A arte ou a vida
A CURIOSIDADE, NORMALMENTE TÃO SUBESTIMADA e criticada, é um dos grandes motores do conhecimento; e a curiosidade em relação às vidas alheias — malvista no real — é quase sempre o que move os leitores de ficção. Sou, porém, de uma geração a quem os professores, influenciados ainda pelos advogados do formalismo russo, ensinaram que aquilo que interessava na literatura nunca era a história, mas a linguagem, sendo também aconselhável (imperioso até) prescindir da biografia do escritor no estudo de uma obra.
Inicialmente, custou fingir que Melville não trabalhara numa baleeira antes de escrever Moby Dick ou que Dickens não sofrera no pêlo a mesma miséria das suas personagens; e parecia esquisito ter de ignorar o autor em títulos como Confissões (Santo Agostinho, Rousseau…) ou perante tiradas do tipo «Tintin sou eu» (Hergé) ou «Somos uma e a mesma pessoa» (Cervantes sobre o Quixote). Mas o tempo veio mostrar que a proposta mais sensata era, de facto, a da «arte pela arte», sob o risco de passarmos ao lado de obras-primas apenas por repudiarmos as simpatias políticas dos seus autores (Céline, Knut Hamsun, Pirandello ou Borges).
É, pois, assim que tenho olhado desde então para a produção artística, seja ela de que área for, razão por que me deixou algo perplexa a notícia da criação de um percurso feminista numa conhecida colecção de arte moderna. O museu em causa adquiriu recentemente um número razoável de obras de mulheres, que expõe de forma estratégica com outras que foi buscar ao armazém, juntando-lhes pinturas de homens representando elementos do sexo feminino. Explica a directora que é para chamar público.
Dada a excelência da colecção, estou quase certa de que a qualidade das obras compradas não foi sacrificada às questões de género, embora já me pareça que as peças recuperadas do armazém não deviam lá estar por qualquer pirraça machista. Mas este «chamar público» baralhou-me (embora saiba que o dinheiro dos bilhetes é sempre importante). Será que quem se interessa verdadeiramente por arte moderna dá importância decisiva ao sexo do artista e dos seus modelos? Não frequentariam as feministas este museu por expor maioritariamente obras de artistas masculinos? Haverá porventura quem só queira ver quadros de mulheres e com mulheres? Deixou de fazer sentido a arte pela arte?
Ainda que a intenção seja boa, estas opções acabam sempre por criar mal-entendidos: um professor de Belas-Artes de Valência contou-me que algumas das suas alunas foram reclamar junto da direcção da universidade porque a maioria dos pintores que ele referia nas aulas eram homens. Faltou dizer que o período que ensinava era a Idade Média. Adeus, futuro.