O fim da intimidade

PELO FACTO DE DORMIR NO QUARTO DA MINHA IRMÃ (quase cinco anos mais velha do que eu), tiveram de explicar-me muito cedo por que diabo não a levavam ao hospital (nem sequer ao médico) quando ela gania de tempos a tempos com dores de barriga. Efectivamente, devia ser muito miúda quando a minha mãe me ensinou, entre outras coisas, aquela palavra comprida e feia — «menstruação» — que separava uma simples miúda de uma «mulherzinha» (e nada podia ser mais assustador). Mas tão depressa ma fez ouvir com todas as sílabas como me ordenou que a calasse, porque dizia respeito a um assunto íntimo que não era suposto entrar em conversas, muito menos se fossem com rapazes. (E até me lembro de ter levado uma sapatada na mão uma semana mais tarde por estar a dizer ao meu irmão para que servia uma embalagem de Modess que ele descobrira no armário da casa de banho.)

À primeira vista, a palavra «intimidade» parece ter «tímido» lá dentro, mas o latim provará que tudo não passa de uma ilusão, já que o tímido é, na origem, o que tem medo, sentimento que decididamente passou à história no que toca à exposição da intimidade. O telemóvel, sempre à mão, favoreceu uma bem-vinda descontracção, mas também algum escusado descaramento: hoje fala-se de tudo na presença de desconhecidos e, estejamos onde estivermos, não temos outro remédio senão ouvir conversas «privadas», muitas das quais não temos o mais pequeno interesse em conhecer.

Eu que o diga. Preferindo o comboio ao carro por me permitir ler às vezes um romance inteirinho num dia de viagem de ida e volta ao Porto, tive há tempos o azar de regressar a Lisboa sentada ao lado de uma rapariga a quem ligaram, íamos ainda em Espinho, para dizer que o namorado fora visto com outra. Meu Deus! Além dos gritos de indignação e do choro desabrido que encheu logo os ouvidos de meia carruagem, a série ininterrupta de telefonemas aos amigos para perguntar se já sabiam da história e quem era a fulana (sem contar com uma chamada ao próprio adúltero para o insultar com léxico e sotaque nortenhos) durou até acabar a bateria do telemóvel e só sobrarem mesmo as lágrimas. Li alguma coisa? Nem uma linhazinha. O romance ali era outro, um «audiolivro» que eu daria tudo para não ter escutado…

Andava uns dias depois a cheirar pêssegos numa banca de fruta (os que não têm cheiro também não sabem a nada) quando outra rapariga, esta com o telemóvel ao peito feito medalhão e dois fios pendurados das orelhas, dizia alto e bom som, enquanto escolhia rainhas-cláudias, que morria de medo de estar grávida porque o período já lhe devia ter aparecido há onze dias. Por pouco não disse «menstruação»… Adeus, futuro.