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— O que lhe parece? — pergunta apontando para o atril. Não sei se ela se dá conta, mas é a mesma pergunta que me costumava fazer quando acabávamos de ler um capítulo.

— Uma surpresa maravilhosa — respondo.

Acho que estou emocionada.

Lola pôs o casaco pelos ombros e fica abraçada a mim enquanto contemplamos as duas a montra. Matías aproximou-se da vitrina e olha-nos de dentro. Acho que os dois querem saber o efeito que o livro aberto tem em mim.

— Olhe, está sempre aberto no mesmo sítio.

Leio o começo de uma das duas páginas:

«— Isto é a Albufera — diz Jordan visivelmente satisfeito com o seu sentido de orientação.

Estamos à beira de um lago. Elisabeth sai do carro e abraça-se feliz à sua cintura. Eu e Henry olhamos um para o outro, Bonnie murmura alguma coisa que eu não entendo e Owen encolhe os ombros, dirige-se ao porta-bagagens e tira um odre de vinho, um saco de pele de animal que serve para beber sem copo.

— Temos de beber pelo gargalo, «a morro», como dizem os espanhóis.»

E depois, enquanto todas as emoções se amontoam, confundem e retorcem, leio o final:

«Foi ao regressar de Espanha que soube que Sarah se tinha suicidado.»

— É a última página que nós lemos juntas — diz-me Lola. — Quis que o encontrasse assim quando voltasse.

Sinto um nó de emoções no meio do peito.

— Acabou de o ler?

Lola afasta-se e abriga-se no casaco, cheia de frio. Acho que da outra vez fez esse mesmo gesto numa situação muito parecida com a de agora.

— Claro. Nem imagina o que chorei…

Matías acendeu o cigarro. Vejo o pavio amarelo do seu isqueiro a espreitar do bolso das calças. Tem uma camisa verde caqui e uma gravata de quadrados mais escuros. Continua a usar o seu casaco velho com cotoveleiras.

— Está tão contente com a sua livraria — diz Lola contemplando-o com ternura.

Vira-se para mim. Ela também parece muito feliz.

— Sabe uma coisa?

Faço um gesto incentivando-a a continuar.

— Nunca lhe estarei suficientemente grata. A senhora salvou o nosso casamento.

— Não diga isso. Não é verdade.

Lola olha para Matías através do vidro. Não para de sorrir.

— Não é por causa da livraria, sabia? Pelo menos não é só por isso.

Matías fez um gesto com a mão, indicando-nos que esperemos. Pôs o cigarro na boca para ter as mãos livres.

— A sua história… — ouço Lola dizer-me.

Seguimo-lo com o olhar, enquanto ele abre a parte de trás da montra e vira ligeiramente o atril onde o livro descansa.

— … foi muito importante para mim. Ajudou-me a dar-me conta — aponta com um gesto para Matías, que agora tem o livro na mão — do que este homem significa na minha vida. E do que seria de mim se o perdesse, como lhe aconteceu a si.

Não sei o que Matías quer fazer com o livro. Ficamos em silêncio, a seguir os seus movimentos. Uma mulher com um casaco de mouton castanho para ao nosso lado, olha para a montra, mas como só vê um homem com um livro na mão, faz um gesto de desilusão e depois segue o seu caminho.

Matías voltou a pôr o livro no atril e de seguida sai da loja.

Aproxima-se risonho e com a mão cordialmente estendida, mas não lha aperto; preciso de abraçá-lo tal como à Lola há uns minutos. Porque penso num parágrafo do qual ninguém falou? Porque ouço a minha própria voz e vejo o lugar…?

Esse lugar…

Na primavera, com o degelo, havia água por todo o lado, em pequenos buracos entre o musgo, nos riachos que atravessavam a erva, perfurando-a, e em pequenas torrentes que resvalavam pelas paredes de rocha. As flores amarelas e malvas crescem na minha memória misturadas com os arenques secos e o pão grande… E os caminhos que atravessamos para chegar à aldeia onde os camiões nos virão buscar. Henry caminha com passo rápido, vai sempre à frente de todos. Alguém canta uma canção em inglês que não me é familiar.

Quando as pessoas que amamos morrem, nós também morremos.

Sei porque me agarro a Matías e a Lola com todas as minhas forças: tento não morrer.

— Como está? — pergunta Matías, visivelmente divertido com o meu entusiasmo.

— Feliz por vos ver de novo aos dois.

Matías anui. Esse seu gesto também me parece agradavelmente familiar, tal como o belo sorriso de Lola.

— Olhe. — Aponta para o livro. — Nunca conseguimos mostrar o final, deve imaginar porquê. Mas hoje, em sua honra, vamos fazê-lo. Pelo menos durante algum tempo.

Vira-se para Lola e faz-lhe um gesto com a cabeça para que entre na loja com ele.

— Desfrute-o durante o tempo que quiser. Nós estamos à sua espera lá dentro — diz Lola.

Essas duas páginas finais…