Ah, fadista!

EM 28 DE FEVEREIRO DE 1969, quando a terra tremeu violentamente em Lisboa pouco faltava para as quatro da manhã, a minha mãe e a minha avó acordaram sobressaltadas quando perceberam que o meu pai não se encontrava em casa. Estava, como de outras vezes, a ouvir fado na Parreirinha de Alfama, onde cantou e cozinhou anos a fio a grande Argentina Santos, que recordo ora de avental, ora de xaile, ora ao fim da noite a guardar o dinheiro num daqueles cofres de metal das Chaves do Areeiro.

Foi do meu pai que herdei a paixão pelo fado, que ouvi ao vivo logo em criança, porque os psicólogos nesse tempo não iam à televisão, a minha mãe pelava-se por uma noitada e o meu pai era, além de boémio, vagamente doido. Porém, ao contrário de mim, ele estendia o seu amor ao fado às respectivas intérpretes. Já eu era adulta, contou-me que chegara a ter uma amante fadista a meias com um marquês, que era, aliás, quem pagava a renda de um andar na Almirante Reis que os dois frequentavam, embora, claro, em horários distintos. Mas, se o meu pai sabia desde sempre da existência do marquês, o contrário não era suposto, pelo que, entrando no prédio da fadista um belo dia, ficou o meu pai atrapalhadíssimo ao ver o marquês sentado aos pés da escada, com ar de quem estava à sua espera. Sem saber o que fazer, viu o rival erguer-se, sacudir o pó das calças e caminhar na sua direcção; e, quando julgou que ia ser agredido, enxovalhado ou ameaçado, o marquês sussurrou-lhe com a nobreza dos da sua estirpe: «Meu caro, precisamos de arranjar mais um sócio: esta senhora está a sair-nos muito cara.»

O meu pai era um pantomineiro, pelo que esta história talvez não passe de uma das suas blagues. Mas nos anos cinquenta — se bem que já não morressem tuberculosas na flor da idade como acontecera à Severa — ainda havia muitas fadistas que corrigiam a miséria que ganhavam com a ajuda dos clientes…

No entanto, desde então já passaram… o quê, setenta anos? O estereótipo mudou radicalmente. As fadistas de hoje cantam pelo mundo inteiro em salas de referência ao lado de estrelas internacionais, tiram cursos superiores, fazem palestras e workshops, têm cachets a sério, recusam os convites que não lhes interessam e até se dão ao luxo de mandar àquela parte os ordinários que se metem com elas. Então, como é que tantos dicionários de língua portuguesa, incluindo dois dos mais consultados online, apresentavam em pleno século XXI «prostituta» e «meretriz» como significados de «fadista», e teve de ser justamente uma fadista literata a pôr o dedo na ferida para que se procedesse à correcção? Adeus, futuro.