57

— Inglesa! — grita o miliciano. — Sai daí que ainda levas um tiro!

Owen puxa-me pelo braço para que me baixe.

Protesto. A guerra acabou, toda a gente sabe. Podem fazer-nos prisioneiros, mas não nos podem matar. A guerra acabou e eu não me quero baixar mais.

Estamos no alto das Hoces, a trepar pelas rochas. Somos cinco adultos e uma criança. Alguns não aguentam com a sua alma. Ao longe ficou o castelo em ruínas de Pelegrina e ao fundo vê-se o barranco do rio Dulce. Estamos perto de um lugar próximo da estrada principal, que é onde o camião nos virá buscar. Depois viajaremos pela estrada, escondidos em caixas, até à fronteira. Só aí é que este pesadelo terá terminado.

Passa num segundo. Os choupos sem folhas serpenteiam pelo leito do rio, entre as paredes de rocha. Têm exatamente a mesma cor violácea que tinham aqueles salgueiros sem ramos que havia em Elsinor Park, ao pé da casinha do rio, na primeira vez que os vi. E, entretanto, o soldado espanhol está a gritar: «Inglesa, sai daí que ainda levas um tiro.»

O soldado grita e Henry, que marcha em frente de todos, vira-se. Já me baixei, mas mesmo assim vejo-o.

Não te vires, Henry, não te vires, por favor.

E então ouço aquele repicar infernal, uma, duas, três vezes antes de Henry cair no chão. Levanto-me aterrorizada. Owen tenta deter-me e depois levanta-se atrás de mim. O ruído regressa. O que é esse arranhão vermelho que Owen tem no ombro? Porquê essa expressão de dor?

Alguém me arrasta por um braço. Há silvas. Rasgo a roupa e a pele das costas. Uma mão áspera tapa-me a boca. Vejo a criança morta entre pequenas flores amarelas e malvas. A sua mãe morta. Um velho com boina morto… Vejo as botas de vários soldados que caminham rapidamente entre os corpos sem vida. Quero mexer-me, porque de onde estou não consigo ver Henry.

E depois. Quando os fascistas descem até ao leito do rio Dulce, deixando atrás de si um regueiro de morte, o mesmo soldado republicano que me tapou a boca, Owen e eu enterramos os mortos.

Não consegui pôr uma lápide, também não conseguia pensar com clareza, por isso escrevi num papel do seu bloco preto uns versos de Emily Dickinson e meti-os no bolso da sua camisa, ao pé do coração.

Enterrei-os juntos, pensando que a velha Emily seria uma boa companhia.

Eu e Owen regressámos a Madrid, apesar do risco que implicava. Ele queria que voltássemos o mais depressa possível para Inglaterra, mas eu não podia partir deixando Henry aqui. Imagino que não me importava com nada, podiam-me prender, reter num desses campos de concentração, retirar o passaporte… tudo menos deixar Henry sozinho neste país ao qual tinha entregado a sua vida. Quando Owen me disse que queria pedir às autoridades espanholas que nos repatriassem, neguei-me redondamente. Eu não sou inglesa, nunca fui. Também não sou francesa, nunca fui totalmente. A minha única pátria foi Henry e a cavidade do seu ombro.

Owen ficou comigo e dois anos depois morreu de uma apoplexia. A ele consegui enterrar no cemitério britânico de Carabanchel.

Às vezes, penso nesse lugar. Já não significa grande coisa para ninguém, mas eu venho sempre que posso para que Henry não esteja sozinho. Conheço esse desfiladeiro como a palma da minha mão. Conheço as rochas, o leito, as nogueiras das hortas, as macieiras silvestres que se agarram aos soalheiros para florescer, a cor dos choupos em junho e em setembro; conheço as abelhas, os estorninhos que sulcam o céu em revoadas, as cegonhas de março e as urzes cinzentas que cobrem as partes mais altas. Eu venho para que Henry não esteja sozinho, mas ele nunca está. No inverno, quando a neve e o gelo o cobrem todo, também não.

Porque há uns versos nessa cova. Todos os dias os ouvirás, querido Henry, lidos com a minha voz:

Varrer o Coração

e pôr o Amor num lugar seguro

pois não o vamos voltar a usar

até à Eternidade.

Suponho que os ouves, não é?

Eu também, como tu, todos os dias.