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Pouco tempo depois de regressar de Valência, dei-me conta de que estava grávida. Henry ficou louco de alegria. Chamava à criança «o pequeno espanhol» porque sem dúvida tínhamo-lo concebido ali, naquele pequeno quarto de hotel onde se suava no mês de março e cheirava a pólvora.
Lembro-me dessa gravidez como algo estranho, cheio de emoções contraditórias. É difícil para mim falar sobre isso com objetividade, porque a minha mente fez um esforço para se livrar da dor. Estava contente com aquela criança, mas acho que estava mais contente por Henry do que por mim.
Continuávamos a viver na rua Censier e cada vez me custava mais subir os três lanços de escadas. Às vezes pensava em propor a Henry que nos mudássemos para a casa que eu tinha partilhado com Frances, mas tinha a certeza de que ele não aceitaria de forma alguma. Era muito orgulhoso. Não sou tonta e naquela altura também não o era, apesar de estar perdidamente apaixonada. Aquele seu orgulho, essa negação constante em aceitar qualquer privilégio que tivesse que ver com a minha família honrava-o, mas muitas vezes cheguei a pensar que a sua atitude tinha mais que ver com o cliché do que com os seus sentimentos. E depois estava o meu corpo, ocupado por aquela coisa estranha que ainda não era o meu filho e que me obrigava a comportar-me de maneira insólita. Não podia correr nem beber; não devia estar triste, também não podia transportar pesos, e não era nada conveniente jogar ténis, caso eu tivesse vontade e oportunidade. Às vezes olhava para Henry e dava-me conta de que na sua vida nada tinha mudado. Na minha sim, tinha-se reduzido para metade.
Por outro lado, a relação entre Bonnie e Owen tinha finalmente fracassado e ela desapareceu. Foi uma rutura tormentosa e quase violenta. Quando ela se foi embora, Owen mudou-se outra vez para o pequeno estúdio de Montparnasse e Henry e ele começaram a sair juntos em algumas noites. Eu tinha de ficar em casa com aquela barriga enorme e os feios vestidos de grávida. Quando Henry voltava e se metia na cama, agarrava-me pela cintura e a sua mão acariciava-me o volumoso ventre no qual, pelos vistos, estava o nosso filho, mas que eu sentia como um inconveniente que ameaçava separar-nos e tornava as nossas vidas incómodas. Era isso que sentia. Às vezes um amor infinito pelo bebé e outras um enorme aborrecimento.
Perdi o meu filho em setembro, quando já estava de seis meses. Henry tinha ido a Inglaterra em trabalho e eu estava sozinha em Paris.
Tínhamos discutido de forma mais do que desagradável. Bem, ele quase não tinha discutido; simplesmente afirmou que nunca se mudaria para a casa da rua de Surène, que eu sabia de antemão que ele vivia no quartier du Jardin-des-Plantes e que sempre me disse que não se queria mudar.
— És um egoísta… É melhor ir sozinha para uma casa com o mínimo de conforto.
— Como quiseres.
— Vou-me embora já.
— Como quiseres.
— E vou fazer tudo sem ti.
— Como quiseres…
Eu desatei a chorar.
Ele abraçou-me.
E então, depois de jurarmos amor eterno um ao outro pela enésima vez, Henry foi-se embora.
Fiquei sozinha em Paris de novo, rodeada de um vazio imenso.
As dores foram aumentando durante a noite. De manhã, quando as hemorragias começaram, procurei o filho dos vizinhos para que ele chamasse Owen, mas não me deixaram esperar por ele; alguém chamou um médico e levaram-me para o hospital. Dei à luz um menino que já estava morto… Quando tudo acabou, Owen foi o único que me amparou nos seus braços.
Sei o que a criança significava para Henry, mas não me dececionou quando lhe disse que jamais poderia voltar a ter filhos.
— Eu só preciso de ti — disse com aquela sua voz, grave e harmoniosa, que às vezes eu confundia com um violoncelo ou com uma viola d’amore.
E escondeu o rosto para que eu não visse que ele também estava a chorar.
Sempre se sentiu culpado por não ter aceitado mudar de casa, eu sei. Mas a verdade é que não tivemos de esperar muito tempo para o fazer. Quando recuperei voltámos para Inglaterra.
Sou uma mulher sem filhos. Sê-lo-ei sempre. Só conheço o amor dos homens, de um homem, e isso é suficiente. O meu pai morreu enquanto eu estava no hospital. Não sei se é muito necessário que o diga, mas não lamentei nada não estar presente no seu funeral.
Pouco tempo depois, recebi uma carta dos seus advogados a informarem-me das condições do testamento. Constance também entrou em contacto comigo, e eu e Henry tivemos de viajar para Inglaterra para resolver toda aquela confusão de documentos. Ficámos na Croft House, enquanto eu resolvia os assuntos da herança e Henry terminava a tradução de André Gide que lhe tinham encomendado. Na verdade, foram uns meses fantásticos. Estávamos a recuperar da perda do nosso filho e Henry tinha finalmente abandonado os seus preconceitos no momento de partilhar as minhas coisas. Sei que ele gostava da Croft House. Era uma casa simples, sem muitas pretensões. Estava bem mobilada e tinha uma orientação deliciosa. Das janelas, amplas, quase do chão até ao teto, podia ver-se esse braço do oceano Atlântico que entra no mar do Norte e que os franceses sempre chamaram canal de la Manche. Do outro lado desse mar, em linha reta, estava a Normandia.
Lembro-me de que um dia, enquanto eu retirava as cortinas para as mandar lavar, Henry ligou o gramofone.
— Quero que ouças isto.
Eu estava em cima de um escadote.
— E não achas que me devias ajudar com as cortinas? — disse-lhe de bastante bom humor. — Achas que este é o melhor momento para ouvirmos música?
Henry punha a agulha no disco.
— Sim, querida, é só um momento.
Começou a soar o Debussy.
— Algumas pessoas — disse Henry enquanto se aproximava do escadote onde eu estava — decoram as suas casas com quadros ou móveis. Eu gosto de decorá-las com música.
Reconheci o prelúdio. Era A Rapariga dos Cabelos de Linho, toda a minha vida passada regressou de repente como uma gloriosa avalanche.
— Aqui tens o teu retrato — disse apontando para o gramofone. — A decorar a sala.
Quando uma mulher está apaixonada não há outro homem mais inteligente, mais sensível nem mais esperto do que aquele que ama. Acho que nesse momento estava prestes a esquecer-me até de que tinha sido Owen a batizar-me dessa forma.
Quando chegou o inverno, propus a Henry que regressássemos a Paris, mas já nos tínhamos habituado àquela assombrosa tranquilidade e, sem que nada fosse definitivo, decidimos passar lá esse inverno.
Owen continuava em Paris e quando nós partimos ele instalou-se na casa da rua Censier. Eu achava graça a isso. Owen acabava por viver sempre nas casas que eu deixava livres.