As drogas e os simples

ANTES DE HAVER SUPERMERCADOS, as drogarias desempenhavam um papel fundamental na organização doméstica, e a do meu bairro cheirava àquele quadrado de sabão cor de caramelo com que na altura se esfregava a roupa na tábua canelada do tanque. Além de vender pentes, vassouras, lixa e aguarrás, era lá que se encontravam coisas com nomes incríveis como Benzovac (que tirava nódoas), Solarine (que areava pratas), borato, bicarbonato e permanganato (para usos vários) e até um pó lilás que, misturado com água oxigenada, descolorava buços e pêlos de braços num tempo em que não se fazia ainda a depilação.

Atrás do balcão, além de um rapaz que catrapiscava a minha irmã, era possível ver uma longa fila de frascos de vidro com tampa de metal, todos devidamente etiquetados, com as várias substâncias que faziam do estabelecimento uma drogaria. Portanto, quando em meados dos anos setenta estudei, ainda que de raspão, os Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, de Garcia de Orta, o que me intrigou nesse título foram os «Simples» (pois não imaginava que assim se designassem as ervas e plantas naturais), e não as «Drogas», que já sabia o que eram (embora, com o advento do tráfico e da toxicodependência, o vocábulo tivesse baralhado alguns estudantes).

Entretanto, os supermercados vieram para ficar — e, apesar de as drogarias não terem desaparecido completamente, tornaram-se pontos de venda de colónias de lavanda ao litro, detergentes, verniz para as unhas e alguidares de plástico; e, com isso, perdeu-se também para muitos o significado mais vasto da palavra «droga». Mas há limites.

No ano passado, numa instituição do ensino superior, os alunos foram divididos em grupos com a tarefa de apresentarem um poema à turma. A um desses grupos coube Lágrima de Preta, de António Gedeão, um texto descomplicado em que a lágrima de uma negra é analisada e se conclui ser igualzinha a qualquer outra (o que, além de verdadeiro, é pedagógico em tempos de xenofobia planetária). Ora, referindo-se ao exame laboratorial propriamente dito, o poeta (que era também um conhecido professor de Físico-Químicas) escreve: «Mandei vir os ácidos, / as bases e os sais, / as drogas usadas / em casos que tais.» Pois bem: os alunos (do ensino superior, repito), mal puseram os olhos nas palavras «ácidos» e «drogas», acharam-se perfeitamente elucidados; e, na apresentação que fizeram aos colegas, a primeira coisa que avançaram foi que o autor do poema devia ser… um viciado. Pois a mim só me apetece verter «água e cloreto de sódio» todo o dia… Adeus, futuro.