Capítulo 17

UM FERIMENTO VERMELHO COMO ROSA

–Todo homem mata seus verdadeiros desejos tentando mantê-los muito próximos – Myrddion exclamou ao acordar numa manhã cinzenta. Uma insistente dor martelava-lhe a cabeça, ameaçando explodi-la. Quando abriu os olhos para a penumbra encharcada de chuva, imaginou que seu cérebro estivesse vazando pelas orelhas, pelos olhos e pelo nariz. Vomitou fracamente por cima da borda do colchão.

– Mestre? Que os deuses sejam louvados; o senhor está vivo! – exclamou Finn. – Cadoc, venha depressa! Ele acordou. Está doente, mas acordado.

Por cima do aflitivo martelar nos ouvidos, Myrddion reconheceu a voz profunda e rica de Rhedyn, agora aguda de tristeza. Fechou os olhos para diminuir a dor e experimentou um halo de estrelas dançantes, saltitantes e coloridas por trás dos olhos. Tentando mover o mínimo possível a cabeça atormentada, o curandeiro vomitou de novo na vasilha que a viúva segurava próxima à boca dele.

– O que podemos fazer para ajudar? – perguntou Finn, mas sua voz parecia vir de longe.

– Você é um espírito, Finn? – Myrddion perguntou, a mente perturbada numa confusão infantil. Franziu a testa ante a fraca luz iluminando-lhe os sentidos. Então, fechou os olhos mais uma vez, e o mundo sumiu por alguns minutos.

Reagindo a uma mão insistente que sacudia seu ombro, Myrddion arrastou os olhos abertos com enorme força de vontade: lá estavam Finn e Rhedyn diante dele, tentando segurá-lo pelos ombros trêmulos.

– Estou doente – disse Myrddion desnecessariamente, como se os outros fossem crianças retardadas. Nada fazia sentido; sua carne e seu espírito pareciam deslocados, sem que ele pudesse juntar as peças soltas.

– Beba, mestre – ordenou Cadoc, o rosto pairando na escuridão à beira da visão de Myrddion. – Abra a boca e não me obrigue a tapar seu nariz.

– Você vai me envenenar, amigo? – murmurou o curandeiro. Cadoc aproveitou a chance para derramar um líquido amargo pela garganta do rapaz. Sufocando e reclamando, Myrddion tentou afastar o aprendiz, mas os braços se recusaram a obedecer ao cérebro. Sentiu que se debatia no ar como um inválido.

– Não vou envenenar o senhor; confie em mim. – Cadoc pôs a taça contra os dentes de Myrddion até que o curandeiro engolisse o resto do soporífero com uma tosse sufocada.

Uma escuridão rugindo arrastou Myrddion, e ele sentiu sua parte interior libertar-se do rígido controle que mantinha sobre mente e corpo. Então, numa onda longa e lenta, seus sentidos sumiram. Piedosamente, a cruel visão o abandonou.

Ravena ficou chocada, instigada e eletrizada com o suicídio da nobre Gallica Lydia. Pela primeira vez em muitos meses, os cidadãos mais velhos e distintos da segunda Cidade de Deus falaram dela com afeição e nostalgia pelos antigos dias da república. Os mexericos demonstravam a mudança de opinião pública. A esposa de Petrônio fora pura e nobre, portanto, não tinha suportado viver com a vergonha do estupro. Perversamente, as velhas concordaram ante seus vinhos quentes e aguados. Só uma mulher decente e que se autorrespeitasse podia se matar por vergonha. Assim, Gallica Lydia devia ser inocente.

Valentiniano soube dos murmúrios e boatos que circulavam por suas costas; um calafrio de ansiedade o percorreu, mais intensificado ainda pelo lava-mãos, ritual de Flávio Aécio, que agora proclamava em alto e bom som que sua família escrevera à atormentada mulher para lhe oferecer solidariedade, preces e apoio. Valentiniano viu a maré positiva da opinião publica virar-se contra ele e alojar-se nos ombros sempre aquiescentes de Flávio Aécio.

Após a inumação de Gallica Lydia e o devido período de luto, Petrônio Máximo voltou à corte de Valentiniano. Estava mudado, pois a carne supérflua de seu rosto, dos ombros e do ventre havia desaparecido, deixando-o mais esbelto e duro. Os cortesãos que podiam encará-lo descobriram que o olhar vazio e torturado do senador expressava eloquentemente sua perda. Com o sofrimento de Lydia sempre em mente, o desprezo saía do rosto de Petrônio quando os nobres cidadãos lhe expressavam simpatia ou lhe apertavam as mãos de modo encorajador. Até Gaudêncio sufocou suas brincadeiras e deboches para com o senador, lendo algo cru e mortal na fisionomia do viúvo. Nervoso, o jovem epicurista baixava os olhos sempre que o senador passava.

Heráclio sentia-se desconfortável na presença do agora silencioso e introvertido Petrônio, muito introspectivo para ser previsível. Pela primeira vez, o eunuco se perguntou se fora sábio envolver-se com um homem tão inexplicavelmente instável. Se Heráclio tivesse percebido que Petrônio realmente amava a esposa, não teria abordado o senador tão alegremente com sua trama de traição.

– Os romanos geralmente não ligam para as esposas – explicou ele a seu amante na noite em que Petrônio voltou à corte. – O casamento tem mais a ver com tratados, o tamanho do dote e a pureza da linhagem do que com afeição. Juro que o senador estava louco de dor; perigosamente louco.

– Meu caro, os romanos não pensam como homens e mulheres racionais – respondeu casualmente o parceiro. – Quem seria tolo o bastante para se matar por um infortúnio sexual? Os que servem ao trono em tarefas humildes sabem que se pode sobreviver à vergonha, mas a morte é definitiva. Em vez de ser tratada como tola, a Senhora Lydia é agora louvada. É irônico, querido rapaz. Antes, quando a solidariedade a teria ajudado, ela foi castigada por sua própria classe. E tudo isso aconteceu por ter sido estuprada. É melhor servir a bárbaros do que pertencer a romanos.

O cabeludo amante de Heráclio beijou o ombro do eunuco até que o grego ficou impaciente e o empurrou. O rapaz alto e forte emburrou e deixou bruscamente o quarto de Heráclio.

Será que posso controlar Petrônio?, cogitou o eunuco. O que Valentiniano fará quando for obrigado a conviver com o senador? Pelos deuses, eu gostaria de ser deixado em paz.

Enquanto isso, Valentiniano se revirava em seu leito luxuoso. Havia ordenado à esposa que o deixasse, preferindo dormir sozinho como era seu hábito. Em parte, sua necessidade de privacidade era impelida pelo medo de assassinato e de precisar ceder às necessidades dos outros; mas era também motivada pelo ardente desejo de ser invisível num mundo onde ninguém ficava sozinho. Desde suas primeiras lembranças, Valentiniano fora obrigado a compartilhar cada aspecto de sua vida privilegiada com outros. Sua adorada mãe pertencera mais ao império do que a ele, e algo daquele garotinho ainda vivia no desejo de se livrar dos laços de sua posição.

Pobre Valentiniano! Como as posses de todos os homens fracos, seu império passara a se assemelhar às suas próprias qualidades internas. Na esteira da invasão de Átila, o império estava fraco e dependente da força de acólitos espertos e ambiciosos mais capazes do que ele, deixando-o aterrorizado com o mundo que existia fora daqueles luxuosos cômodos. Agora, porém, Valentiniano tinha motivos para temer a família poderosa que pairava à beira de seu trono, especialmente seu pater familias, Aécio, a ameaça mais sinistra a emergir contra a existência livre de problemas de Valentiniano.

– Posso confiar que minha guarda me liberte de Flávio Aécio? Os pretorianos me obedeceriam? Não há chance! Muitos guardas são bárbaros, e esses rufiões adoram a velha raposa; que seus olhos sejam amaldiçoados. Então, em quem posso confiar para servir às minhas necessidades?

A voz de Valentiniano produziu um som áspero no aposento silencioso, embora sussurrasse na escuridão para que o guarda do outro lado da porta não ouvisse as palavras que compartilhava com a noite. Falar alto sobre suas ansiedades internas dava força a seus pensamentos. Descartou um depois do outro os possíveis assassinos a quem poderia confiar a tarefa de matar o maior general do Império Romano do Ocidente.

Do outro lado da porta, a guarda pessoal de Valentiniano ouviu o resmungo abafado do imperador falando consigo mesmo e cogitou se ele finalmente sucumbira à loucura que afetara tantos patrícios romanos.

Por toda a noite, Valentiniano debateu-se numa agonia de indecisão. Admitiu que temia o magister militum, cuja influência se espalhara pelo império por toda a vida adulta de Valentiniano. Ele não podia imaginar um mundo sem Aécio. Mesmo o vislumbre daquela figura compacta, de pernas curvas, com a careca no cocuruto e uma margem de cabelos grisalhos enchia Valentiniano de terror. O sorriso dele! Valentiniano tinha a certeza infantil de que Aécio usava os lábios estreitos e cruéis para apontar o negro interior do imperador a qualquer um que quisesse ouvir. O imperador encolheu-se, consciente.

O que Aécio poderia fazer? Como começaria seu ataque ao imperador? Valentiniano estava certo de que o desejo do cita apontava para o trono do Império Romano do Ocidente. Não porque Petrônio Máximo sugeria isso, e sim devido à hostilidade entre Aécio, Petrônio e ele próprio. Deuses, o senador fora longe demais ao falar abertamente de suas suspeitas sobre Aécio, jurando que o general adoraria ver o imperador nas vascas da morte.

À sua habitual maneira de tirar vantagem para si mesmo, Valentiniano estava exagerando. No primeiro dia em que Petrônio Máximo voltara para a corte, culpado e atormentado por fantasmas, Valentiniano cometera o erro de falar publicamente da morta.

– Meus pêsames, senador. Sua esposa era uma mulher bonita e cheia de dotes. Sei que o senhor deve sentir muito a falta dela.

Retrospectivamente, Valentiniano admitia que jamais deveria ter sorrido, pelo menos não tão obviamente. Petrônio Máximo o havia encarado com olhos raivosos tomados pela dor. Então o imperador soube, no plexo solar, que cometera um negligente erro tático.

– Juro que não farei nada que possa pôr em perigo o trono do Ocidente, meu imperador – dissera Petrônio. – Nem em palavra nem em feitos. Meu amor por Roma tem sido testado milhares de vezes e a... morte de minha esposa é apenas outro teste à minha lealdade. Prefiro colocar minha confiança nas Três Parcas e na deusa Fortuna, cujas rodas, lâminas e caprichos nos governam a todos.

Valentiniano não era tolo. Apenas preguiçoso, rancoroso e mimado. Ele notou a rigidez de Aécio ante a ambiguidade do pequeno discurso de Petrônio, sabendo que o general lera a mensagem certa nas palavras do senador. Enquanto o longo dia se passava em dúvida e indecisão ansiosa, Valentiniano bebia vinho em excesso para poupar-se dos horrores dos seus sonhos. Posteriormente, apoiado em Heráclio e num membro de sua guarda pessoal, cambaleou bêbado para a cama.

Instalado em segurança no quarto, o imperador trancou a porta e, com um punhal por companhia e consolo, mergulhou num profundo sono embriagado. Heráclio ouviu o trinco de ferro e madeira ser corrido; então caminhou pela colunata sorrindo suavemente enquanto continuava a cumprir suas tarefas.

Em Roma, para compensar o verão, o inverno chegara com força total, fazendo a cidade tremer em seus arredores úmidos e salpicados de lama. Myrddion levou mais de uma semana para se recuperar do acesso, aterrorizante para os auxiliares, que temeram pela não sobrevivência do mestre. Brisas súbitas e correntes de ar foram banidas de seu quarto com o último pedaço que sobrara do linho pesado de Aurelianum pregado na moldura da janela, o que Myrddion achou um desperdício ao recuperar os sentidos.

– Não se preocupe, mestre – respondeu Bridie sentada calmamente, tecendo longos fios de lã de carneiro em sua roca. – Quando deixarmos este lugar amaldiçoado, poderemos tirar o pano e fervê-lo. Vai ficar como novo.

Durante a assustadora doença de Myrddion, Cadoc e Finn tinham decidido que deviam ir embora de Roma assim que pudessem recuperar as carroças e os cavalos. Pulchria ficou visivelmente aborrecida com a notícia da partida iminente. Enterrou o rosto num pedaço de gaze colorida e irrompeu em lágrimas, afastando-se nos pés minúsculos quando via alguém do grupo de curandeiros.

Depois de se recuperar, Myrddion insistiu em ver todos os pacientes que sofriam da misteriosa doença. Os doentes foram informados da teoria de Myrddion sobre a natureza venenosa dos resíduos de chumbo em vinhos e doces. Infelizmente, a maioria deles preferiu acreditar que o curandeiro, apesar de capaz e bondoso, ficara um tanto perturbado após o acesso. Triste, o rapaz reconheceu que a maioria dos romanos não tomaria precauções. Preferiam beber vinho a água, e os habitantes da cidade adoravam os doces grudentos. Sentiu a incredulidade deles nas conversas sussurradas às suas costas. Veneno no vinho? Veneno nos doces? Ridículo! Assustador! Impossível! Só Arrius, cuja força física era vital para a família, resolveu escutar o que o curandeiro dissera. Como habilitado ferreiro e trabalhador no metal, tinha visto muitos outros homens ficarem estranhamente doentes e morrer quando trabalhavam com chumbo. Finalmente sua inteligência inata obrigou-o a tomar uma decisão. Conseguiu convencer Cláudio, seu mestre, a colocá-lo numa atividade na fundição onde trabalharia apenas com ferro.

Assim, quando Myrddion fechou a clínica e pagou a Pulchria consideravelmente mais do que lhe devia, pelos incômodos, a partida deles foi gravada em pedra. O curandeiro fizera o máximo possível para cumprir seus juramentos e suas responsabilidades. Assim, quando Cadoc ou Finn perguntaram por Isaac, os lábios de Myrddion se transformavam numa linha fina, amarga, e ele não respondeu.

– Pelo que vocês me disseram, profetizei a conquista e o saque de Roma... para breve. Vou avisar Pulchria, pois ela poderá vender seu ­prédio na Suburra e partir em segurança para o campo, apesar de não acreditar nem um pouco que vá fazê-lo. Bem, em três dias quero estar na estrada para Ravena.

– Ravena, mestre? – protestou Finn Narrador da verdade. – Aécio está na cidade, e vamos ficar ao alcance dele. Seria melhor encontrar outro porto na costa leste para chegar a Constantinopla, se o senhor quer mesmo continuar a viagem.

– Verdade, Finn, mas Ravena tem o melhor porto da costa leste. Roma enriqueceu nossos cofres. Então, tudo que precisamos fazer é pegar a Via Flamínia até chegarmos à Via Emília e virar para o norte. Uma estrada menor segue a principal rota costeira até Ravena; dali podemos tomar um navio diretamente para Constantinopla.

Cadoc franziu a testa. O plano de Myrddion parecia razoável, mas quem imaginara que o maior general romano fosse derramar a bile numa criada, como ele fizera com Bridie? Tal crueldade tinha deixado a mulher permanentemente aleijada, e ela ainda era assaltada por pesadelos pelos danos que o estupro causara à sua alma suave e feliz. Como se poderia confiar que Flávio Aécio deixasse os viajantes em paz?

Desde que se recuperara, Myrddion estava mais quieto e determinado do que antes. Aprendera a profundidade da coragem nas pessoas comuns. Contrariando todas as chances, Pulchria tinha superado sua infância e juventude medonhas e agora travava uma galante batalha contra a sujeira e a pobreza no coração da Suburra. Até mesmo o impiedoso egoísmo de Osculus e de seus bandidos podia ser contornado, quando a comunidade enfrentava uma ameaça que vinha de dentro.

Por outro lado, Myrddion aprendera que os homens e algumas mulheres com chances de melhorar as condições de vida da sociedade geralmente falhavam por orgulho pessoal, medo do fracasso ou orgulho desmedido. Isaac, por exemplo, podia observar os pacientes sofrendo e transformar-lhes a dor em abstração. O curandeiro judeu estava certo ao afirmar que os romanos não desistiriam de seus vinhos, seus sabores doces e seu amor pelo luxo, mas recusara-se até a tentar convencer os pacientes sobre os perigos do metal. Quantas vidas seriam perdidas enquanto Isaac apenas observava com fria curiosidade, tomando notas para seus estudos? O famoso e carismático curandeiro preferia esquecer a regra de ouro de Hipócrates sempre que tal esquecimento o beneficiava.

Mas a arena tinha mostrado até onde pessoas decentes se afundavam ao se acostumar com a morte como esporte. Os romanos poderiam ser salvos de si mesmos? Provavelmente. Qualquer pessoa numa posição de poder escolheria fazer isso? Pouco provável, porque banir os jogos seria engendrar o ridículo entre os cidadãos. Sim, Roma tinha ensinado a ­Myrddion algumas lições valiosas que ele levaria pelo resto da vida.

Na escuridão da noite, o curandeiro ainda ansiava por encontrar seu anônimo pai, embora a necessidade fosse mais abstrata e menos exigente emocionalmente do que no passado. Ele havia descoberto muitas coisas durante a viagem para Roma, e poucas delas tinham ocorrido com facilidade. Mas estava agora tão perto de Constantinopla que ela o chamava com uma promessa de aprendizado e autorrealização à qual não podia resistir. Como Isaac, estava ofuscado e instigado pela necessidade de saber, embora o tamanho da gens flaviana zombasse de sua busca com a probabilidade de fracasso.

Mesmo assim, Constantinopla é a fonte do conhecimento moderno e vamos conhecer lugares distantes e importantes, pensou Myrddion, tentando justificar suas necessidades. A viagem por mar nos levará à Grécia e à antiga terra de Homero.

Então, o curandeiro esmagou qualquer sentimento de futilidade e obrigou seu pequeno e leal grupo a abraçar sua busca. Sufocou qualquer sentimento residual de culpa com a promessa de enriquecimento no encerramento de sua longa viagem, pois a riqueza de Constantinopla era lendária e toda grande cidade precisava de curandeiros. Myrddion, portanto, sucumbiu à curiosidade mais uma vez, enquanto se enganava com motivos práticos a fim de completar a jornada.

Duas semanas depois, o pequeno grupo subiu em carroças carregadas e preparou-se para deixar a Suburra. Pulchria deu de presente às senhoras pequenos potes de rosmaninho, tomilho e hortelã, sabendo que essas ervas simples e comuns seriam úteis para o preparo da comida durante a viagem. Finn e Cadoc receberam maços de rabanetes, lavanda, arruda e mandrágora, e, em meio a um dilúvio de lágrimas na despedida, todos beijaram a mulher por sua consideração e generosidade.

Mas foi para o curandeiro que ela guardou o presente mais precioso. Myrddion abriu um pequeno pacote embrulhado em pano e encontrou um feio círculo de ferro que podia ser preso ao tornozelo de uma criança. Uma pequena extensão de corrente ainda estava ligada ao objeto, embora a ferrugem salpicasse agora o dispositivo.

Myrddion ergueu os olhos para o rosto molhado de Pulchria, numa interrogação.

– Sim, meu rapaz, é a minha algema de escrava. Quando fui mandada para o bordel, chorei lágrimas suficientes para lavar Roma inteira. Como eu geralmente fugia, eles me acorrentaram à minha cama. Mesmo depois que aprendi a lição, ainda era obrigada a usar a corrente, um lembrete constante de que eu não era mais dona de meu corpo. – Myrddion acariciou o metal com compaixão pela inocência perdida de Pulchria. – Superei isso, claro, assim como a ideia boba de ter qualquer controle sobre a minha vida. Mesmo quando eles cortaram a corrente, eu ainda a usava em meu coração, se entende o que digo. Talvez comece a me sentir livre agora que lhe dei a algema.

– Por que está me dando tal presente, Pulchria? Acho que precisa dele para lembrar o quanto realizou em sua vida.

– Você precisa mais disso do que eu, querido rapaz. Todos nós temos formas diferentes de escravidão, Myrddion, e você está acorrentado ao seu ofício porque é bondoso. Quando olhar minha velha algema, pense no que o impede de ser todas as coisas que pode ser... e lembre-se da velha Pulchria.

Todos se despediram dela com beijos, risos e lágrimas. Enquanto as carroças deslizavam pelas ruas apinhadas para a Via Flamínia, os pacientes de Myrddion da Suburra vieram desejar os melhores votos aos viajantes. Alguns lhes deram pães; outros lhes trouxeram buquês de flores, cogumelos, fitas ou seixos finamente polidos. Até os mais pobres tentaram encontrar algum presentinho – que a maioria mal podia pagar – por gratidão e amizade. Um enorme ex-lutador chegou mesmo a dar dez pequenas moedas de ouro com a cabeça de Janus e suas duas faces como presente dos bandos de rua da Suburra.

Myrddion teria chorado se acreditasse que lágrimas e preces podiam interceder com a Deusa para ajudar aquelas pessoas. Roma talvez estivesse mesmo condenada, mas ele levou o momento no coração para lembrar-se de não julgar pelas aparências.

Isaac preferiu não se despedir, atitude pela qual Myrddion foi grato. Ele sabia que não tinha mais utilidade para o mestre curandeiro.

A estrada para Ravena era longa, e a paisagem, um vaivém entre tigelas áridas de poeira, fazendas desalentadas agarrando-se aos terrenos próximos do rio e opulentas vilas nos sítios altos e saudáveis. Oliveiras, cabras, algumas granjas com grãos e pequenos terrenos cultivados de legumes eram obrigados a produzir, mas Myrddion se sentia nostálgico de um terra jovem e indistinta, com campos verdes e um manto dourado de árvores como uma rainha. Saudade de sua própria terra devorava todos eles enquanto a estrangeira paisagem italiana se desenrolava como um pergaminho ligeiramente manchado.

Myrddion se consolava com a ideia de que todas as coisas, boas e más, finalmente acabam. O domínio de Roma logo estaria terminado; assim, qualquer coisa era possível para aquelas terras distantes à margem do mundo, as quais ainda eram parte do império desmoronando.

Apesar de tudo, a viagem oferecia diversões. Mais uma vez, Myrddion viu o Apolo de Veii e apontou o cruel sorriso triangular do deus para Finn e Cadoc. Com olhos arregalados, os aprendizes e as criadas abarcaram as belezas de Narnia e se maravilharam ante uma ponte de pedra cruzando um rio furioso em Interamna. A cidade de Spoletium localizava-se nas montanhas; os aprendizes ficaram atônitos com a engenharia que permitia às aldeias se agarrarem a penhascos íngremes como ninhos de águia. Os aquedutos saíam das montanhas e se voltavam para Roma como enormes serpentes com múltiplas pernas de pedra.

– A Itália é um lugar maravilhoso, mesmo em decadência – murmurou Brangaine com olhos fulgurantes. Willa não falava, mas protegia a gaiola de seu passarinho contra os sacolejos da viagem e olhava animada em torno.

As maravilhas de um passado majestoso estavam em torno deles: beleza, temor reverente e simetria. Então por que Myrddion sentia como se caminhasse por entre velhos túmulos, onde ossos antigos tivessem sido colocados para embranquecer ao sol como uma estranha madeira flutuante?

Muito antes de Myrddion deixar Roma, a imaginação de ­Valentiniano torturava o imperador. Petrônio Máximo ouvia os sussurros e via as profundas sombras púrpuras sob os olhos do outro. Cogitou, então, se a sombra de Lydia esperava junto ao rio Estige para ver seus assassinos entrarem com ela no submundo do além. Em seguida, com desdém ante seus sentimentos conflitantes, o senador rejeitou a ideia. Gallica Lydia convertera-se ao cristianismo, embora não tivesse obedecido a seus dogmas contra o suicídio. Talvez ela esperasse justiça no céu.

Valentiniano não conseguia dormir nem descansar. O acicate poderoso do medo rasgava sua mente dia e noite, como se ele enfrentasse um touro enlouquecido. O imperador tinha medo de Flávio Petrônio Máximo, mas sentia-se aterrorizado com Flávio Aécio.

– Não posso continuar! – murmurava para si mesmo, fazendo um de seus guardas arquear as sobrancelhas para o colega. – Preciso fazer alguma coisa! Preciso! O que está olhando, seu cão desprezível? Abaixe os olhos e feche os ouvidos!

Os guardas enrijeceram e abaixaram com obediência imediata as cabeças. Felizmente o imperador não viu o motim nos olhos dos dois.

Enquanto isso, Aécio sorria e esperava. Podia sentir as marés do poder acumulando-se atrás dele, sabendo que estava dolorosamente próxima a hora em que seria impelido para o trono e para a aclamação da multidão. Só precisava esperar até que o imperador acabasse com Petrônio ­Máximo. Quando o senador fosse sumariamente executado, como seria, então ­Aécio poderia remover o louco no poder e instalar a filha de Valentiniano no trono sob sua regência. As moças são notoriamente frágeis, em especial no parto. Então quem sabe o que o futuro poderia trazer?

Aécio acalentava sua diversão e dava tempo ao tempo, sem saber que o orgulho desmedido estancara a pequena parte de seu cérebro que sempre lhe assegurara a sobrevivência.

As montanhas eram altas e ásperas, mas Myrddion não se surpreendeu com a grande estrada que tornava possível atravessar a escarpa. Cadoc mantinha elevado o ânimo deles, inventando cançonetas rudes sobre os romanos. Assim, mesmo Willa e Brangaine davam risadinhas animadas ao sol do inverno. A ausência de chuva tornava a viagem agradável, embora fria, mas, para almas intrépidas criadas na Grã-Bretanha, o tempo ruim era simplesmente revigorante.

Até aquele ponto tudo ia bem. As carroças serpenteavam através das montanhas com as rodas de madeira sacolejando sobre pedras soltas ­caídas das alturas. Myrddion cogitou se a jornada deles teria um fim. E o que encontrariam no final daquelas intermináveis estradas romanas?

Valentiniano estava exteriormente calmo quando convocou Flávio Aécio para uma audiência privada sobre as finanças do Império Romano do Ocidente. A mensagem sugeria que o imperador desejava também discutir a difícil e cansativa presença de Petrônio Máximo na corte de Ravena.

Aécio leu cuidadosamente o pequeno pergaminho, e então o destruiu enfiando um de seus cantos numa fenda da lareira e segurando o pedaço de couro fino pela ponta enquanto ele ardia com lentidão. As palavras pareciam inscritas em sangue seco à medida que o pergaminho se encolhia e carbonizava.

Aécio sorriu pensativo. A maré tinha virado e estava rugindo atrás dele.

Valentiniano resolvera encontrar-se com o general nos mesmos apartamentos solitários que usara pela última vez no estupro de Gallica Lydia. Totalmente hedonista e egoísta, Valentiniano esquecera os detalhes daquela noite, embora não seus desdobramentos. Mas Aécio lembrava-se perfeitamente da tragédia.

Agora Valentiniano precisa pagar ao barqueiro, pensou Aécio, enquanto seguia o vil eunuco Heráclio pela longa colunata conduzindo ao covil de Valentiniano. Levava consigo todos os registros de gastos do exército durante as recentes campanhas, mas sabia que o declarado desejo do imperador de examiná-los era apenas a desculpa conveniente para uma audiência pessoal.

– Ah. – Valentiniano suspirou, dando-lhe as boas-vindas. – Entre, general, entre. – O imperador fez um gesto de cabeça para a guarda. – Podem nos deixar agora. Tenho certeza de que estarei seguro com o magister militum, o herói da batalha dos Campos Cataláunicos. – Os guardas se curvaram e fecharam as portas com um baque macio ao deixar o aposento. – Privacidade, Aécio – murmurou o imperador enquanto fechava o trinco da porta. – Não quero que ninguém ouça o que conversarmos nesta visita.

– Como posso servi-lo, meu senhor? – Aécio curvou a cabeça brevemente. Um tanto brevemente demais.

– Por favor, aceite um pouco de vinho. O de Falerno não é mais o que era, mas o que continua sendo o que era?

– Obrigado, meu senhor, mas só uma mente clara me permitirá servir-lhe como devo.

Valentiniano sorriu como um rapaz. Embora com os olhos afundados por maus hábitos de sono, parecia quase animado.

– Eu lhe pedi para vir porque ando com graves dúvidas sobre a saúde mental de Petrônio Máximo. Desde o lamentável suicídio de sua esposa, ele... bem... ele anda estranho. – Valentiniano caminhou pelo aposento aparentemente ao acaso, como se preocupado demais com a questão para manter-se quieto. Aécio sentou-se num banco coberto com almofada e esperou de modo polido, o rosto calmo. O autocontrole que exibia irritava o imperador e lhe dava medo. – Você acha que nosso amigo seja uma ameaça para o império? – perguntou-lhe Valentiniano. – Vamos, pode falar honestamente, livremente, general. Não há espião algum aqui.

Aécio limpou a garganta enquanto Valentiniano continuava a andar pelo local. O som de suas sandálias de couro no piso desenhado era estranhamente calmante.

– Bem, meu senhor, Petrônio é um homem muito competente e um soldado bem treinado. Sempre foi governado pelo intelecto e pelo autointeresse no passado, mas o suicídio de Gallica Lydia parece tê-lo desequilibrado temporariamente. – Aécio sacudiu os ombros enquanto Valentiniano andou ao encontro dele com passos lentos e iguais.

– Você acha que ele é perigoso?

O imperador se afastou novamente, virando as costas ao general exatamente quando os afiados instintos de Aécio começaram a pô-lo de sobreaviso. Aécio se obrigou a relaxar os músculos involuntariamente tensos.

– Sim, meu senhor. Ele é muito eficaz com a espada, e pode participar de sua corte a qualquer hora que quiser. É nobre de nascimento, vem de uma linhagem de imperadores. Portanto, o povo o aceitaria no caso da morte de meu senhor Valentiniano. Acredito que Petrônio é capaz de assassinato, especialmente depois da trágica morte da esposa. Ele nada tem de valioso a perder. Infelizmente, homens desesperados são perigosos.

Valentiniano se virou e recomeçou a andar para o lado esquerdo de Aécio com passos lentos e deliberados. Os olhos estavam pensativos, quase absortos. Fique parado, idiota, pensou Aécio, quando Valentiniano se virou e começou a se afastar do general, as mãos fortemente enlaçadas atrás das costas. O imperador fez uma pausa, virou-se e atravessou o aposento de novo.

– O que devo fazer, Aécio? Aconselhe-me! Não quero passar o resto das minhas noites com medo da espada de Petrônio. – Como se pusesse seu medo em ação, Valentiniano virou-se bruscamente e começou a refazer os passos no canto do quarto.

O idiota está à beira de um ataque de nervos, pensou Aécio, e teve ímpetos de rir. Está sobressaltado, inquieto como um potro nervoso. Acabe com isso e diga o que quer dizer como um homem!

O general fingia estar pensando profundamente quando os passos se viraram para atravessar o aposento de novo. Você tem a atenção dele agora, pensou Aécio, lentamente começando a pronunciar as palavras que lavrariam a condenação de Petrônio.

– Meu senhor deve me desculpar...

Dessa vez Valentiniano não se afastou. Aproximou-se de Aécio e, enquanto o general pronunciava as palavras que condenariam Petrônio à corda do estrangulador, puxou uma faca estreita das dobras da toga púrpura e mergulhou-a profundamente na garganta de Aécio.

O general recebeu o golpe em choque. Os olhos se esbugalharam e a mão esquerda subiu para arrancar a faca do corpo. Com os dedos endurecidos nas batalhas, a mente entorpecida por uma incredulidade total, ele arrancou a lâmina e jogou-a no chão, onde ela quicou deixando um rastro de sangue.

Valentiniano abrigou-se rapidamente atrás de um divã ao ver Aécio lutando para ficar em pé. Mais por sorte do que por qualquer habilidade de sua parte, Valentiniano cortara a grande veia da garganta do oponente. Agora, liberado pela remoção da lâmina, um imenso jorro de sangue arterial brotava do ferimento enquanto o general engasgava, incrédulo.

– Por que fez isso? – murmurou Aécio, enquanto o sangue ensopava o lado esquerdo de sua imaculada túnica branca. – O que ganha com isso? – Então começou a desmoronar, os olhos ainda abertos e temivelmente inteligentes. – Você vai...

A seguir, Flávio Aécio, magister militum e o último grande general do Império Romano do Ocidente, morreu na poça inglória do próprio sangue.

Por um momento que pareceu arrastar-se penosamente, Valentiniano não conseguia acreditar como o assassinato tinha sido fácil e rápido. Nem uma gota de sangue manchara sua pessoa, em parte porque deixara a faca no ferimento e em parte porque fugira do general depois de enfiar-lhe a faca no pescoço. O anticlímax deixou-lhe os joelhos subitamente fracos, mas ele não teve tempo de refletir sobre o que ocorrera. Embora a conversa tivesse transcorrido quieta, sendo a morte de Aécio quase silenciosa, os guardas ou mesmo um membro da equipe iam querer entrar.

Valentiniano pensava rapidamente. Não mais fofocas. Que Aécio parecesse ser o traidor que era. Ele me ameaçou, e eu o matei antes que ele pudesse me assassinar. Os boatos terminariam.

Tremendo como um homem com malária, Valentiniano tentou acalmar os dedos trêmulos. Rapidamente revistou o corpo de Aécio, mas o general não se dera ao trabalho de levar uma arma. Nunca considerara Valentiniano uma ameaça.

– Merda! – exclamou o imperador cruamente. – Filho da puta desgraçado!

Com uma economia de movimentos que teria surpreendido todos os cortesãos que pensavam conhecê-lo, Valentiniano pegou uma despojada faca de um baú e colocou-a perto da mão do general. Então gritou num terror fingido, antes de sentar-se no divã e esperar que os guardas batessem à porta.

Enquanto dois guardas corpulentos quebravam o trinco e entravam correndo no quarto, o líder quase escorregou no sangue de Aécio. Um palavrão lhe veio aos lábios por ter sujado a mão. Dois pares de olhos absorveram a cena e fixaram a fisionomia pálida do imperador, que se afundava confuso num divã o mais distante possível do morto.

– Aécio tentou me matar! – gemeu. – Falhou, mas meu golpe não. – Os olhos abarcaram o corpo do general. Valentiniano não teve dificuldade em fingir pânico. Tremia verdadeiramente à beira de um colapso. – Limpem essa sujeira! – ordenou, a voz erguendo-se num lamento petulante e assustado. Recolheu a toga para junto de seu corpo e tentou resgatar alguns farrapos de dignidade. Infelizmente parecia apenas ridículo... e culpado.

Heráclio veio correndo e viu o objeto de seu ódio estendido numa fedorenta confusão de sangue fresco e intestinos esvaziados sobre o piso impecável.

– Meu Senhor Valentiniano! Saia daí! Seus guardas farão o que for preciso. Saia daí, meu senhor; vou lhe trazer vinho temperado. – Combinando ações com palavras, o eunuco puxou o braço frouxo do imperador.

Heráclio obrigou-se a não demonstrar nada senão horror e preocupação, enquanto um dos guardas se ajoelhava no sangue e cuidadosamente fechava os olhos do general. Esquecidos do sangue que lhes manchava as mãos e armaduras, os guardas levantaram a pequena forma de Flávio Aécio com gentileza e respeito, como se erguessem uma criança cansada. Valentiniano continuava a explicar a morte de Aécio numa série de queixas vagas e desconexas.

Nenhum dos homens acreditou em nada que Valentiniano dizia repetidamente. Se Aécio tivesse puxado uma faca, Valentiniano estaria morto. Assim, o imperador matara o general furtivamente. Em vez de trocarem olhares oblíquos e incrédulos, os guardas permaneceram prudentemente mudos. Levando o corpo para a colunata, eles não lançaram um olhar sequer para o imperador ou para seu eunuco.

Assim morreu Flávio Aécio, e o Império Romano do Ocidente começou a apodrecer com ele.