45

— Que horror…

Lola deixou o livro aberto em cima do balcão. Tece sempre algum comentário quando faz uma pausa. Está sentada na banqueta e apoia as costas à parede-mestra no fim do balcão, o único espaço da loja que não tem estantes.

— Coitada da rapariga. — A sua voz grave soa sinceramente compungida. — É uma personagem da qual eu gostava muito.

Depois reage rapidamente.

— Mas o que é que estou a dizer? — Olha-me como que assustada. — A Sarah não é uma personagem, existiu mesmo. Morreu mesmo. Isto não é um romance… são memórias.

Algumas palavras são duras como pedras.

Eu anuo em silêncio.

— É terrível — acrescenta sem saber que a pedra segue uma trajetória definida.

— Sim, é uma história real — admito e, desviando a conversa para um espaço mais ambíguo, acrescento: — Mas eu pergunto-me com frequência, quando leio, se a ficção não encerra algum tipo de verdade mais… não sei como dizê-lo, mais ampla.

Lola hesita.

— Não sei se percebo bem o que quer dizer.

— No mundo real as coisas só acontecem de uma forma. Na ficção há mais margem: existe o que acontece, o que podia ter acontecido, o que suspeitamos que vai acontecer, até o que desejamos que aconteça, embora seja improvável.

Lola sorri. Tem os dentes brancos e quase perfeitos. Invejo-a por isso.

— A senhora fala como se fosse escritora.

Escapa-se-me um riso involuntário.

— Não, querida, simplesmente sou velha e junto coisas daqui e dali.

— A senhora não é nada velha, não diga isso.

— Pois eu sinto-me como se fosse, garanto.

Olho para o relógio e vejo que já é um pouco tarde. É quase hora de fechar.

— E, já agora — sugere Lola após um breve silêncio —, vai achar que é uma loucura, mas por um momento esse Jordan Miller lembrou-me Ernest Hemingway.

— Sim, talvez — admito —, mas julgo que neste caso é apenas um cliché, não acha?

Faz um gesto com a cabeça, dando a entender que não está muito convencida, mas não argumenta em sentido contrário.

— Pensou no que lhe disse sobre a noite de Natal?

Faltam só seis dias para o dia 24. Acho que lhe devo dar já uma resposta.

— Sim, precisamente queria comentar isso hoje consigo sem falta: com grande pena minha, o meu filho não pode vir a Madrid. Pelos vistos, nessa noite tem de estar de guarda.

De guarda? Numa mina? Pareceu-me uma hipótese verosímil, mas a verdade é que às vezes nem eu própria sei de onde tiro as coisas.

— Pois então não se fala mais do assunto. A senhora janta connosco.

Aceito sem me fazer rogada, primeiro porque me apetece muito, e depois porque certamente será uma oportunidade esplêndida para os meus objetivos.

— Tem pressa? — pergunta-me Lola.

— Não, de todo.

— É que o Matías não deve demorar muito a chegar e eu gostava de lho apresentar.

Mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Bem, algum problema tinha de ter neste disparatado plano que tento levar a cabo.

— O seu marido? — pergunto com essa inocência que felizmente a vida oferece aos velhos e às crianças. — Mas já nos conhecemos, não se lembra que lhe contei?

Lola parece duvidar.

— Sim… — insisto. — Vim aqui alguns sábados.

Não digo mais nada. Não lhe posso confessar que deixo livros numa estante quando ela está e que os compro de novo quando quem atende é o seu marido.

— Ah… — hesita ela — não me lembrava. Desculpe.

Penso a toda a velocidade. Matías vai chegar de um momento para o outro; também tenho de ter uma explicação preparada para ele, mas não me lembro de nada.

— Oh! — exclamo olhando para o meu relógio de pulso. — Não me lembrava. Desculpe, tenho de me ir já embora. Deixei encomendados uns medicamentos na farmácia e vou buscá-los antes de fechar.

Lola estranha ainda mais.

— Diga ao seu marido que eu sou a mulher inglesa que vem todos os sábados. Ele vai lembrar-se de mim.

Já estou a sair. Tenho o casaco na mão e o balcão levantado.

— Alice…

Custa-me muito responder por esse nome. Acho que não foi uma boa ideia dizer-lhe que me chamava assim.

— Sim?

— A questão é que — diz Lola olhando-me pensativa — eu não contei nada ao Matías sobre os nossos encontros.

Deixo cair o balcão com cuidado.

— Bom — concluo, tentando sair dali antes que tenhamos de dar todas estas explicações ao próprio Matías. — Não me parece que isso tenha muita importância. Diga-lhe a verdade, que nos tornámos amigas graças ao livro que estava na montra.

Lola sorri de repente. Fica muito bonita quando a preocupação abandona o seu rosto.

— Sim, tem razão — reconhece. — O Matías vai adorar isso.

Quando, dois quarteirões mais à frente viro a esquina para entrar na Praça de Chueca, vejo Matías a sair do metro com a sua gabardina abotoada e um cachecol à volta do pescoço. Paro ao pé da montra de uma mercearia e vejo-o passar no reflexo do vidro. Leva quatro ou cinco livros debaixo do braço. Das duas uma: ou não conseguiu distribuí-los todos ou comprou livros novos.