38

Amparo bateu à porta cinco minutos antes de eu sair, quando já tinha preparado os livros e os tinha metido na mala. Vinha-me trazer a louça e o guarda-chuva. Não ia ser nada simples desfazer-me dela.

— Repare… Repare como a arranjaram.

Deixou o guarda-chuva pendurado nas costas de uma cadeira e mostra a louça como se estivesse a fazer uma oferenda.

— Aquele homem tem umas mãos… Não acha?

Tento abreviar a visita, mas sei muito bem o que me espera.

— Ficou fantástica — digo-lhe. — Realmente como nova.

Tento pegar na louça, mas ela não a larga.

— Não acha? — sorri satisfeita. — Olhe, olhe…

Aponta para a fenda cosida com gatos e para a camada de verniz que a deixa lisa e polida.

— Passe, passe a mão…

Amparo repete tudo duas vezes. Sempre.

— Nem uma rugosidade — insiste —, nem sequer uma.

Começo a ficar impaciente. Sabia que a maldita fenda daria muito de si e hoje não estou para conversas; tenho muita pressa porque quero passar pela pastelaria e encomendar o café e os churros antes de entrar na livraria. E, além disso, tenho de procurar o momento adequado para pôr os livros na estante sem que Lola se dê conta.

— E o guarda-chuva? Repare no tecido que ele pôs.

Abre-o no meio da cozinha.

— Dizem que dá azar, mas eu não acredito nessas coisas, sabia? Toque, toque…

Toco obedientemente no tecido e só me dou conta de que escorrega.

— É de nylon, imagine; com isto não se molha nem que chovam picaretas. Terá guarda-chuva durante muito tempo.

— Quanto lhe devo, Amparo? — Abro o porta-moedas. Como não me responde, insisto. — É que hoje estou com um pouco de pressa…

Amparo coça levemente o decote. É um gesto que faz com frequência quando quer dizer alguma coisa e não sabe como fazê-lo.

— Já sabe?

Esvaziei o porta-moedas na palma da mão, à espera de que me diga quanto é que o gateiro lhe cobrou.

— Estou a ver que não sabe nada…

E então deixa-se cair pesadamente numa das minhas banquetas. Pela contundência desse ato, adivinho que a coisa vai durar algum tempo.

— Eu não podia acreditar, a sério. Uma família tão boa, pessoas do bairro desde sempre, parece mentira.

Tenho vontade de lhe dizer: «Vai direta ao assunto, Constance.» De repente, dou-me conta de como Amparo me lembra a minha meia-irmã.

Deixo o porta-moedas em cima da mesa e sento-me ao seu lado com uma expressão de impaciência, mas isso não desanima Amparo.

— Já viu, quem ia dizer, aqui na nossa própria vizinhança…

— Mas o que é que aconteceu? — pergunto finalmente. — A senhora está-me a assustar.

— E não é para menos, senhora Rosa, não é para menos. O filho dos Cárdenas, os do último andar, aquele rapaz de óculos…

Não sei de quem é que me está a falar. Conheço os pais, mas acho que nunca troquei com eles algo mais do que olá e adeus.

Amparo olha-me com a gravidade de quem vai atuar num drama.

— Encontraram-no morto numa dessas casas, não sei se me está a perceber, coitado do rapaz. Os canalhas deram-lhe dezasseis punhaladas. Não havia uma única parte do corpo que não estivesse tingida de sangue.

— Numa dessas casas? — pergunto indecisa quando me deixa falar. — Está-se a referir a um bordel?

— Coitado do rapaz… E coitados dos pais, verdade seja dita… Sim, num bordel, a senhora diz muito bem; mas isso não é o pior, porque não era numa casa onde os homens vão procurar mulheres.

— Então?

Aproxima-se e baixa a voz.

— Era uma casa de invertidos.

No início não a percebo.

— Maricas — diz agitando os dedos com impaciência. — Efeminados, já sabe como é…

Não gosto de nenhuma das palavras que escolhe e acho que se dá conta. Tento lembrar-me do rapaz.

— O moço estava cheio de sangue…

— Quando é que isso aconteceu?

— A leiteira contou-me hoje de manhã. Parece que foi ontem, ao amanhecer, que o encontraram. Tinha-se esvaído lentamente em sangue, já não lhe restava um sopro de vida.

— E os pais?

— Pois imagine como devem estar. Eu subi hoje de manhã para lhes dizer que estava à disposição para qualquer coisa de que precisassem… mas ninguém abriu.

Sinto-me consternada. É sempre assustador saber que a desgraça anda por perto.

— É sem dúvida uma triste notícia.

— Não se podia esperar outra coisa; quando alguém se mete por esse caminho, mais cedo ou mais tarde vai acabar mal…

— A senhora acha que o mataram por ser homossexual?

Olha para mim assombrada.

— E porque havia de ser?

— E porquê?

Amparo é esperta. Sabe que não deve continuar a falar comigo sobre este assunto porque poderíamos acabar por discutir. Imagino que atribui a minha atitude ao facto de eu ser estrangeira.

— Eu só digo que há meios que as pessoas decentes não devem frequentar — concluiu contrariada. Depois faz uma pausa, levanta-se e acrescenta: — O gateiro cobrou-me dezoito pesetas.

Vou pensando no que aconteceu enquanto me dirijo à loja. É curioso. Amparo perdeu o pai na guerra. Contou-me muitas vezes. Foi fuzilado pelos nacionalistas à entrada da aldeia, por isso não me parece que este regime seja muito querido para ela. Assombra-me verificar a facilidade com que as pessoas se adaptam à ideologia dos vencedores.

Constance poderia ter dito algo muito parecido ao que a minha vizinha disse. De facto, fê-lo uma vez, quando comentei com ela que Henry conhecia Vita Sackville-West. Estávamos no Lambeth Hall, num desses seus chás nos quais se desdobrava «o mundo Constance» em toda a sua dimensão: toalhas bordadas durante as cruas noites de inverno, doces caseiros e três ou quatro amigas parolas e provincianas. Acho que o pároco também lá estava; algo muito inglês, por outro lado. Nunca percebi como é que Constance conseguia juntar à sua volta tantas pessoas aborrecidas. Enfim, eu estava sozinha, Henry não tinha querido vir. E não o censuro, sem dúvida. Há tempo que se tinha cansado de vir comigo a essas visitas de verão a Lambeth Hall. Em suma, ela tinha em frente o público ideal para o que aconteceu de seguida. E devo reconhecer que eu também.

Constance acabava de fazer referência ao castelo de Knole e eu comentei que numa ocasião nos tinham convidado a passar ali um fim de semana.

Acho que sentiu a mesma inveja daquela primeira vez, quando nos conhecemos no casamento de Sarah.

— Estiveste em Knole? — perguntou-me sem conseguir evitar um tom de assombro que se aproximava da admiração.

Ou da raiva.

— Sim — disse, inicialmente sem qualquer má intenção —, fomos com um editor e a mulher, que é escritora.

— É tão fantástico como dizem? Acho que tem mais de trezentos quartos.

Às vezes gosto de ser cruel com Constance, tenho de admitir.

— Trezentos e sessenta e cinco mais exatamente, um para cada dia do ano — esclareci, sabendo que lhe servia de bandeja uma boa dose de ressentimento.

— E os jardins? Também são tão espetaculares como contam?

— Os mais espetaculares que vi na minha vida: mais de quatrocentos hectares de terreno com veados a correr por todo o lado… E por dentro é como uma aldeia, pátios e mais pátios, doze entradas diferentes e mais de cinquenta escadas. Devias fazer uma visita um dia, querida. Depois de conheceres Knole, Lambeth Hall vai-te parecer muito pequeno.

Até esse momento Constance olhava para mim embasbacada. E, de repente, sentiu um calafrio e esticou-se como se tivesse engolido um pau de vassoura.

— E é verdade o que contam sobre essa gente?

Não me deu tempo de perguntar a que diabo é que se referia. Constance olhou para o pároco como se soubesse de antemão que ia ter a sua aprovação.

— Pelos vistos comportam-se de uma forma bastante peculiar. Imoral, diria eu.

O pároco deixa de comer e as suas duas amigas viram a cabeça como pássaros atentos ao perigo.

— Sim — continua ela —, parece que os teus amigos pertencem a um grupo de intelectuais, já sabes como são, gente boémia, sem normas, que vivem desordenadamente e mantêm relações aberrantes entre eles. — E como ninguém diz nada, acrescenta: — Mulheres com mulheres e homens com homens, não sei se me estão a perceber…

Desarmou-me. Quero responder alguma coisa que cale a sua boca de uma vez por todas, mas não sou capaz. Olho para o pároco, vermelho que nem um tomate, e para as suas duas amigas com as sobrancelhas levantadas pelo assombro, e tenho uma vontade louca de os escandalizar ainda mais. Não o faço. Com Constance sempre soube manter a calma.

— Não sabes o que estás a dizer, querida — respondo com voz sossegada e tom grave. — Essa gente de quem falas tem um sentido ético mais elevado do que qualquer pessoa que eu conheço. E demonstraram-no de sobra. Por exemplo, sabias que esse grupo de intelectuais e boémios, como tu lhes chamas, manifestaram publicamente durante a guerra a sua atitude pacifista e arriscaram-se a ser presos por apoiarem a objeção de consciência? Diga-me, padre Meyer, essa história de «não matarás» não é um dos preceitos divinos? E, que eu saiba, não há nos dez mandamentos nenhum que se refira às relações homossexuais… Mas ao roubo sim, não é? E ao assassínio também, estou correta? — Agora sou eu que faço a pausa. — Pois bem, Constance, esta gente nunca matou, nem roubou. Isso te garanto. — E volto a fazer uma pausa. Desta vez totalmente intencional. — Não sei, querida Constance, se todos poderíamos dizer o mesmo. Sabes a que é que me estou a referir, não é? A esse costume que algumas pessoas têm de quererem sempre apropriar-se das coisas que não são suas. Mas, enfim, não podemos esperar que os seres humanos sejam perfeitos, não está de acordo, padre Meyer?

Sei que entendeu perfeitamente. Também sei que nunca o vai admitir. Mas não me importo. Ainda possuo a Croft House e as suas pastagens inúteis… E também tenho Henry. E, quando regressar a casa, ele vai estar à minha espera com o jornal dobrado ao meio e o cabelo castanho a cair-lhe sobre a testa… Do outro lado da janela vê-se o mar, que tem a mesma cor e a mesma intensidade que os seus olhos. E tudo isto, embora hoje sejam só lembranças, está tão vivo dentro de mim que até tenho pena da pobre Constance. Lamento, querida, mas isso é algo que tu nunca terás.

Acabo de pedir que nos levem o café daqui a uma hora. É o tempo que calculo que vamos demorar a acabar o próximo capítulo. Vejo que Lola preparou o livro e que a minha cadeira está no seu lugar.

— Bom dia — digo apressadamente.

— Olá — responde ela com uma inesperada alegria. — Estava um pouco preocupada; pensei que hoje não viria.

— Isso não seria possível… No outro dia ficámos na parte mais interessante…

Usa um vestido de fazenda fina, ajustado à cintura e às ancas. Está muito sexy, como diriam no meu país. Na parte de cima, a abotoadura chega até ao ombro e traça uma linha assimétrica muito ao estilo dos anos quarenta. O vestido é certamente dessa época.

— A verdade é que estivemos quase para não abrir.

— Porquê? Aconteceu-vos alguma coisa?

— Não, a nós não.

Não quero parecer curiosa, por isso não pergunto mais.

— É… Bem, eu conto-lhe.

Parece que tem de ter coragem para isso. Sorrio-lhe para que se sinta livre de fazê-lo ou não.

— Não tira o casaco?

— Sim, claro — respondo de seguida.

Deixo a mala e as luvas sobre uma pilha de livros e o casaco num canto da mesa. Depois sento-me.

— Bem, uma pessoa muito próxima do meu marido faleceu.

— Lamento muito — comento, sabendo muito bem de que pessoa se trata.

Lola olha-me pensativa. Suponho que duvida se me deve contar ou não.

— Era a sua primeira mulher — diz por fim.

Não lhe quero pedir explicações, mas sinto que precisa de falar, por isso preparo-me para ouvir a versão de Lola, que decerto será totalmente oposta à da porteira da rua Prim.

Precisamente nesse momento, quando ela se prepara para falar, o homem entra no átrio. Lola não o vê porque está de costas, mas eu sim. E dou-me conta de que esse tipo traz muitos problemas com ele.

Lola virou-se para o balcão ao ouvir alguém pigarrear em substituição do bom dia obrigatório. E ficou lívida.

Não sou uma pessoa agressiva, antes pelo contrário, e a ironia salva-me nos momentos difíceis, mas aquele tipo tira-me do sério. Lola levanta-se como se fosse impulsionada por uma mola.

— O que quer?

O homenzinho endireita-se arrogante. Se fosse coisa minha dir-lhe-ia que, por mais que tente, nunca terá o tamanho de um homem; sei pôr o dedo na ferida. Não o faço para não complicar mais as coisas.

— Porque é que não me deixa em paz? O que quer agora?

O tipo estica as mãos, como se quisesse interrompê-la de repente.

— Eh, calma — diz mostrando uns caninos amarelados ao esboçar o que pretende ser um sorriso —, venho buscar a minha caneta.

Lola parece desconcertada.

— Que caneta?

— Uma Parker que deixei ontem ao teu sócio, boneca.

Lola não reage.

— Então? — apressa-a, visivelmente satisfeito com a confusão. — É para hoje.

É naquele momento que me aproximo do balcão. Vi a caneta na prateleira que está por baixo, ao lado do tinteiro e do pano manchado de azul. Mas não tenho vontade de lha dar.

— Volte amanhã, quando o dono estiver, e dar-lhe-ão a sua caneta.

Olha-me com a mesma irritação do outro dia. Acho que fica extremamente irritado por me encontrar sempre aqui.

— Deseja mais alguma coisa? — digo, cruzando os braços à sua frente.

Não responde de imediato. Só franze os olhos.

— A senhora não é espanhola, pois não?

Olha, olha… Agora mudou de alvo.

— Porque pergunta? — respondo com uma atitude tão pouco amigável como a sua.

Contempla-me friamente durante uns instantes, como que a avaliar-me. Depois esboça um feio sorriso.

— Porque aqui não gostamos dos estrangeiros que vêm meter o nariz onde não são chamados.

Então eu também sorrio.

— Que pena — respondo —, porque há coisas que não se conseguem atingir por mais que alguém ponha alças nos sapatos.

Se julgava que eu não me tinha dado conta desse detalhe, está muito enganado.

Lola deixa escapar um sorriso involuntário. Ele fica de novo lívido. Tenho a impressão de que as suas faces se afundam para dentro e de que a ira o engole sem que possa fazer nada para o evitar.

Ajusta as lapelas do sobretudo e sai do átrio lançando-me um olhar assassino. É divertido ver como se vai embora com o rabinho entre as pernas.

— Obrigada — diz Lola.

— De nada — respondo. — Mas a senhora devia encontrar uma forma de acabar com esta situação. Este tipo de pessoas pode complicar-nos muito a vida.

Ela deixa-se cair na banqueta. Parece prestes a chorar.

— Quer falar sobre isso? — pergunto-lhe.

Nega repetidamente com a cabeça.

— Então, porque não lemos um bocadinho? Isso vai distraí-la das suas preocupações.

Estendo-lhe o livro. Ela pega nele sem vontade.

Fica em silêncio, com o olhar perdido durante uns instantes.

— Não aguento mais — diz de repente, com o desespero estampado no rosto. — Juro-lhe que já não aguento mais.

Não estamos muito afastadas, mas mesmo assim aproximo-me um pouco mais e ponho-lhe uma mão no ombro. Começou a chorar.

— Gostava de a poder ajudar — digo.

Ela mexe a cabeça.

— É demasiado — soluça. — E eu não aguento com tudo. Não aguento…

Então conta-mo. O que teve de fazer com aquele homem para que comutassem a pena de Matías. Sim, conta-mo com todos os detalhes, sujando-se com cada palavra, com cada lembrança… Uma casa da rua Infantas, um lugar velho e escuro. O quarto está no segundo andar, sobre o cartaz luminoso de uma pensão; ela olha para essa luz que se acende e apaga, pensão Ruano, pensão Ruano, e tenta pensar em Matías enquanto tudo acontece… Depois, só resta a vergonha.

— Não quero que o Matías saiba disto. Nunca…

Agora percebo. Este é o poder que aquele sujeito tem sobre ela.

— Desprezar-me-ia, percebe?

— Acho que está enganada — digo, tentando que a minha voz não revele a compaixão que sinto. — O seu marido ficaria assombrado se soubesse até que ponto o ama. Garanto-lhe.

Olha-me como se eu não tivesse a menor ideia do que estamos a falar. Há alguma coisa nos seus olhos que vi outras vezes, sobretudo durante a guerra: é esse medo profundo que se adere à retina e se converte rapidamente em desolação.

— Eu acho — insisto para apaziguar a situação — que é a senhora que não se perdoa a si própria. Mais cedo ou mais tarde, todos aceitamos os sacrifícios que os outros são capazes de fazer por nós. O problema deste assunto não é que o seu marido não possa perdoar o seu tremendo sacrifício. É que a senhora não se consiga esquecer disso.

Pôs a mão na parte de cima do peito, como se quisesse conter algo que lhe causa uma terrível perturbação. Acho que acertei em cheio.

Quando nos trazem o pequeno-almoço do café sei que hoje não vamos ler nem uma linha. Também sei que tenho uma nova ocupação para os próximos dias.