Os não-livros

QUANDO COMECEI A TRABALHAR NA EDIÇÃO, entre a saída de um livro lá fora e a sua publicação em Portugal podia decorrer uma eternidade. Começávamos por recolher na Feira de Frankfurt, nos stands por onde íamos passando, catálogos em que marcávamos diligentemente os títulos que nos interessavam e, a seguir, pedíamos exemplares aos respectivos editores em cartas que levavam dez dias a chegar. Se fossem eles os detentores dos direitos (porque muitos autores tinham agente, e aí voltava tudo à estaca zero), com sorte tínhamos livro daí a duas semanas, sendo-nos reservados os direitos por dois ou três meses para o lermos com calma. No caso de decidirmos publicá-lo, fazíamos então uma oferta, iniciando negociações que implicavam troca de correspondência até haver acordo. E um mês depois lá vinha o contrato, que ficava a aboborar na tesouraria à espera de desafogo financeiro, o que normalmente só acontecia a seguir à Feira do Livro ou ao Natal.

A tradução também podia ser trabalho para vários meses, sem falar dos ensaios ou livros científicos, que quase sempre obrigavam a uma revisão técnica. E produzir o objecto livro era todo um programa: fotocomposição; revisão de provas a granel; capas feitas à mão; fotolitos que escorregavam dos dedos, ozalides que cheiravam a amoníaco, idas à gráfica para ver a impressão, e só então… o livro! Livra…

Em 1998, depois de dois anos afastada do mundo editorial, a ele regressei a tempo de ir mais uma vez à gigantesca Feira de Frankfurt e perceber que estava tudo mudado. As tecnologias tinham diminuído de forma muito positiva os timings das tarefas, mas de repente falava-se de «clientes» em vez de «editoras» e de «produto» em vez de «livro». E, quando uma agente literária de cabelo platinado me quis vender uma biografia de um físico só com a sinopse e eu lhe disse que preferia esperar pelo texto, ela deu uma estrondosa gargalhada e, falando para o lado, deve ter-me chamado idiota em russo.

Trinta e tal anos depois, chega-nos de manhã um e-mail sobre um livro que ainda está a ser escrito (mas já tem curiosamente uma lista de encómios, os mais significativos a vermelho para não perdermos tempo a ler o resto), acompanhado de uma amostra de vinte páginas e o aviso de que se planeia a edição simultânea em todo o mundo, pelo que, se virmos interesse, temos de ser rápidos a fazer uma oferta. E, à hora de almoço, ainda nem conseguimos espreitar o raio do ficheiro porque tínhamos coisas aparentemente mais urgentes para resolver, o ecrã do computador é invadido por nova mensagem, informando que um colega nosso já se chegou à frente e que, portanto, vai quase de certeza haver leilão. Para um não-livro? Pois. Adeus, futuro.