42
Chove sempre nos funerais. Hoje também.
A cova está aberta. Querem meter ali Frances e eu não consigo impedi-lo porque o meu corpo não obedece, a minha língua não responde; por mais que tente, não consigo expressar o que sinto. Ouço Owen ler uns versos terríveis, que conheço de um tempo anterior, quando não tinham qualquer significado para mim. Agora parecem-me assombrosamente dolorosos.
A salvo em suas Câmaras de Alabastro —
intocados pela Manhã
e intocados pelo Meio-Dia —
Owen lê com a voz quebrada. E eu quero que ele se cale de uma vez.
descansam os mansos membros da Ressurreição —
Caibro de Cetim,
e Telhado de Pedra!
Que se cale.
Mas não acontece nada. Nada do que penso. Nada do que desejaria neste momento. Estou ali, junto ao seu túmulo. Essa é a única coisa real. Isso e o tato frio desta terra que a vai cobrir para sempre. Frances não merece isto.
Quando tudo acaba, coloco-me junto ao caminho, o fato de saia e casaco e o chapéu pretos, debaixo de um guarda-chuva preto, e aperto a mão de todos aqueles que me desejam dar os pêsames. Espero com paciência que todos desfilem à minha frente… Sarah, a querida Sarah… Elliott… Lorde e Lady Ferguson… Numa sinistra procissão… Owen Lawson, René e Suzy… Os amigos chorosos, os pintores desconsolados, os músicos aflitos, as criaturas da noite… O meu pai e Constance.
Deixo que se vão embora. Estes rostos que reconheço e que ao mesmo tempo me parecem horrivelmente estranhos. Freddie não está presente e eu não me consigo lembrar porquê. Porque é que não estavas ali se a amavas tanto, Freddie?
E depois, quando os coveiros esperam que eu também desapareça, porque querem fazer calmamente o seu trabalho, fico com o som das gotas no guarda-chuva preto e espero…
Henry acompanha-me. É o único homem que consigo suportar neste momento.
E, quando o túmulo está fechado e as coroas depositadas sobre a terra nua, os homens vão-se embora e posso finalmente chorar.
Ainda chove.
Passam os meses. Henry deve estar em Paris, mas não entra em contacto comigo e não percebo porquê. Não vejo ninguém. Deixei de sair à noite.
Suzy é a única que me vem visitar. Aparece sempre de surpresa e às vezes sinto a falta da liturgia das velhas damas vitorianas — nunca depois das seis e meia, nunca mais de duas horas, nunca mais de uma vez por semana — que me parecia tão ridícula quando vivíamos em Londres. Preferia que alguma vez tivesse a amabilidade de avisar, mas ela é incapaz. Nisso é um pouco parecida com Frances.
Tudo na minha vida regressa, antes ou depois, a Frances.
Leio. Leio muito. E é agora que as palavras de James ganham o seu verdadeiro significado: «Quando te sentires sozinha, lê um livro… Isso vai salvar-te.» Os livros têm de repente o tato redondo e húmido de uma tábua de salvação. Descubro Joyce, que me apaixona, e leio uma e outra vez o último parágrafo de um dos seus contos: «Sim, os jornais tinham razão: a neve caía em toda a Irlanda… Caía em toda a parte, na planície central e escura, nos montes, no “Bog of Allen” e longe, para o lado do oeste, caía docemente nas ondas escuras do Shannon. Também caía em toda a parte, no velho cemitério, lá onde fora enterrado Michael Furey. Batia com força nas velhas cruzes e nos túmulos, no portão da entrada e nos estéreis espinheiros. A sua alma desmaiava vagarosamente, enquanto escutava a neve tombando com suavidade sobre o universo, sobre todos os vivos e mortos.»
Leio esse conto uma e outra vez porque me consola. Há alguma coisa nele que me enche de uma suave melancolia. Às vezes volto a ler Tchekhov ou Edith Wharton. Não tenho vontade de experiências nem de mais novidades.
Roger veio despedir-se antes de regressar ao seu país. Não senti nada, nem sequer a velha atração que nos tinha feito passar tantos momentos bons juntos. A dor pela morte de Frances deixou-me sem impulsos vitais. Quando Roger se foi embora, dei-me conta de que tinha perdido as duas coisas que me faziam sentir viva: o apetite e o desejo. Não há nada que eu deseje neste momento. Nada nem ninguém.
Emagreci muito. Suzy diz que dou pena. Eu não me importo nada; até diria que gosto do meu aspeto, porque me converti numa dessas imagens góticas, esquálidas e virginais. Só me falta um véu branco sobre o cabelo louro.
Estou sempre aqui. Dias e mais dias. Nesta casa que ainda cheira a Frances, ao seu perfume, ao seu corpo, ao seu fôlego. Tive uma mãe e nunca me deram a oportunidade de lhe chamar assim. E agora estou condenada a recordá-la numa casa onde ecoam o seu riso e a sua voz quente. Estou aqui como se não existisse nenhum outro lugar no mundo. Tenho um pijama preto e um casaco largo de angorá. Acho que tenho o cabelo sujo.
Ouço a campainha da rua e depois a voz de Suzy.
— Não se preocupe, senhora Angellier, eu anuncio-me sozinha.
E os seus passos rápidos.
Também recordo que a minha governanta espreita atrás dela com desconfiança, esperando que eu aprove esta intromissão. Conhece Suzy, mas acho que hoje há qualquer coisa que não lhe parece totalmente normal.
— Vá para o salão, meu senhor — ordena Suzy sem se virar; dou-me conta de que desta vez não veio sozinha e começo a ficar inquieta. — Nós já vamos.
Nas lembranças é difícil vermo-nos a nós próprios. Mas eu vejo-me. Estou na biblioteca, deitada num sofá. A lareira está acesa, mas mesmo assim apertei o casaco de angorá e tapo-me com uma manta escocesa. Tenho sempre frio. E em cima da manta um livro de Edith Wharton, que é o mundo onde agora vivo. Longe daqui.
Suzy aproxima-se e olha-me com reprovação. Depois arranca o livro das minhas mãos e obriga-me a levantar.
— Já te viste ao espelho? Rose, querida, vem comigo.
Leva-me ao quarto. Abre o armário.
— Vamos arranjar-te um pouco, não quero que ninguém te veja neste estado.
Ver-me? Quem?
Já não tenho o meu pijama de seda… Nem o meu confortável casaco de angorá.
— Estás pele e osso — diz Suzy olhando-me de soslaio.
Quem sou? Uma criança a quem têm de vestir?
— Põe isto.
Nem sequer quando era uma pobre órfã abandonada alguém me tinha contemplado com tanta compaixão.
— E agora anda, tens de apanhar este cabelo.
Quem, Suzy? Com quem é que vieste? É Henry, não é?
Dou-me conta de que desejo com todas as minhas forças que seja ele.
Ou ele ou Frances. Mais ninguém. Dois visitantes igualmente improváveis, penso para mim, mesmo sabendo que Frances está morta e Henry não. Mas nesse momento parece-me tão longínquo como se estivesse.
Porque é que vou atrás de Suzy pelo comprido corredor da nossa casa da rua de Surène, perto do bulevar Malesherbes e daquela igreja que o Napoleão mandou construir em forma de templo grego? Caminho insegura, hesitante, como se esta casa fosse a dela e não a minha.
E de repente…
Vejo a roupa que levo: uma saia plissada, de seda cinzenta chatoyante, e uma blusa branca. As duas peças eram de Frances. Fico com uma raiva infinita. Tenho vontade de abanar Suzy. Como é que te atreves a tocar na sua roupa, maldita americana intrometida? Mas a raiva só está dentro de mim, vai contra mim, não pode fazer mal a ninguém para além de mim. Odeio-me por vestir a sua roupa, por viver na sua casa, por me parecer com ela.
Suzy abre a porta do salão. O homem que está a olhar pela janela não é Henry.
— Como estás, querida?
Estende-me uma mão branca, de dedos pontiagudos e unhas manchadas de nicotina. É o cartão de visita de Owen Lawson.
— Sei que não queres ver ninguém, mas toda a gente sente a tua falta.
Sentamo-nos e eu reparo em coisas absurdas: que o seu bigode de sempre tem agora uns pelos brancos, que os seus olhos são mais claros do que recordava…
— Há algum tempo que te queria vir visitar — comenta com essa correção tão assombrosamente neutra que tanto me irrita —, e hoje, finalmente, consegui convencer a Suzy a deixar-me acompanhá-la.
— O Owen insistiu muito, querida. Acho que te faria bem começar a ver os amigos.
Amigos?
Owen não é meu amigo. Eu odeio Owen.
Ninguém faz ideia do que penso porque nos sentamos, e eu comporto-me como uma boa rapariga, com a minha saia plissada e a minha blusa branca. Não sei se tenho meias, acho que Suzy não me deixou sair do quarto sem elas… Sento-me na otomana, muito perto de Owen, e então ele pega-me na mão. Apanha-me de surpresa. Estou prestes a retirá-la, mas contenho-me. Em circunstâncias normais, este é um gesto que este homem jamais se permitiria comigo; não temos assim tanta confiança um com o outro, mas parece que a dor permite o contacto físico. Não estou à vontade embora disfarce. Tudo me parece terrivelmente incómodo; eu sentada à beira do assento. As minhas costas rígidas, a mão áspera de Owen. A sua presença.
De repente ouço a minha voz. Parece completamente normal. Diria até, para minha própria surpresa, que tem um tom afetuoso nada desdenhável.
— Lembras-te de Elsinor Park, a casa dos Ferguson em Surrey? — pergunto-lhe sem compreender muito bem porque tenho de recordar isso precisamente agora. — Conhecemo-nos lá.
— Claro — diz Owen.
Sei que não se lembra nada de mim.
— Fomos a pé até ao rio — insisto com a sua mão entre as minhas. — O James, a Frances, eu e tu. A guerra ainda não tinha acabado.
Não te lembras, Owen Lawson. Não te lembras daquela rapariguinha de quinze anos que se tinha apaixonado pela primeira vez e tinha o seu pequeno coração prestes a rebentar. Nesse dia vocês tinham-me excluído do vosso mundo de adultos. Não te podes lembrar, Owen, porque eu não existia para vocês.
— Já só restamos nós os dois — digo-lhe; e finalmente entendo por onde querem ir os meus pensamentos.
Frances e James estão mortos. Porquê eles?
— Lembro-me perfeitamente dessa tarde — diz Owen de repente. O seu dedo polegar acaricia o dorso da minha mão. — James Ferguson estava em convalescença, tinham afundado o seu barco, e tu tinhas uma trança loura, da cor do trigo maduro.
O quê? O que está ele a dizer?
— Batizei-te como la fille aux cheveux de lin. Eras muito viva, mas nesse dia estavas um pouco aborrecida.
O quê? A rapariga dos cabelos de linho? Foi ele?
Penso. Tudo ao mesmo tempo. Owen a falar sobre mim, James a sofrer… O Morris Bullnose. Correntes de água gelada e câmaras de alabastro.
Eles estão mortos. E nós os dois vivos.
Suzy sabe manter-se à margem quando quer. De repente dou-me conta de que ela também está ali, com aquela saia de quadrados grandes, tão extravagante, e os seus belos seios a estremecer como uma explosão de vida. Tento falar sobre outra coisa, mas é uma tentativa falhada; não consigo encontrar um único tema de conversa que me conceda mais do que três frases. Até que por fim Owen pronuncia o nome dele:
— O Henry está lá em baixo.
Tenho um aperto no coração. Eu sabia. Ninguém repara, porque assinto com um simples gesto e depois pergunto como é que ele está, sem demonstrar a mínima alteração no meu tom de voz.
— Gostava de subir para te ver. Pediu-me que te pergunte se queres recebê-lo.
Não sei como é que chegámos até aqui. Eu e Henry caminhamos pelo passeio. Suzy e Owen fazem-no uns passos à nossa frente. Não saía à rua há mais de um mês. Provavelmente é por isso que fico tão surpreendida com os sons da cidade: vozes, o martelar de uma máquina vindo de uma cave, as rodas dos veículos sobre o asfalto. É um ruído invasivo, um caos que flutua no ar e que eu não consigo controlar. Tudo o que há lá fora me atemoriza. Tento proteger-me aproximando-me muito de Henry. Penso… felizmente eles estão aqui, ele está aqui, não estou sozinha… O bamboleio de Suzy com o casacão a cair mesmo por baixo das suas ancas marca o ritmo dos meus passos. Sigo-a como se estivesse enfeitiçada, não posso dizer nada por mim própria, preciso que alguém me ensine o caminho.
Passou meia hora e chegámos à rua Rivoli.
Henry não é tão alto como Roger, nem tão categoricamente masculino como Jordan Miller, nem sequer tão lânguido como a lembrança que tenho de James em convalescença. Henry é normal. Mas na sua presença eu não vejo mais ninguém.
Entramos nos Jardins das Tulherias e caminhamos por baixo das árvores que nesta época já começam a ficar amareladas. Em alguns cantos do passeio há um leito de folhas mortas, mas, geralmente, as árvores ainda têm uma cor verde-pálida. Daqui a um mês os olmos, as amoreiras e as romãzeiras ter-se-ão tornado pardos e, antes de darmos conta, estarão nus. Choverá e estará frio. O outono precipitar-se-á sobre Paris como um amante ansioso. Mas hoje ainda brilha um sol morno e crepuscular. Quando sugiro que nos sentemos num banco da Terrasse des Feuillants, Suzy encontra uma oportunidade para se escapulir.
— Bem, nós vamos andando — diz, pendurando-se intencionalmente no braço de Owen. — O Henry vai-te fazer um pouco mais de companhia, não é, querido?
De facto, Suzy e Owen estão a mais neste momento. Ficamos ali, debaixo da pálida luz de setembro, sentados um ao lado do outro, ainda sem sabermos que passaremos o resto das nossas vidas assim. Da sua vida. Do nosso banco consigo ver, através dos ramos dos olmos, o prédio de L’Orangerie.
— Deves perguntar-te porque é que eu não vim antes.
Não estou zangada. Mas estranho que o tenha feito e digo-o claramente. Vira-se para mim. Está sério.
— Pareceu-me que as coisas entre nós os dois podiam ir por um caminho que talvez não fosse o mais adequado, tendo em conta a minha situação e a tua. — Tem o cabelo castanho, liso, e uma madeixa levemente mais clara que lhe cai sobre a testa. — Afinal de contas, tu estás a atravessar um momento delicado. — De repente baixa a cabeça, não sei se num gesto de pesar ou de vergonha. Nas suas costas, no banco que há atrás do nosso, um casal beija-se despreocupadamente. — Estás vulnerável — insiste sem olhar para mim; a sua voz é agora mais grave do que o habitual. — E podias ficar confusa.
Finalmente, vira-se para mim.
— Por isso quero que o saibas por mim, antes de alguém te dizer. Bem, Rose, agora estou sozinho em Paris, mas tenho uma mulher em Londres da qual de momento não me posso divorciar. — O sol esconde-se atrás de um ramo. Ele tem um casaco verde-escuro e eu uma saia que era de Frances. — Mas o que estou a dizer…? Deves pensar que estou louco. Ou que sou um convencido. Provavelmente tu não pensaste em mim nem um segundo durante todo este tempo.
Parece envergonhado. Os seus sapatos castanhos espreitam como animais domésticos por baixo das calças. O que me está a acontecer? De onde sai esta força que empurra a minha mão para a dele? De onde vem o desejo de acariciar o seu rosto?
Não sei como é que chegámos à sua casa, à sua cama, nesta rua perto de Les Arènes de Lutèce e da gare d’Austerlitz. Antes de chegar, eu já estava muito segura daquilo que ia fazer, plenamente concentrada, preparada para sentir as suas mãos sobre os meus seios, primeiro através da blusa de Frances, depois já sem ela, e disposta a reconhecer — sim, a reconhecer mais do que a conhecer — esse corpo tantas vezes imaginado.
E enquanto as sombras da noite deslizavam silenciosas naquele quarto, o mundo inteiro fervia à minha volta. Eu ouvia ao mesmo tempo o estalido da sua língua dentro da minha boca, as badaladas de uma igreja próxima, o grito longínquo de uma criança, os gemidos sufocados, o tiquetaque do seu relógio na mesa de cabeceira… Tudo.
Nessa noite falei pelos cotovelos. Durante horas. Precisava que ele soubesse quem eu era, como tinha sido criada, que conhecesse pelos meus próprios lábios o que sentia quando vivia na casa dos Hervieu, no internato. Até lhe falei de James. Tinha de lhe entregar algo mais do que este corpo consumido pela dor. Precisava que me aceitasse com o meu pesado fardo. Acho que falei muito tempo sobre Frances. E ele falou-me da sua mulher. Sem rodeios e sem falsas justificações. Quando amanheceu, fizemos amor de novo e desta vez ainda foi melhor, porque já não éramos dois desconhecidos.