35

Ainda estamos a conversar. Primeiro acompanhou-me de regresso ao hotel. Depois ficámos a tomar um copo no bar. Quando nos mandaram embora dali, convidei-o a subir à nossa suíte e continuámos a conversar… Tenho vontade de lhe tocar levemente, de deixar cair a cabeça sobre o seu peito e de ficar ali para o resto da minha vida.

Não aconteceu nada entre nós. Ainda não. Nada físico. Mas sei, sem qualquer dúvida, que o que está a acontecer é importante.

Chama-se Henry. Henry Tomlin.

Acabamos de nos conhecer. Ele veio ao casamento de Sarah com Lawson. É seu amigo. Eu e Frances sentámo-nos na mesma mesa que eles. Nessa mesa também se sentam um diplomata que se chama Harold e a sua jovem esposa.

Harold está à minha direita; Henry Tomlin à minha esquerda.

— O Harold está destinado a Paris — está ela a contar a Frances, enquanto Henry me diz, como que desculpando-se, que é tradutor. — Eu fiquei em Londres porque temos dois filhos pequenos.

— Nós vivemos em Paris — comenta Frances, fazendo um gesto que nos inclui às duas.

— Ah, sim? — De repente vejo que Henry olha para Owen interrogando-o; não sei qual é o sentido desse olhar. E depois dirige-se a mim. — Daqui a duas semanas vou a Paris. Vou lá passar todo o inverno.

— Vais ficar com o Owen? — pergunta Frances, deixando de lado as histórias domésticas da esposa do diplomata, que não tem outro remédio senão conversar com um Lawson mal-humorado.

— Não — responde Henry. — Receio bem que não. Sou galês. Temos um acentuado sentido da independência.

Harold ficou com má cara. A sua esposa também. Frances solta uma gargalhada.

— Então, espero que nos vejamos com frequência — diz colocando-se claramente do seu lado.

Henry tenta manter a conversa num tom mais geral, mas não sei como, talvez fosse inevitável, eu e ele começamos a falar de livros. Tem de traduzir Marcel Proust. Confesso que não o li.

— Tens de o fazer. À la recherche vai ficar na história da literatura francesa como a obra essencial do século XX.

Há poucos dias ouvi o próprio Owen Lawson dizer o mesmo em relação ao novo romance de James Joyce, Ulysses, que será publicado em breve. As duas obras essenciais do século XX serão difíceis, áridas e inacabadas, como o momento histórico em que foram escritas.

Mas agora estamos no início de tudo. Sinto-me feliz. Apesar do meu pai. Apesar do medo que tinha…

Todos os meus pensamentos sobre esse dia estão confusos. Há uma mesa na qual eu e Henry estamos a tecer o nosso futuro. Noutra está sentado o homem que é meu pai. Já mo apresentaram.

Foi assim que eu cheguei. Sarah aproximou-se para nos receber, a Frances e a mim. O seu vestido de noiva é simples, mas de um gosto requintado, como ela. Ao regressar da igreja, tirou o véu e agora usa um toucado de renda a condizer com o vestido. Está radiante. Os seus olhos cinzentos brilham como se tivessem engolido toda a luz deste dia soalheiro que acaba.

— Rose — disse-me sem rodeios —, queres conhecê-lo agora?

Assenti sem hesitação. Para quê deixar para mais tarde? Há alguns «mais tarde» que nunca chegam.

Sarah pega-me na mão. Começamos a passar entre as pessoas que sorriem à noiva. Há damas embonecadas com enormes chapéus de penas que se agitam quando passamos.

— Vens? — pergunta Sarah a Frances.

— Não, não. Vão vocês sozinhas, queridas — responde com um tom que noto como falsamente despreocupado. Às vezes, Frances finge muito mal.

Ele está ali, com uma mulher muito jovem. O aspeto dos dois parece-me chocante, austero e um pouco antiquado; ela parece quase a mulher de um pároco.

— Rose, apresento-te Sir Edgar Goodwill, duque de Ashford.

Estende-me as duas mãos. Parece um gesto afetuoso. Eu deposito a minha nelas.

Um calafrio. É um momento que me emociona e, curiosamente, não me incomoda em absoluto.

Não tenho tempo de me perguntar se sou parecida com ele, nem de guardar na retina detalhes do seu aspeto, como a forma do nariz ou a cor dos olhos, porque de repente estou a ouvir o meu pai:

— Esta é a Constance, a tua irmã.

Isso desorienta-me. Porque é que ninguém me disse que tinha uma irmã?

Vejo a mesma desorientação nos seus olhos. E de súbito vejo algo mais: está a avaliar-me. Olha para o meu chapéu, para o meu vestido, para as minhas meias e para os meus sapatos italianos. Deste rápido exame nascem os seus ciúmes, que vieram para ficar. Desde então, Constance sempre teve inveja de mim, não sei porquê.

De regresso à nossa mesa. Ali está Henry. Tem uma conversa muito estimulante e uns olhos que emanam sinceridade. De repente penso em Charles Glenmire, agora o marido de Sarah. Henry é esse mesmo tipo de homem. Sólido. Alguém a quem podes entregar a tua vida sabendo que vai sempre cuidar de ti. À medida que a noite avança, Roger vai-se desvanecendo pouco a pouco.

Se pudesse unir de forma coerente todas as impressões desse serão… Mas é impossível. Há tempo que renunciei a isso.

Eu e Frances fomos juntas ao toucador. Estamos sozinhas.

— Como foi? — pergunta-me. — O que te disse?

— Mostrou-se carinhoso. Na verdade, mal falámos. Mas imagino que surgirão mais oportunidades.

Frances está a pôr pó de arroz no rosto.

— Não tenhas demasiadas expectativas em relação a isso, meu anjo. O Goodwill é um autêntico canalha. Um desavergonhado que só pensa nele.

Fico incomodada ao ouvi-la falar assim.

— Porque é que o odeias tanto? É só por causa da minha mãe?

Frances parece prestes a responder alguma coisa. O seu rosto contraiu-se. É uma expressão que não vi muitas vezes nela.

— Sim, só por isso, querida — responde com a voz cansada. — Só por isso.

Não sei o que dizer. Ela está mais magoada do que eu.

— Pelo menos teve a decência de não vir com a mulher…

Fecha o estojo de pó de arroz e mete-o na mala de mão. Está realmente furiosa.

— E aquela filha dele… Já viste o ar dela? Parece uma precetora.

Dá-me vontade de rir. Então ela também sorri.

— Viste bem o vestido dela? — comenta, enquanto se vê ao espelho e estica o seu pela cintura. — Como é que alguém pode vestir uma coisa assim para um casamento?

— Quantos anos tem? — pergunto sem muita curiosidade, um pouco para nos situar uma em relação à outra.

— É dois meses mais velha do que tu.

— Bem — respondo ironicamente —, o duque esteve muito ativo nessa época.

Então Frances também se ri.

— Ainda bem que encaras tudo dessa forma. Sem dúvida, é a melhor maneira de enfrentar a questão.

Inclina-se e puxa o forro do seu vestido para baixo. Dá-me a sensação de que quer eliminar umas pregas que só existem na sua cabeça.

— Vamos, querida — diz pegando-me com suavidade pela cintura. — Sem ser a noiva, esta noite não há nesta festa uma mulher mais bonita do que tu.

Porque é que me diz isto? Não é necessário. Eu sinto-me bem, à vontade comigo mesma, com o que sou. Não tenho necessidade de ser a filha ilegítima de Sir Edgar Goodwill. Já não, Frances, já não. Não o digo a ninguém, nem sequer o disse a Henry, mas a única família à qual quis verdadeiramente pertencer, em algum momento da minha vida, foi à dos Hervieu.

Já passou tudo. É uma da manhã. Henry e eu estamos há quase seis horas juntos. Falamos de tudo, de Paris, da música jazz, de Ravel e Debussy, dos nossos livros preferidos, da Normandia e de certos hábitos ingleses, dos quais os dois não gostamos. Ele gosta de Emily Dickinson, como eu. Gosta de Tchekhov, como James. Ezra Pound não o convence muito, coisa em que também estamos de acordo. Não sei se lhe deve acontecer o mesmo, mas gosto dele, gosto muito. Tenho vontade de ir a correr ao quarto de Sarah e de Charles, de lhes agradecer e de dizer em segredo a Sarah: é ele, este sim, vês como eu sabia antes de acontecer?

Bebemos no banquete, no bar do hotel, e agora pedi uma garrafa de champanhe ao serviço de quartos. Lavei os dentes duas vezes para o caso de ele decidir beijar-me.

Uma da manhã. É então quando batem à porta e eu abro alegremente julgando que nos trazem a bebida.

Tenho dois polícias à minha frente e um homem com fraque cinzento que reconheço: é o diretor do hotel.

— Desculpe, minha senhora — diz um dos polícias com um tom excessivamente formal. Começo a ter um medo incontrolável e quase que tremo. — A senhora é familiar de Miss Frances Cosway?

De repente dou-me conta. Nem sequer tinha pensado nela. Talvez tenha assumido que estava a dormir no seu quarto, porque tinha saído do casamento por volta das onze. Veio despedir-se.

— Fica — disse-me. — Estou a ver que te estás a divertir. — Frances deu-me um beijo na face e disse-me ao ouvido: — O galês é bonito.

Lembro-me de que se afastou, tentando não meter os saltos na relva e que o seu xaile requebrava como se tivesse vida própria. Num determinado momento, enquanto percorria o caminho de cascalho, pareceu-me que andava aos ziguezagues.

— Aconteceu uma desgraça, minha senhora — murmurou o diretor do hotel. — Podemos entrar?

Afastei-me e apoiei-me contra a parede. Uma desgraça. Do que é que aquela gente estava a falar? Que desgraça?

Henry está ao meu lado. Ajuda-me a chegar ao sofá. Faz com que me sente. Todos me olham expectantes.

— A senhora Frances Cosway teve um acidente de carro.

Olho para aquele homem que parece sinceramente compungido.

— Está…?

Não sei o que me respondem nem quem o faz; só sei que me olham com uma expressão de circunstância e que Henry me pega na mão.