Dispensar o real
A MINHA MÃE LEVOU MUITO A SÉRIO aquele slogan dos anos setenta que há quem atribua a Alexandre O’Neill — «Há sempre um Portugal desconhecido que espera por si» — e todos os domingos nos metia no carro para conhecermos o País, visitando igrejas, monumentos, jardins e museus e brindando-nos no final com um lanche em que, regra geral, provávamos a doçaria típica da região (cavacas nas Caldas, pastéis em Tentúgal), confirmando que gastronomia também é cultura. Conheci Santarém muito antes de lhe chamarem a «Capital do Gótico» e a Capela dos Ossos em Évora é capaz de ter sido o meu primeiro filme de terror.
As viagens não tinham uma preparação por aí além, mas às vezes a minha avó mostrava-nos uns livros com fotografias dos locais para abrir o apetite — e não me recordo de alguma vez ter sentido o mais pequeno receio de me aborrecer de morte com o que aí vinha. Talvez a bandeirinha das gulodices no fim da excursão fosse o segredo do êxito daquelas tardes de conhecimento. E que fosse. Duas décadas mais tarde, o «Vá para fora cá dentro» já me apanhou com o País bastante bem calcorreado e sem perceber por que motivo tantos portugueses o trocavam por uma viagem de autocarro a dez cidades europeias em quinze dias, ou uns banhos de mar morno em Punta Cana.
Lembrei-me disto recentemente quando, no regresso de uma outra viagem, pude finalmente visitar o Teatro Romano de Mérida (a minha mãe não nos levava além-fronteiras até porque, na época, precisava da autorização do meu pai). Junto à bilheteira, um pai português pedia, por favor, aos dois filhos adolescentes que desviassem os olhos do smartphone só por uns segundinhos. Contrariados, lá fizeram o jeito de atentar no progenitor que, de prospecto ilustrado na mão, explicava que poderiam ir ver apenas o teatro, mas que ele e a mãe, já que ali estavam, gostariam de visitar também o museu e o Circo Romano que, pelas fotografias, pareciam realmente a não perder. E tentou partilhar as bonitas imagens com aquelas duas alminhas na tentativa de as convencer.
O tom servil perante a descendência já me tinha intrigado (à minha mãe nunca ocorreu pedir-nos licença para entrar no Mosteiro de Alcobaça ou subir ao Cristo-Rei, levava-nos e pronto); mas o pior foi quando um dos rapazes, num tom que deixava transparecer um certo desdém por aqueles pais que ainda se entusiasmavam com umas ruínas, disse que francamente não percebia qual era o objectivo de visitar o teatro ou o circo se tinham acabado de os ver nas fotografias do folheto e havia de certeza montes de vídeos na Internet. Adeus, futuro.