Os sapatos de Deus

REGRA GERAL, OUÇO O NOTICIÁRIO NO RÁDIO porque me cansei de telejornais demasiado longos e cheios de não-notícias, bem como dos erros de ortografia nos rodapés. Em minha casa, o televisor não tem, aliás, grande serventia, pois liga-se quase só para o futebol — e não é que eu aprecie muito, mas pelo menos o ruído de fundo não me incomoda enquanto leio. Além disso, quando vivemos com alguém, se não queremos que a relação estiole, temos de ceder em alguma coisa — e esta, confesso, é uma cedência que não me custa nada fazer ao Manel que, enquanto dura o desafio, dá pontapés no ar cheio de nervoso miudinho e enche o cinzeiro de beatas.

Desde pequeno que adora futebol. Tem, de resto, os pés bastante maltratados porque em criança jogava sempre descalço no terreiro da escola ou nas ruas empedradas. Não que não tivesse sapatos (não falo de chuteiras, claro, que no Portugal da sua infância eram uma miragem); mas os miúdos com quem brincava andavam quase todos descalços, pelo que era a minoria dos calçados que tinha de se adaptar. Ele conta que, quando fez a Primeira Comunhão em Vila Nova de Gaia, a mãe teve de emprestar sapatos seus a alguns desses rapazes, porque lhe custava que entrassem com os pés sujos na igreja — e a seguir lá em casa, onde preparara uma festa para celebrar a comunhão do filho mais velho.

Hoje estamos, felizmente, a milhas do pé descalço (que, apesar de já então ser proibido por lei, tardaria ainda umas décadas a desaparecer, quer pela miséria, quer pelo hábito enraizado). Também por isso, fico de cabelos em pé quando ouço alguém dizer que no tempo do doutor Salazar é que era bom (e pergunto-me se algumas dessas pessoas não terão votado agora no Chega — que bem poderia chamar-se Chega p’ra lá). Sinto-me, porém, igualmente chocada quando ouço no rádio que os Jesus Shoes — uns ténis da Nike com edição limitada ao preço absurdo de três mil euros — esgotaram minutos depois de terem sido postos à venda. Na minha ignorância, até pensei que o modelo evocasse Jorge Jesus e as suas proezas como treinador, e que os compradores fossem todos maluquinhos da bola. Só então percebi que os sapatos incluíam um crucifixo nos atacadores, água benta do rio Jordão nas solas, um versículo da Bíblia escrito num dos lados e ainda um pontinho vermelho algures, simbolizando o sangue de Cristo. Vai-se a ver permitem até caminhar sobre as águas. E eu que achava que Jesus andava descalço… Adeus, futuro.