28
O Morris Bullnose de Frances está guardado numa garagem da rua d’Anjou. Freddie quer que nos desfaçamos dele porque vai trazer um Ford novo dos Estados Unidos, mas ainda não o fiz; prefiro esperar que eles regressem. Roger acompanhou-me a tirá-lo para ir a Deauville. Vamos lá passar o fim de semana.
O Morris está antiquado e já não me parece tão confortável como antes, mas para mim continua a ser o carro de Frances, embora hoje seja Roger quem conduz. Acho estranho ver outra pessoa no seu lugar. Para ele também deve ser esquisito conduzir um carro com o volante à direita; mais do que esquisito, eu diria que lhe parece uma espécie de jogo, ou desafio. Vai ultrapassando obstáculos, um atrás de outro, até que por fim, perto de Bonnières-sur-Seine, se começa a acostumar a ele. Então eu também fico mais calma e olho-o comprazida. Tem um chapéu de aviador de segunda mão que comprámos no outro dia no marché aux puces de Saint-Ouen, e eu um chapéu de feltro, com a aba direita e uma dobra num lado, que seguro com um foulard de gaze, tentando que não voe. Não o quero tirar, porque então o vento vai-me estragar o penteado e chegarei à casa dos Ferguson feita num oito. Espero sinceramente que Elliott não esteja lá. Sarah não me disse nada sobre isso.
Sarah e Charles vão casar em agosto. É estranho para mim, sobretudo porque não consigo evitar comparar-me com ela e, apesar de saber que temos as duas a idade ideal para dar esse passo, não me consigo ver a mim própria no papel de esposa e de mãe. Ainda não. Na minha vida é demasiado cedo para demasiadas coisas.
Frances virá da América para o casamento e, embora Freddie tenha de ficar por negócios, ela apanhará o barco na próxima semana. «Morro de vontade de te ver e de te contar tudo o que aconteceu nestes meses», diz o cabograma que me enviou. Parece que Freddie fará a viagem mais tarde e não chegará a tempo do casamento.
— O que é que achaste daquele tipo, Jordan Miller?
Roger conduz com a capota aberta. O vento e o barulho do motor não me deixam ouvir bem as suas palavras.
— Ele gostou de ti — grita sem olhar para mim.
— O quê?
— Esteve a prestar-te atenção durante toda a noite — grita ainda mais alto.
— Que ideia tão absurda — grito eu. — Não tinha nada que ver com isso que estás a pensar. Queria que eu lesse um conto que escreveu.
— Ele também. Meu Deus! Será que toda a gente naquela casa quer escrever um livro?
— O quê?
Para o carro ao lado de um poste de madeira.
— São todos uma cambada de sabichões — diz recuperando a sua voz normal, quando desliga o motor.
De súbito o silêncio torna-se tão repentino que me transtorna. Não sei muito bem a quem se refere, embora imagine. Roger não se arma em intelectual, mas é um grande leitor e, pelo pouco que sei, quando quer escreve melhor do que muitos dos meus conhecidos, incluindo a própria Gertrude.
— Se não fechar a capota não vamos conseguir falar durante toda a viagem — diz abrindo a porta. — Além disso, estou a ver que estás com frio.
Aponta para o meu foulard à volta do chapéu e do pescoço. Não lhe confesso que é um simples gesto de coquetismo.
— Com que então queria que lesses o seu conto…
— Sim. Pediu a minha opinião.
Roger fica com um ar incrédulo. Quem sou eu para que alguém me consulte sobre a qualidade literária de um relato?
— Não queria a tua opinião — diz sem qualquer intenção de me humilhar.
Liga o carro outra vez.
— Queria outra coisa.
Protesto. No fundo, embora não me apeteça confessá-lo, concordo com ele.
— Mas a mulher dele estava lá…
— Pois… — Vira-se um instante e olha-me com o seu sorriso deslumbrante. — Acredita, para alguns indivíduos isso não representa qualquer obstáculo.
Não sei que tipo de relação é que eu e Roger temos. Conhecemo-nos há apenas três meses, mas desde que Frances se foi embora vemo-nos todos os dias. Ele gosta de mim e eu gosto dele, isso é mais do que evidente, mas ninguém pronunciou a palavra namoro ou compromisso. Por isso acho graça que fique tão ciumento.
— Deve-te ter contado a história da sua medalha, certo?
Não lhe respondo. Mas sim, é verdade, contou-ma. A artilharia austríaca que dispara sem piedade e lhe fere as pernas, mas mesmo assim leva aos ombros um soldado italiano ferido e consegue salvá-lo…
— Não sei como é que não a pendura no blusão desportivo… Nunca vi um tipo tão vaidoso na minha vida.
— É muito jovem — digo-lhe. — Está a tentar abrir caminho e acho que se quer destacar num meio no qual não é fácil fazê-lo. Repara que ele tem praticamente a minha idade… É normal que goste de se gabar.
O meu argumento não é, sem dúvida, nada sólido. Nem eu própria acho que faça sentido.
— E então? Tu não és convencida. E conheces muitos escritores e artistas. Esse tipo pagaria para ter o teu círculo de amigos.
— Achas?
Volta a olhar para mim, mas, de momento, não responde. Às vezes não sei muito bem o que é que Roger pensa. É inteligente, simpático e acho que é boa pessoa. Mas há algo que me escapa. Algo que tem que ver com a sua postura face ao mundo, com o que espera da vida. Por exemplo: quer viajar pela Europa, pretende ir à Itália, à Grécia e talvez também a Espanha, mas depois não se decide, deixa passar o tempo como se as coisas acontecessem sem a sua intervenção, por si próprias, dessa forma tão improvisada que me deixa nervosa. Também não sei o que espera exatamente das pessoas que o rodeiam. Gosta de frequentar os círculos artísticos, mas critica sem parar toda a gente. Não é que não tenha razão, tem, mas é tão… não sei… exigente, implacável, que uma pessoa se pergunta constantemente porque é que vai a essas reuniões ou se junta com gente que despreza tanto. Quando penso em tudo isto, não consigo evitar pensar também no papel que eu ocupo na sua vida.
— E vamos ficar hospedados na casa dos teus amigos?
Refere-se aos Ferguson, como é evidente.
— Sim, claro, mas só lá estão a Sarah e o seu noivo. A família só chega depois do casamento. Embora qualquer um saiba que também é possível que cancelem a viagem à última hora…
Conto-lhe que a casa esteve fechada durante muitos anos, primeiro por causa da guerra, depois devido à morte de James, pela estranha doença que impede Lady Ferguson de abandonar Elsinor Park.
— O que é que ela tem?
— Sofre dos nervos. Os médicos dizem que tem uma espécie de fobia, alguma coisa como um ataque de pânico que lhe dá se se vê rodeada de pessoas estranhas. Fica péssima. Nem sequer sei se vai conseguir vir ao casamento.
Passamos por uma pequena aldeia com bonitas casas de verão. Quando atravessamos a ponte sobre o Sena as árvores da margem refletem-se na água. Fico surpreendida ao verificar que são mais belas do que as reais. Mexem-se trémulas, inseguras, efémeras, e têm um brilho que parece uma camada de verniz.
— São muito altivos? — pergunta Roger com uma certa desconfiança.
— Não, de todo — respondo convencida. — A Sarah e o Charles são maravilhosos, muito carinhosos, vais ver.
— Nunca conheci um lorde.
— Bem, o lorde é pai dela.
Vira-se de novo e sorri-me. Meu Deus! Como gosto do sorriso de Roger!
— Lorde Ferguson é um homem extremamente calmo — continuo. — Vive no campo e só vai a Londres quando não tem mais remédio. Não sei se alguma vez terá posto uma dessas perucas que exigem na Câmara dos Lordes…
— Bem — exclama ele com ironia —, que tipo de vigarice é esta? Um lorde que não se comporta como um lorde?!
E olha para mim outra vez.
E sorri-me.
E eu enredo-me um pouco mais na teia de aranha que vamos construindo entre os dois.
A viagem até à costa é agradável. A estrada é paralela ao leito do Sena e vamos vendo a paisagem, fértil e ainda repleta de verdes e ocres.
— Almoçamos em Rouen, achas bem?
— Acho — aceito agradada com a ideia. — Se não estou em erro, há um restaurante perto da catedral. Tem um alpendre e podemos comer ao ar livre.
— A catedral onde Madame Bovary se encontrava com o seu amante?
— Bem — respondo com esse tom irónico que às vezes usamos entre nós —, estou a ver que és um americano culto, sabes que Flaubert era de Rouen.
Sei que estes pequenos combates dialéticos o divertem tanto como a mim.
— Claro que sim, minha menina. O que pensavas? Que eu era um desses cowboys ignorantes?
— Bem, conheci um compatriota teu que pensava que a Espanha ficava a sul do México.
Ri-se com uma gargalhada contagiante.
— Quem é que te disse essa barbaridade? O tal Miller?
— Não, aí é que te enganas, querido. O Jordan esteve precisamente a falar comigo sobre a Espanha durante algum tempo. Acho que até lá esteve, ou pensa ir em breve. Conhece a cultura e os costumes espanhóis bastante bem.
— Não falemos mais sobre ele. Leste o livro que te emprestei?
— O de Ezra Pound? Sim, vou lendo.
— O que achas?
— É…
— Demasiado intenso?
Rio-me. É exatamente isso que penso, mas nunca o teria dito dessa forma.
— A verdade é que não consigo ler mais de dois poemas seguidos. Ele fala chinês?
— Acho que não muito bem. Pelo menos, é isso que dizem.
— E como é que se arrisca a traduzir os versos de um poeta da dinastia Tang?
— Bem, mais do que uma tradução, acho que é uma experiência. Tu gostas mais de outras pessoas, dessa tal Emily Dickinson, por exemplo, não é?
— Muito mais — reconheço; não lhe digo que tenho os seus poemas na mala.
Agora é Roger que se ri.
— Estás demasiado apegada à literatura romântica — comenta com um ponto de arrogância. — Isso já não está na moda.
— Uma conhecida nossa — respondo-lhe um pouco agressiva —, a costureira Coco Chanel, diz que a moda é feita para passar de moda. Byron, Shelley, Baudelaire, até alguém como Yeats, continuarão vivos quando o teu Ezra Pound se esgotar. E nem te atrevas a dizer que sou antiquada.
Roger cala-se durante uns segundos.
— Nunca diria tal coisa, meu doce. Prefiro propor-te algo.
De repente, passam-me várias coisas pela cabeça. E quase todas me provocam medo.
— Gostavas de vir comigo para a Itália?
Não sei o que responder.
— Arrendei uma casa nesse sítio de que me falaste, a riviera do Brenta. Não é uma dessas villas majestosas, mas fica perto de Veneza. E relativamente perto de Pádua, de Vicenza ou de Verona… Só espero que não tenha demasiados mosquitos.
Não consigo imaginar como seria viver na Itália com Roger.
— Tem a fachada pintada de amarelo — acrescenta, como se esse facto ainda o atordoasse.
Estou nervosa, não sei o que dizer. Penso muito rápido. O futuro. Frances prestes a casar com Freddie e talvez instalada nos Estados Unidos…
— Também há um jardim. O dono garante que está bem cuidado. — Roger espera pacientemente, mas uns minutos depois vê-se obrigado a insistir: — O que respondes? Aceitas?
— Quando é que pensas ir? — pergunto em voz baixa, precavida.
— Em setembro — responde ele.
— Mas a Frances… — consigo dizer.
Ele reage de imediato.
— Claro que tu podias ir quando quisesses, talvez para passares os meses mais duros do inverno. Disseram-me que o clima na Itália é muito mais ameno do que em Paris.
— Bem, no Sul sim. Mas em Veneza os invernos são húmidos.
Roger ficou muito sério. Olha em frente e deve ter o sobrolho franzido, porque uma das suas sobrancelhas está tão tensa que os pelos sobressaem como o lombo eriçado de um gato. Acho que se sente dececionado.
— Não queres vir?
Não posso aceitar com o entusiasmo que ele espera. A minha cabeça começa a dar voltas. Não percebo o que se passa comigo.
Estamos a entrar em Rouen. Vejo as torres da catedral ao longe, quando atravessamos a ponte, e de seguida aparecem os vigamentos de madeira das casas medievais. Depois já não me lembro de mais nada, nem do restaurante onde almoçámos, nem se algum dos dois falou sobre Joana d’Arc ou sobre os quadros de Monet. Para o bem e para o mal, tudo se apagou da minha memória.