Ligar os pontos

FIZ UMA PARTE SIGNIFICATIVA DA MINHA FORMAÇÃO sem poder escolher canetas, lápis ou cadernos, não porque na minha escola exigissem um material específico, mas porque o mercado era então tremendamente escasso. Vendiam-se uns cadernos pautados ou quadriculados com capa lisa e, para os rascunhos, umas sebentas que ficavam mesmo sebentas num instante, pois eram feitas de um papel tão mau como o que absorvia o óleo das batatas fritas lá em casa. As borrachas com cheiro a morango não passavam de um sonho, os afia-lápis eram todos de alumínio; e, às costas, em lugar das mochilas leves e coloridas de hoje, cheias de fechos e divisórias, carregávamos umas pastas duras que levavam meses a perder o cheiro a couro. Até os passatempos nas páginas juvenis dos jornais de fim-de-semana eram sensaborões: ligar os pontos para encontrar uma figura, descobrir as diferenças, pintar de acordo com o modelo, sair de um labirinto… Sem hipótese, porém, de saber o que o futuro traria — marmitas lindas para substituir aqueles termos de xadrez que davam sempre um ar de pudim à comida —, andávamos satisfeitos com o presente.

Já quanto ao passado, nem tanto, porque os livros de História apresentavam a matéria em unidades estanques, sem qualquer relação entre elas, criando equívocos que os professores também não ajudavam muito a dissipar. Ao estudarmos as civilizações antigas, por exemplo — ao longo de três anos e com três livros diferentes —, ficávamos com a ideia de que o Egipto era riscado do mapa quando a Grécia emergia, mergulhando esta na escuridão mais absoluta quando chegava o tempo áureo do Império Romano. Parecia a história daquele velho peão do interior do Brasil que, ao ouvir alguém dizer que era português, confessou que achava que Portugal já não existia, que era coisa da História. Ora assim andávamos nós — e foi preciso Elizabeth Taylor pôr uma franja espessa, ler hieróglifos e beijar ardentemente Marco António para concluirmos que, afinal, muitas coisas eram coetâneas.

Com uma educação mais aberta e novas possibilidades de pesquisar e cruzar informação, eu cá julgava que os jovens de hoje estivessem livres destas confusões. Um professor de Música do Conservatório aconselhou-me, mesmo assim, a não ter grandes ilusões. Pôs a tocar numa aula um CD com peças de Bach, debruçando-se a seguir sobre a música barroca em geral e aquele compositor em particular. Foi então que uma aluna o interpelou para lhe pedir que, por favor, parasse de gozar: como raio podiam ter acabado de ouvir uma peça tão antiga se nesse tempo nem havia gravadores? Adeus, futuro.