Morrer em directo
PARA OS MEUS IRMÃOS NÃO VOLTAREM À CARGA com a história de terem um cão — o que numa casa alcatifada, como eram quase todas no final dos anos sessenta, estava fora de questão —, a minha mãe tentou arrumar o assunto (pelo menos, temporariamente) comprando-nos três peixinhos de aquário, dos quais, por acaso, me calhou o mais feio. Era um espécime amarelo que alguém classificou como «golden» para me consolar, mas cuja falta de graça tentei compensar com um nome suficientemente snob: Mr. Pickwick.
Não sei se a fleuma britânica lhe assentou que nem uma luva, se se tratou tão-só de uma história de resiliência digna de um artigo científico; o certo é que — ao contrário dos peixes vermelhos com pintinhas pretas dos meus irmãos (cuja beleza não impediu que se finassem duas semanas mais tarde) — Mr. Pickwick nadou por treze longos anos num aquário redondo com pedrinhas no fundo, até que, farto de descrever círculos na mais completa solidão, resolveu atirar-se de lá para fora.
A minha irmã encontrou-o ainda a estrebuchar; e, chamando-me para a assistir nas manobras de reanimação, massajou-lhe energicamente as guelras debaixo da torneira, enquanto lhe pedia por amor de Deus que não morresse — e em inglês! E a verdade é que conseguiu que o velho Pickwick vivesse mais uns meses, embora com um hematoma do lado esquerdo e a barbatana da cauda toda esfiapada.
Nenhuma de nós sabia então que Mr. Pickwick queria apenas morrer em paz (só o percebemos quando ele repetiu o salto, mas durante a noite, para que não houvesse hipótese de ressurreição). Porém, mesmo que o soubéssemos, não creio que tivéssemos conseguido escapar ao instinto de o salvar, porque socorrer quem está em sofrimento (incluindo um peixinho desengraçado) é provavelmente uma reacção espontânea em qualquer ser humano. Ou eu assim pensava, até descobrir que a morte pode ser telegénica…
Um jornalista que já teve a seu cargo a agenda de um canal televisivo e a responsabilidade de enviar equipas para o terreno contou que os automobilistas lhe ligavam muitas vezes para dar conta de acidentes ocorridos nas auto-estradas, sobretudo durante a manhã, sendo bastante gráficos nas suas descrições: uma massa informe de lata amolgada, passageiros cuspidos para a faixa contrária ou encarcerados, órgãos à mostra, sangue no asfalto… Mas, quando ele lhes perguntava se já tinham chamado uma ambulância, respondiam que não, pois, se o fizessem, os repórteres, quando lá chegassem, já nada encontrariam para filmar. Adeus, futuro.