Ler e/ou escrever

HÁ MUITOS ANOS, RECEBI UM ORIGINAL DE FICÇÃO de uma autora estreante que pedia uma opinião absolutamente sincera sobre a sua obra. Designar por «obra» o que ainda não devia passar de um rascunho fez-me logo pensar em ego inflamado. Decidi por isso que, se o parecer fosse negativo, não entraria em detalhes na resposta, sob o risco de o castelo de cartas cair com demasiado estrondo.

Comecei pela sinopse; mas, além de só prometer banalidades, tinha uma repetição escusada, uma imagem de gosto duvidoso, um parêntese que abria e não fechava e até um erro ortográfico que, mesmo com boa vontade, não podia ser gralha. O romance propriamente dito não era melhor, e recusei-o invocando a estrutura confusa, o final previsível, inconsistências várias e um certo desconhecimento da gramática.

A mesma pessoa que pedira uma opinião sincera ligou, indignada, ao fim de meia hora, declarando não me reconhecer autoridade para avaliar a sua «obra» (e insistia). Teria eu, por acaso, alguma formação específica que me habilitasse àquela função? E quem pensava eu que era para lhe vir falar de gramática, logo a ela, uma professora de Português?

Fugi à tentação de lhe escancarar os erros ortográficos ao telefone. Em vez disso, declarei que ela tinha razão, que eu não era realmente ninguém para poder pronunciar-me sobre o seu original, até porque, antes de me ter tornado editora, a única experiência profissional que tivera fora como… professora de Português. A chamada caiu.

Nesses anos remotos em que dei aulas, o ensino era ainda uma espécie de vazadouro aonde iam desaguar todos aqueles que não arranjavam emprego na sua área; havia, aliás, situações tão paradoxais que, numa das escolas onde ensinei, quando se organizou uma feira do livro e se montou um escaparate na Sala dos Professores, a maioria das minhas colegas de Português nem lá foi espreitar, muito menos comprar um livrinho que fosse. Mas, curiosamente, quando aparecia uma senhora a vender ouro a prestações no final do mês, estavam quase todas lá caídas. Talvez o Plano Nacional de Leitura devesse ter começado pelo corpo docente…

Há uns meses, recebi um romance de uma adolescente que fora incentivada pela professora de Português a procurar um editor. Mesmo tendo em conta a idade da autora, o texto era de uma pobreza confrangedora. Disse-lhe que não devia ter pressa de publicar e que, para ser escritora, teria de ler muito primeiro. Respondeu-me esta pérola: «Só que eu não gosto de ler, eu gosto é de escrever.» Estive quase a perguntar-lhe se a sua professora não andava carregadinha de ouro. Adeus, futuro.