29
Achei Deauville mais bonita do que nunca. Não estava calor e havia menos gente do que em agosto, porque os parisienses ainda não tinham chegado com os seus modernos automóveis, a sua roupa para jogar polo e as suas lantejoulas. Aquela Deauville de princípios de junho ainda mantinha alguma semelhança com o aprazível lugar de veraneio que eu tinha conhecido antes da guerra.
Sarah estava à nossa espera. Quando abri a porta do carro tive a impressão de estar a usurpar o papel de Frances no dia em que a conheci, neste mesmo lugar, a descer deste mesmo automóvel com o querido Sacha. E já tinham passado oito anos.
— Querida Sarah…
Comecei a subir as escadas em forma de trapézio. Esta pirâmide ascendente, interrompida, como os meus pensamentos. Um degrau, dois… Viver na Itália.
Sarah e Charles vieram ter connosco.
De repente, senti um desejo visceral de ser eu própria.
Eu.
Eu e Sarah abraçámo-nos com o carinho que sempre sentimos uma pela outra. Não nos tínhamos voltado a ver desde aquela desagradável festa há três anos. Achei-a mais magra e muito mais bonita. Era um pouco parecida com a sua mãe e, pelo contrário, sem ter a sua distinção e a sua beleza exagerada, era mais afetuosa, mais real. Ela também tinha cortado o cabelo e os seus olhos verdes pareciam agora maiores, tal como o seu sorriso. Charles, pelo seu lado, estava como sempre. Senti uma coisa muito curiosa ao vê-lo: uma espécie de confiança íntima, algo que percebi de seguida ter que ver com a tranquilidade que emanava da sua pessoa. E então, de novo e em segredo, invejei Sarah.
A casa estava como antes: os mesmos móveis no hall, as estreitas escadas das duas alas e a sala onde vi James pela primeira vez. Não me sentia bem, não sei porquê. Sarah tinha mudado e eu também, mas ela melhorara com os anos. Era uma mulher segura e feliz que ia casar com o homem que amava. Eu não sabia bem se tinha melhorado; só sabia que não queria ir para a Itália; não queria ser amante de Roger. Não queria que ele me pedisse em casamento.
Então, o que estava ali a fazer com ele?
Durante o serão, falo com desenvoltura e despreocupação, como se tudo isso não me acontecesse a mim. Sarah e eu trocamos novidades sobre os amigos de Londres. Num momento em que eles não nos olham, Sarah interroga-me com o olhar.
Não sei o que dizer. Que Roger me atrai, me diverte, me agrada. Que me consola da extrema solidão que sinto sem Frances. Não lho direi. Porque então teria de lhe confessar algo mais: não preciso de um Freddie na minha vida. Ainda não.
Durante as primeiras duas horas que passámos em casa dos Ferguson, não penso noutra coisa senão em escapar para trás no tempo. Vejo-me nessa sala, uma menina de catorze anos com um simples vestido azul de gola à marinheiro… Falo, rio e torno-me frívola, mas no fundo só desejo correr até à biblioteca e ficar ali. Com todos aqueles livros que no passado me prometiam uma vida apaixonante e feliz… E talvez com a lembrança de James, que se despediu da vida antes de o mundo mudar para sempre.
A manhã já vai a meio. No bulevar há grupos de pessoas que passeiam debaixo do morno sol de junho. As mulheres têm vestidos leves e camisolas finas de malha. Os homens fatos claros e casacos desportivos, alguns de riscas, que se complementam com canotiers de diferentes tons e tamanhos. Algumas senhoras levam sombrinhas com rendas e pontilhas que se agitam.
Sarah e eu escapámo-nos para dar um pequeno passeio e termos uns minutos a sós. Hoje fomos os quatro ao leilão dos puros-sangues, que se celebrou antes da primeira corrida da temporada. Pelos vistos, Charles queria comprar um cavalo e quando o escolheu deixámo-lo com Roger a tratar das transações e da papelada pertinente. Charles já me tinha confessado que o cavalo é uma prenda para Sarah e finalmente percebi o motivo da sua visita a França na véspera do seu casamento.
Guardo na memória esta cena.
Luminosa como as manhãs de junho.
Eu e Sarah.
Deixámos Charles e Roger no estabelecimento de Elie de Brignac e agora passeamos as duas pelo bulevar que há em frente do Casino.
— Sabes uma coisa? — comenta Sarah enquanto calça as luvas. — Ouvi dizer que estão a planear um grande passeio marítimo. Um passeio junto à praia… Parece-me uma ideia extravagante, não achas?
Depois de calçar as luvas para que o sol não lhe escureça as mãos, Sarah abre a sombrinha.
— Assim está menos calor, claro; não sei se vai ser bom caminhar tão perto da praia, acho que a brisa do mar faz com que te bronzeies excessivamente. — Olha-me de baixo da sua sombrinha. A luz concentra-se à volta da sua cabeça, como se fosse uma aura. — E, sem dúvida, não gostava nada de ter esse tom de pele que as mulheres dos pescadores têm. Diga o que disser essa Mademoiselle Chanel.
Um pouco mais à frente das suaves dunas que indicam o final da praia, vemos um grupo de crianças a esgaravatar na margem, na areia húmida. Meia dúzia de gaivotas esvoaçam à volta deles.
— O que estão elas a fazer? — tento saber.
— Estão à procura desses bichos de concha. Acho que lhes chamam moluscos. Algumas pessoas comem-nos.
— Em Deauville? — pergunto.
— Não, não são daqui. Vêm de Trouville, atravessam a ria de barca e esperam pela maré baixa para apanharem esses bichos, amêijoas, caracóis, ostras… Antes da guerra ninguém comia isso, mas agora olha para eles…
— Não são perigosos? Ouvi dizer que se pode apanhar tifo.
Sarah encolhe os ombros. Acho que este assunto não a preocupa muito. Ainda assim, acrescento, recordando algo de que me tinha esquecido totalmente:
— A irmã de Madame Hervieu morreu de tifo por comer ostras em Pirou.
Tenho a certeza de que Sarah nem sequer se lembra de quem é Madame Hervieu.
O sol escondeu-se por trás de umas nuvens. Vai demorar um bom bocado a sair de novo. Sarah fecha a sombrinha e diz-me:
— Vá, Rose, deixa as conchas em paz e falemos de ti e de Roger. Imagino que haja alguma coisa séria entre vocês.
Não quero mentir a Sarah. Para quê? As criadas devem ter comentado o mexerico de que ele acorda na minha cama.
— Podia haver se eu quisesse.
— Não tenho a menor dúvida.
Sarah conhece-me demasiado bem. Podia tentar enganar-me a mim própria, antes de a enganar a ela.
— Não me perguntes porquê, mas pareceu-me logo um candidato adequado para ti. Acho que se iam entender bem, isso nota-se.
— Sim, é verdade. Até à data entendemo-nos bastante bem.
Olha para mim agora com mais atenção.
— Então?
— Gosto muito dele. Diverte-me.
Sarah insiste.
— Então?
Digo-lho. Roger não é. Ele não é. Em voz alta para ouvi-lo eu própria.
Não sei exatamente com que palavras o digo.
Deve ser outro, mas Roger não.
Só me lembro de como ecoam os pensamentos dentro de mim. Posso repeti-lo em silêncio, depois de anos e depois de, felizmente, encontrar o verdadeiro amor. Não era Roger. E depois, quando os sonhos que então pareciam impossíveis se cumpriram, perdi-o.
— Não te percebo — garante Sarah.
Não me censura; só tenta compreender porquê, mas eu não tenho vontade de continuar com isto.
— E tu? — pergunto mudando de assunto. — És feliz com o Charles?
Atravessamos a rua quando o bulevar acaba.
— Feliz? Claro. O Charles é fantástico, faz com que tudo seja muito fácil. Vamos por ali, passaremos em frente da villa dos Rothschild.
Sarah leva-me para o passeio que está protegido por grandes plátanos de ramos nodosos. Do outro lado da rua, no cimo de uma encosta verde, ergue-se a bela casa que agora pertence aos Rothschild e que uns anos mais tarde será comprada pelo magnata Ralph Beaver Strassburger. Uma simples cerca de madeira clara rodeia a quinta. No cimo, uma casa de estilo normando levanta-se coroada por muitas torres e chaminés.
— Têm convidados — diz Sarah, contemplando o movimento de criados que se vê perto do gradeamento da entrada. Ao fundo do caminho assomam vários automóveis pretos de reluzente carroçaria.
— Soubeste alguma coisa do teu pai? — pergunta-me com uma certa cautela.
É um assunto que não consigo abordar neste momento. Agora não, Sarah, por favor, agora não.
Acho que se dá conta da minha perturbação.
— Desculpa — diz, sinceramente compungida ao observar o meu rosto. — Não me queria intrometer.
Faz-se um silêncio tenso entre as duas. Sei que se sente profundamente envergonhada. Caminhamos um pouco mais rápido, tentando que algo à nossa volta mude este absurdo mal-estar que caiu em cima de nós e que quase me impede de respirar.
— Ele vem ao meu casamento — acrescenta ela, imagino que depois de ter ponderado muito. — Acho que deves sabê-lo.
De repente fica nublado. O sol desaparece como se nunca tivesse existido. Tenho de reagir.
— Não te preocupes — minto —, isso já não representa um problema para mim.
Tento pensar noutra coisa. Na luz de Deauville, por exemplo. Em junho não é comparável a nada. As nuvens aparecem e vão-se embora, de repente brilha um sol que fere, e cinco minutos depois talvez o céu fique preto e chova durante uns minutos; e depois da chuva voltará a sair o sol e a realidade terá essas cores limpas e intensas das coisas recém-estreadas. Penso nisso. No quão limpo fica tudo depois da chuva.
— Vamos amanhã ao hipódromo? — pergunto a Sarah. — O Charles comentou qualquer coisa, mas não sei se tens previsto ir com ele.
— Claro, querida — responde Sarah com um tom que tenta parecer despreocupado. — É a primeira corrida da temporada. Não faltaria por nada do mundo.
— Não sei se trouxe a roupa adequada — penso em voz alta. — Imagino que será uma dessas corridas à inglesa.
— À inglesa? — ri-se Sarah.
— Sim, já sabes como é: grandes chapéus e saias sobrepostas.
Sarah solta uma gargalhada rápida. A tensão finalmente cedeu.
— Sim, receio bem que sim.
Um cão ladra quando passamos em frente do gradeamento de ferro de uma villa. Parece bastante feroz.
— Mas eu não me preocuparia com isso — acrescenta Sarah olhando-me com admiração. — Até nas corridas de Deauville se reconhece o estilo de uma parisiense moderna.
Herdei o título. Frances era isso quando a conheci, uma parisiense moderna. Volto a sentir o mesmo: quero a minha identidade.
— Não se importam se eu não for convosco?
— Ao hipódromo? Vais perder algo verdadeiramente emocionante.
— Sim, eu sei. Mas preciso de estar um pouco sozinha, percebes? Tenho de tomar uma decisão sobre uma coisa muito importante.
— Uma coisa que tem que ver com o teu americano, certo?
Concordo em silêncio. Chegámos à entrada da casa. A entrada está aberta. Fico contente pelo facto de Sarah já não me poder continuar a fazer perguntas.
Foi nesta biblioteca que eu e James falámos pela primeira vez. Os móveis estão tapados com lençóis brancos e os quadros também. Só as estantes se veem tal como eram naquela altura. Percorro-as com o olhar. Há muitos autores de então que eu não conhecia e que li depois, naqueles solitários anos da minha adolescência, e mais tarde na Inglaterra escura da minha primeira juventude. Quando somos adultos, como eu agora, lemos e esquecemos muito facilmente. É como se precisássemos de abrir um buraco num depósito que já está demasiado cheio. Mas quando somos jovens lemos sem saber que as palavras lidas falarão sobre nós com a passagem do tempo, quer gostemos ou não.
Abro o livro. Procuro o parágrafo.
«Não é nada disso — afirmou. — Ia apenas dizer que o Céu não parecia ser a minha casa, e eu despedaçava o coração a chorar para regressar à Terra. Os anjos estavam tão zangados que me atiraram cá para baixo, para o meio do urzal do cimo do Monte dos Vendavais, onde acordei a soluçar de alegria…»
Depois retiro o lençol branco que tapa um dos cadeirões, aquele no qual o velho avô de Sarah se costumava sentar, e instalo-me nele com o livro.
Quando regressam da corrida, com os olhos ainda cheios de cores e de velocidade, digo a Roger:
— Não vou regressar contigo a Paris. Vou ficar mais uns dias na Normandia.
Estranham. É uma notícia que os apanha a todos de surpresa. A Sarah e a Charles também, porque eles regressarão de imediato a Inglaterra.
— Vou visitar a família onde fui criada — conto-lhes depois de uns minutos de desorientação.
Acho que todos, até Roger, se apercebem da situação.
— Desculpa, vou ter de ficar com o carro — explico a Roger mais tarde, quando ficamos a sós —, mas há um comboio que te leva a Paris em três horas. Não te importas, pois não?
Quando o levo à estação, fica em silêncio. Já estamos na gare, junto à sua carruagem.
— Não viajas em primeira classe? — pergunto ao ver que entra num desses compartimentos com bancos de madeira.
Ri-se.
— Como são os europeus… Claro que não, boneca. Umas horas entre pessoas com as mãos cheias de calos não me vão fazer mal nenhum. Até acho que me vão colocar de novo com os pés na terra, depois de tanto puro-sangue e de tanta nobreza.
Não sei se devo encarar aquilo como uma crítica ácida ou como uma simples ironia.
— A sério — acrescenta ao dar-se conta da minha desorientação. — Gosto de viajar em segunda. Acontecem coisas…
Depois, sem hesitar, pega-me pela cintura, atrai-me para ele e beija-me apaixonadamente. Não consigo ver, mas acho que toda a gente fica a olhar para nós. E depois, com muita calma, separa-se um pouco de mim, contempla-me de perto e desliza um dos seus dedos pelo espaço que há entre a minha face e a linha do cabelo.
— Espero a tua resposta — diz.
Nesse instante sinto-o tão perto que estou tentada a dizer que sim ao que me quiser propor. Mas não o faço.
— Deixa-me pensar. Até depois do casamento, por favor.
Não tivemos oportunidade. Agora já nunca mais saberei o que teria feito caso não tivesse ido àquele casamento onde me encontrei com as duas pessoas mais importantes da minha vida.