíamos trejeitos ou se nos escapava algum grito.
— É um combate da categoria de pesos pluma. Deviam ver os pesos pesados… Esse é que é um combate a sério.
Eu achava Freddie extremamente vulgar. Nunca percebi como é que Frances podia estar louca por ele.
Nessa noite, vendo-me ali, no pavilhão de boxe dos Campos Elíseos, com Freddie e com toda aquela gente que gritava, senti-me muito mal, como se me tivesse perdido a mim própria. Pensei que, além de Frances, não havia ninguém a quem eu pudesse recorrer se tivesse um problema sério, ninguém a quem ligar para partilhar confidências ou para dar uma boa notícia. Como tínhamos chegado a este ponto? Eu já não era eu. Era outra pessoa. Acho que se Madame Hervieu me tivesse visto, também não me teria reconhecido.
Depois do boxe percorremos os estabelecimentos noturnos onde costumávamos ir. Se bem me lembro, nessa noite estivemos primeiro no L’Oiseau Sauvage, o cabaré da moda onde iam todos os intelectuais e artistas da época. Era o sítio preferido de Frances. E o meu também, sem dúvida. Primeiro, pelas pessoas que encontrávamos lá: tinham ido à inauguração Stravinsky, Serguei Diaghilev, Pablo Picasso, Jean Cocteau, ou aquele músico estranho que conhecemos em Honfleur, antes da guerra, que se chamava Erik Satie. E depois, porque o L’Oiseau Sauvage era um lugar verdadeiramente especial, de uma beleza nova, absolutamente moderna e vanguardista, com pessoas cheias de talento dispostas a esbanjá-lo noite após noite. Mas como Freddie não era nem uma nem outra coisa — ou seja, nem artista, e muito menos intelectual — aguentava lá pouco tempo; dizia que o público era demasiado snobe, e assim, todas as noites, acabávamos o serão no Blue Storm, um clube de jazz que, sem dúvida, me agradava muito, mas que não tinha nem de longe o ambiente tão encantadoramente parisiense do L’Oiseau.
Foi uma má noite, sem dúvida. No Blue Storm havia uma grande confusão, a orquestra tocava essa música jazz que eletrizava o ambiente, como se estivéssemos no meio de uma grande tempestade. Notava-se ao entrar. Lembro-me de que Freddie disse algo como «Veem que animação? O que é que eu vos disse? Isto é que é música». E insistiu em dançar. Frances tinha bebido demasiado, mas ainda assim seguiu-o até ao meio da pista. Eu fiquei numa mesa. O ferrão do descontentamento que se tinha cravado em mim durante o combate de boxe ainda continuava ali: pertinaz e obstinado, como uma dor de dentes.
A música era boa, os bailarinos dançavam francamente bem e o champanhe era de qualidade. Mas eu teria preferido ir já para casa. Estava cansada, não tinha vontade de dançar, nem de falar, nem de cumprimentar ninguém. Mas claro, em Paris isso era impossível depois das duas da manhã. A essa hora éramos todos amigos.
— Que horror! Tenho os pés desfeitos.
Uma rapariga da minha idade desabou na cadeira que estava ao meu lado. Nem me deu tempo de tirar a pequena mala de mão que Frances tinha deixado lá.
— Posso? — perguntou de forma um pouco redundante, já que acabava de tirar a mala de detrás das suas nádegas e colocado em cima da mesa. — Desculpa, mas não aguento mais. — Estava a tirar um dos sapatos forrados a seda azul. Falava um francês correto, mas com um sotaque peculiar. Sem dúvida não era inglesa. — Está muito calor, não achas? — disse passando uma mão pelo pescoço. Vi o seu anel, um topázio ovalado no dedo médio. — O que estás a beber?
Apontei para o meu copo sem me incomodar em falar.
— Champanhe? — perguntou como se isso fosse uma coisa extravagante. — Eu prefiro os cocktails.
Tinha uma saia de cetim e uma blusa com fios dourados que deixava um dos seus ombros a descoberto. Era muito bonita. Tinha os olhos azuis, muito claros, e a pele branca, sem uma única mancha.
A orquestra acabou de tocar um ragtime. Fizeram um intervalo. As pessoas regressavam às suas mesas e os empregados esforçavam-se por repor bebidas para toda aquela multidão sedenta.
— Queres alguma coisa? — perguntou-me a minha companheira de mesa.
Fiquei um pouco desconcertada, porque estava atenta a Frances e a Freddie, que tinham ficado a conversar a um canto da pista. Perguntava-me porque é que não regressavam à nossa mesa.
— Desculpa? — perguntei quase sem olhar para ela.
— Alguma coisa para beber — esclareceu ela.
Frances estava séria. Freddie falava a mexia as mãos como se estivesse a pedir esmola.
— Prova um cocktail — insistiu a rapariga. — Depois já não vais querer tomar outra coisa.
Não sei se lhe respondi. Olhava para Frances, que primeiro negou várias vezes com uma energia fora do vulgar e que depois sorriu, baixando misteriosamente o olhar.
Continuavam ali, a conversar junto a uma coluna, concentrados um no outro, quando me vi com um copo na mão, e a questão é que, antes de me dar conta, estava a beber alguma coisa seca e amarga que tinha um sabor diferente de tudo o que tinha provado até então. Aquela mistura estranha queimava na garganta.
A orquestra voltou a entrar no palco.
— Ui — exclamou a rapariga calçando os sapatos com pressa —, tenho de ir.
Ajustou a blusa.
— Guarda-me o copo, okay?
Pensei que devia ser americana.
A orquestra começou a tocar os primeiros compassos de um blue. Freddie agarra em Frances pela cintura e leva-a de novo para a pista.
E então.
Ela entra no palco. Com a sua bonita blusa de fios dourados e os seus sapatos forrados. Canta com uma voz grave, completamente diferente da que tinha quando se sentou ao meu lado. Canta um blue e já não parece branca.
Essa voz. Triste como uma madrugada na qual nos sentimos perdidos.
Freddie e Frances dançam muito agarrados.
A voz da mulher vem de muito longe, de algum lugar obscuro e profundo, e conta uma história que ainda está por chegar.
E eles abraçam-se como se nunca mais se quisessem separar.
A rapariga dos olhos azuis e da saia de cetim desfia as suas notas tristes lendo-as no meu pensamento… Antes, muito antes, de eu pensar nelas…
Desta vez, é Frances quem tem de me levar a casa.
Tinha bebido demasiado. Era evidente.
E mesmo assim.
Frances não conseguiu esperar até ao dia seguinte. Entrámos no apartamento, acendi as luzes e atirei o meu casaco para cima do sofá; ela fez o mesmo com o seu e com a mala.
— Espera — disse sentando-se no outro extremo. — Espera um segundo, não te vás embora. Quero dizer-te uma coisa.
— Frances — protestei —, estou esgotada…
— O Freddie vai para os Estados Unidos daqui a duas semanas.
Porque é que me contava isso às três da manhã? O que tinha eu que ver com Freddie?
— Pediu-me para ir com ele.
Com que então era isso.
— Aceitei.
Todas as perguntas na minha boca. Agitadas. O que queria dizer? Que se ia embora para sempre? Que me deixava sozinha em Paris? Que nunca mais a ia ver? Frances estava séria. Agora eu também. É incrível como o efeito do álcool se evapora perante uma catástrofe. Porque era isso que estava a acontecer naquela sala; não era uma má notícia, era uma catástrofe.
— Vai apresentar-me aos pais dele.
Minha querida Frances… Tão independente, divertida e cheia de originalidade. E comportava-se como uma costureira a quem tivessem pedido em casamento.
— Não dizes nada? — Parecia alarmada com o silêncio.
— Vais casar com ele? — perguntei-lhe, como querendo iniciar um combate.
Ela baixou o olhar durante um segundo.
— Não sei — reconheceu. — Talvez.
Viu certamente a desconfiança nos meus olhos.
— Não mo pediu, mas se queres que te seja sincera espero que o faça.
Não sei o que viu no meu olhar. Talvez alguém que não tinha bebido o suficiente para ignorar a importância das suas palavras. Alguém que, sem sombra de dúvida, se sentia profundamente dececionada. Coitada da Frances… Que injusta fui…
Dormi mal, como era lógico, mas quando acordei, muito antes do que era habitual, dei-me conta de que não era assim tão grave. Tinha o meu próprio rendimento, não dependia de ninguém. No entanto, o mal-estar, não tinha desaparecido, só se tinha deslocado: já não me doía o seu possível abandono; doía-me a forma tão pouco generosa como eu tinha reagido à felicidade de Frances. Vesti o roupão e tomei o pequeno-almoço enquanto esperava que ela se levantasse. Passou muito tempo. Aproximei-me da nossa biblioteca e peguei num livro. Os poemas de Emily Dickinson. Se ela viveu retirada como uma eremita, a salvo no seu mundo secreto, eu também podia fazê-lo. Ainda sem me vestir, li parte daquele livro firmemente decidida a exilar-me da minha própria vida de então.
Quando por fim Frances apareceu, com o cabelo solto e os lábios descorados, sentia por ela um amor profundo que, imagino, aparecia no meu sorriso e era fruto da emotiva leitura daqueles versos. Uma voz repetia dentro de mim: «A água aprende-se com a sede./ A terra, com os oceanos navegados.»
— Estou a ver que madrugaste.
E a voz voltava a declamar: «A paz, com os combates narrados.»
— Sim — respondi.
Frances sentou-se à mesa na qual tinham deixado o seu pequeno-almoço preparado. Fez soar a sineta para que lhe trouxessem o café quente.
— Dormiste bem? — Até nisso era generosa. Preocupava-se com o facto de eu ter dormido bem, quando era eu que devia fazer essa pergunta. — Estás a ler esse livro?
— Apeteceu-me — disse deixando o exemplar em cima da mesa de apoio e aproximando-me da mesa onde ela estava a tomar o pequeno-almoço.
Sentei-me ao seu lado… «O amor, com a lembrança dos que se foram. Os pássaros, com a neve.»
— Sabes uma coisa? — disse-lhe com sinceridade. — A princípio fiquei incomodada com a história do Freddie, mas agora estou muito contente por ti. A sério.
Frances abriu o ovo escalfado. Deitou-lhe um pouco de sal e pimenta, sem fazer qualquer comentário, e depois voltou a pôr a pequena tampa de prata no recipiente de porcelana.
— Tu não gostas muito do Freddie, pois não?
Baixei o olhar. Ela voltou a destapar o ovo e começou a comer.
— Je sais, ma chérie — disse com um sorriso um pouco triste. — O Freddie pode ser um pouco… infantil, eu sei, mas é boa pessoa.
— Trata-te bem — reconheci. — Ama-te.
— E então? — perguntou. Como eu não olhava para ela, pegou-me no queixo e obrigou-me a levantar o olhar.
Não lhe quis mentir.
— É que tu vales cem vezes mais do que ele — lancei sem qualquer compaixão pelo pobre Freddie. — Mereces melhor.
Ela abanou a cabeça em sentido negativo. O seu cabelo solto balançou por cima dos ombros.
— Não tenho tanta certeza disso, meu anjo. O Freddie não é uma má opção para mim, acredita. Tenho quase trinta e nove anos, daqui a pouco tempo vou ser uma velha solteirona que esbanjou a sua vida em muitas noites parecidas, todas absurdas e vazias. Preciso que isto mude.
Entendi perfeitamente o que queria dizer. Era algo muito parecido com o que eu tinha sentido durante o combate de boxe.
— O Freddie é a minha última oportunidade — disse servindo-se de café; o pulso tremia-lhe um pouco. — Eu sei.
Senti-me profundamente comovida. Frances era a pessoa a quem eu mais amava neste mundo. E agora, de repente, parecia tão frágil…