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Fragmentos.
Eu e Henry vivemos juntos quinze anos. Não é muito tempo, eu sei, mas para mim é a vida inteira.
O mais curioso é que só conservo retalhos dessa vida em comum. Alguns fragmentos perderam-se. Certamente a felicidade funciona como as drogas: anestesia-nos e, quando acordamos, já não nos conseguimos lembrar de grande coisa. Às vezes penso que tudo isto se deve à morte de Henry, que algo na minha cabeça dói tanto que me impede de recuperar muitas lembranças. E a questão é que queria tê-las todas. Absolutamente todas.
Fragmentos.
Já não vivo na casa da rua de Surène. Eu e Henry estamos sempre juntos; ele trabalha na sua tradução e ouve os novos músicos franceses de que tanto gosta, Debussy, Maurice Ravel, Erik Satie, e depois, quando acaba o trabalho, passeamos juntos pelas ruas desta Paris que não é a mesma cidade onde eu vivia. Não saímos muito à noite, só quando algum amigo nos convence para irmos tomar um copo ao Criterion ou ao Le Dôme. A casa onde vivi com Frances permanece fechada. A senhora Angellier pôs lençóis brancos em cima dos móveis e depois despedimo-nos para sempre. Nesta nova vida, não vou precisar de uma governanta.
É bonito o Sena visto da nossa janela, na esquina que dá para o Jardin des Plantes, embora esteja demasiado perto do cais de Austerlitz, sempre cheio de gruas e de barcos fumegantes. Daqui o rio parece mais real, com toda essa agitação de estivadores, comboios e mercadorias. Mais real do que esse outro Sena que se pode contemplar da ponte Royal ou da ponte Neuf, porque é aqui que chegam as mercadorias e de onde, desde sempre, se abasteceu esta cidade. Fico fascinada com esse ir e vir que, de certa forma, me recorda Le Havre. Em algumas manhãs, quando está frio e não tenho vontade de sair, pego num livro e sento-me ao pé da janela; se soa o prelúdio com o qual Owen me batizou, esse que se intitula A Rapariga dos Cabelos de Linho, lembro-me de Elsinor Park e de Deauville e de como éramos todos. Henry diz que antes eu vivia num mundo de fantasia no qual ninguém tinha de trabalhar. E é verdade.
Não gosta que eu o ajude com as suas traduções de Proust, mas muitas vezes tem de me perguntar alguma coisa porque, afinal de contas, o francês é a minha língua materna. Fiz o teste de tentar traduzir eu própria alguns parágrafos, mas esse trabalho tem segredos cujas chaves não possuo. Leio a obra do Proust em francês e depois a tradução de Henry, e às vezes não consigo decidir qual é a melhor versão. É preciso reconhecer que trabalha muito, horas a fio, e eu gosto de o ver lutar com os seus papéis manuscritos cheios de riscos e anotações.
Sarah e Charles vieram em junho. Henry e eu levámo-los a conhecer o bairro e Sarah ficou assombrada ao ver o ambiente da rua. Acho que também ficou chocada com o meu vestuário, que não tinha nada que ver com a época em que eu e Frances passávamos o dia nas compras. Digamos que era um pouco mais extravagante e bastante mais barato.
— Vejo-te muito feliz.
Reconheci que o era. Muito.
Caminhávamos entre as tendas repletas de babuchas de pele, recipientes de bronze e as bancas de curcuma, pimentão e açafrão.
— Tenho de comprar laranjas — digo a Sarah obrigando-a a parar. Um homem com o chapéu branco dos que peregrinaram em Meca pesa tomates numa balança.
Sarah estranha muito. Não entende muito bem que seja eu a fazer as compras.
— Se a Frances me visse… — digo-lhe em voz baixa. — Aprendi a cozinhar e, embora tenhamos contratado uma rapariga para limpar a casa, sempre que posso sou eu que faço as compras e a comida. Não temos cozinheira.
Algumas mulheres que esperam ser atendidas viram-se quando nos ouvem falar inglês.
— Eu não poderia viver sem criados. Como é que fazes?
— A vida é mais simples quando se está ocupada — respondo.
É a nossa vez. Compro laranjas e, quando nos afastamos da banca, Sarah dá-me o braço e pergunta-me inesperadamente:
— Diz-me, como é que ele é?
Penso nisso com cuidado. Vai ser a primeira vez que lhe conto o que sinto por Henry.
— É calmo, honesto e paciente.
Ela sorri. Mas quero dizer-lhe algo mais. O que tem Henry que não tinham os outros.
— Conheço-o por dentro, percebes? — acrescento de seguida.— Sei o que pensa, o que sente e o que espera de mim.
Sarah anui e depois exclama de repente:
— Que sorte. Que inveja. Às vezes eu não percebo o Charles…
Pela primeira vez pergunto-me se serão felizes.
Fragmentos.
A minha casa da rua de Surène continua fechada e os móveis cobertos com lençóis brancos. Às vezes tenho saudades de alguma coisa e então vou lá sozinha, sem Henry, abro a porta, apesar da dor que me provoca ressuscitar a lembrança de Frances, e levo um quadro pintado por algum daqueles seus amigos que agora nunca vejo. Outras vezes é uma peça de bronze ou até um candeeiro. Estas incursões provocam sempre em mim um efeito curioso. Sinto que desenterro pedaços do passado e que os transfiro para o presente. É como se os levasse de uma vida para a outra.
Henry está a acabar um novo livro de poemas. Quando vamos pela rua, às vezes tira do bolso do seu casaco um bloco preto com capa plastificada e anota uma frase ou uma ideia. Desses ataques repentinos de inspiração surge depois a sua poesia. Cada vez gosto mais do que escreve. É profundamente misterioso.
Owen Lawson é agora um dos nossos melhores amigos. Aconteceu uma coisa totalmente inesperada de que, sem dúvida, nem eu nem Henry poderíamos sequer suspeitar: Owen apaixonou-se por aquela rapariga que cantava no Blue Storm e esteve prestes a abandonar a sua mulher. A rapariga chama-se Bonnie e agora já não canta lá, mas anda de um lado para o outro com a sua orquestra, e Owen fica louco sempre que ela vai em digressão.
Omiti deliberadamente o assunto da outra esposa, a de Henry. Já vai sendo hora de o abordar.
É casado, sim. Sei disso desde o primeiro dia. Nos dois anos em que vivemos juntos nunca me disse que se ia divorciar, mas sei perfeitamente que o faria se pudesse. A sua mulher é irlandesa, católica, não quer o divórcio por nada do mundo. Henry acha que não é um problema religioso, mas sim social, e sabe que vai ser impossível chegar a um acordo. Não quer entrar numa guerra sem tréguas com ela, porque acha que sairiam os dois magoados. Eu não me importo muito com isso, embora em algum momento, sem o ter confessado a ninguém, tenha pensado em como seria a minha vida se ele não fosse casado. Para ser sincera, acho que não mudaria absolutamente nada.
Fragmentos.
Lady Ferguson, a mãe de Sarah, morreu. Eu e Henry fomos a Surrey para acompanhar a família no funeral. Elliott casou com aquela namorada que tinha e agora estão à espera do segundo filho.
Sarah e Charles também vão ser pais. Ao que parece, tinham estado a tentar durante muito tempo sem sucesso e, por fim, o milagre aconteceu. Sarah tem uma barriga enorme e não parece muito feliz; suponho que está triste com a morte da mãe. Também parece preocupada com o pai. Quer que Lorde Ferguson se mude para Londres e que viva com eles.
— Acho que não vai suportar ficar sozinho nesta casa — confessa-me ao regressar do cemitério, quando o nosso carro atravessa a ponte e entramos em Elsinor Park.
A casinha do rio continua ali, com os seus salgueiros e a sua pequena barca amarrada na margem. Parece que está tudo exatamente igual e, no entanto, que diferente é… Não estão cá nem James, nem Frances, nem Lady Ferguson, a mulher mais bonita que conheci. No cemitério, enquanto a cobriam com terra, toda a gente se aproximava de mim para comentar algo sobre o quão especial era Frances. E já tinham passado mais de dois anos.
Quando saímos do carro e acompanho Sarah até ao seu quarto, depois de a convencer a descansar até à hora do jantar, pede-me que fique um pouco com ela e faço-o extremamente agradada. Não sei onde é que Henry anda, suponho que com Charles e os outros homens. Sarah está esgotada e tem os pés inchados. Peço-lhe que se deite e ponho-lhe duas almofadas debaixo dos pés para que mantenha as pernas levantadas; tirou o vestido e está em combinação. Está um calor húmido.
— Estou à espera de um filho dele. Mas não sei quem é, Rose, juro-te que não sei quem é o meu marido.
A sua confissão apanha-me de surpresa.
— Porque dizes isso? — pergunto-lhe. — O Charles é um encanto.
— Não, Rose, não — insiste. — Tu não sabes nada.
Chora e eu preocupo-me ao vê-la sofrer desta forma. Então endireita-se e lança-me bruscamente.
— Tem um amante.
Custa-me admiti-lo.
— Não é possível — protesto sem parar para pensar que ela tem razão: eu não sei nada sobre a sua vida em comum. — O Charles ama-te e é muito dedicado a ti. Tenho a certeza de que estás enganada, não me parece que exista outra mulher.
Sarah continua sentada, com a barriga enorme contida dentro da combinação e as pernas levemente abertas. É uma imagem que me magoa. Apoia-se na cabeceira da cama e uma das suas mãos aperta com força a colcha.
— Eu disse «um» amante, Rose, não «uma» amante.
Custa-me reagir.
— O quê? — pergunto sem conseguir acreditar. — Estás alterada devido à morte da tua mãe, agora não vês as coisas como realmente são. Eu sei por experiência própria, querida; a dor transtorna-nos de uma forma que não conseguimos sequer imaginar.
— Rose — diz ela com o rosto marejado de lágrimas. — Eu vi-os. Na nossa própria casa, na nossa cama.
Custa-me imaginar Charles com outro homem.
— Não consigo suportá-lo, meu Deus, não sei o que fazer…
Coitada da Sarah. Querida Sarah, que estavas sempre a salvo…
— Pensaste no divórcio? — pergunto-lhe.
— Estou à espera de um filho, Rose.
— Eu sei. Espera que nasça e divorcia-te discretamente, sem escândalos.
— Não vou conseguir suportar isso.
Não posso fazer nada por ela exceto abraçá-la. Sempre tive um grande carinho por Sarah, mas nesse momento sentia, além disso, uma pena infinita. Tinha-a invejado durante toda a minha vida, tinha invejado que tivesse pais, irmãos, uma casa maravilhosa no condado de Surrey, outra na Normandia; tinha invejado a sua forma despreocupada de enfrentar a vida, a sua segurança, o seu futuro previsível… Tinha-a invejado, mesmo sem o admitir, até limites desconhecidos. E agora tinha tanta pena…
No decorrer daquela conversa com Sarah, não lhe disse uma coisa que pensava no meu íntimo: chega a um acordo com ele, faz a tua vida e ele que faça a sua. Não o fiz porque me parecia moralmente censurável, mas agora arrependo-me de ter ficado calada.
Naquela altura tinha vinte e cinco anos e era feliz porque a minha existência seguia uma progressão lógica. Havia desafios e vencia-os. Sabia o que é perder o controlo e sabia que é possível recuperá-lo. Tinha aprendido a viver.
Sim, tenho de reconhecer que me sentia feliz…
E também o sou agora, enquanto recupero esses pequenos retalhos de vida aos quais chamo fragmentos.
Fragmentos. Sim. Pedaços, mas valiosos.
Suzy regressou aos Estados Unidos. Sinto muito a sua falta.
Jordan Miller vive em Espanha, em Valência, e escreve-nos de vez em quando. «Em Valência, comer na praia um bom melão com um jarro de cerveja muito fria é do melhor que há», escreveu da última vez para nos convencer a ir visitá-lo. Está prestes a publicar um romance que descreve os anos em que viveu aqui, em Paris, e na sua carta diz-me que reconhecerei nele algumas personagens dessa época.
Owen divorciou-se. Agora vive com Bonnie numa pequena casa de Montparnasse e no outro dia o senhorio apareceu com os gendarmes para os expulsar de lá. Não tinham para onde ir, por isso ofereci-lhes a casa da rua de Surène, que continuava fechada. Uma casa deteriora-se se ninguém vive nela. Bonnie está entusiasmada, diz que nunca viveu rodeada de tanto luxo e não percebe porque é que eu prefiro viver num bairro onde ainda há carvoeiros que distribuem os pedidos em carroças. Há coisas que os americanos nunca conseguirão compreender.
Inverno, talvez finais de janeiro. Paris amanheceu coberta de neve e eu estou sozinha porque Henry teve de ir a Londres para se encontrar com um editor. Ao início da tarde agasalho-me bem e vou dar um passeio; a neve derreteu, deixando as ruas de Paris cobertas por um regueiro escorregadio e sujo. Ao passar pela esquina que se encontra na fonte Cuvier quase escorrego. Um homem veio ajudar-me, segurando-me rapidamente pelo braço, e enquanto lhe agradeço contemplo com incredulidade essa figura de mulher seminua entre leões e crocodilos. Fiquei com um frio horrível ao vê-la. Não é um bom dia para andar na rua, eu sei; mas também não é bom para ficar em casa. A verdade é que me apetece ir a algum sítio como a Ladurée, ou a qualquer um desses lugares aos quais nunca vou com Henry, mas nestas condições não me parece que consiga chegar muito longe.
O céu está totalmente coberto por um manto cinzento de nuvens que têm por dentro uma luz estranha e intensa, como de gelo. Imagino que volte a nevar a qualquer momento, por isso procuro um lugar agradável, onde me consiga sentar durante algum tempo, e encontro-o perto do coliseu, pelo que viro na esquina da rua des Arènes. É um café pequeno e confortável. Há pouca gente. O empregado aponta para uma mesa ao pé da janela, quase colada a outra na qual também há uma mulher jovem que escreve num pequeno caderno. Observo a mulher enquanto me trazem o café au lait e um delicioso croissant, com esse sabor a manteiga derretida que me lembra a minha infância na Normandia.
A jovem tem o cabelo escuro, apanhado na nuca de uma forma que parece um pouco provisória, como se fosse pôr o chapéu. É magra, de ombros não muito largos e rosto pálido. Podia chamar-se Thérèse. Está vestida de forma elegante mas discreta, e reparo que tem uns brincos minúsculos, os mais pequenos que vi na minha vida. Numa narração feita de fragmentos como esta, perguntar-se-ão, sem dúvida, porque é que dou tantos pormenores sobre esta mulher desconhecida. É algo que me intriga a mim própria. Porque é que me lembro que tinha um casaco de mohair, de cor mostarda, e por baixo uma blusa de pequenos losangos grenás e amarelos? E os seus brincos? Por alma de quem é que tenho de guardar na memória que eram pequenos? O seu caderno tinha a capa preta e era idêntico aos que Henry usava para escrever as suas notas. Seria por isso? Não, sei perfeitamente que não era por isso.
Eu e essa mulher não trocámos uma única palavra, mas estou há anos com a sua imagem a passear-se de vez em quando pela minha memória. Recorro a ela sempre que me deparo com o imprevisto.
É de noite dentro desse café. Sinto uma espécie de abandono, uma desolação vespertina que leva ao recolhimento. Um silêncio.
Começou a nevar de novo, e sem esperar revivo todos os invernos escondidos da minha vida.
Sei que tudo isso acontecia por uma simples razão: estava sozinha. Eu e Henry estávamos há anos sem nos separarmos um do outro nem um único dia. Não vou dizer que me sentisse desolada, nem triste, nem nada do género, mas sentia-me nas mãos do extraordinário. Sozinha e alerta.
Quando saí do café, a mulher ficou lá. A neve caía cada vez com mais intensidade. Cheguei à porta do prédio, que estava aberta, e subi até ao terceiro andar. No patamar, sentado num dos degraus, estava um homem: era Roger.
Eu e Henry tínhamos falado algumas vezes sobre o assunto da fidelidade e estávamos basicamente de acordo em que os nossos assuntos de casal deviam dizer apenas respeito a nós os dois, que o resto das pessoas, as suas normas e as suas proibições, não tinham nada que ver com isso. Digamos que tínhamos colocado a questão de um modo bastante permissivo, talvez condicionados pelo facto de Henry ainda estar casado com outra: podíamos admitir a existência ocasional de uma terceira pessoa, conquanto isso não implicasse mentira ou engano. Mas até esse momento tudo aquilo eram apenas teorias, porque — pelo menos a mim — não me teria passado pela cabeça a possibilidade de ter uma aventura com alguém.
Mas agora Roger estava ali, Henry tinha ido para Inglaterra e eu estava sozinha numa noite em que Paris estava coberta de neve.
Roger teve de ficar para jantar. Pensávamos, expressámo-lo verbalmente, mas sem dúvida eu não acreditava nisso de todo — e suponho que também não o desejava —, que talvez deixasse de nevar dentro de duas horas.
Quando acabámos de jantar, a neve continuava a cair oblíqua sobre as luzes de Paris. Não era razoável que fosse para o seu hotel. Disse-lhe que podia ficar a dormir.
Bebemos como antes. Rimo-nos como antes. Fizemos amor na cama de Henry e depois Roger adormeceu calmamente e eu vesti um roupão e fiquei de pé junto à janela, a olhar para a neve como se olha para o fogo: a pensar noutra coisa.
Não me consigo lembrar de que é que eu e Roger falámos exatamente. Desse encontro só me lembro das minhas sensações em relação a um Henry ausente e presente ao mesmo tempo. Não sabia o que diria se lhe contasse e até se chegaria a contar-lhe em algum momento. Reconheço que a situação me inquietava, mas aconteceu. Não foi um acidente, não me deixei levar, não foi involuntário; nem sequer me vi obrigada pelas circunstâncias. Aconteceu porque eu queria que acontecesse desde o princípio, desde que estava no café a olhar para aquela mulher que se podia chamar Thérèse, até desde antes, quando pensei que me apetecia ir à Ladurée ou a um desses sítios aos quais costumava ir sem Henry.
Acho que nesse dia Roger apareceu na minha vida porque tinha de aparecer.