CAPÍTULO QUINZE

Diálogo socrático

Se o futebol brasileiro em seu apogeu é o ideal platônico do jogo, nada mais razoável que a última vez em que o Brasil jogou seu melhor futebol tenha sido sob o comando de um homem com o nome do mestre de Platão.

Sócrates foi capitão da seleção na Copa de 1982. Com expressão pensativa, passada aristocrática, barba preta encaracolada, cabelos despenteados e olhos escuros, ele parecia mesmo mais um filósofo do que um atleta. Seu estilo de jogo também sugeria uma autoridade moral. Mantinha-se sempre frio, raramente dando mostras da exuberância “brasileira”, nem quando marcava um gol. Não era um caso de velocidade ou de força (seus pés, tamanho 41, eram pequenos para sua altura, 1,91m), mas de visão, passes inteligentes e truques. Sua marca registrada era o calcanhar. Pelé disse que Sócrates jogava melhor para trás do que muitos jogadores jogavam para a frente.

Ao lado dele em 1982 estavam Zico e Falcão, um meio-campo dos mais fortes que já vestiu a camisa canarinho. O time foi derrotado pela Itália por 3x2, ou mais precisamente por Paolo Rossi, que marcou todos os gols italianos. Apesar de não ter ganho o título, a turma de 82 é lembrada com mais carinho do que qualquer outra desde 1970 – muito mais, sem dúvida, do que os campeões de 1994, quando a vitória teve um gostinho amargo pelo fato de o time ter jogado defensivamente e vencido a final nos pênaltis. Em 1982, o Brasil era Brasiiiiiiiil; parecia jogar por puro divertimento.

Lembro de Sócrates nas copas de 1982 e 1986 mais vividamente do que qualquer outro jogador brasileiro. Quando vim para o Brasil, aprendi logo que também era igualmente excepcional por suas atividades extracampo. Passou a ser o jogador que eu mais queria conhecer. Sócrates iniciou sua carreira no futebol quando estudava medicina. Depois de pendurar as chuteiras, retomou os estudos, formou-se e abriu uma clínica multidisciplinar de medicina esportiva em sua cidade natal, Ribeirão Preto. Seu apelido é “Doutor”.

Porém, o mais importante, Sócrates era um militante. Conseguiu politizar o futebol de um modo que o Brasil jamais havia visto. Jogadores geralmente são das classes trabalhadoras, pobres e sem acesso à educação. O Doutor foi um garoto de classe média brilhante, que incutiu seu idealismo esquerdista em seus colegas e acabou assumindo um papel no desdobramento dos destinos políticos de seu país.

Quando quis conversar com um “expert” sobre a situação do futebol brasileiro, raciocinei que Sócrates seria um excelente oráculo. Provavelmente não existe ninguém mais qualificado. Tem trabalhado como médico e técnico profissional, estudou administração esportiva e escreve colunas de jornal. E o mais importante, seu pés (e calcanhares) heroicos foram um dos últimos praticantes do “beautiful game”. Talvez possa até revelar o que foi feito dele.

Sócrates é conhecido por sua independência. Fala o que quer quando quer. Nunca teve um empresário. Se você quiser falar com ele é só ligar para seu celular, que atende pessoalmente. Combinamos um almoço num bar de São Paulo.

Quando chego, o bar está quase vazio. Sócrates está sentado sozinho, usando um par de óculos espelhados e com um cigarro numa das mãos. Tem um chope com colarinho na mesa à sua frente. Dá mais impressão de um roqueiro envelhecido do que de um antigo astro do esporte. Tem o cabelo preto cortado curto. Sua barba, apesar de aparada, permanece resolutamente desgrenhada e já meio grisalha.

Eu me apresento. Sócrates tem uma voz grave de fumante e o sotaque do interior paulista. Como um bom brasileiro, me dá as boas-vindas como se eu fosse um velho amigo. Uma vez tendo começado a falar, não para mais.

Então, Doutor, pergunto, qual é o seu diagnóstico?

No início do século XX a maioria dos brasileiros vivia no campo. A industrialização fez com que milhões de trabalhadores rurais migrassem para os centros urbanos. As cidades foram se tornando cada vez mais populosas, como São Paulo, hoje uma metrópole de dezoito milhões de habitantes. Da nossa mesa do lado de fora do bar dá para ter uma boa ideia do calor, da poluição e da claustrofobia de São Paulo. A década em que a população rural foi superada pela primeira vez pela urbana foi a de 1960 – a mesma do apogeu do futebol.

O futebol mudou, começa Sócrates, porque o Brasil mudou. “O país se tornou basicamente um país urbano”, diz. “Antigamente, não tinha muito limite – você podia jogar bola na rua ou em qualquer lugar. Com as mudanças sociais e estruturais, é muito mais difícil ter espaços para isso atualmente. Então qualquer relação que você tenha com o esporte hoje tem algum tipo de normatização.”

Concordo com o que ouço. O clichê sobre o Brasil, de que seu futebol alegre vem das peladas de criança jogadas com total espontaneidade, é falso. Os pivetes descalços batendo bola nas praias do Rio não estão fazendo isso com liberdade – são membros de escolinhas, que funcionam ao longo da costa. Em São Paulo, as crianças não aprendem a jogar em terrenos baldios – porque não há mais terrenos baldios. Aprendem no futebol-soçaite ou nas escolinhas de futsal. A liberdade que permitiu aos brasileiros reinventarem o jogo décadas atrás já se foi há muito.

Mas a nova formalidade se desenvolveu informalmente. As escolinhas costumam ser dirigidas por entusiastas, mais do que por treinadores experientes ou professores de educação física. “Geralmente são pessoas sem qualificação. Então criam modelos que são limitados a suas próprias capacidades”, argumenta Sócrates. “O professor não pode saber menos que o aluno. Se ele sabe pouco, o aluno tem que saber menos que ele. Agora, é óbvio que a criatividade faz parte da nossa cultura. Isso não falta hoje em dia – mas estamos limitando muito essa possibilidade. Nosso jogo é muito burocrático, e isso acontece basicamente porque há uma série de falhas na formação dos jogadores.”

Sócrates acredita que a solução está na educação – dos professores. As crianças precisam ter liberdade para criar e se divertir com a bola, mais do que aprender sistemas táticos desde os dois anos de idade. A CBF não tem um projeto de longo prazo, coordenado nacionalmente, para as divisões de base. “Hoje em dia se você quiser ser treinador de futebol você pode ser. Não tem nenhum pré-requisito para isso. Eu acho que tem que ter. É preciso formar professores. Você tem que ter cursos para isso, em pedagogia, nos aspectos técnicos, táticos, preparação física, nutrição, as coisas básicas.”

A dona do bar, uma mulher de trinta e muitos anos, aparece e Sócrates nos apresenta. Ela o chama de Magrão, um apelido afetuoso para quem é alto e magro. Sócrates já não é tão magro. Também não chega a ser gordo. Mas bebe e fuma como um bon vivant, e está ganhando o físico necessário para acompanhar o ritmo. Sua cara inchou e a barriga segue o mesmo caminho. Depois do terceiro chope, paro de contar.

Sócrates diz que outro problema estrutural é que o futebol brasileiro ficou mais branco. Os negros, argumenta, têm maior aptidão natural.

Mas você não é branco?, retruco imediatamente.

“Na verdade tem um negro dentro de mim”, provoca. Sócrates ri com os dentes fechados. É bem-humorado e sensível ao longo de toda a entrevista. Faz graça de si mesmo sem nunca perder a seriedade.

Até os anos 1970, diz, as crianças de classe média não costumavam se tornar jogadores profissionais. Os salários eram muito baixos e o ambiente social era marginal. Então começou a entrar dinheiro de verdade, e os brancos de classe média que dirigiam os clubes começaram a ter interesse em colocar seus familiares e amigos para jogar. “Criou-se uma barreira ao acesso das populações mais carentes, que em nosso país são fundamentalmente de negros, e começou a cair a qualidade do futebol brasileiro.”

“Eu sou branco mas tinha um nível de futebol para jogar. Isso nem sempre é verdade em nosso país. Privilégios podem existir em todos os níveis. Se tivermos uma relação pessoal ou política ou familiar, poderemos privilegiar essas pessoas em detrimento talvez da capacitação.”

Isso permite que falemos sobre o que aconteceu com a seleção. Pergunto por que, na opinião dele, o Brasil está jogando tão mal, quando – mesmo que no geral a qualidade já não seja a mesma que antes – ainda tem a maior concentração de jogadores talentosos do mundo.

A resposta de Sócrates é clara. “Os jogadores chegam à seleção para serem negociados para a Europa. De alguma forma isso os coloca na vitrine. Existe um pré-requisito: boa parte dos times europeus quer jogadores que já estiveram na seleção. Então eles estão sendo usados em um balcão de negócios muito mais do que por sua qualificação profissional.”

Alguns números: em seus dois anos como treinador do Brasil, Wanderley Luxemburgo convocou 91 jogadores. Emerson Leão, em seis meses, convocou 62. Luiz Felipe Scolari, que começou defendendo uma continuidade, chamou 42 nos seus primeiros três meses. É admissível que qualquer treinador brasileiro se depara com um excesso de talentos, e há mais partidas internacionais do que antigamente – mas ainda assim? No total, 62 brasileiros jogaram por seu país nos 18 jogos eliminatórios para a Copa do Mundo. A Argentina, que venceu o grupo, usou metade desse total.

“Cada jogo tem um time absurdamente diferente. A base muda toda hora, o estilo de jogo muda toda hora, não existe um planejamento tático, claro que não vai dar certo. Agora, se você quisesse montar um time, você poderia ganhar a Copa do Mundo. É só associar as características. Claro que é possível fazer um belo time. Só que eles não querem.”

Eles. Eles. O inimigo interno.

Os brasileiros que jogam por clubes europeus muitas vezes têm um desempenho ruim pela seleção. São invariavelmente criticados por demonstrar mais paixão por seus clubes do que pelo seu país. São xingados de arrogantes e ambiciosos; ridicularizados como mercenários. Isso não me surpreende muito. Os brasileiros que jogam no exterior são conhecidos como “estrangeiros” quando vêm jogar em casa. Se você é chamado de “estrangeiro” por um compatriota, então como pode esperar que se forme um conjunto baseado no orgulho nacionalista?

Sócrates acredita que os “estrangeiros” jogam mal por uma razão mais simples. Eles sabem que o time não é escalado apenas por mérito. “Não tem nada mais gostoso do que jogar com um cara da mesma cultura que você. Teoricamente esses caras deveriam vir para a seleção com prazer. Não têm esse prazer porque sentem mais do que ninguém que não é o talento individual que é valorizado. Então um cara do nível do Roberto Carlos e do Rivaldo chega aqui para jogar com um cara que tem um nível dez vezes inferior?”

Sócrates diz que isso não é um fenômeno novo. Vem acontecendo há mais de uma década. Como, pergunto então, o Brasil conseguiu chegar a duas finais de Copa neste período?

“Claro que existem períodos em que pessoas mais sérias lá dentro integram esse processo. O período entre as copas é uma época meio subvalorizada. Todo meio de futebol hoje em dia vive em torno de vender jogador. É uma cultura que se instalou e criou condições para que o nosso futebol chegasse lá embaixo. Se você não tem uma política de longo prazo, uma estratégia de planejamento, claro que a qualidade vai cair muito.”

Volto à minha pergunta sobre as razões por que ele jogava tão bem, mesmo não sendo negro.

“Tive que desenvolver isso por necessidade. Eu sou um cara absolutamente a favor da criatividade. Não consigo fazer nada, não consigo ficar numa consultoria porque não tenho paciência, tenho que ir atrás de novidades. Isso faz parte de minha personalidade. E também joguei futebol e estudei medicina. Tinha que ser mais inventivo. Eu não tinha estrutura física para jogar futebol. Minha única qualidade plausível é a técnica. Então tive que desenvolver uma técnica incomparável. Caso contrário, não poderia conviver nesse meio. Jamais poderia imaginar que chegaria a uma seleção brasileira. Se não tivesse estudado medicina eu seria um atleta mais limitado do que fui. Com certeza.”

“Claro que eram outros tempos. As nossas referências eram diferentes. Joguei contra Ademir da Guia, Pelé, Rivelino, Gérson – minha geração teve esse espelho que a de hoje não tem. Eram excepcionais jogadores. Você estava sempre correndo atrás deles, tentando chegar perto deles. Isso já te empurra lá para cima.”

A entrevista com Sócrates é uma experiência reanimadora. No Brasil, os jogadores de futebol costumam ser terrivelmente ignorantes e desfavorecidos. Sócrates, mesmo sendo atípico, é ainda assim clara e irresistivelmente brasileiro. Sua postura tranquila, sua informalidade empática, seu senso de humor e a musicalidade de seu português são traços nacionais, bem como um desejo instintivo de expor convicções fortes a respeito do futebol. Ele apenas aborda o assunto de um modo mais intelectual.

Tranquilamente, Sócrates internalizou seu papel de filósofo do futebol. Diz que acredita que também exista uma outra razão para que o Brasil não jogue tão bem como antes.

“Um jogador de futebol em 1970 corria em média quatro quilômetros por partida. Hoje este número quase triplicou. Então os espaços relativamente são menores. Isto cria, claro, muito mais contato físico, você tem muito mais dificuldade para criação, e o jogo se tornou mais feio. Hoje o cara que não joga com um toque só não tem chances de disputar num nível tão alto.”

Digo que isso soa razoável.

“Então o esporte tem que mudar. A evolução física, a evolução da ciência esportiva foram acompanhadas por mudanças em todos os esportes. O futebol não. Não mudou nada.”

Para recriar as condições para o futebol-arte, ele quer reduzir o número de jogadores de cada lado.

Para quantos?, pergunto.

“Nove”, responde. “Nove de cada lado. A teoria é essa. Para melhorar a qualidade, ter menos trauma, menos lesões, e os jogos ficarem mais técnicos. Você tem que compensar a evolução física dos atletas.”

Sua conversa não é só papo de botequim. Sócrates está prestes a começar uma tese de mestrado na Escola de Medicina de São Paulo, defendendo que o futebol deveria se tornar um esporte com nove para cada lado.

Parece-me que por trás do racionalismo seco da análise de Sócrates existe a compulsão constante dos brasileiros para transgredir criativamente as leis e os regulamentos. O Brasil já inventou o um-para-cada-lado (as rainhas das embaixadinhas), dois-para-cada-lado (o futevôlei), cinco-para-cada-lado (futsal) e sete-para-cada-lado (futebol-soçaite). Sócrates está preenchendo as lacunas.

Talvez seja minha pergunta mais juvenil. E com boa razão. Desde 1982, quando eu tinha 12 anos, sempre quis perguntar a Sócrates se seu nome influenciou seu caráter. Digo a ele que acho difícil dissociar o nome de seu estilo – tanto dentro quanto fora do campo.

Descubro que a pergunta faz mais sentido do que imaginei.

“O nome em si não faz ninguém”, responde. “Mas é óbvio que, pelo nome que escolheu para mim, dá para imaginar quem é o meu pai. Ele vivia dentro da biblioteca. Então eu vivia com ele lá. Lia pra cacete. E é essa experiência que ele passou, em particular a mim, que sou o mais velho dos irmãos.”

Sócrates conta que tem irmãos chamados Sófocles e Sóstenes, que também são um reflexo das leituras de seu pai. (Sócrates tem ainda outro irmão, Raí, que jogou no São Paulo, no Paris St Germain e na seleção brasileira na Copa de 1994.)

“Meu pai não teve condições de estudar. A família dele era pobre, foi pra luta cedo, sempre foi um cara autodidata. Esse exemplo que eu tenho tem muito a ver com quem eu sou.”

Você leu Platão?, pergunto.

“Claro. Leio filósofos pra cacete. Gosto do Platão, gosto do Maquiavel, muito do Hobbes. Depende da época, da sua cabeça, aonde você está indo … eu leio muito, não tudo, mas gosto muito de filosofia também. Aliás, não formalmente, é mais curiosidade, leio, pesquiso, consulto…”

Em 1964, ano do golpe militar, Sócrates tinha dez anos. Um incidente acontecido dentro de casa despertou seu interesse pela política. No dia em que os militares tomaram o poder, seu pai pegou um livro na estante sobre os bolcheviques e queimou. “Eu nem sabia exatamente o que era, não tinha conhecimento do que teria sido a Revolução Russa, mas me chamou a atenção o ato. Me assustou.”

Isso plantou a semente das ideias esquerdistas de Sócrates. “Sou filho de um processo ditatorial”, diz. “Quando entrei na universidade, com 16 anos, comecei a viver isso: repressão dentro da universidade, colegas que tinham que se esconder, que tinham que fugir.” Seus preceitos éticos guiaram sua carreira no futebol (Platão teria ficado orgulhoso). Duas décadas antes que Aldo Rebelo e o Congresso brasileiro tentassem mudar o futebol, Sócrates fez isso do lado de dentro. Naquilo que mais parece um capítulo oculto da história da Grécia Antiga, Sócrates fundou um movimento de jogadores chamado “Democracia Corinthiana”.

Sócrates iniciou sua carreira no Botafogo de Ribeirão Preto. Em 1978 transferiu-se para o Corinthians, em São Paulo. Depois de alguns anos começou a se cansar da maneira como ele e seus companheiros eram tratados pelos dirigentes. Os jogadores nunca eram consultados nas decisões. Era um clima autoritário paralelo ao da situação política no país.

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Sócrates, em 1982, incentiva os brasileiros a exercerem seu direito de voto

Então, Sócrates – junto com seu companheiro Wladimir – se rebelou contra a hierarquia do clube. Eles organizaram seus colegas futebolistas num grupo socialista utópico, a Democracia Corinthiana, que passou a controlar todas as decisões que os afetassem. “Tudo era votado”, diz Sócrates. “E eram coisas simples, tipo ‘a que horas vamos almoçar’. Colocávamos umas três opções, e votávamos. A maioria levava. Não eram só problemas. Na verdade os problemas praticamente não existiam. Só existe problema quando tem confronto de opinião. Ali não tinha.”

Mas não eram só “coisas simples”. A Democracia Corinthiana votou para que fosse impresso “Dia 15 vote” nas costas de suas camisas na corrida eleitoral para as eleições de 15 de novembro de 1982. As eleições – para deputados, senadores, governadores e prefeitos – eram um dos primeiros passos para o fim da ditadura.

Os camaradas de Sócrates também desafiaram a concentração, que é a parte da cultura futebolística brasileira que talvez seja a maior afronta à liberdade dos jogadores. A palavra tem o significado de “concentração” no sentido militar, de “manter a tropa junta”. É comum para os clubes brasileiros insistirem em que antes de cada partida – mesmo a menos importante – o time tenha que dormir num hotel, muitas vezes por vários dias seguidos. O raciocínio por trás disso é que os jogadores não são responsáveis o suficiente para tomar conta de si mesmos, devendo ser supervisionados. “O jogador não possui maturidade suficiente para se comportar bem antes dos jogos sem que ninguém o esteja vigiando”, argumenta o treinador do Brasil, Luiz Felipe Scolari. “Está provado que sexo antes das partidas não faz mal. Mas, para nossos boleiros, não há meio-termo. Dentro de casa eles agem de maneira mais normal. Fora do lar, com outra parceira sexual, querem mostrar que são os mais potentes do mundo, os mais românticos. Aí embalam e o desgaste é maior a ponto de atrapalhar o desempenho em campo.” A concentração pode ser paternalista, diz ele, mas é para o bem dos próprios jogadores.

“Foram necessários seis meses para mudar as regras da concentração”, explica Sócrates. “Havia um certo receio nas pessoas – tem até hoje – de que sem concentração o jogador fica exposto. Ideologicamente isso existe para baixar mais ainda a condição da pessoa, do ser humano. Você não vale nada, você é um irresponsável, e a pessoa tem que ficar presa… É uma burrice, porque na verdade quanto melhor ele estiver pessoalmente mais ele vai render, claro. A frase que sempre dizia na época era: – existe lugar melhor para se sentir bem do que em sua própria casa?”

Ele sorri com sinceridade quando recorda as batalhas que venceu. Em 1982, o Corinthians ganhou o campeonato paulista com a “Democracia” impressa nas camisas.

“Foi a coisa mais linda que já vivi e tenho certeza de que foi também para 95% das pessoas que estavam lá.”

Pelo fato de o movimento de Sócrates ter acontecido no futebol – no maior clube de São Paulo –, foi uma coisa muito pública, e transbordou para a arena política nacional. A Democracia Corinthiana tornou-se um ponto de referência para o debate enfurecido sobre a democratização do regime militar. Sócrates virou uma figura importante na campanha para as eleições presidenciais.

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Corinthians: futebol político

Em 1984, aos 34 anos, ele discursou num comício para 1,5 milhão de pessoas. Fez uma promessa à multidão: caso o Congresso aprovasse a emenda constitucional para o restabelecimento das eleições diretas para presidente, que seria votada alguns dias depois, ele desistiria de uma oferta que recebera para jogar na Itália.

A emenda não foi aprovada, Sócrates foi para a Fiorentina, e a era da Democracia Corinthiana estava encerrada. Mas o crescimento do movimento pela abertura política era impossível de ser detido. Um ano depois, um civil, José Sarney, assumiu a presidência, iniciando a transição para as eleições livres para presidente em 1989.

Nunca mais houve nada parecido com a Democracia Corinthiana. Pergunto qual teria sido o seu legado: “Nas relações de trabalho sem dúvida tivemos mudanças muito profundas. Na relação empregado-empregador a valorização dos direitos dos atletas hoje é muito maior do que era antes. Nisso a Democracia Corinthiana foi fundamental.”

Os heróis de Sócrates são Che Guevara e John Lennon. “Pessoas de quem eu colocaria um retrato na parede de casa”, diz. Suas crenças políticas são bem conhecidas nos lugares mais inesperados.

Durante muitos anos ele escreveu uma coluna para um jornal árabe. Em 1996, foi convidado para uma viagem ao Egito e à Líbia. Quando chegou em Trípoli foi informado de que o coronel Muamar al-Kadafi queria encontrá-lo. “Eu falei: ‘Legal!’”, relembra Sócrates. “Foi uma saga fantástica.

“Perguntei a que horas iríamos encontrá-lo. Disseram: ‘Olhe, a hora não sabemos, mas a gente vai sair daqui às cinco da manhã.’

“Levantei. O país estava sob bloqueio, tinha que chegar por terra, não podia chegar por ar, não tinha avião. Aí me levaram para o aeroporto e me embarcaram no avião da saúde deles, um dos poucos que ainda voavam. Fomos para outra cidade que não lembro o nome, em torno da qual o governo estava sediado. Chegamos lá, ficamos num hotel, e fiquei aguardando o dia todo. Não tinha hora. Às seis horas da tarde: ‘Tá na hora, vambora!’

“A gente estava numas Toyotas, daquelas de andar no campo. O cara rodou rodou, escureceu, e aí ele entrou numa picada, tinha uma barreira, liberou, entrou num descampado. Foi deserto já ou quase deserto. Apagaram todas as luzes, mais 20 minutos no escuro. E chegamos na tenda do Kadafi.” O líder líbio e o jogador brasileiro passaram então uma hora conversando. Kadafi fez até uma sugestão.

“Ele me propôs sair candidato a presidente do Brasil, falou que queria me lançar na campanha porque já tinha conhecimento de como eu pensava.”

Sócrates sorri para mim e diz que recusou a oferta.

O Doutor jamais escondeu que fumava e bebia. Pergunto se isso prejudicou sua saúde como atleta, ou se ele acha que isso o torna um modelo negativo.

“Eu sou isso aqui”, responde. “Fumo desde os 13 anos de idade. A única coisa, filosoficamente, para mim é – ‘Por que vou vender o que não sou?’ Vou morrer de câncer do pulmão ou enfisema pulmonar. Não consigo parar de fumar.”

Já tentou largar o cigarro?, pergunto.

Ele dá uma risada. “Cinquenta mil vezes. Mas não consigo. Aliás, hoje tentei parar, mas fumei meu primeiro cigarro às 11 da manhã. Eu sou isso, entendeu? Não me interessa muito o que as pessoas pensam. Aliás, a coisa mais importante que a gente pode ter na vida, na sociedade onde vive, é a independência. Eu não ligo para o que as pessoas acham ou não acham de mim. Podem até achar que sou viado, e daí? Vai mudar alguma coisa? Sou isso.”

Quando Pelé, para desilusão geral, fez as pazes com Ricardo Teixeira, o movimento pela democratização do futebol perdeu sua figura de proa. Não haveria ninguém bom para assumir o papel? Sócrates responde ao chamado, se declarando o “anticandidato” à Confederação Brasileira de Futebol.

“Neste momento”, diz, “ficou claro que a ideia [de Pelé e Ricardo Teixeira] era impedir que os ventos soprassem nas velas da comissão parlamentar. Estavam dizendo: ‘Vamos abafar isso para que as coisas continuem do mesmo jeito.’ Não. Precisamos discutir tudo.”

Pergunto, então, se a sua candidatura é séria ou retórica.

“É uma bandeira que resolvi levantar para tentar mobilizar a opinião pública. O futebol brasileiro nunca foi discutido. Nem intrinsecamente tem qualquer tipo de controle sobre o comando, e isso é uma coisa que se deve sempre discutir. É uma entidade nacional. O futebol é nossa maior identidade, é o nosso maior embaixador, e pô! o Estado não tem controle nenhum. Fazem, desfazem e ninguém diz nada.”

“A repercussão foi absurdamente grande. Se fosse eleição direta não tenho a menor dúvida de que eu teria mais de 95% dos votos. Não teria adversário. Agora, não é assim, o negócio é fechado, manipulado, o poder econômico é muito presente. É uma briga, vou brigar com isso. Não vejo viabilidade, na situação que existe hoje, para que isso aconteça, mas da maneira que cresceu é impossível você recuar. Não vou recuar nunca.”

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O Doutor na mesa do bar

Digo a ele que li num jornal que Pelé o apoiaria.

“Não sei, não sei… ele está sempre com posturas dúbias. Acho que não, hoje não.”

O manifesto de Sócrates contém muitas propostas claramente sensatas, especialmente aquelas sobre o aumento dos investimentos nas categorias de base. Algumas, contudo, são tão excessivamente democráticas que parecem conversa de bêbado. Ele quer que o treinador da seleção seja eleito num plebiscito.

Fala isso com absoluta seriedade, mas acrescenta: “Se não for possível isso, você compõe um leque de participantes nessa decisão, pega todos os jornalistas, todos os atletas, todos os treinadores, dirigentes… e com mandato sujeito a suspensão. Digamos, seria um sistema parlamentar. Se tem um voto de desconfiança voltamos a ter uma nova decisão.”

Comento que isso é um pouco burocrático.

“Não, não, é exatamente o contrário. Você tem mais gente participando, descentraliza, mas não pode ser nunca burocrático. Burocratizar é uma conduta de manipular a nação. Tem que ser o mais democrático possível. Tem que tirar a burocracia.”

Digo a ele que um plebiscito é impraticável. Nenhum país do mundo faz uma consulta popular para seu treinador nacional de futebol.

Ele sorri mais uma vez: “Se eu chegar lá, serei o primeiro, então.”

À medida que a entrevista vai chegando ao fim, fecho meu caderno com as perguntas preparadas. Quero saber se ele está deprimido com o Brasil, se o constante esforço pela democracia o deixa para baixo. No futebol também, o esporte profissional está uma bagunça. Fora das quatro linhas é corrupto, e dentro faz um esforço de Sísifo para viver de acordo com as expectativas do passado. Pergunto se ele tem orgulho de ser brasileiro.

Ele diz que sim, definitivamente. “A cultura brasileira – essa miscelânea de raças, essa forma de ver o mundo e a vida – talvez seja a nossa maior riqueza. Porque ela é muito alegre, é muito pouco discriminatória, porque é livre… É uma zona na realidade, nosso país é uma grande zona, que na verdade é a essência da humanidade. Quando se organizou demais, a humanidade perdeu suas características mais básicas, os instintos e seus prazeres. Eu acho que é isso que a gente tem de melhor e é por essa razão que sou absolutamente apaixonado por este país.”

Apesar de todos os problemas?

“A nossa é uma nação nova, jovem. Isso demora um pouquinho. Vocês tiveram séculos de história. Enquanto o Velho Mundo, a Europa, já está com cinquenta anos de estabilidade, nós estamos nascendo.”

Sócrates morreu na manhã do dia 4 de dezembro de 2011, após ter sido internado pela terceira vez em quatro meses devido a problemas causados pelo abuso de álcool. Coincidentemente, foi o último dia do campeonato brasileiro de 2011. Os jogadores do Corinthians levantaram os braços com os punhos cerrados durante o minuto de silêncio realizado em sua homenagem. O jogo acabou em um empate sem gols, dando ao Corinthians seu primeiro título em seis anos.