A irmandade da solidão
UMA AMIGA CONTOU-ME QUE, por ser filha única, em pequenina brincava muitas vezes ao espelho para fingir que estava mais alguém com ela — coisa tão triste que nem consigo figurar. Eu cá fui abençoada com três irmãos e, tirando o mais velho, que faz quase dez anos de diferença de mim, brincámos dentro e fora de casa a tudo o que se possa imaginar. Entre engraxar uns sapatos do meu pai com brilhantina (ficaram de verniz, lindos!), operar lagartas das couves ao apêndice (que o PAN não nos ouça), ensaiar teatradas para poder cobrar bilhete aos adultos e comprar prédios no Rossio e na Rua Augusta à volta de uma mesa, sempre nos divertimos imenso juntos, e até as zaragatas faziam parte da nossa irmandade.
Quando se tratava de brincar aos pais e às mães, por exemplo, os meus irmãos eram a mãe e o pai de filhos diferentes, porque nunca chegavam a acordo sobre os nomes dos bebés (ela queria Lourenços e Caetanas, que eram nomes em voga, ele continuava a apostar nos Pedros e Teresinhas mais tradicionais); e eu, por via dessa multiplicação de crianças (e de ser a mais nova), era remetida para o papel de empregada da casa e chamada a fazer sopas e papinhas a toda a hora, o que provavelmente contribuiu para que detestasse, até hoje, cozinhar. Também me lembro de replicarmos a série televisiva Daktari, sobre um veterinário em África, e de o meu irmão fazer de Clarence (entortava os olhos e comia pão com sal grosso a fingir de carne crua) e eu me deslocar exactamente como a Judy (entre nós e os chimpanzés, a diferença também não é assim tão grande). Mas nem sempre éramos macacos de imitação e, por vezes, inventávamos brincadeiras bem originais: a minha irmã teve a perna engessada durante um tempo; e, já ela estava recuperada, um de nós fazia de gesso, enrolando-se-lhe na perna e deixando-se arrastar corredor fora sem cair. A minha avó dizia que era pecado brincar com coisas sérias. Mas era tão divertido.
No último Verão, numa piscina aonde costumo ir de vez em quando, estavam dois casais nórdicos ainda jovens mas já com uma catrefada de filhos (quatro por família, mostrando que onde há qualidade de vida não há problemas de natalidade). Porém, à excepção dos dois mais pequenos, ainda de fraldas e nas cadeirinhas, as outras seis criaturas vindas do frio passaram a manhã sem ir ao banho, debaixo do guarda-sol, cada uma virada para o seu aparelhinho, nunca sequer trocando um olhar ou uma palavra com os mal-empregados manos ali ao lado. Que dizer desta nova espécie de irmandade? Adeus, futuro.