TÍTULO II
DO CRIME

Conceito de crime: O conceito de crime é o ponto de partida para a compreensão dos principais institutos do Direito Penal. O crime pode ser conceituado levando em conta três critérios: material, legal e formal ou analítico.

Critério material ou substancial: De acordo com esse critério, crime é toda ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados. Essa fórmula leva em conta a relevância do mal produzido aos interesses e valores selecionados pelo legislador como merecedores da tutela penal. Destina-se a orientar a formulação de políticas criminais, funcionando como vetor ao legislador, incumbindo-lhe a tipificação como infrações penais exclusivamente das condutas que causarem danos ou ao menos colocarem em perigo bens jurídicos penalmente relevantes, assim reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Com efeito, esse conceito de crime serve como fator de legitimação do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito. O mero atendimento do princípio da reserva legal se mostra insuficiente. Não basta uma lei para qualquer conduta ser considerada penalmente ilícita – somente se legitima o crime quando a conduta proibida apresentar relevância jurídico-penal, mediante a provocação de dano ou ao menos exposição à situação de perigo em relação a bens jurídicos penalmente relevantes.

Critério legal: Segundo esse critério, o conceito de crime é o fornecido pelo legislador. Em que pese o Código Penal não conter nenhum dispositivo estabelecendo o que se entende por crime, esta tarefa ficou a cargo do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal – LICP (Decreto-lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941): “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. A diferenciação, portanto, é nítida. Quando o preceito secundário cominar pena de reclusão ou detenção, teremos um crime. Tais modalidades de pena podem estar previstas isoladamente, ou ainda alternativa ou cumulativamente com a pena pecuniária. Por outro lado, se o preceito secundário não apresentar as palavras “reclusão” ou “detenção”, estará se referindo a uma contravenção penal, uma vez que a lei a ela comina pena de prisão simples ou de multa, isoladas, alternativa ou cumulativamente. Destarte, a distinção entre crime e contravenção penal é de grau, quantitativa (quantidade da pena), e também qualitativa (qualidade da pena) e não ontológica. Daí não nos parecer correto denominar esta última de “crimeanão”, inclusive pela ausência de critérios para tanto. Se tal terminologia fosse correta, não seria equivocado considerar que o homicídio é um “superdelito” e a injúria é um “crime pequenino”. Cuida-se, em essência, de espécies do gênero infração penal, diferenciando-se quanto à gravidade da sanção penal, mediante valores escolhidos pelo legislador. O valor eleito pelo legislador para tipificar uma conduta como crime ou contravenção penal pode variar ao longo do tempo. Foi o que aconteceu com o porte ilegal de arma de fogo. Até 19 de fevereiro de 1997, a conduta era definida como contravenção penal (art. 19 do Decreto-lei 3.688/1941), qualquer que fosse a natureza da arma de fogo. De 20 de fevereiro de 1997 até o dia 21 de dezembro de 2003, foi tipificada como crime pelo art. 10 da Lei 9.437/1997, sujeito às penas de detenção, de um a dois anos e multa. A partir do dia 23 de dezembro de 2003, entrou em vigor o Estatuto do Desarmamento – Lei 10.826/2003, punindo de forma ainda mais rigorosa o porte ilegal, podendo a sanção penal ser aumentada em razão da natureza e da qualidade da arma de fogo.

Critério legal e sistema dicotômico: O Direito Penal brasileiro acolheu um sistema dicotômico, ao fracionar o gênero infração penal em duas espécies: crime ou delito e contravenção penal. Os termos crime e delito se equivalem, embora em algumas situações a CF e a legislação ordinária utilizem a palavra delito, impropriamente, como sinônima de infração penal, tal como se verifica no art. 5º, XI, da Lei Suprema, e nos arts. 301 e 302 do CPP. Outros países, como Alemanha e França, adotaram um sistema tricotômico: crimes seriam as infrações mais graves, delitos as intermediárias e por último, as contravenções penais albergariam as de menor gravidade.

Outras distinções entre crime e contravenção penal: Além da distinção quantitativa e qualitativa no tocante às sanções penais, estas espécies de infração também apresentam outras distinções, previstas no Código Penal e na Lei das Contravenções Penais:

a)a lei penal brasileira é aplicável, via de regra, aos crimes cometidos no território nacional (CP, art. 5º, caput) e a diversos crimes praticados no estrangeiro, em razão da sua extraterritorialidade (CP, art. 7º); a lei brasileira somente incide no tocante às contravenções penais praticadas no território nacional (LCP, art. 2º);

b)a tentativa é punível quando se tratar de crime (art. 14, II, do CP), mas não quando se tratar de contravenção (art. 2º da LCP);

c)os crimes podem ser dolosos, culposos ou preterdolosos (arts. 18 e 19 do CP) bastando, para as contravenções penais, a ação ou omissão voluntária (art. 3º da LCP);

d)os crimes são compatíveis com o erro de tipo (art. 20 do CP) e com o erro de proibição (art. 21 do CP); as contravenções penais admitem unicamente a ignorância ou a errada compreensão da lei, se escusáveis (art. 8º da LCP);

e)nos crimes, o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos (art. 75 do CP); nas contravenções penais, a duração da pena de prisão simples não pode ser superior a 5 (cinco) anos;

f)nos crimes, o período de prova do sursis varia entre dois a quatro anos, e, excepcionalmente, de quatro a seis anos (art. 77, caput e § 2º do CP); nas contravenções penais, o período de prova do sursis é de um a três anos (art. 11 da LCP);

g)nos crimes, o prazo mínimo das medidas de segurança é de um a três anos (art. 97, § 1º, do CP); nas contravenções penais, o prazo mínimo é de seis meses (art. 16 da LCP);

h)nos crimes, a ação penal pode ser pública, incondicionada ou condicionada, ou de iniciativa privada (art. 100 do CP); nas contravenções penais, a ação penal é pública incondicionada (art. 17 da LCP).

Conceito legal de crime e o art. 28 da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas: O art. 28 da Lei 11.343/2006 define o crime de posse de droga para consumo pessoal, a ele cominando as penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Com isso, surgiram algumas discussões. A primeira delas, atinente à natureza jurídica do ato, no sentido de ser crime ou não. Há posicionamento no sentido de que, como não foram previstas penas de reclusão ou de detenção, não se trata de crime, e, estando ausentes as penas de prisão simples ou multa, também não configura contravenção penal, com fundamento no art. 1º da LICP. Seria, residualmente, um ilícito penal sui generis.1 Uma segunda corrente, que nos parece acertada, sustenta a manutenção do caráter criminoso da conduta, com a cominação das penas previstas em lei. Cuida-se da posição amplamente dominante, e a ela nos filiamos.2 Essa posição apresenta diversos argumentos para justificar a existência de crime no art. 28 da Lei de Drogas, quais sejam: a) A lei, ao tratar do tema, classificou a conduta como crime; b) O processo e julgamento devem observar o rito da Lei 9.099/1995, reservado para as infrações penais de menor potencial ofensivo; c) No tocante à prescrição, o art. 30 da Lei de Drogas determina a aplicação das regras estabelecidas pelos arts. 107 e seguintes do CP, reservadas às infrações penais; d) A finalidade do art. 1º da LICP era apenas diferenciar os crimes das contravenções penais, uma vez que tais diplomas legais passaram a vigorar simultaneamente em 1º de janeiro de 1942; e) A LICP pode ser modificada por outra lei ordinária, como aconteceu com a Lei de Drogas; e f) Não existiam penas alternativas quando foi editada a LICP.

Art. 28 da Lei de Drogas – existe um novo conceito legal de crime?: Surge uma indagação: o art. 28 da Lei de Drogas criou um novo conceito de crime? Vejamos. A LICP fornece um conceito genérico de crime, aplicável sempre que não existir disposição especial em sentido contrário. Além disso, a sua finalidade precípua não é dizer sempre o que se entende por crime, e sim diferenciá-lo da contravenção penal. O art. 1º da LICP permite, assim, a definição de conceito diverso de crime por leis extravagantes, reservando-se a sua aplicação para os casos omissos. Pode-se, portanto, concluir que o conceito geral de crime, sob o aspecto legal, continua a ser aquele constante do art. 1º da LICP, ao passo que o art. 28 da Lei 11.343/2006 criou um conceito específico para o crime de posse de droga para consumo pessoal. No tocante aos demais delitos contidos na Lei de Drogas (tráfico, associação para o tráfico, financiamento ao tráfico etc.), deve ser observado o conceito geral (art. 1º da LICP).

Critério analítico: Esse critério, também chamado de formal ou dogmático, se funda nos elementos que compõem a estrutura do crime. Basileu Garcia sustentava ser o crime composto por quatro elementos: fato típico, ilicitude, culpabilidade e punibilidade.3 Essa posição quadripartida é claramente minoritária e deve ser afastada, pois a punibilidade não é elemento do crime, mas consequência da sua prática. Outros autores adotam uma posição tripartida, pela qual seriam elementos do crime: fato típico, ilicitude e culpabilidade. Perfilham desse entendimento, entre outros, Nélson Hungria, Aníbal Bruno, E. Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Regis Prado. Há quem alegue que o acolhimento de um conceito tripartido de crime importa obrigatoriamente na adoção do sistema clássico (ou neoclássico) e da teoria clássica ou causal da conduta. Não é verdade. Quem aceita um conceito tripartido de crime tanto pode ser clássico como finalista. A distinção entre os perfis clássico e finalista reside, principalmente, na alocação do dolo e da culpa, e não em um sistema bipartido ou tripartido relativamente à estrutura do delito. Por fim, há autores que entendem o crime como fato típico e ilícito. Constam desse rol René Ariel Dotti, Damásio E. de Jesus e Julio Fabbrini Mirabete, entre outros. Para os seguidores dessa teoria bipartida, a culpabilidade deve ser excluída da composição do crime, uma vez que se trata de pressuposto de aplicação da pena. Destarte, para a configuração do delito bastam o fato típico e a ilicitude, ao passo que a presença ou não da culpabilidade importará na possibilidade ou não de a pena ser imposta. Vale lembrar que a teoria bipartida relaciona-se intimamente com a teoria finalista da conduta – ao se adotar a teoria bipartida do crime, necessariamente será aceito o conceito finalista de conduta. Isso porque na teoria clássica o dolo e a culpa situam-se na culpabilidade. E, se fosse possível um sistema clássico e bipartido, consagrar-se-ia a responsabilidade penal objetiva.

Fato típico: É o fato humano – e também da pessoa jurídica, nos crimes ambientais – que se enquadra com perfeição aos elementos descritos pelo tipo penal. Seus elementos são: (a) conduta; (b) resultado; (c) relação de causalidade; e (d) tipicidade.

Conduta: Na delimitação do conceito de conduta reside uma das maiores discussões do Direito Penal. Várias teorias buscam defini-la, e a adoção de cada uma delas importa em modificações estruturais na forma de encarar o Direito Penal. Vejamos as mais importantes.

a)Teoria clássica, naturalística, mecanicista ou causal: Conduta é o comportamento humano voluntário que produz modificação no mundo exterior. Essa teoria, idealizada no século XIX por Liszt, Beling e Radbruch, foi recepcionada no Brasil por diversos penalistas de destaque, tais como Aníbal Bruno, Costa e Silva, E. Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Basileu Garcia, Manoel Pedro Pimentel e Nélson Hungria. Submete o Direito Penal às regras inerentes às ciências naturais, orientadas pelas leis da causalidade. A vontade humana engloba duas partes diversas: uma externa, objetiva, correspondente ao processo causal, isto é, ao movimento corpóreo do ser humano, e outra interna, subjetiva, relacionada ao conteúdo final da ação. Em breve síntese, a vontade é a causa da conduta, e a conduta é a causa do resultado. Não há vontade no tocante à produção do resultado. O elemento volitivo, interno, acarreta em um movimento corporal do agente, o qual, objetivamente, produz o resultado. A caracterização da conduta criminosa depende somente da circunstância de o agente produzir fisicamente um resultado previsto em lei como infração penal, independentemente de dolo ou culpa. A teoria clássica não distingue a conduta dolosa da conduta culposa, pois ambas são analisadas objetivamente, uma vez que não se faz nenhuma indagação sobre a relação psíquica do agente para com o resultado. Da mesma forma, não explica de modo idôneo os crimes omissivos próprios, nem os formais e os de mera conduta. Também não convence no que diz respeito aos crimes tentados, pois em todos eles não há resultado naturalístico. Bastante consagrada em décadas passadas, essa teoria foi ao longo do tempo cada vez mais abandonada, encontrando atualmente poucos seguidores.

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b)Teoria final ou finalista: Foi criada por Hans Welzel, jusfilósofo e penalista alemão, no início da década de 30 do século passado. Posteriormente, teve grande acolhida no Brasil, compartilhando de seus ideais ilustres penalistas, como Heleno Cláudio Fragoso, René Ariel Dotti, Damásio E. de Jesus, Julio Fabbrini Mirabete e Miguel Reale Júnior. Tem como ponto de partida a concepção do homem como ser livre e responsável pelos seus atos. Consequentemente, as regras do Direito não podem ordenar ou proibir meros processos causais, mas apenas atos dirigidos finalisticamente, ou então a omissão de tais atos. Para essa teoria, conduta é o comportamento humano, consciente e voluntário, dirigido a um fim. Daí o seu nome finalista, levando em conta a finalidade do agente. Não desprezou todos os postulados da teoria clássica. Ao contrário, preservou-os, a eles acrescentando a nota da finalidade. Uma conduta pode ser contrária ou conforme ao Direito, dependendo do elemento subjetivo do agente. Destarte, dolo e culpa, que na teoria clássica residiam na culpabilidade, foram deslocados para o interior da conduta, e, portanto, para o fato típico. Formou-se uma culpabilidade vazia, desprovida do dolo e da culpa. Desta forma, o partidário do finalismo penal pode adotar um conceito analítico de crime tripartido ou bipartido, conforme repute a culpabilidade como elemento do crime ou pressuposto de aplicação da pena. Welzel sustentava que a causalidade exterior é cega, pois não analisa o querer interno do agente. Por seu turno, a finalidade, por ser guiada, é vidente. O CP em vigor, com a Reforma da Parte Geral pela Lei 7.209/1984, parece ter manifestado preferência pelo finalismo penal. Uma forte evidência se encontra no art. 20, caput: “O erro sobre o elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. Ora, se a ausência de dolo acarreta na exclusão do fato típico (ainda que somente na forma dolosa), é porque o dolo está na conduta do agente, que deixa de ser dolosa para ser culposa. A teoria finalista foi bastante criticada no tocante aos crimes culposos, pois não se sustentava a finalidade da ação concernente ao resultado naturalístico involuntário. Alega-se, todavia, que no crime culposo também há vontade dirigida a um fim. Mas esse fim será conforme ou não ao Direito, de maneira que a reprovação nos crimes culposos não incide na finalidade do agente, mas nos meios por ele escolhidos para atingir a finalidade desejada, indicativos da imprudência, da negligência ou da imperícia.

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c)Teoria social: Para essa teoria, os ideais clássico e finalista são insuficientes para disciplinar a conduta, porque desconsiderariam uma nota essencial do comportamento humano: o seu aspecto social. Nesse contexto, Johannes Wessels, na tentativa de equacionar esse problema, criou a teoria social da ação. Hans-Heinrich Jescheck, partidário dessa teoria, define a conduta como o comportamento humano com transcendência social.4 Por comportamento deve entender-se a resposta do homem a exigências situacionais, mediante a concretização da possibilidade de reação que lhe é autorizada pela sua liberdade. Assim, socialmente relevante seria a conduta capaz de afetar o relacionamento do agente com o meio social em que se insere. Essa teoria não exclui os conceitos causal e final de ação. Deles se vale, acrescentando-lhes o caráter da relevância social. Para os seus defensores, a vantagem da teoria consiste no fato de o elemento sociológico cumprir a missão de permitir ao Poder Judiciário a supressão do vácuo criado pelo tempo entre a realidade jurídica e a realidade social. Um fato não pode ser tipificado pela lei como infração penal e, simultaneamente, ser tolerado pela sociedade, caso em que estaria ausente um elemento implícito do tipo penal, presente em todo modelo descritivo legal, consistente na repercussão social da conduta. Por corolário, para que o agente pratique uma infração penal é necessário que, além de realizar todos os elementos previstos no tipo penal, tenha também a intenção de produzir um resultado socialmente relevante. A principal crítica que se faz a essa teoria repousa na extensão do conceito de transcendência ou relevância social, que se presta a tudo, inclusive a fenômenos acidentais e da natureza. A morte de uma pessoa provocada por uma enchente, por exemplo, possui relevância social, na medida em que enseja o nascimento, modificação e extinção de direitos e obrigações. Com efeito, ao mesmo tempo em que não se pode negar relevância social ao delito, também se deve recordar que tal qualidade é inerente a todos os fatos jurídicos, e não apenas aos pertencentes ao Direito Penal.

d)Teoria jurídico-penal: É a teoria sustentada por Francisco de Assis Toledo para superar os entraves travados entre as vertentes clássica, finalista e social. Em suas palavras, essa definição almeja conciliar os pontos positivos extraídos de cada uma delas. Nesse sentido: “Ação é o comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico”.5 Deve ser lembrado que a palavra “ação” é empregada por Assis Toledo em sentido amplo, como sinônimo de conduta, englobando, assim, a ação propriamente dita e a omissão. Essa teoria coloca em destaque, segundo seu autor: o comportamento humano, englobando a ação e a omissão; a vontade, exclusiva do ser humano; o “poder de outro-modo” (poder agir de outro modo), que permite ao homem o domínio da vontade; o aspecto causal-teleológico do comportamento; e a lesão ou perigo a um bem jurídico.

Apontamentos gerais sobre a conduta: Adotamos a posição finalista. Desse modo, conduta é a ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dirigida a um fim, consistente em produzir um resultado tipificado em lei como crime ou contravenção penal. Não há crime sem conduta, pois o Direito Penal não aceita os crimes de mera suspeita, isto é, aqueles em que o agente não é punido por sua conduta, mas pela suspeita despertada pelo seu modo de agir. Quando pratica uma infração penal, o ser humano viola o preceito proibitivo (crimes comissivos) ou preceptivo (crimes omissivos) contido na lei penal, a qual pode ser proibitiva ou preceptiva. Leis penais proibitivas são as que proíbem determinados comportamentos e correspondem aos crimes comissivos. Quando o tipo penal descreve uma ação, a lei penal contém um preceito proibitivo. Leis penais preceptivas são as que impõem a realização de uma ação, isto é, reclamam um comportamento positivo. Quando o tipo penal descreve uma omissão, a lei penal contém um preceito preceptivo, e o seu descumprimento se verifica com a omissão de um comportamento devido por lei.

Formas de conduta: A conduta pode se exteriorizar por ação ou por omissão. A ação consiste em um movimento corporal exterior. Reclama do ser humano uma postura positiva, um fazer. Relaciona-se com a maioria dos delitos, por meio de uma norma proibitiva. Por outro lado, não se trata a omissão de um mero comportamento estático. É, sim, a conduta de não fazer aquilo que podia e devia ser feito em termos jurídicos, e se refere às normas preceptivas. A omissão pode ser vislumbrada tanto quando o agente nada faz, bem como quando faz algo diferente daquilo que lhe impunha o dever jurídico de agir.

Teorias acerca da omissão: A teoria naturalística sustenta ser a omissão um fenômeno causal que pode ser constatado no mundo fático, pois, em vez de ser considerada uma inatividade, caracteriza-se como verdadeira espécie de ação. Portanto, quem se omite efetivamente faz alguma coisa. Já para a teoria normativa, a omissão é um indiferente penal, pois o nada não produz efeitos jurídicos. Destarte, o omitente não responde pelo resultado, pois não o provocou. Essa teoria, contudo, aceita a responsabilização do omitente pela produção do resultado, desde que seja a ele atribuído, por uma norma, o dever jurídico de agir. Essa é a razão de sua denominação (normativa = norma). A omissão é, assim, não fazer o que a lei determinava que se fizesse. Foi a teoria acolhida pelo Código Penal. Em verdade, nos crimes omissivos próprios ou puros a norma impõe o dever de agir no próprio tipo penal (preceito preceptivo). Já nos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, o tipo penal descreve uma ação (preceito proibitivo), mas a omissão do agente, que descumpre o dever jurídico de agir, definido pelo art. 13, § 2º, do CP, acarreta a sua responsabilidade penal pela produção do resultado naturalístico.

Características da conduta: 1) O ser humano, e apenas ele, pode praticar condutas penalmente relevantes. Os acontecimentos naturais e os atos dos seres irracionais, produzidos sem a interferência do homem, não interessam ao Direito Penal. É possível, também, para quem se filia a essa posição, a prática de condutas por pessoas jurídicas, relativamente aos crimes ambientais. 2) Somente a conduta voluntária interessa ao Direito Penal. O crime é ato exclusivo do homem, pois a vontade, qualquer que seja a teoria adotada, é elemento constitutivo da conduta. O Direito Penal se alicerça na evitabilidade, razão pela qual só são pertinentes as condutas que poderiam ser evitadas. 3) Apenas os atos lançados ao mundo exterior ingressam no conceito de conduta. O simples querer interno do agente (cogitação) é desprezado pelo Direito Penal. Enquanto a vontade não for libertada do claustro psíquico que existe na mente do agente, não produz efeitos jurídicos. 4) A conduta é composta de dois elementos: um ato de vontade, dirigido a um fim, e a manifestação da vontade no mundo exterior, por meio de uma ação ou omissão dominada ou dominável pela vontade. Esse é o elemento mecânico que concretiza no mundo fático o querer interno do agente.

Exclusão da conduta: 1) Caso fortuito e força maior: são os acontecimentos imprevisíveis e inevitáveis, que fogem do domínio da vontade do ser humano. E, se não há vontade, não há dolo nem culpa; 2) Atos ou movimentos reflexos: consistem em reação motora ou secretora em consequência de uma excitação dos sentidos. O movimento corpóreo não se deve ao elemento volitivo, e sim ao fisiológico. Ausente a vontade, estará ausente também a conduta. Os atos reflexos não se confundem com as ações em curto circuito, derivadas dos atos impulsivos fundamentados em emoções ou paixões violentas. Nesses casos há o elemento volitivo que estimula a conduta criminosa. Os movimentos reflexos devem ser diferenciados, ainda, dos atos habituais, mecânicos ou automáticos, que consistem na reiteração de um comportamento. É o caso de conduzir veículo automotor com apenas uma das mãos ao volante. Caso o agente atropele e mate alguém, responderá pelo crime tipificado pelo art. 302 da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro, pois tal hábito era dominável pela vontade; 3) Coação física irresistível: também chamada de vis absoluta, ocorre quando o coagido não tem liberdade para agir. Não lhe resta nenhuma outra opção, a não ser praticar um ato em conformidade com a vontade do coator. Por outro lado, na coação moral irresistível, ou vis compulsiva, o coagido pode escolher o caminho a ser seguido: obedecer ou não a ordem do coator. Como a sua vontade existe, porém de forma viciada, exclui-se a culpabilidade, em face da inexigibilidade de conduta diversa. Em suma, enquanto a coação física irresistível exclui a conduta e, portanto, o fato típico, a coação moral irresistível funciona como causa excludente da culpabilidade, em face da inexigibilidade de conduta diversa; 4) Sonambulismo e hipnose: também não há conduta, por falta de vontade nos comportamentos praticados em completo estado de inconsciência.

Resultado: É a consequência provocada pela conduta do agente. Alguns autores utilizam o termo “evento” como sinônimo de resultado.

Espécies de resultado: Em Direito Penal, o resultado pode ser jurídico ou naturalístico. Resultado jurídico, ou normativo, é a lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico protegido pela lei penal. É, simplesmente, a violação da lei penal, mediante a agressão do valor ou interesse por ela tutelado. Resultado naturalístico, ou material, é a modificação do mundo exterior provocada pela conduta do agente. O resultado naturalístico estará presente somente nos crimes materiais consumados. Se tentado o crime, ainda que material, não haverá resultado naturalístico. Nos crimes formais, ainda que possível sua ocorrência, é dispensável o resultado naturalístico. E, finalmente, nos crimes de mera conduta ou de simples atividade jamais se produzirá tal espécie de resultado. Em síntese, todo crime tem resultado jurídico, embora não se possa apresentar igual afirmativa em relação ao resultado naturalístico.

Tipicidade: A tipicidade, elemento do fato típico, divide-se em formal e material. Tipicidade formal é o juízo de subsunção entre a conduta praticada pelo agente no mundo real e o modelo descrito pelo tipo penal (“adequação ao catálogo”).6 É a operação pela qual se analisa se o fato praticado pelo agente encontra correspondência em uma conduta prevista em lei como crime ou contravenção penal. De seu turno, tipicidade material (ou substancial) é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado em razão da prática da conduta legalmente descrita. A tipicidade material relaciona-se intimamente com o princípio da ofensividade (ou lesividade) do Direito Penal, pois nem todas as condutas que se encaixam nos modelos abstratos e sintéticos de crimes (tipicidade formal) acarretam em dano ou perigo ao bem jurídico. É o que se dá, a título ilustrativo, nas hipóteses de incidência do princípio da insignificância, nas quais, nada obstante a tipicidade formal, não se verifica a tipicidade material. A presença simultânea da tipicidade formal e da tipicidade material caracteriza a tipicidade penal.

Teoria da tipicidade conglobante: Criada pelo penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, essa teoria sustenta que todo fato típico se reveste de antinormatividade, pois, muito embora o agente atue em consonância com o que está descrito no tipo incriminador, na verdade contraria a norma, entendida como o conteúdo do tipo legal. O nome “conglobante” deriva da necessidade de que a conduta seja contrária ao ordenamento jurídico em geral, conglobado, e não apenas ao Direito Penal. Não basta a violação da lei penal. Exige-se a ofensa a todo o ordenamento jurídico. Em suma, para a aferição da tipicidade reclama-se a presença da antinormatividade. Assim, ou o fato praticado pelo agente, contrário à lei penal, desrespeita todo o ordenamento normativo, e há tipicidade, ou, ainda que em desconformidade com a lei penal, esteja em consonância com a ordem normativa, e ausente estará a tipicidade. Para essa teoria, a tipicidade penal resulta da junção da tipicidade legal com a tipicidade conglobante. Tipicidade legal (adequação à fórmula legal do tipo) é a individualização que a lei faz da conduta, mediante o conjunto dos elementos objetivos e normativos de que se vale o tipo penal. Já a tipicidade conglobante (antinormatividade) é a comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pela norma, o que se afere separando o alcance da norma proibitiva conglobada com as demais normas do sistema jurídico. Finalmente, a tipicidade penal (adequação penal + antinormatividade) é a fusão da tipicidade legal com a tipicidade conglobante. Não basta, pois, a mera tipicidade legal, isto é, a contrariedade do fato à lei penal. É necessário mais. A conduta do agente, contrária à lei penal, deve violar todo o sistema normativo. Em suma, deve ser antinormativa.

Adequação típica – conceito e espécies: Adequação típica é o procedimento pelo qual se enquadra uma conduta individual e concreta na descrição genérica e abstrata da lei penal. É o meio pelo qual se constata se existe ou não tipicidade entre a conduta praticada na vida real e o modelo definido pela lei penal. A adequação típica pode se apresentar sob duas espécies: subordinação imediata e subordinação mediata.

a)Na adequação típica de subordinação imediata, a conduta humana se enquadra diretamente na lei penal incriminadora, sem necessidade de interposição de qualquer outro dispositivo legal. A ação ou omissão se transforma em fato típico com o “encaixe” adequado de todos os elementos do fato externo no modelo contido no preceito primário da lei incriminadora. Exemplificativamente, a conduta de subtrair coisa alheia móvel para si, mediante emprego de violência contra a pessoa, encontra correspondência direta no art. 157, caput, do CP; e

b)Na adequação típica de subordinação mediata, ampliada ou por extensão, a conduta humana não se enquadra prontamente na lei penal incriminadora, reclamando-se, para complementar a tipicidade, a interposição de um dispositivo contido na Parte Geral do CP. É o que se dá na tentativa, na participação e nos crimes omissivos impróprios. Na tentativa, opera-se uma ampliação temporal da figura típica, pois, com a utilização da regra prevista no art. 14, II, do CP, o alcance do tipo penal não se limita ao momento da consumação do crime, mas também aos períodos que o antecedem. Antecipa-se a tutela penal para abarcar os atos executórios prévios à consumação. Na participação, há uma ampliação espacial e pessoal do tipo penal, que, em consequência do disposto pelo art. 29, caput, do CP, passa a alcançar não só o sujeito que praticou os atos executórios do crime, como também outros sujeitos que estão ao seu lado, isto é, aqueles que de qualquer modo concorreram para a prática do delito, sem contudo executá-lo. Finalmente, nos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, ocorre uma ampliação da conduta criminosa, a qual, com o emprego do art. 13, § 2º, do CP, passa a englobar também a omissão daquele que indevidamente não cumpriu o seu dever jurídico de agir. Esses dispositivos legais – arts. 13, § 2º, 14, II, e 29, caput, do CP – são denominados de normas integrativas, de extensão ou complementares da tipicidade.

Tipo penal: Tipo é o modelo genérico e abstrato, formulado pela lei penal, descritivo da conduta criminosa ou da conduta permitida. Não é somente o conjunto dos elementos da infração penal descrito pela lei, mas também a indicação legal das hipóteses em que se autoriza a prática de um fato típico.

Espécies: O tipo penal se apresenta em duas categorias: 1) tipos incriminadores ou legais – são os tipos penais propriamente ditos, consistentes na síntese legal da definição da conduta criminosa; 2) tipos permissivos ou justificadores – são os que contêm a descrição legal da conduta permitida, isto é, as situações em que a lei considera lícito o cometimento de um fato típico. São as causas de exclusão da ilicitude, também denominadas eximentes ou justificativas. Os tipos legais ou incriminadores estão definidos na Parte Especial do CP e na legislação penal especial. Tipo legal é o modelo sintético, genérico e abstrato da conduta definida em lei como crime ou contravenção penal.

Funções: O tipo legal não se destina simplesmente a criar infrações penais. Ao contrário, possui outras relevantes funções:

a)Função de garantia: como decorrência da previsão constitucional do princípio da reserva legal ou da estrita legalidade, somente a lei em sentido material e formal pode criar um tipo incriminador. Nesse sentido, o tipo penal funciona como garantia do indivíduo que, ao conhecer as condutas reputadas ilícitas pelo Direito Penal, pode praticar livremente todas as demais não incriminadas. Sobra-lhe liberdade para gerir sua vida, ficando vedada somente a atuação em desconformidade com a lei penal, já que os casos de incriminação são taxativos (princípio da taxatividade). Cuida-se, destarte, de direito fundamental de 1ª geração, na medida em que limita o poder punitivo estatal.

b)Função fundamentadora: a previsão de uma conduta criminosa por um tipo penal fundamenta o direito de punir do Estado quando o indivíduo viola a lei penal. A existência de uma lei penal incriminadora é o fundamento da persecução penal exercida pelo Estado.

c)Função indiciária da ilicitude: o tipo penal delimita a conduta penalmente ilícita. Por corolário, a circunstância de uma ação ou omissão ser típica autoriza a presunção de ser também ilícita, contrária ao ordenamento jurídico. Essa presunção é relativa (iuris tantum), pois admite prova em sentido contrário. Dessa forma, caso o agente sustente em juízo, como tese defensiva, a licitude do fato, deverá provar a existência de uma das excludentes indicadas pelo art. 23 do CP. Opera-se a inversão do ônus da prova. Todo fato típico se presume ilícito, até prova em contrário, a ser apresentada e confirmada pelo responsável pela infração penal.

d)Função diferenciadora do erro: o dolo do agente deve alcançar todas as elementares do tipo legal, razão pela qual o autor de um fato típico somente poderá ser responsabilizado pela prática de um crime doloso quando conhecer todas as circunstâncias de fato que o compõem. Eventual ignorância acerca de alguma elementar do tipo penal configura erro de tipo, afastando o dolo, nos termos do art. 20 do CP. Assim, delineado o tipo penal, com a presença do dolo, não há falar em erro. Ao contrário, sem o fato típico, por ausência de dolo, restará caracterizado o erro de tipo.

e)Função seletiva: cabe ao tipo penal a tarefa de selecionar as condutas que deverão ser proibidas (crimes comissivos) ou ordenadas (crimes omissivos) pela lei penal, levando em conta os princípios vetores do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito.

Estrutura do tipo penal: O tipo penal, qualquer que seja ele, é composto por um núcleo e elementos. Nas figuras qualificadas e privilegiadas são acrescentadas circunstâncias. O núcleo, representado pelo verbo, é a primeira etapa para a construção de um tipo incriminador. No furto, é “subtrair”, no estupro, “constranger”, e assim por diante. Toda infração penal contém um núcleo. No art. 121, caput, do CP, em que se define o crime de homicídio simples, fórmula incriminadora mais sintética da legislação penal brasileira, há um núcleo (“matar”) e apenas um elemento (“alguém”). Em torno do núcleo se agregam elementos ou elementares, que visam proporcionar a perfeita descrição da conduta criminosa. Esses elementos podem ser de três espécies distintas: objetivos, subjetivos e normativos.

a)Elementos objetivos ou descritivos são as circunstâncias da conduta criminosa que não pertencem ao mundo anímico do agente. Possuem validade exterior que não se limita ao sujeito que o pratica. Ao contrário, podem ser constatados por qualquer pessoa, uma vez que exprimem um juízo de certeza. Na identificação desses elementos se prescinde de valoração cultural ou jurídica. É o caso de “alguém” nos crimes de homicídio (art. 121 do CP) e estupro (art. 213 do CP), entre tantos outros.

b)Elementos normativos, por seu turno, são aqueles que reclamam, para perfeita aferição, uma interpretação valorativa, isto é, necessitam de um juízo de valor acerca da situação de fato por parte do destinatário da lei penal. Tais elementos podem ser jurídicos ou culturais. Elementos normativos jurídicos são os que traduzem conceitos próprios do Direito, relativos à ilicitude (“indevidamente” e “sem justa causa”, por exemplo), ou então atinentes a termos ou expressões jurídicas (tais como “documento”, “funcionário público” e “duplicata”). Os elementos normativos que dizem respeito a termos ou expressões jurídicas são também denominados elementos normativos impróprios. Por sua vez, elementos normativos culturais, morais ou extrajurídicos são os que envolvem conceitos próprios de outras disciplinas do conhecimento, artísticas, literais, científicas ou técnicas. São seus exemplos: “ato obsceno”, “pudor”, “ato libidinoso”, “arte” etc.

c)Elementos subjetivos são os que dizem respeito à esfera anímica do agente, isto é, ao dolo, especial finalidade de agir e demais tendências e intenções. Sempre que o tipo penal alojar em seu bojo um elemento subjetivo, será necessário que o agente, além do dolo de realizar o núcleo da conduta, possua ainda a finalidade especial indicada expressamente pela descrição típica. No crime de furto (art. 155 do CP), não basta a subtração da coisa alheia móvel: esta deve ser realizada pelo agente para si ou para outrem, ou seja, exige-se o ânimo de assenhoreamento definitivo (animus rem sibi habendi).

d)Ao lado dos elementos objetivos, normativos e subjetivos, aceitos por toda a doutrina, alguns autores ainda apontam um quarto grupo, relativo aos elementos modais – seriam os elementos que expressam no tipo penal condições específicas de tempo, local ou modo de execução, indispensáveis para a caracterização do crime. Aponta-se como exemplo o crime de infanticídio (art. 123 do CP), em que a mãe deve matar o próprio filho, nascente ou recém-nascido, sob a influência do estado puerperal, durante o parto ou logo após. Há, portanto, a exigência de que o delito seja praticado em condições de tempo previamente fixadas pelo legislador.

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Classificação doutrinária do tipo penal: A doutrina apresenta as seguintes divisões relativas aos tipos penais:

a)Tipo normal e tipo anormal: Tipo normal é o que prevê apenas elementos de ordem objetiva. Falase, no caso, em tipicidade normal. Tipo anormal é o que prevê, além de elementos objetivos, também elementos subjetivos e/ou normativos, acarretando na tipicidade anormal. Vale ressaltar que para os adeptos do finalismo penal todo tipo é anormal. De fato, dolo (elemento subjetivo) e culpa (elemento normativo) compõem a estrutura da conduta, a qual integra o fato típico, e, consequentemente, o tipo penal.

b)Tipo fundamental e tipo derivado: Tipo fundamental ou básico é aquele que retrata a forma mais simples da conduta criminosa. É denominado crime simples e, em regra, está situado no caput do dispositivo legal. Exemplo: homicídio simples (art. 121, caput, do CP). Há uma exceção no CP: o crime de excesso de exação se encontra no § 1º do art. 316. Trata-se da modalidade simples, básica e fundamental do crime, sem estar no caput. Tipo derivado é aquele que se estrutura com base no tipo fundamental, a ele se somando circunstâncias que aumentam ou diminuem a pena. Dividem-se em tipos qualificados (qualificadoras) ou circunstanciados (causas de aumento da pena) e privilegiados, também chamados de exceptum (causas de diminuição da pena). Exemplos: homicídio privilegiado (art. 121, § 1º, do CP) e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do CP).

c)Tipo fechado e tipo aberto: Tipo fechado, ou cerrado, é o que possui descrição minuciosa da conduta criminosa. É o caso do furto. Tipo aberto é o que não possui descrição detalhada da conduta criminosa. Cabe ao Poder Judiciário, na análise do caso concreto, complementar a tipicidade mediante um juízo de valor. É o caso da rixa (art. 137 do CP), pois somente na situação prática poderá se dizer se alguém participou da rixa, ou nela ingressou para separar os contendores. Os crimes culposos estão previstos em tipos penais abertos, salvo no caso da receptação, em que o art. 180, § 3º, do CP apresenta detalhadamente a descrição típica.

d)Tipo de autor e tipo de fato: Tipo de autor é o que se relaciona ao Direito Penal do autor. É aquele, felizmente cada vez mais extirpado do Direito Penal, em que não se pune uma conduta, e sim uma determinada pessoa em razão de suas condições pessoais. Tipo de fato é o que tem por objeto a incriminação de uma conduta criminosa. Representa as infrações penais do ordenamento jurídico brasileiro em vigor.

e)Tipo simples e tipo misto: Tipo simples é o que abriga em seu interior um único núcleo. Define, assim, uma única conduta típica, caracterizando os crimes de ação única. É o caso do roubo (art. 157 do CP), em que existe apenas o núcleo “subtrair”. Tipo misto é o que tem na sua descrição típica dois ou mais núcleos, representando os crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado. Subdividese em duas espécies: tipo misto alternativo e tipo misto cumulativo. No tipo misto alternativo, a lei penal descreve duas ou mais condutas como hipóteses de realização de um mesmo crime, de maneira que a prática sucessiva dos diversos núcleos contra o mesmo objeto material caracteriza um único delito. São os chamados crimes de ação múltipla, de condutas variáveis ou fungíveis. Na receptação simples (art. 180, caput, do CP), por exemplo, pratica crime único o agente que adquire um veículo roubado e, ciente dessa origem ilícita, depois o conduz para sua casa, local em que finalmente vem a ocultá-lo. No tipo misto cumulativo, a prática de mais de uma conduta leva ao concurso material, respondendo o agente por todos os delitos praticados, tal como se dá no de abandono material (art. 244 do CP). É importante não confundir os tipos mistos cumulativos com os crimes de condutas conjugadas, ou seja, delitos em que o tipo penal prevê somente um núcleo, associado com diversas condutas, e se o sujeito realizar mais de uma delas, responderá por vários crimes, em concurso material ou formal (impróprio ou imperfeito), dependendo do caso concreto. É o que se dá no crime de abandono moral, tipificado no art. 247 do CP.

f)Tipo congruente e tipo incongruente: Tipo congruente é aquele em que há perfeita coincidência entre a vontade do autor e o fato descrito na lei penal. O agente realiza aquilo que efetivamente desejava. É o que ocorre nos crimes materiais consumados. Tipo incongruente é aquele em que não há coincidência entre a vontade do autor e o fato descrito na lei penal, ou seja, a conduta do agente provoca algo diverso do que era por ele desejado, tal como se dá na tentativa, nos crimes culposos e nos crimes preterdolosos.

g)Tipo complexo: O tipo penal possui uma parte objetiva, consistente na descrição da conduta criminosa. Para a teoria clássica da conduta, é o que basta, uma vez que o dolo e a culpa estão alojados no interior da culpabilidade. Em uma visão finalista, entretanto, os elementos anímicos foram transferidos da culpabilidade para a conduta. O tipo penal passa, então, a conter elementos de dois grupos: objetivos (modelo típico) e subjetivos (dolo e culpa). Fala-se, assim, que para os finalistas o tipo penal é complexo, o que se justifica pela fusão dos elementos objetivos, situados no mundo exterior, com os elementos subjetivos, situados internamente, no psiquismo do agente.7

Sujeitos do crime: São as pessoas ou entes relacionados à prática e aos efeitos da empreitada criminosa. Dividem-se em sujeito ativo e sujeito passivo.

Sujeito ativo: Sujeito ativo é a pessoa que realiza direta ou indiretamente a conduta criminosa, seja isoladamente, seja em concurso. Autor e coautor realizam o crime de forma direta, ao passo que o partícipe e o autor mediato o fazem indiretamente. O sujeito ativo pode receber variadas denominações, dependendo do momento processual e do critério posto em exame, tais como agente (geral), indiciado (no inquérito policial), acusado (com o oferecimento da denúncia ou queixa), réu (após o recebimento da inicial acusatória), sentenciado (com a prolação da sentença), condenado (após o trânsito em julgado da condenação), reeducando (durante a execução penal), egresso (após o cumprimento da pena), criminoso e delinquente (objeto de estudo das ciências penais, como na criminologia). A regra é a de que apenas o ser humano pode ser sujeito ativo de infrações penais, mas também se discute a possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica. Os animais podem funcionar como instrumento do crime, como no caso do cão bravio que cumpre ordem de ataque emanada de seu dono, mas jamais serão sujeito ativo de uma infração penal.

A pessoa jurídica como sujeito ativo de crimes – introdução: Discute-se se a pessoa jurídica pode ser considerada sujeito ativo de crimes. Para melhor compreensão do assunto, é necessário, inicialmente, abordar a natureza jurídica de tais entes. Para a teoria da ficção jurídica, idealizada por Savigny, a pessoa jurídica não tem existência real, não tem vontade própria. Apenas o homem possui aptidão de ser sujeito de direitos. Essa teoria não pode subsistir. Com efeito, se a pessoa jurídica é uma ficção, o Direito também o é, porque provém do Estado, pessoa jurídica de direito público interno. Para os adeptos dessa corrente, é impossível a prática de crimes por pessoas jurídicas. Não há como imaginar uma infração penal cometida por um ente fictício. De outro lado, a teoria da realidade, orgânica ou organicista, de Otto Gierke, sustenta ser a pessoa jurídica um ente autônomo e distinto de seus membros, dotado de vontade própria. É, assim, sujeito de direitos e obrigações, tais como uma pessoa física. É a teoria mais aceita no Direito. Pode ser extraída, até aqui, uma primeira conclusão. Essas teorias guardam estreita relação com o Direito Civil, e, se for adotada a da ficção jurídica, é impossível a prática de crimes por pessoas jurídicas. Entretanto, com a preferência pela teoria orgânica, passa-se ao debate acerca da sujeição criminal ativa da pessoa jurídica. E, nesse ponto, há duas correntes.

a)Impossibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito ativo de infrações penais: Destacam-se seus argumentos: 1) Desde o Direito Romano já se sustentava o postulado societas delinquere non potest, isto é, a sociedade não pode delinquir; 2) A pessoa jurídica não tem vontade própria, e, portanto, não pode praticar condutas; 3) A pessoa jurídica não é dotada de consciência própria para compreender o caráter intimidativo da pena; 4) A pessoa jurídica não é imputável, pois somente o ser humano adquire capacidade de entender o caráter ilícito de um fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento; 5) A pessoa jurídica tem a sua atuação vinculada aos atos relacionados com o seu estatuto social, aí não se incluindo a prática de crimes; 6) A punição da pessoa jurídica alcançaria, ainda que indiretamente, seus integrantes, ofendendo o princípio constitucional da personalidade da pena; e 7) Não se pode aplicar pena privativa de liberdade, característica indissociável do Direito Penal, à pessoa jurídica.

b)Possibilidade de a pessoa jurídica figurar como sujeito ativo de crimes: Esta posição se alicerça nos seguintes fundamentos: 1) A pessoa jurídica constitui-se em ente autônomo, dotado de consciência e vontade, razão pela qual pode realizar condutas e assimilar a natureza intimidatória da pena; 2) A pessoa jurídica deve responder por seus atos, adaptando-se o juízo de culpabilidade às suas características; 3) A pessoa jurídica possui vontade própria, razão pela qual o Direito Penal a ela reserva tratamento isonômico ao dispensado à pessoa física; 4) É óbvio que o estatuto social de uma pessoa jurídica não prevê a prática de crimes como uma de suas finalidades. Da mesma forma, não contém em seu bojo a realização de atos ilícitos, o que não os impede de serem realizados (inadimplência civil, por exemplo); 5) A punição da pessoa jurídica não viola o princípio da personalidade da pena. Deve-se distinguir a pena dos efeitos da condenação, os quais também se verificam com a punição da pessoa física; e 6) O Direito Penal não se limita à pena de prisão. Ao contrário, cada vez mais a pena privativa de liberdade deve ser entendida como medida excepcional (ultima ratio), preferindo-se a aplicação de penas alternativas.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição Federal: Com a opção pela segunda corrente, pode-se dizer que a CF admitiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes contra a ordem econômica e financeira, contra a economia popular e contra o meio ambiente, autorizando o legislador ordinário a cominar penas compatíveis com sua natureza, independentemente da responsabilidade individual dos seus dirigentes (arts. 173, § 5º, e 225, § 3º). Já foi editada a Lei 9.605/1998, no tocante aos crimes contra o meio ambiente, e o seu art. 3º, parágrafo único, dispõe expressamente sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica. O posicionamento atual do STF é pela admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica em todos os crimes ambientais, dolosos ou culposos. É também o entendimento do STJ. Em relação aos crimes contra a economia popular e a ordem econômica e financeira, ainda não sobreveio lei definidora dos crimes da pessoa jurídica.8 Destarte, mesmo para quem admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, deve ser ressaltado que somente podem ser praticados os crimes previstos na CF, desde que regulamentados por lei ordinária, a qual deverá instituir expressamente sua responsabilidade penal. É esse o entendimento atualmente dominante, no sentido de que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada penalmente pela prática de crimes ambientais, posição que tende cada vez mais a se consolidar, seja por interpretação do texto constitucional, seja por opção de política criminal, capaz de proporcionar eficiente resultado prático em tema tão em evidência. Saliente-se que, mesmo com o texto constitucional, há entendimentos no sentido de que não foi prevista a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Os defensores desta linha de pensamento interpretam o art. 225, § 3º, da CF9 da seguinte maneira: pessoas físicas suportam sanções penais, ao passo que pessoas jurídicas suportam sanções administrativas.

O sistema da dupla imputação: Ao se aceitar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, deve destacar-se que esse reconhecimento não exclui a responsabilidade da pessoa física coautora ou partícipe do delito. É o que se denomina de sistema paralelo de imputação (teoria da dupla imputação), previsto no art. 3º, parágrafo único, da Lei 9.605/1998, e com amparo nos arts. 13, caput, e 29, caput, ambos do CP. É de se observar, entretanto, que a condenação da pessoa jurídica não acarreta, automaticamente, em igual medida no tocante à pessoa física, pelo mesmo crime. Exigem-se provas seguras da autoria e da materialidade do fato delituoso relativamente a todos os envolvidos na infração penal.

Sujeito passivo: É o titular do bem jurídico protegido pela lei penal violada por meio da conduta criminosa. Pode ser denominado de vítima ou de ofendido, e divide-se em duas espécies: 1) Sujeito passivo constante, mediato, formal, geral, genérico ou indireto: é o Estado, pois a ele pertence o direito público subjetivo de exigir o cumprimento da legislação penal. Figura como sujeito passivo de todos os crimes, pois qualquer violação da lei penal transgride interesse a ele reservado pelo ordenamento jurídico; 2) Sujeito passivo eventual, imediato, material, particular, acidental ou direto: é o titular do bem jurídico especificamente tutelado pela lei penal. O Estado sempre figura como sujeito passivo constante. Além disso, pode ser sujeito passivo eventual, tal como ocorre nos crimes contra a Administração Pública.

Anotações gerais sobre o sujeito passivo: A pessoa jurídica pode ser vítima de diversos delitos, desde que compatíveis com a sua natureza. Da mesma forma, há diversos crimes que podem ser praticados contra incapazes, e inclusive contra o nascituro, como é o caso do aborto. É também possível a existência de sujeito passivo indeterminado. É o que ocorre nos crimes vagos, aqueles que têm como vítima um ente destituído de personalidade jurídica. Os mortos e os animais não podem ser sujeitos passivos de crimes. No caso da figura definida pelo art. 138, § 2º, do CP, não é o morto o sujeito passivo do crime. Os ofendidos são os seus familiares, preocupados em zelar pelo respeito reservado às suas recordações. Em relação aos crimes contra a fauna (arts. 29 a 37 da Lei 9.605/1998), é a coletividade que figura como vítima. De fato, ela é a titular do interesse de ver preservado todo o patrimônio ambiental. Anote-se, ainda, que ninguém pode praticar um crime contra si próprio. Em consonância com o princípio da alteridade do Direito Penal, inexiste delito na conduta maléfica somente a quem a praticou. No crime previsto no art. 171, § 2º, V, do CP (fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro), a vítima é a seguradora que se pretende ludibriar. Na hipótese da autoacusação falsa (art. 341 do CP), a vítima é o Estado, ofendido em sua função de administrar a Justiça. Por último, não se deve confundir o sujeito passivo com o prejudicado pelo crime. Ainda que muitas vezes tais características se reúnam na mesma pessoa, as situações são diversas. Prejudicado pelo crime é qualquer pessoa a quem o crime traga danos, patrimoniais ou não.

Objeto do crime: É o bem ou objeto contra o qual se dirige a conduta criminosa. Pode ser jurídico ou material. Objeto jurídico é o bem jurídico, o interesse ou valor protegido pela lei penal. Objeto material é a pessoa ou a coisa que suporta a conduta criminosa. Não há crime sem objeto jurídico, uma vez que todo e qualquer delito, sem exceção, viola um interesse protegido pela lei penal. Crime é a ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos legalmente protegidos. E, se não há bem jurídico tutelado pela lei penal, não há crime. É possível, entretanto, a existência de crime sem objeto material, como se verifica nos crimes de mera conduta.

Classificação do crime: A classificação dos crimes pode ser legal ou doutrinária. Classificação legal é a qualificação atribuída ao delito pela lei penal. A conduta de “matar alguém” é denominada pelo art. 121 do CP de homicídio. Na Parte Especial do CP, em regra, os crimes são acompanhados pela denominação legal (nomen iuris), também chamada de rubrica marginal. Classificação doutrinária é o nome dado pelos estudiosos do Direito Penal às infrações penais. Passemos às diversas espécies de delitos elencadas pela doutrina.

Crimes comuns, próprios e de mão própria: a) Crimes comuns ou gerais são aqueles que podem ser praticados por qualquer pessoa. O tipo penal não exige, em relação ao sujeito ativo, nenhuma condição especial. Fala-se também em crimes bicomuns, compreendidos como aqueles que podem ser cometidos por qualquer pessoa e contra qualquer pessoa; b) Crimes próprios ou especiais são aqueles em que o tipo penal exige uma situação fática ou jurídica diferenciada por parte do sujeito ativo. Admitem coautoria e participação. Os crimes próprios dividem-se em puros e impuros. Naqueles, a ausência da condição imposta pelo tipo penal leva à atipicidade do fato (exemplo: prevaricação, pois excluída a elementar “funcionário público”, não subsiste crime algum), enquanto nestes a exclusão da especial posição do sujeito ativo acarreta na desclassificação para outro delito (exemplo: peculato doloso, pois afastando-se a elementar “funcionário público”, o fato passará a constituir crime de furto ou apropriação indébita, conforme o caso). Existem ainda em crimes próprios com estrutura inversa, classificação relativa aos crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração em geral (crimes funcionais), bem como os chamados crimes bipróprios – delitos que exigem uma peculiar condição (fática ou jurídica) no tocante ao sujeito ativo e ao sujeito passivo. É o caso do infanticídio, que somente pode ser praticado pela mãe contra o próprio filho nascente ou recém-nascido;10 c) Crimes de mão própria, de atuação pessoal ou de conduta infungível são aqueles que somente podem ser praticados pela pessoa expressamente indicada no tipo penal. Não admitem coautoria, mas somente participação, eis que a lei não permite delegar a execução do crime a terceira pessoa.11 No caso do falso testemunho, o advogado do réu pode, por exemplo, induzir, instigar ou auxiliar a testemunha a faltar com a verdade, mas jamais poderá, em juízo, mentir em seu lugar ou juntamente com ela.

Crimes simples e complexos: a) Crime simples é aquele que se amolda em um único tipo penal. É o caso do furto (CP, art. 155); b) Crime complexo é aquele que resulta da união de dois ou mais tipos penais. Fala-se, nesse caso, em crime complexo em sentido estrito. O crime de roubo (CP, art. 157), por exemplo, é oriundo da fusão entre furto e ameaça (no caso de ser praticado com emprego de grave ameaça – CP, art. 147), ou furto e lesão corporal (se praticado mediante violência contra a pessoa – CP, art. 129). Denominam-se famulativos os delitos que compõem a estrutura unitária do crime complexo. De seu turno, crime complexo em sentido amplo é o que deriva da fusão de um crime com um comportamento por si só penalmente irrelevante, a exemplo da denunciação caluniosa (CP, art. 339), originária da união da calúnia (CP, art. 138) com a conduta lícita de noticiar à autoridade pública a prática da infração penal e sua respectiva autoria.

Crimes materiais, formais e de mera conduta: a) Crimes materiais ou causais são aqueles em que o tipo penal aloja em seu interior uma conduta e um resultado naturalístico, sendo a ocorrência deste último necessária para a consumação. É o caso do homicídio (CP, art. 121). A conduta é “matar alguém”, e o resultado naturalístico ocorre com o falecimento da vítima, operando-se com ele a consumação; b) Crimes formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado são aqueles nos quais o tipo penal contém em seu bojo uma conduta e um resultado naturalístico, mas este último é desnecessário para a consumação. Em síntese, malgrado possa se produzir o resultado naturalístico, o crime estará consumado com a mera prática da conduta. Na extorsão mediante sequestro (CP, art. 159), basta a privação da liberdade da vítima com o escopo de obter futura vantagem patrimonial indevida como condição ou preço do resgate. Ainda que a vantagem não seja obtida pelo agente, o crime estará consumado com a realização da conduta. c) Crimes de mera conduta ou de simples atividade são aqueles em que o tipo penal se limita a descrever uma conduta, ou seja, não contém resultado naturalístico, razão pela qual ele jamais poderá ser verificado. É o caso do ato obsceno (CP, art. 233).

Crimes instantâneos, permanentes, de efeitos permanentes e a prazo: a) Crimes instantâneos ou de estado são aqueles cuja consumação se verifica em um momento determinado, sem continuidade no tempo. É o caso do furto (CP, art. 155); b) Crimes permanentes são aqueles cuja consumação se prolonga no tempo, por vontade do agente. O ordenamento jurídico é agredido reiteradamente, razão pela qual a prisão em flagrante é cabível a qualquer momento, enquanto perdurar a situação de ilicitude. Os crimes permanentes se subdividem em: b.1) necessariamente permanentes são aqueles que para a consumação é imprescindível a manutenção da situação contrária ao Direito por tempo juridicamente relevante. É o caso do sequestro (CP, art. 148); b.2) eventualmente permanentes: em regra são crimes instantâneos, mas, no caso concreto, a situação de ilicitude pode ser prorrogada no tempo pela vontade do agente. Como exemplo pode ser indicado o furto de energia elétrica (CP, art. 155, § 3º); c) Crimes instantâneos de efeitos permanentes são aqueles cujos efeitos subsistem após a consumação, independentemente da vontade do agente, tal como ocorre na bigamia (CP, art. 235). d) Crimes a prazo são aqueles cuja consumação exige a fluência de determinado período. É o caso da lesão corporal de natureza grave em decorrência da incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias (CP, art. 129, § 1º, I), e do sequestro em que a privação da liberdade dura mais de 15 dias (CP, art. 148, § 1º, III).

Crimes unissubjetivos, plurissubjetivos e eventualmente coletivos: a) Crimes unissubjetivos, unilaterais, monossubjetivos ou de concurso eventual são aqueles em regra praticados por um único agente. Admitem, entretanto, o concurso de pessoas. É o caso do homicídio (CP, art. 121); b) Crimes plurissubjetivos, plurilaterais ou de concurso necessário são aqueles em que o tipo penal reclama a pluralidade de agentes, que podem ser coautores ou partícipes, imputáveis ou não, conhecidos ou desconhecidos, e inclusive pessoas em relação às quais já foi extinta a punibilidade. Subdividem-se em: b.1) crimes bilaterais ou de encontro – o tipo penal exige dois agentes, cujas condutas tendem a se encontrar. É o caso da bigamia (CP, art. 235); b.2) crimes coletivos ou de convergência: o tipo penal reclama a existência de três ou mais agentes. Podem ser: b.2.1) de condutas contrapostas – os agentes devem atuar uns contra os outros. É o caso da rixa (CP, art. 137); b.2.2) de condutas paralelas – os agentes se auxiliam, mutuamente, com o objetivo de produzirem o mesmo resultado. É o caso da associação criminosa (CP, art. 288). Contudo, os crimes plurissubjetivos não se confundem com os delitos de participação necessária. Estes podem ser praticados por uma única pessoa, nada obstante o tipo penal reclame a participação necessária de outra pessoa, que atua como sujeito passivo e, por esse motivo, não é punido (ex: rufianismo – CP, art. 230); c) Crimes eventualmente coletivos são aqueles em que, nada obstante o seu caráter unilateral, a diversidade de agentes atua como causa de majoração da pena, tal como se dá no furto qualificado (CP, art. 155, § 4º, IV) e no roubo circunstanciado (CP, art. 157, § 2º, II).

Crimes de subjetividade passiva única e de dupla subjetividade passiva: a) Crimes de subjetividade passiva única são aqueles em que consta no tipo penal uma única vítima. É o caso da lesão corporal (CP, art. 129); b) Crimes de dupla subjetividade passiva são aqueles em que o tipo penal prevê a existência de duas ou mais vítimas, tal como se dá no aborto sem o consentimento da gestante, em que se ofendem a gestante e o feto (CP, art. 125), e na violação de correspondência, na qual são vítimas o remetente e o destinatário (CP, art. 151).

Crimes de dano e de perigo: a) Crimes de dano ou de lesão são aqueles cuja consumação somente se produz com a efetiva lesão do bem jurídico. Como exemplos podem ser lembrados os crimes de homicídio (CP, art. 121), lesões corporais (CP, art. 129) e dano (CP, art. 163); b) Crimes de perigo são aqueles que se consumam com a mera exposição do bem jurídico penalmente tutelado a uma situação de perigo, ou seja, basta a probabilidade de dano. Subdividem-se em: b.1) crimes de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência: consumam-se com a prática da conduta, automaticamente. Não se exige a comprovação da produção da situação de perigo. Ao contrário, há presunção absoluta (iuris et de iure) de que determinadas condutas acarretam perigo a bens jurídicos. É o caso do tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33, caput). Esses crimes estão em sintonia com a CF, mas devem ser instituídos pelo legislador com parcimônia, evitando-se a desnecessária inflação legislativa; b.2) crimes de perigo concreto: consumam-se com a efetiva comprovação, no caso concreto, da ocorrência da situação de perigo. É o caso do crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (CP, art. 132); b.3) crimes de perigo individual: atingem uma pessoa ou um número determinado de pessoas, tal como no perigo de contágio venéreo (CP, art. 130); b.4) crimes de perigo comum ou coletivo: atingem um número indeterminado de pessoas, como no caso da explosão criminosa (CP, art. 251); b.5) crimes de perigo atual: o perigo está ocorrendo, a exemplo do abandono de incapaz (CP, art. 133); b.6) crimes de perigo iminente: o perigo está prestes a ocorrer; b.7) crimes de perigo futuro ou mediato: a situação de perigo decorrente da conduta se projeta para o futuro, como no porte ilegal de arma de fogo permitido ou restrito (Lei 10.826/2003, arts. 14 e 16), autorizando a criação de “tipos penais preventivos”.

Crimes unissubsistentes e plurissubsistentes: a) Crimes unissubsistentes são aqueles cuja conduta se revela mediante um único ato de execução, capaz por si só de produzir a consumação, tal como nos crimes contra a honra praticados com o emprego da palavra. Não admitem a tentativa, pois a conduta não pode ser fracionada, e, uma vez realizada, acarreta automaticamente na consumação. b) Crimes plurissubsistentes são aqueles cuja conduta se exterioriza por meio de dois ou mais atos, os quais devem somar-se para produzir a consumação. É o caso do crime de homicídio praticado por diversos golpes de faca. É possível a tentativa justamente em virtude da pluralidade de atos executórios.

Crimes comissivos, omissivos e de conduta mista: a) Crimes comissivos ou de ação são os praticados mediante uma conduta positiva, um fazer, tal como se dá no roubo (CP, art. 157). Nessa categoria se enquadra a ampla maioria dos crimes; b) Crimes omissivos ou de omissão são os cometidos por meio de uma conduta negativa, de uma inação, de um não fazer. Subdividem-se em: b.1) Crimes omissivos próprios ou puros: a omissão está contida no tipo penal, ou seja, a descrição da conduta prevê a realização do crime por meio de uma conduta negativa. Não há previsão legal do dever jurídico de agir, de forma que o crime pode ser praticado por qualquer pessoa que se encontre na posição indicada pelo tipo penal. Nesses casos, o omitente não responde pelo resultado naturalístico eventualmente produzido, mas somente pela sua omissão. Exemplo típico é o crime de omissão de socorro, definido pelo art. 135 do CP. Os crimes omissivos próprios são unissubsistentes, isto é, a conduta é composta de um único ato. Como decorrência, não admitem a forma tentada; b.2) Crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão: o tipo penal aloja em sua descrição uma ação, uma conduta positiva, mas a omissão do agente, que descumpre seu dever jurídico de agir, acarreta a produção do resultado naturalístico e a sua consequente responsabilização penal. As hipóteses de dever jurídico de agir foram previstas no art. 13, § 2º, do CP. Tais crimes entram também na categoria dos “próprios”, uma vez que somente podem ser cometidos por quem possui o dever jurídico de agir. São ainda crimes materiais, pois o advento do resultado naturalístico é imprescindível à consumação do delito, e admitem a tentativa, pelo fato de serem plurissubsistentes; b.3) Crimes omissivos por comissão: nestes crimes há uma ação provocadora da omissão. Exemplo: o funcionário público responsável por uma repartição impede que uma funcionária subalterna, com problemas de saúde, seja socorrida, e ela vem a falecer. Essa categoria não é reconhecida por grande parte da doutrina; b.4) Crimes omissivos “quase impróprios”: esta classificação, ignorada pelo direito penal brasileiro, diz respeito aos crimes em que a omissão não produz uma lesão ao bem jurídico, como nos crimes omissivos próprios, mas apenas um perigo, que pode ser abstrato ou concreto. Nas hipóteses de perigo concreto, tutela-se um bem jurídico naturalístico (exemplo: a vida humana), ao passo que, nos casos de perigo abstrato, busca-se a proteção de um bem jurídico normativo (exemplo: uma obrigação jurídica); c) Crimes de conduta mista são aqueles em que o tipo penal é composto de duas fases distintas, uma inicial e positiva, outra final e omissiva, a exemplo da apropriação de coisa achada, definida pelo art. 169, parágrafo único, II, do CP.

Crimes de forma livre e de forma vinculada: a) Crimes de forma livre são aqueles que admitem qualquer meio de execução. É o caso da ameaça (CP, art. 147), que pode ser cometida com emprego de gestos, palavras, escritos, símbolos etc.; b) Crimes de forma vinculada são aqueles que apenas podem ser executados pelos meios indicados no tipo penal. É o caso do crime de perigo de contágio venéreo (CP, art. 130), que somente admite a prática mediante relações sexuais ou atos libidinosos.

Crimes mono-ofensivos e pluriofensivos: a) Crimes mono-ofensivos são aqueles que ofendem um único bem jurídico. É o caso do furto (CP, art. 155), que viola o patrimônio; b) Crimes pluriofensivos são aqueles que atingem dois ou mais bens jurídicos, tal como no latrocínio (CP, art. 157, § 3º, parte final), que afronta a vida e o patrimônio.

Crimes principais e acessórios: a) Crimes principais são os que possuem existência autônoma, isto é, independem da prática de um crime anterior. É o caso do estupro (CP, art. 213); b) Crimes acessórios, de fusão ou parasitários são os que dependem da prática de um crime anterior, tal como na receptação (CP, art. 180), no favorecimento pessoal e no favorecimento real (CP, arts. 348 e 349) e na lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998, art. 1º). Nos termos do art. 108 do CP, a extinção da punibilidade do crime principal não se estende ao crime acessório.

Crimes transeuntes e não transeuntes: a) Crimes transeuntes ou de fato transitório são aqueles que não deixam vestígios materiais, como no caso dos delitos praticados verbalmente (ameaça, desacato, injúria, calúnia, difamação etc.); b) Crimes não transeuntes ou de fato permanente são aqueles que deixam vestígios materiais, tais como o homicídio (CP, art. 121) e as lesões corporais (CP, art. 129). Nos crimes não transeuntes, a falta de exame de corpo de delito leva à nulidade da ação penal, enquanto nos delitos transeuntes não se realiza a perícia (CPP, arts. 158 e 564, III, “b”).

Crimes à distância, plurilocais e em trânsito: a) Crimes à distância (ou crimes de espaço máximo), são aqueles cuja conduta e resultado ocorrem em países diversos. No tocante ao lugar do crime, o art. 6º do CP acolheu a teoria mista ou da ubiquidade; b) Crimes plurilocais são aqueles cuja conduta e resultado se desenvolvem em comarcas diversas, sediadas no mesmo país. Em relação às regras de competência, o art. 70 do CPP dispõe que, nesse caso, será competente para o processo e julgamento do crime o juízo do local em que se operou a consumação, mas existem exceções legais e jurisprudenciais; c) Crimes em trânsito são aqueles em que somente uma parte da conduta ocorre em um país, sem lesionar ou expor a situação de perigo bens jurídicos de pessoas que nele vivem. Exemplo: “A”, da Argentina, envia para os Estados Unidos uma missiva com ofensas a “B”, e essa carta passa pelo território brasileiro.

Crimes independentes e conexos: a) Crimes independentes são aqueles que não apresentam nenhuma ligação com outros delitos; b) Crimes conexos: são os que estão interligados entre si. Essa conexão pode ser penal ou processual penal. A conexão material ou penal, que nos interessa, divide-se em: b.1) teleológica ou ideológica: o crime é praticado para assegurar a execução de outro delito; b.2) consequencial ou causal: o crime é cometido para assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito. Essas duas espécies de conexão têm previsão legal. Funcionam como qualificadoras no crime de homicídio (CP, art. 121, § 2º, V) e como agravantes genéricas nos demais crimes (CP, art. 61, II, alínea “b”); b.3) ocasional: o crime é praticado como consequência da ocasião, da oportunidade proporcionada por outro delito. O agente responde por ambos os crimes, em concurso material. Cuida-se de criação doutrinária e jurisprudencial, sem amparo legal.

Crimes condicionados e incondicionados: a) Crimes condicionados são aqueles em que a inauguração da persecução penal depende de uma condição de procedibilidade. É o caso da ameaça, de ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou de seu representante legal (CP, art. 147). Anote-se que a legislação penal indica expressamente a condição de procedibilidade, quando necessária, pois a ausência de menção direta acarreta a conclusão de tratar-se de crime de ação penal pública incondicionada; b) Crimes incondicionados são aqueles em que a instauração da persecução penal é livre. Constituem a ampla maioria de delitos no Brasil. O Estado pode iniciá-la sem nenhuma autorização, como ocorre no crime de homicídio, de ação penal pública incondicionada.

Outras classificações:

Crime gratuito: É o praticado sem motivo conhecido, porque todo crime tem uma motivação. Não se confunde com o motivo fútil, definido como aquele de menor importância, desproporcional ao resultado provocado pelo delito. Com efeito, a ausência de motivo conhecido não deve ser equiparada ao motivo fútil. Destarte, o desconhecimento acerca do móvel do agente não deve ser colocado no mesmo nível do motivo de somenos importância. Há, todavia, adeptos de posição contrária, alegando que se um motivo ínfimo justifica a elevação da pena, com maior razão deve ser punida mais gravemente a infração penal imotivada.

Crime de ímpeto: É o cometido sem premeditação, como decorrência de reação emocional repentina, tal como no homicídio privilegiado, praticado pelo agente sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (CP, art. 121, § 1º). Normalmente, esses crimes são passionais (movidos pela paixão).

Crime exaurido: É aquele em que o agente, depois de já alcançada a consumação, insiste na agressão ao bem jurídico. Não caracteriza novo crime, constituindo-se em desdobramento de uma conduta perfeita e acabada. Em outras palavras, é o delito que, depois de consumado, alcança suas consequências finais, as quais podem configurar um indiferente penal, como no falso testemunho (CP, art. 342), que se torna exaurido com o encerramento do julgamento relativo a este crime, ou então condição de maior punibilidade, como ocorre na resistência (CP, art. 329), em que a não execução do ato dá ensejo à forma qualificada do crime.

Crime de circulação: É o praticado com o emprego de veículo automotor, a título de dolo ou de culpa, com a incidência do CP ou do CTB (Lei 9.503/1997).

Crime de atentado ou de empreendimento: É aquele em que a lei pune de forma idêntica o crime consumado e a forma tentada, isto é, não há diminuição da pena em face da tentativa. É o caso da evasão mediante violência contra a pessoa (art. 352 do CP).

Crime de opinião ou de palavra: É o cometido pelo excesso abusivo na manifestação do pensamento, seja pela forma escrita, seja pela forma verbal, tal como ocorre no desacato (art. 331 do CP).

Crime multitudinário: É aquele praticado pela multidão em tumulto. A lei não diz o que se entende por “multidão”, razão pela qual sua configuração deve ser examinada no caso concreto. Exemplo: agressões praticadas em um estádio por torcedores de um time de futebol. No Direito Canônico da Idade Média, exigiam-se ao menos 40 pessoas.

Crime vago: É aquele em que figura como sujeito passivo uma entidade destituída de personalidade jurídica, como a família ou a sociedade. Exemplo: tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei 11.343/2006), no qual o sujeito passivo é a coletividade.

Crime internacional: É aquele que, por tratado ou convenção devidamente incorporado ao ordenamento jurídico pátrio, o Brasil se comprometeu a evitar e punir, tal como o tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231 do CP).

Crime de mera suspeita, sem ação ou de mera posição: Nesse crime o agente não realiza conduta penalmente relevante, mas é punido pela suspeita despertada pelo seu modo de agir. Essa modalidade, idealizada na Itália por Vicenzo Manzini, não encontrou amparo seguro na doutrina. No Brasil, ainda que de forma temerária, pode ser apresentada como exemplo a contravenção penal tipificada pelo art. 25 do Decreto-lei 3.688/1941 – LCP (posse não justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto).

Crime inominado: Delineado pelo uruguaio Salvagno Campos, é o que ofende regra ética ou cultural consagrada pelo Direito Penal, embora não definido em lei como infração penal. Não pode ser aceito, haja vista que o princípio da reserva legal veda a analogia in malam partem em âmbito criminal.

Crime habitual: É o que somente se consuma com a prática reiterada e uniforme de vários atos que revelam um criminoso estilo de vida do agente. Cada ato, isoladamente considerado, é atípico. Com efeito, se cada ato fosse típico, restaria configurado o crime continuado ou então o concurso material, dependendo da situação concreta. Exemplos: exercício ilegal da medicina e curandeirismo (arts. 282 e 284 do CP, respectivamente).

Crime profissional: É o crime habitual, quando cometido com finalidade lucrativa. Exemplo: rufianismo (art. 230 do CP).

Quase crime: É o nome doutrinário atribuído ao crime impossível (art. 17 do CP) e à participação impunível (art. 31 do CP). Na verdade, inexiste crime.

Crime subsidiário: É o que somente se verifica se o fato não constitui crime mais grave. É o caso do dano (art. 163 do CP), subsidiário em relação ao crime de incêndio (art. 250 do CP). Para Nélson Hungria, o crime subsidiário funciona como “soldado de reserva”.

Crime hediondo: É todo aquele que se enquadra no rol do artigo 1º da Lei 8.072/1990, na forma consumada ou tentada. Adotou-se um critério legal: crime hediondo é aquele que a lei define como hediondo, independentemente da discussão sobre sua gravidade.

Crime de expressão: É o que se caracteriza pela existência de um processo intelectivo interno do autor. Exemplo: falso testemunho (art. 342 do CP), no qual a conduta tipificada não se funda na veracidade ou na falsidade objetiva da informação, mas na desconformidade entre a informação e a convicção pessoal do seu autor.

Crime de intenção: É aquele em que o agente quer e persegue um resultado que não necessita ser alcançado para a consumação, como se dá na extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP).

Crime de tendência ou de atitude pessoal: É aquele em que a tendência afetiva do autor delimita a ação típica, ou seja, a tipicidade pode ou não ocorrer em razão da atitude pessoal e interna do agente. Exemplos: toque do ginecologista na realização do diagnóstico, que pode configurar mera atuação profissional ou, então, algum crime de natureza sexual, dependendo da tendência (libidinosa ou não), bem como as palavras dirigidas contra alguém, que podem ou não caracterizar o crime de injúria em razão da intenção de ofender a honra ou de apenas criticar ou brincar.

Crime mutilado de dois atos ou tipos imperfeitos de dois atos: É aquele em que o sujeito pratica um delito, com a finalidade de obter um benefício posterior. Ex.: falsidade para cometer outro crime.

Crime de ação violenta: É o cometido mediante o emprego de violência contra a pessoa ou grave ameaça, como no caso do roubo (art. 157 do CP).

Crime de ação astuciosa: É o praticado por meio de fraude, engodo, tal como no estelionato (art. 171 do CP).

Crime falho: É a denominação doutrinária atribuída à tentativa perfeita ou acabada.

Crime putativo, imaginário ou erroneamente suposto: É aquele em que o agente acredita realmente ter praticado um crime, quando na verdade cometeu um indiferente penal. Trata-se de um “não crime”, que se divide em três espécies: a) crime putativo por erro de tipo; b) crime putativo por erro de proibição ou delito por alucinação; e c) crime putativo por obra do agente provocador (Súmula 145 do STF).

Crime remetido: É o que se verifica quando sua definição típica se reporta a outro crime, que passa a integrá-lo, como no uso de documento falso (“fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302” – art. 304 do CP).

Crimes de responsabilidade: Dividem-se em próprios (são, na verdade, crimes comuns) e impróprios (infrações político-administrativas). Esses últimos são apreciados pelo Poder Legislativo, e a sua prática redunda na imposição de sanções políticas.

Crime obstáculo: É aquele que retrata atos preparatórios tipificados como crime autônomo pelo legislador. É o caso da associação criminosa (art. 288 do CP) e dos petrechos para falsificação de moeda (art. 291 do CP).

Crime progressivo: É aquele que, para ser cometido, o agente deve violar outra lei penal, a qual tipifica crime menos grave, chamado de crime de ação de passagem. Em síntese, o agente, pretendendo desde o início produzir o resultado mais grave, pratica sucessivas violações ao bem jurídico. Com a adoção do princípio da consunção para solução do conflito aparente de leis penais, o crime mais grave absorve o menos grave. Exemplo: relação entre homicídio e lesão corporal.

Progressão criminosa: Verifica-se quando ocorre mutação no dolo do agente, que inicialmente realiza um crime menos grave e, após já alcançada a consumação, decide praticar outro delito de maior gravidade. Há dois crimes, mas o agente responde por apenas um deles, o mais grave, em face do princípio da consunção.

Crimes de impressão: Nos dizeres de Mário O. Folchi são aqueles que provocam determinado estado de ânimo na vítima. Dividem-se em: a) crimes de inteligência: são praticados mediante o engano, como o estelionato (art. 171 do CP); b) crimes de vontade: recaem na vontade do agente quanto à sua autodeterminação, como o sequestro (art. 148 do CP); e c) crimes de sentimento: são os que incidem nas faculdades emocionais, tal como a injúria (CP, art. 140).12

Crimes militares: São os tipificados pelo CPM (Decreto-lei 1.001/1969). Subdividem-se em próprios e impróprios: a) Crimes militares próprios (ou puramente militares) são os definidos exclusivamente pelo Código Penal Militar.13 Exemplo: deserção (art. 187 do CPM); b) Por outro lado, crimes militares impróprios são os que encontram previsão legislativa tanto no CPM como no CP comum, tais como furto, roubo, estupro e homicídio. Podem ser ainda crimes militares em tempo de paz (art. 9º do CPM) e crimes militares em tempo de guerra (art. 10 do CPM).

Crimes falimentares: São os tipificados pela Lei de Falências (Lei 11.101/2005). Podem ser ante ou pós-falimentares, conforme sejam praticados antes ou depois da sentença declaratória da falência; ou ainda próprios ou impróprios, se forem cometidos pelo falido ou por outra pessoa (exemplo: administrador judicial, contador etc.).

Crimes funcionais ou delicta in officio: São aqueles cujo tipo penal exige seja o autor funcionário público.14 Dividem-se em próprios e impróprios. Crimes funcionais próprios são aqueles em que a condição de funcionário público, no tocante ao sujeito ativo, é indispensável à tipicidade do fato. A ausência desta condição conduz à atipicidade absoluta, tal como ocorre na corrupção passiva e na prevaricação (arts. 317 e 319 do CP, respectivamente). Nos crimes funcionais impróprios, ou mistos, se ausente a qualidade funcional, opera-se a desclassificação para outro delito.

Crimes parcelares: São os crimes da mesma espécie que compõem a série da continuidade delitiva, desde que presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 71, caput, do CP. Com efeito, o ordenamento penal brasileiro filiou-se, no campo do crime continuado, à teoria da ficção jurídica, razão pela qual os diversos delitos (parcelares) são considerados, para fins de aplicação da pena, como um único crime.

Crimes de hermenêutica: São os que resultam unicamente da interpretação dos operadores do Direito, pois na situação concreta não existem provas, nem sequer indícios consistentes, da prática de um fato legalmente descrito como criminoso. A expressão “crimes de hermenêutica” foi idealizada por Rui Barbosa.

Crimes de rua, crimes do colarinho branco e crimes do colarinho azul: Crimes de rua são os praticados pelas pessoas de classes sociais desfavorecidas, a exemplo dos furtos executados por miseráveis, andarilhos e mendigos. Estes delitos são cometidos aos olhos da sociedade, em locais supervisionados pelo Estado (praças, parques, favelas etc.), e por esta razão são frequentemente objeto das instâncias de proteção (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário). Quando ficam alheios ao conhecimento do Poder Público, integram as cifras negras do Direito Penal. Os crimes de rua se contrapõem aos “crimes do colarinho branco” (white collar crime), cometidos por aqueles que gozam e abusam da elevada condição econômica e do poder daí decorrente, como é o caso dos delitos contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/1986), de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998) e contra a ordem econômica (Lei 8.176/1991), entre tantos outros. Nesses crimes socioeconômicos, surgem as “cifras douradas do Direito Penal”, indicativas da diferença apresentada entre a criminalidade real e a criminalidade conhecida e enfrentada pelo Estado. Raramente existem registros envolvendo delitos desta natureza, inviabilizando a persecução penal e acarretando a impunidade das pessoas privilegiadas no âmbito econômico. De fato, em tais crimes o Poder Público pouco interfere, pois são praticados em locais privados (escritórios, restaurantes de luxo, casas, apartamentos etc.), resultando no desconhecimento pelo Estado e, consequentemente, na ausência do correspondente registro para viabilizar a persecução penal. Se os crimes econômicos são etiquetados como crimes do colarinho branco, os crimes de rua são rotulados como crimes do colarinho azul: aqueles fazem alusão às finas camisas utilizadas pelos executivos das grandes empresas, enquanto estes se referem à cor dos macacões utilizados pelos operários norte-americanos da década de 1940. Esta última nomenclatura foi utilizada no STF, pelo Min. Luiz Fux, no julgamento do “Mensalão” (Ap 470/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, Plenário, j. 27.08.2012).

Crime liliputiano (“crime anão” ou “crime vagabundo”): É o nome doutrinário reservado às contravenções penais. Esta terminologia tem origem no livro Viagens de Gulliver, do inglês Jonathan Swift, no qual o personagem principal viaja por um mundo imaginário, e em sua primeira jornada vai a Liliput, terra em que os habitantes medem apenas 15 (quinze) centímetros de altura. Na verdade, não há crime (ou delito), em face da regra contida no art. 1º do Decreto-lei 3.914/1941 – LICP.

Jurisprudência selecionada:

Conceito legal de crime – Art. 28 da Lei de Drogas: “O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/2006 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo ‘rigor técnico’, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado ‘Dos Crimes e das Penas’, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Ao uso da expressão ‘reincidência’, também não se pode emprestar um sentido ‘popular’, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C. Penal, art. 12). Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). Ocorrência, pois, de ‘despenalização’, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C. Penal, art. 107)” (STF: RE 430.105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.2007).15

Contravenções penais – competência – Justiça Estadual: “É da competência da Justiça estadual o julgamento de contravenções penais, mesmo que conexas com delitos de competência da Justiça Federal. A Constituição Federal expressamente excluiu, em seu art. 109, IV, a competência da Justiça Federal para o julgamento das contravenções penais, ainda que praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União. Tal orientação está consolidada na Súm. n. 38/STJ” (STJ: CC 120.406/RJ, rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira (Desembargadora convocada do TJ/PE), 3ª Seção, j. 12.12.2012, noticiado no Informativo 511).

Crime complexo: “O tipo penal concernente ao roubo qualificado pelo resultado lesão corporal grave (CP, art. 157, § 3º, primeira parte) realiza-se em todos os seus elementos estruturais (essentialia delicti), dando ensejo ao reconhecimento da consumação desse delito, sempre que o agente, procedendo com a intenção de executar a subtração patrimonial (embora frustrada em sua efetivação), comete violência física de que resultem lesões corporais de natureza grave. Adoção do princípio enunciado na Súmula 610/STF, ainda que não se cuide, na espécie, do crime de latrocínio. A questão pertinente à consumação do crime complexo, quando meramente tentado um dos delitos que lhe compõem a estrutura unitária (delitos famulativos)” (STF: HC 71.069/SP, rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, j. 10.05.1994).

Crime de mera suspeita – art. 25 da Lei das Contravenções Penais – não recepção pela Constituição Federal de 1988: “O art. 25 da Lei de Contravenções Penais – LCP (Decreto-lei 3.688/41: ‘Art. 25. Ter alguém em seu poder, depois de condenado, por crime de furto ou roubo, ou enquanto sujeito à liberdade vigiada ou quando conhecido como vadio ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados usualmente na prática de crime de furto, desde que não prove destinação legítima: Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, e multa de duzentos mil réis a dois contos de réis’) não é compatível com a Constituição de 1988, por violar os princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e da isonomia (CF, art. 5º, caput e I). Essa a conclusão do Plenário, que deu provimento a recursos extraordinários, julgados em conjunto, e absolveu os recorrentes, nos termos do art. 386, III, do CPP. Discutia-se a temática relativa à recepção do mencionado art. 25 da LCP pelo novo ordenamento constitucional. No caso, os recorrentes foram condenados pela posse injustificada de instrumento de emprego usual na prática de furto, tendo em conta condenação anterior pelo aludido crime (CP, art. 155, § 4º). (...) No mérito, destacou-se que o princípio da ofensividade deveria orientar a aplicação da lei penal, de modo a permitir a aferição do grau de potencial ou efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma. Observou-se que, não obstante a contravenção impugnada ser de mera conduta, exigiria, para a sua configuração, que o agente tivesse sido condenado anteriormente por furto ou roubo; ou que estivesse em liberdade vigiada; ou que fosse conhecido como vadio ou mendigo. Assim, salientou-se que o legislador teria se antecipado a possíveis e prováveis resultados lesivos, o que caracterizaria a presente contravenção como uma infração de perigo abstrato. Frisou-se que a LCP fora concebida durante o regime ditatorial e, por isso, o anacronismo do tipo contravencional. Asseverou-se que a condição especial ‘ser conhecido como vadio ou mendigo’, atribuível ao sujeito ativo, criminalizaria, em verdade, qualidade pessoal e econômica do agente, e não fatos objetivos que causassem relevante lesão a bens jurídicos importantes ao meio social. Consignou-se, no ponto, a inadmissão, pelo sistema penal brasileiro, do direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. No que diz respeito à consideração da vida pregressa do agente como elementar do tipo, afirmou-se o não cabimento da presunção de que determinados sujeitos teriam maior potencialidade de cometer novas infrações penais. Por fim, registrou-se que, sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, a norma em questão não se mostraria adequada e necessária, bem como afrontaria o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito” (STF: RE 583.523/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, j. 03.10.2013, noticiado no Informativo 722).

Crime hediondo – forma tentada – irrelevância: “O fato de não ter sido consumado o crime não afasta a hediondez do delito” (STJ: HC 220.978/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 16.10.2012, noticiado no Informativo 506).

Crime obstáculo – tipo penal preventivo: “A Turma, acompanhando recente assentada, quando do julgamento, por maioria, do REsp 1.193.805-SP, manteve o entendimento de que o porte ilegal de arma de fogo é crime de perigo abstrato, cuja consumação se caracteriza pelo simples ato de alguém levar consigo arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal – sendo irrelevante a demonstração de efetivo caráter ofensivo. Isso porque, nos termos do disposto no art. 16, parágrafo único, IV, da Lei nº 10.826/2003, o legislador teve como objetivo proteger a incolumidade pública, transcendendo a mera proteção à incolumidade pessoal, bastando, assim, para a configuração do delito em discussão a probabilidade de dano, e não sua ocorrência. Segundo se observou, a lei antecipa a punição para o ato de portar arma de fogo; é, portanto, um tipo penal preventivo, que busca minimizar o risco de comportamentos que vêm produzindo efeitos danosos à sociedade, na tentativa de garantir aos cidadãos o exercício do direito à segurança e à própria vida. Conclui-se, assim, ser irrelevante aferir a eficácia da arma para a configuração do tipo penal, que é misto-alternativo, em que se consubstanciam, justamente, as condutas que o legislador entendeu por bem prevenir, seja ela o simples porte de munição ou mesmo o porte de arma desmuniciada” (STJ: HC 211.823/SP, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 22.03.2012, noticiado no Informativo 493).

Crime permanente – prisão em flagrante – possibilidade de realização do ato por qualquer do povo: “Não é ilegal a prisão realizada por agentes públicos que não tenham competência para a realização do ato quando o preso foi encontrado em estado de flagrância. Os tipos penais previstos nos arts. 12 e 16 da Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) são crimes permanentes e, de acordo com o art. 303 do CPP, o estado de flagrância nesse tipo de crime persiste enquanto não cessada a permanência. Segundo o art. 301 do CPP, qualquer do povo pode prender quem quer que seja encontrado em situação de flagrante, razão pela qual a alegação de ilegalidade da prisão – pois realizada por agentes que não tinham competência para tanto – não se sustenta” (STJ: HC 244.016/ES, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 16.10.2012, noticiado no Informativo 506).

Crime permanente – tráfico de drogas – flagrante esperado – não incidência da Súmula 145 do STF: “Não há que se confundir flagrante forjado com esperado, em que a polícia tão somente espera a prática da infração, sem que haja instigação e tampouco a preparação do ato, mas apenas o exercício de vigilância na conduta do agente criminoso. O delito de tráfico de entorpecente consuma-se com a prática de qualquer umas das dezoito ações identificadas no núcleo do tipo, todas de natureza permanente que, quando preexistentes à atuação policial, legitimam a prisão em flagrante, sem que se possa falar em flagrante forjado ou preparado. Hipótese em que as pacientes não foram apreendidas no momento em que comercializavam a droga, o que teria sido obstado pela presença dos policiais, tendo o delito sido deflagrado em momento anterior, pelo núcleo ‘trazer consigo’ substância entorpecente, razão pela qual se tem como descabida a aplicação da Súm. nº 145 do STF, a fim de ver reconhecido o crime impossível. Os policiais não encontraram droga com uma das recorrentes, muito menos a surpreenderam vendendo qualquer substância ilícita, sendo que a sua prisão em flagrante foi baseada em informações obtidas com usuários de entorpecentes que informaram ser a mesma traficante” (STJ: RHC 20.283/SP, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 24.02.2007).

Crimes próprios ou especiais – participação – dosimetria da pena: “Sujeito ativo qualificado segundo o disposto no art. 25, da Lei 7.492/1986 – intraneus. Possibilidade jurídica de participação de um não qualificado – extraneus – no delito especial executado pelo qualificado. Aplicação da regra contida no art. 30 do Código Penal. Existência de narrativa sobre conduta que, em tese, autoriza a responsabilização do recorrente a título de participação: o ‘como’, o ‘de que forma’, o ‘de que maneira’ concorreu para cada uma das infrações, inclusive na modalidade omissiva. responsabilidade do partícipe por omissão. improcedência da alegação de contrariedade aos artigos 13 e 29, do Código Penal. (...) Toda e qualquer empresa que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros, é por efeito da Lei 7.492/1986, equiparada a instituição financeira, sendo este último o caso da empresa vítima. Se a empresa AEROS – Fundo de Pensão Multipatrocinado é pertencente ao Sistema Financeiro Nacional, a competência, ratione materiae, para o julgamento do processo é da Justiça Federal. A delimitação legal do âmbito da autoria nos delitos especiais, tanto próprios quanto impróprios, por si só, não impede o surgimento do concurso de pessoas e a responsabilização penal, pela mesma figura de delito, de sujeito não qualificado – extraneus –, havendo pelo menos um qualificado – intraneus – interveniente, na condição de autor, e conhecendo os demais sua condição pessoal – aplicação da regra contida no artigo 30, do CP, pela interpretação a contrario sensu, segundo a qual se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal se elementares do tipo, não havendo razão, de lógica ou de justiça, para que as normas penais de caráter geral deixem de incidir tão somente em face dos crimes definidos na Lei 7.492/1986 que, juntamente com inúmeras outras figuras previstas no ordenamento jurídico-penal brasileiro, integram o gênero dos chamados delitos especiais. Se a decisão revela ‘como’ e ‘porquê’ o Recorrente se faz corresponsável pelos delitos definidos nos artigos 4º, caput; 5º, caput; 7º, inciso IV; e 9º, da Lei 7.492/1986, não há como se admitir a inexistência de fundamento fático à condenação. Todo partícipe por omissão é garantidor, mas nem todo garantidor é partícipe: existência da necessária explicitação de bases fáticas à condenação. (...) No ordenamento penal em vigor, não há obrigatoriedade de redução de pena para o partícipe, em relação à pena do autor, considerada a participação em si mesma, ou seja; como forma de concorrência diferente da autoria (ou coautoria). A redução obrigatória da pena para o partícipe se dá apenas em face daquela que a Lei chama de ‘menor importância’ – o que já está a revelar que nem toda participação é de menor importância e que, a princípio, a punição do partícipe é igual a do autor. A diferenciação está ‘na medida da culpabilidade’ e, nessa linha, o partícipe pode, em tese, vir até mesmo a merecer pena maior que a do autor, como exemplo, no caso do inciso IV, do artigo 62, do CP” (STJ: REsp 575.684/SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, j. 04.10.2005).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – ato de gerência: “Em crime a envolver pessoa jurídica, a responsabilidade é de quem implementa a gerência, não cabendo exigir a narração, na denúncia, da forma em que teria, nesse mister, praticado o ato” (STF: HC-MC 91.591/MG, rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, j. 21.06.2007).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – cabimento de habeas corpus: “Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. Writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como corré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade” (STF: HC 92.921/BA, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, j. 19.08.2008).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – concurso de pessoas: “Os tipos penais que descrevem as condutas tidas como ilícitas – destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente e cortar árvores em florestas consideradas de preservação permanente (arts. 38 e 39 da Lei 9.605/1998) – não impõem a aplicação da sanção penal apenas àquele que fisicamente executou a atividade criminosa; aquele que, na qualidade de partícipe, presta suporte moral ou material ao agente, concorrendo, de qualquer forma, para a realização do ilícito penal, por óbvio, também deve ser responsabilizado, nos termos do art. 29 do CPB e do art. 2º da Lei 9.605/1998. A conduta omissiva não deve ser tida como irrelevante para o crime ambiental, devendo da mesma forma ser penalizado aquele que, na condição de diretor, administrador, membro do conselho e de órgão técnico, auditor, gerente, preposto ou mandatário da pessoa jurídica, tenha conhecimento da conduta criminosa e, tendo poder para impedi-la, não o fez” (STJ: HC 92.822/SP, rel. originário Min. Arnaldo Esteves Lima, rel. para acórdão Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, j. 17.06.2008).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – crimes ambientais – possibilidade: “Comprovado que a ré GVT, sem licença ambiental, fez funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, praticou o crime ambiental previsto no art. 60 da Lei 9.605/98. Prova suficiente para a manutenção da condenação e da pena, corretamente aplicada à ré pessoa jurídica” (STF: RE 628.582 AgR/RS, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, j. 06.09.2011).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – sistema da dupla imputação: “Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que ‘não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio’ cf. REsp nº 564.960/SC, 5ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13.06.2005 (Precedentes)” (STJ: REsp 889.528/SC, rel. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 17.04.2007).

Responsabilidade penal da pessoa jurídica – crimes ambientais – possibilidade de condenação, mesmo com a condenação das pessoas físicas: “É admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa. Com base nesse entendimento, a 1ª Turma, por maioria, conheceu, em parte, de recurso extraordinário e, nessa parte, deu-lhe provimento para cassar o acórdão recorrido. Neste, a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas (Lei 9.605/1998, art. 54) teria sido excluída e, por isso, trancada a ação penal relativamente à pessoa jurídica. (...) No mérito, anotou-se que a tese do STJ, no sentido de que a persecução penal dos entes morais somente se poderia ocorrer se houvesse, concomitantemente, a descrição e imputação de uma ação humana individual, sem o que não seria admissível a responsabilização da pessoa jurídica, afrontaria o art. 225, § 3º, da CF. Sublinhou-se que, ao se condicionar a imputabilidade da pessoa jurídica à da pessoa humana, estar-se-ia quase que a subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva condenação da pessoa física. Ressaltou-se que, ainda que se concluísse que o legislador ordinário não estabelecera por completo os critérios de imputação da pessoa jurídica por crimes ambientais, não haveria como pretender transpor o paradigma de imputação das pessoas físicas aos entes coletivos. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, que negavam provimento ao extraordinário. Afirmavam que o art. 225, § 3º, da CF não teria criado a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Para o Min. Luiz Fux, a mencionada regra constitucional, ao afirmar que os ilícitos ambientais sujeitariam ‘os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas’, teria apenas imposto sanções administrativas às pessoas jurídicas. Discorria, ainda, que o art. 5º, XLV, da CF teria trazido o princípio da pessoalidade da pena, o que vedaria qualquer exegese a implicar a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por fim, reputava que a pena visaria à ressocialização, o que tornaria impossível o seu alcance em relação às pessoas jurídicas” (STF: RE 548.181/PR, rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, j. 06.08.2013, noticiado no Informativo 714).

Relação de causalidade

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Superveniência de causa independente

§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.

Relevância da omissão

§ 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a)tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b)de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c)com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Introdução: A causalidade é um dos elementos do fato típico. Fato típico é o fato humano16 que se enquadra com perfeição aos elementos descritos pelo tipo penal. São quatro os elementos do fato típico: conduta, resultado naturalístico, relação de causalidade (nexo causal) e tipicidade. Tais elementos estarão presentes, simultaneamente, nos crimes materiais consumados. Na tentativa e nos crimes formais e de mera conduta, os componentes do fato típico são a conduta e a tipicidade. Vale recordar que nos crimes de mera conduta jamais haverá resultado naturalístico, razão pela qual se subtrai a relação de causalidade, enquanto nos crimes formais o resultado naturalístico pode até ocorrer, mas não é necessário para a consumação.

Relação de causalidade ou nexo causal: Emprega-se, comumente, a expressão “nexo causal” para referir-se à ligação entre a conduta e o resultado. O art. 13 do CP, todavia, preferiu falar em “relação de causalidade”. Essa, portanto, é a denominação legal. Relação de causalidade é o vínculo formado entre a conduta praticada por seu autor e o resultado por ele produzido. É por meio dela que se conclui se o resultado foi ou não provocado pela conduta, autorizando, se presente a tipicidade, a configuração do fato típico.

Âmbito de aplicação: Prevalece em doutrina o entendimento de que a expressão “o resultado”, constante no início do art. 13, caput, do CP, alcança somente o resultado naturalístico, isto é, a modificação externa provocada pela conduta praticada por alguém. Destarte, o estudo da relação de causalidade tem pertinência apenas aos crimes materiais. Nos crimes de atividade, o resultado naturalístico pode ocorrer (formais) ou não (de mera conduta). De qualquer forma, é dispensável, pois se consumam com a simples prática da conduta ilícita.

Teorias da relação de causalidade: Destacam-se três teorias na busca de definir a relação de causalidade: equivalência dos antecedentes, causalidade adequada e imputação objetiva (analisada no final deste artigo).

Teoria da equivalência dos antecedentes: Também chamada de teoria da equivalência das condições, teoria da condição simples, teoria da condição generalizadora, ou teoria da conditio sine qua non. Foi criada por Glaser,17 e posteriormente desenvolvida por Von Buri e Stuart Mill, em 1873. Para essa teoria, causa é todo fato humano sem o qual o resultado não teria ocorrido, quando ocorreu e como ocorreu.

Teoria da causalidade adequada: Também chamada de teoria da condição qualificada ou teoria individualizadora – originou-se dos estudos de Von Kries. Causa, nesse contexto, é o antecedente, não só necessário, mas adequado à produção do resultado. Destarte, para que se possa atribuir um resultado a determinada pessoa, é necessário que ela, além de praticar um antecedente indispensável, realize uma atividade adequada à sua concretização. Considera-se a conduta adequada quando é idônea a gerar o efeito. A idoneidade baseia-se na regularidade estatística, aferida de acordo com o juízo do homem médio e com a experiência comum. Não basta contribuir de qualquer modo para o resultado: a contribuição deve ser eficaz.

Teorias adotadas pelo Código Penal: Acolheu-se, como regra, a teoria da equivalência dos antecedentes. É o que se extrai do art. 13, caput, in fine: “Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Causa, pois, é todo o comportamento humano, comissivo ou omissivo, que de qualquer modo concorreu para a produção do resultado naturalístico. Pouco importa o grau de contribuição. Basta que tenha contribuído para o resultado material, na forma e quando ocorreu. Não há diferença entre causa, condição (fator que autoriza à causa a produção de seu efeito) ou ocasião (circunstância acidental que estimula favoravelmente a produção da causa). Excepcionalmente, o CP adota, no § 1º do art. 13, a teoria da causalidade adequada.

Identificação da causa: Para concluir se um acontecimento foi ou não causa do crime, utiliza-se o processo hipotético de eliminação, desenvolvido, em 1894, pelo sueco Thyrén. Suprime-se mentalmente determinado fato que compõe o histórico do crime: se desaparecer o resultado naturalístico, é porque também era sua causa; todavia, se com a sua eliminação permanecer íntegro o resultado material, não se pode falar que aquele acontecimento atuou como sua causa.

Crítica à teoria da equivalência dos antecedentes: Há vozes no sentido de que esta teoria seria “cega”, pois permitiria a regressão ao infinito (regressus ad infinitum), uma vez que causa é todo acontecimento que de qualquer modo contribui para o resultado. Esta crítica, contudo, é despropositada. Com efeito, para que um fato ingresse no conceito de causa, não basta a mera dependência (ou causalidade) física. Exige-se ainda a causalidade psíquica (imputatio delicti), é dizer, reclama-se a presença do dolo ou da culpa por parte do agente no tocante ao resultado naturalístico.

Concausas: Concausa é a convergência de uma causa externa à vontade do autor da conduta, influindo na produção do resultado naturalístico por ele desejado e posicionando-se paralelamente ao seu comportamento, comissivo ou omissivo.

Espécies de causas: Podem ser dependentes e independentes.

a)Causa dependente é a que emana da conduta do agente, dela se origina, razão pela qual se insere no curso normal do desenvolvimento causal. Existe dependência entre os acontecimentos, pois sem o anterior não ocorreria o posterior. Desse modo, não exclui a relação de causalidade.

b)Causa independente é a que foge da linha normal de desdobramento da conduta. Seu aparecimento é inesperado e imprevisível. É independente porque tem a capacidade de produzir, por si só, o resultado.18 Pode ser de natureza absoluta ou relativa, dependendo de sua origem.

b.1)Causas absolutamente independentes são aquelas que não se originam da conduta do agente, isto é, são absolutamente desvinculadas da sua ação ou omissão ilícita. E, por serem independentes, produzem por si sós o resultado naturalístico. Constituem a chamada “causalidade antecipadora”,19 pois rompem o nexo causal. Dividem-se em preexistentes ou estado anterior – aquelas que existem anteriormente à prática da conduta. O resultado naturalístico teria ocorrido da mesma forma, mesmo sem o comportamento ilícito do agente; concomitantes – as que incidem simultaneamente à prática da conduta. Surgem no mesmo instante em que o agente realiza seu comportamento criminoso; e supervenientes – as que se concretizam posteriormente à conduta praticada pelo agente. Em todas as modalidades o resultado naturalístico ocorre independentemente da conduta do agente. As causas surgem de forma autônoma, ou seja, não se ligam ao comportamento criminoso do agente, e produzem por si sós o resultado material.20 Por corolário, devem ser imputados ao agente somente os atos praticados, e não o resultado naturalístico, em face da quebra da relação de causalidade. De fato, suprimindo mentalmente sua conduta, ainda assim o resultado teria ocorrido como ocorreu. Respeita-se a teoria da equivalência dos antecedentes ou conditio sine qua non, adotada pelo art. 13, caput, in fine, do CP.

b.2)Causas relativamente independentes são as que se originam da própria conduta efetuada pelo agente. Daí serem relativas, pois não existiriam sem a atuação criminosa. Como, entretanto, tais causas são independentes, têm idoneidade para produzir, por si sós, o resultado, já que não se situam no normal trâmite do desenvolvimento causal. Classificam-se em preexistentes (existem previamente à prática da conduta do agente) e concomitantes (ocorrem simultaneamente à prática da conduta). Em obediência à teoria da equivalência dos antecedentes ou conditio sine qua non, adotada pelo art. 13, caput, in fine, do CP, nas duas hipóteses o agente responde pelo resultado naturalístico.

Causas supervenientes relativamente independentes: Em face da regra prevista no art. 13, § 1º, do CP, as causas supervenientes relativamente independentes podem ser divididas em dois grupos: 1) as que produzem por si sós o resultado; e 2) as que não produzem por si sós o resultado. Quanto ao segundo grupo, incide a teoria da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua non, adotada como regra geral no tocante à relação de causalidade (CP, art. 13, caput, in fine). O agente responde pelo resultado naturalístico, pois, suprimindo-se mentalmente a sua conduta, o resultado não teria ocorrido como e quando ocorreu.

Causas supervenientes relativamente independentes que produzem por si sós o resultado: é a situação tratada pelo § 1º do art. 13 do CP. Nesse dispositivo foi acolhida a teoria da causalidade adequada. Causa não é mais o acontecimento que de qualquer modo concorre para o resultado. Passa a ser causa apenas a conduta idônea – com base em um juízo estatístico e nas regras de experiência (id quod plerumque accidit) –, a provocar a produção do resultado naturalístico. Não basta qualquer contribuição. Exige-se uma contribuição adequada. Os exemplos famosos são: 1) pessoa atingida por disparos de arma de fogo que, internada em um hospital, falece não em razão dos ferimentos, mas queimada por um incêndio que destroi toda a área dos enfermos; e 2) ferido que morre durante o trajeto para o hospital, em face de acidente de tráfego que atinge a ambulância que o transportava. Em ambos os casos, a incidência da teoria da equivalência dos antecedentes acarretaria a imputação do resultado naturalístico ao responsável pelos ferimentos, pois, eliminando-se em abstrato sua conduta, certamente a morte não teria ocorrido quando e como ocorreu. Todavia, repita-se, não foi em vão a redação conferida pelo legislador ao § 1º do art. 13 do CP. Essa regra foi ali expressamente colocada por força da preferência, nesse caso, pela teoria da causalidade adequada. A expressão “por si só” revela a autonomia da causa superveniente que, embora relativa, não se encontra no mesmo curso do desenvolvimento causal da conduta praticada pelo autor. Em outras palavras, depois do rompimento da relação de causalidade, a concausa manifesta a sua verdadeira eficácia, produzindo o resultado por conta própria, ou seja, invoca para si a tarefa de concretizar o resultado naturalístico. Nos exemplos acima mencionados, conclui-se que qualquer pessoa que estivesse na área da enfermaria do hospital, ou no interior da ambulância, poderia morrer em razão do acontecimento inesperado e imprevisível, e não somente a ferida pela conduta praticada pelo agente. Portanto, a simples concorrência (de qualquer modo) não é suficiente para a imputação do resultado material produzido, anote-se, por uma causa idônea e adequada, por si só, para fazê-lo. O art. 13, § 1º, cuidou exclusivamente das causas supervenientes relativamente independentes que produzem por si sós o resultado. Não falou das preexistentes nem das concomitantes, o que é alvo de crítica por parte da doutrina especializada.

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Relevância da omissão: A omissão penalmente relevante encontra-se disciplinada pelo art. 13, § 2º, do CP. O dispositivo é aplicável somente aos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, isto é, aqueles em que o tipo penal descreve uma ação, mas a inércia do agente, que podia e devia agir para impedir o resultado naturalístico, conduz à sua produção. São crimes materiais, como é o caso do homicídio, cometido em regra por ação, mas passível também de ser praticado por inação, desde que o agente ostente o poder e o dever de agir. De fato, os crimes omissivos próprios ou puros não alojam em seu bojo um resultado naturalístico. A omissão é descrita pelo próprio tipo penal, e o crime se consuma com a simples inércia do agente. É o que se dá na omissão de socorro (art. 135 do CP): ou o sujeito presta assistência ao necessitado, e não há crime; ou omite-se, consumando automaticamente o delito. Esse é o significado da expressão “penalmente relevante”: a omissão que não é típica, por não estar descrita pelo tipo penal, somente se torna penalmente relevante quando presente o dever de agir. Nos crimes omissivos impróprios, a omissão pode, com o dever de agir, ser penalmente relevante. Por outro lado, nos crimes omissivos próprios, a omissão sempre é penalmente relevante, pois se encontra descrita pelo tipo penal, tal como nos arts. 135 e 269 do CP.

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Teoria adotada: O art. 13, § 2º, do CP, no tocante à natureza jurídica da omissão, acolheu a teoria normativa, pela qual a omissão é um nada, e “do nada, nada surge”. Não é punível de forma independente, ou seja, não se pune alguém pelo simples fato de ter se omitido. Só tem importância jurídico-penal quando presente o dever de agir. Daí a preferência pela teoria normativa. A omissão somente interessa ao Direito Penal quando, diante da inércia do agente, o ordenamento jurídico lhe impunha uma ação, um fazer.

Dever de agir – critérios existentes para sua definição: Há dois critérios acerca da fixação do dever de agir: legal e judicial. Para o critério legal, é a lei que deve arrolar, taxativamente, as hipóteses do dever de agir. Cuida-se de critério mais seguro, por afastar incertezas e impedir variantes indesejadas que poderiam surgir na interpretação da situação submetida à análise do Poder Judiciário. Por ele optou o legislador pátrio, ao indicar nas alíneas “a”, “b” e “c” do § 2º do art. 13 do CP as pessoas a quem incumbe o dever de agir. Além disso, esse ônus precisa ser especificamente dirigido a pessoa ou pessoas determinadas, e não genericamente a todos os indivíduos. Por sua vez, o critério judicial permite ao magistrado, no caso concreto, decidir pela presença ou não do dever de agir. É defendido por Alberto Silva Franco e Rui Stoco.21

Poder de agir: O art. 13, § 2º, do CP é cristalino: não é suficiente o dever de agir. Exige-se mais: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Quem tem o dever de agir não pratica, automaticamente, uma conduta penalmente reprovável. É necessário que tenha se omitido quando devia e podia agir de forma a impedir o resultado. Por essa razão, a possibilidade de agir tem sido considerada elemento ou pressuposto do conceito de omissão, que surge como a não realização de conduta possível e esperada.22 Poder de agir é a possibilidade real e efetiva de alguém, na situação concreta e em conformidade com o padrão do homem médio, evitar o resultado penalmente relevante.

Hipóteses de dever de agir: Estão disciplinadas pelas alíneas “a” a “c” do § 2º do art. 13 do CP,23 pelo qual o dever de agir incumbe a quem:

a)Tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Trata-se do dever legal, relativo às pessoas que, por lei, têm a obrigação de impedir o resultado. É o que se dá com os pais em relação aos filhos, bem como com os policiais no tocante aos indivíduos em geral. O CP utilizou a palavra “lei” em sentido amplo, valendo-se da teoria das fontes. Engloba os deveres impostos pela ordem jurídica considerada em sua totalidade;

b)De outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado: A expressão “de outra forma” significa qualquer obrigação de impedir o resultado que não seja decorrente da lei, versada pela alínea “a”. É o que se convencionou chamar de “garante” ou “dever de garantidor da não produção do resultado naturalístico”. Antes da Reforma da Parte Geral do Código Penal pela Lei 7.209/1984, apontava-se em sede doutrinária a relação contratual como fonte do dever de agir. Alargou-se, posteriormente à modificação legislativa, o conceito de “garantidor”, visando abranger, além dos negócios jurídicos em geral, as relações advindas da vida cotidiana, independentemente de vinculação jurídica entre os envolvidos. Cuida-se de conceito a ser extensivamente compreendido. Nesse sentido, incumbe o dever de agir tanto ao professor de natação contratado para ensinar uma pessoa a nadar (negócio jurídico) como ao nadador experiente que convida um amigo iniciante a atravessar um canal de águas correntes e geladas (situação concreta da vida). Nos dois casos, se o principiante enfrentar problemas, o garantidor, se possível fazê-lo, deverá impedir o resultado, sob pena de tê-lo a si imputado. A responsabilidade do garantidor subsiste enquanto ele estiver no local em que tem a obrigação de impedir o resultado. Durante o tempo em que lá permanecer estará vinculado ao dever de agir, porque dele ainda não se desvencilhou;24

c)Com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado: Trata-se da ingerência ou situação precedente. Em suma, aquele que, com o seu comportamento anterior, criou uma situação de perigo, tem o dever de agir para impedir o resultado lesivo ao bem jurídico.

Teoria da imputação objetiva: Claus Roxin, em 1970, no ensaio Reflexões sobre a problemática da imputação no direito penal, desenvolveu a moderna teoria da imputação objetiva. Em uma perspectiva clássica, o tipo penal apresentava apenas aspectos objetivos, representados na relação de causalidade. Considerava-se realizado o tipo toda vez que alguém causava o resultado nele previsto, de acordo com a teoria da equivalência dos antecedentes. A causalidade gerava, assim, o problema do regressus ad infinitum, cuja restrição só podia ser efetuada no âmbito da ilicitude, ou, na maior parte das vezes, da culpabilidade, que englobava o dolo e a culpa. Para resolver esse problema, o sistema finalista conferiu ao tipo penal também uma feição subjetiva, com a inclusão na conduta do dolo e da culpa. Exemplo: Se “A”, fabricante de armas de fogo, produz aquela que posteriormente foi adquirida por “B” para matar “C”, não poderá ser penalmente responsabilizado. Para a teoria clássica, por ausência de culpabilidade; para a teoria finalista, porque o fato é atípico (uma vez ausente o dolo ou a culpa). Para os adeptos da teoria da imputação objetiva, contudo, o sistema finalista, ao limitar o tipo objetivo à relação de causalidade, de acordo com a teoria da equivalência dos antecedentes, não resolve todos os problemas inerentes à imputação. Vejamos o exemplo apresentado por Claus Roxin: Imaginemos que “A” venda heroína a “B”. Os dois sabem que a injeção de certa quantidade de tóxico gera perigo de vida, mas assumem o risco de que a morte ocorra; “A” o faz porque o que lhe interessa é principalmente o dinheiro, e “B”, por considerar sua vida já estragada e só suportável sob estado de entorpecimento. Deve “A” ser punido por homicídio cometido com dolo eventual, na hipótese de “B” realmente injetar em si o tóxico e, em decorrência disso, morrer? A causalidade de “A” para a morte de “B”, bem como seu dolo eventual, encontram-se fora de dúvida. Se considerarmos a causalidade suficiente para a realização do tipo objetivo, teremos que concluir pela punição.25 Assim, para resolver o caso narrado, entre outros sem solução possível pelo sistema finalista, a teoria da imputação objetiva insere duas novas elementares – criação de um risco proibido e realização do risco no resultado –26 no tipo objetivo, que deixa de ser só causalidade. Em síntese, com a adoção da teoria da imputação objetiva, a relação de causalidade somente estaria caracterizada quando ultrapassadas três etapas: 1ª) teoria da equivalência dos antecedentes; 2ª) imputação objetiva e 3ª) dolo ou culpa (causalidade psíquica).

Terminologia e finalidade: Ao contrário do que seu nome parece em princípio indicar, a teoria da imputação objetiva não se confunde com a responsabilidade penal objetiva. Sua função é completamente diversa: limitar a responsabilidade penal, pois a atribuição de um resultado a uma pessoa não é determinado pela relação de causalidade, mas é necessário outro nexo, de modo que esteja presente a realização de um risco proibido pela norma.27 Seria mais apropriado, portanto, falar em teoria da não imputação objetiva, pois a sua missão precípua é evitar a atribuição indevida e objetiva de um resultado típico a alguém. Portanto, esta teoria é aplicável exclusivamente aos crimes materiais.

Conceito e análise dos pressupostos da imputação objetiva: Para Luís Greco, a imputação objetiva enuncia o conjunto de pressupostos genéricos que fazem a causação ser objetivamente típica; e estes pressupostos são a criação de um risco juridicamente desaprovado e a realização deste risco no resultado.28 Assim, de acordo com a teoria, não basta a relação de causalidade para imputação do resultado, devendo estar presentes:

1)A criação ou o aumento de um risco: Em face da sua função de proteção de bens jurídicos, o Direito Penal deveria limitar-se a proibir ações perigosas, que coloquem em risco esses mesmos bens. No entanto, o que é risco? Podem ser consideradas como “risco” aquelas ações que, por meio de uma prognose póstuma objetiva, geram uma possibilidade de lesão ao bem jurídico. Prognose, pois se refere à situação do agente no momento da ação; póstuma, porque será feita pelo magistrado depois da prática do fato; e objetiva, pois parte do conhecimento de um homem prudente (homo medius) na mesma hipótese analisada. Como no exemplo clássico, em que um sobrinho manda um tio em uma viagem de avião, com a intenção de que o avião caia e o tio morra, não haveria responsabilidade do sobrinho se a sua intenção se concretizasse, pois viajar de avião não gera real possibilidade de dano. No entanto, a situação será diferente se o sobrinho tiver conhecimento de que haverá um ataque terrorista naquele determinado voo. Em síntese, será perigosa a ação que, aos olhos de um observador objetivo dotado dos conhecimentos especiais do autor, situado no momento da prática da ação, gere real possibilidade de dano para um determinado bem.29 Por outro lado, afirma-se não haver ação perigosa quando: a) o risco for juridicamente irrelevante (a ação não gera uma possibilidade real de dano); ou b) quando há diminuição do risco, avaliado antes da ação pelo agente (como no exemplo de Roxin: quem convence o ladrão a furtar não 1.000, mas somente 100 marcos alemães, não é punível por participação no furto, pois sua conduta não elevou, mas diminuiu o risco de lesão).30

2)O risco criado deve ser proibido pelo Direito: Nem toda ação perigosa é proibida pelo Direito. Deve-se fazer uma ponderação entre a necessidade de proteção de determinado bem jurídico e o interesse geral de liberdade. Exemplificativamente, embora dirigir um veículo automotor possa eventualmente causar acidentes, permite-se tal conduta. Da mesma forma, são regulamentados alguns esportes, como o automobilismo e o boxe, que podem causar lesões aos seus praticantes. Veja-se que, pela teoria finalista, na lesão provocada em uma luta de boxe haveria uma causa de justificação (exclusão da ilicitude), enquanto para a imputação objetiva o fato é atípico, por se tratar de risco permitido. Como esclarece Günther Jakobs: “Um comportamento que gera um risco permitido é considerado socialmente normal, não porque no caso concreto esteja tolerado em virtude do contexto em que se encontra, mas porque nessa configuração é aceito de modo natural. Portanto, os comportamentos que criam riscos permitidos não são comportamentos que devam ser justificados, mas que não realizam tipo algum”.31 Dentro do conceito de risco permitido se insere o princípio da confiança. De acordo com esse princípio, não pratica conduta típica quem, agindo de acordo com as regras legais, se envolve em situação em que terceiro, descumprindo com o seu dever de cuidado, permite a produção do resultado. Por exemplo, se estamos dirigindo e vemos, à distância, um cidadão aguardando um momento oportuno para cruzar a rua, confiamos que ele não vai tentar a travessia na frente do veículo em movimento. Da mesma forma, se entregamos nosso automóvel para o conserto dos freios, que apresentam deficiência, ao sair da oficina acreditamos que o defeito esteja sanado. Assim, o risco de certos comportamentos não depende somente de nós, mas também dos outros cidadãos.32 Destarte, há confiança de que a conduta de terceiros, realizada na sequência, bem como a conduta anterior, será conforme ao Direito, de forma que, se essa expectativa não se realizar, será atípica a conduta daquele que age corretamente.

Causas de exclusão do risco proibido: A doutrina aponta ainda como causas de exclusão do risco proibido: a) o comportamento exclusivo da vítima, que se coloca em perigo (autocolocação da vítima em situação de perigo); b) as contribuições socialmente neutras (como no exemplo de Jakobs, em que o padeiro vende o pão ao autor, consciente de que este o usará para envenenar alguém); c) os comportamentos socialmente adequados (princípio da adequação social); e d) a proibição de regresso. Pela proibição de regresso, não haveria criação de um risco proibido nos casos em que a ação não dolosa de alguém precedesse a ação dolosa de um terceiro. Assim, aquele que esquece a sua arma, que vem a ser encontrada por outrem posteriormente e utilizada para a prática de um crime de homicídio, não seria responsabilizado.

3)O risco foi realizado no resultado: A norma de proibição visa evitar que um certo bem jurídico seja afetado de uma determinada maneira. Assim, só haverá realização do risco se a proibição da conduta for justificada para evitar a lesão de determinado bem jurídico por meio de determinado curso causal, os quais venham efetivamente a ocorrer.33 É o fim de proteção da norma a que aludem os doutrinadores modernos. Com o mesmo fundamento, aponta-se ainda a hipótese do aumento do risco pelo comportamento proibido, em comparação com o comportamento hipotético correto. Tanto na realização do risco como no seu aumento, há exclusão da imputação: a) na lesão ou curso causal sem relação com o risco proibido; b) nos danos tardios, relacionados à lesão anterior causada ao bem jurídico (ex.: a vítima de lesões corporais, alguns anos depois, perde o equilíbrio em razão da lesão nunca completamente curada e cai, sofrendo várias fraturas); c) nos danos causados a outrem, resultantes de choque causado pelo fato criminoso praticado (ex.: mãe cardíaca falece ao saber do assassinato do filho); d) nas ações perigosas de salvamento (ex.: “A” ateia fogo na casa de “B” na ausência deste, mas “B” reentra para salvar sua coleção de CDs de playstation 2 não piratas, falecendo); e e) no comportamento indevido posterior de um terceiro (ex.: vítima de lesões que, necessitando de uma cirurgia, vem a falecer em razão de erro médico grosseiro).34

Conclusões acerca da imputação objetiva: A proposta dos defensores da teoria da imputação objetiva é a inclusão de novas elementares no tipo objetivo, criando-se o conceito de causalidade normativa, em oposição à causalidade natural presente na teoria finalista. Consequentemente, algumas vozes sustentam a íntima relação, no campo da causalidade, da teoria da imputação objetiva com as regras da física quântica. Não basta a mera relação de causa e efeito (causalidade física) entre conduta e resultado naturalístico. Fala-se, por essa razão, em “direito penal quântico”.35 A inclusão de tais elementos visa resolver, no âmbito do fato típico, certos casos que para as demais teorias seriam solucionados em outros aspectos, como a ilicitude e a culpabilidade. Rogério Greco faz uma compilação de conclusões acerca da teoria em análise: a) a imputação objetiva é uma análise que antecede à imputação subjetiva; b) a imputação objetiva pode dizer respeito ao resultado ou ao comportamento do agente; c) a expressão mais apropriada seria teoria da não imputação, uma vez que a teoria visa, com as suas vertentes, evitar a imputação objetiva (do resultado ou do comportamento) do tipo penal a alguém; d) a teoria da imputação foi criada, inicialmente, para se contrapor aos dogmas da teoria da equivalência, erigindo uma relação de causalidade jurídica ou normativa, ao lado daquela outra de natureza material; e) uma vez concluída pela não imputação objetiva, afasta-se o fato típico.36

Jurisprudência selecionada:

Concausas – manutenção da relação de causalidade: “O fato de a vítima ter falecido no hospital em decorrência das lesões sofridas, ainda que se alegue eventual omissão no atendimento médico, encontra-se inserido no desdobramento físico do ato de atentar contra a vida da vítima, não caracterizando constrangimento ilegal a responsabilização criminal por homicídio consumado, em respeito à teoria da equivalência dos antecedentes causais adotada no Código Penal e diante da comprovação do animus necandi do agente” (STJ: HC 42.559/PE, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 04.04.2006).

Omissão penalmente relevante – crimes ambientais – não caracterização do dever de agir: “Nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal, a omissão é penalmente relevante quando o agente devia e podia agir para evitar o resultado, o que não é a hipótese dos autos. A obrigação genérica atribuída a todos os cidadãos de preservar o meio ambiente para as gerações futuras, consoante o art. 225 da Constituição Federal, não se amolda ao dever imposto por lei de cuidar, proteger e/ou vigiar, exigido na hipótese de crime omissivo impróprio” (STJ: REsp 897.426/SP, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 27.03.2008).

Teoria da imputação objetiva – autocolocação da vítima em situação de risco – princípio da confiança: “Afirmar na denúncia que ‘a vítima foi jogada dentro da piscina por seus colegas, assim como tantos outros que estavam presentes, ocasionando seu óbito’ não atende satisfatoriamente aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, uma vez que, segundo o referido dispositivo legal, ‘A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas’. Mesmo que se admita certo abrandamento no tocante ao rigor da individualização das condutas, quando se trata de delito de autoria coletiva, não existe respaldo jurisprudencial para uma acusação genérica, que impeça o exercício da ampla defesa, por não demonstrar qual a conduta tida por delituosa, considerando que nenhum dos membros da referida comissão foi apontado na peça acusatória como sendo pessoa que jogou a vítima na piscina. Por outro lado, narrando a denúncia que a vítima afogou-se em virtude da ingestão de substâncias psicotrópicas, o que caracteriza uma autocolocação em risco, excludente da responsabilidade criminal, ausente o nexo causal. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta” (STJ: HC 46.525/MT, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 21.03.2006).

Teoria da imputação objetiva – risco permitido ou diminuição do risco – considerações: “De acordo com a Teoria Geral da Imputação Objetiva o resultado não pode ser imputado ao agente quando decorrer da prática de um risco permitido ou de uma ação que visa a diminuir um risco não permitido; o risco permitido não realize o resultado concreto; e o resultado se encontre fora da esfera de proteção da norma. O risco permitido deve ser verificado dentro das regras do ordenamento social, para o qual existe uma carga de tolerância genérica. É o risco inerente ao convívio social e, portanto, tolerável. Hipótese em que o agente agiu em desconformidade com as regras de trânsito (criou um risco não permitido), causando resultado jurídico abrangido pelo fim de proteção da norma de cuidado – morte da vítima, atraindo a incidência da imputabilidade objetiva. As circunstâncias que envolvem o fato em si não podem ser utilizadas para atrair a incidência da teoria do risco permitido e afastar a imputabilidade objetiva, se as condições de sua aplicação encontram-se presentes, isto é, se o agente agiu em desconformidade com as regras de trânsito, causando resultado jurídico que a norma visava coibir com sua original previsão. O fato de transitar às 3 horas da madrugada e em via deserta não pode servir de justificativa à atuação do agente em desconformidade com a legislação de trânsito. Isto não é risco permitido, mas atuação proibida. Impossível se considerar a hipótese de aplicação da teoria do risco permitido com atribuição do resultado danoso ao acaso, seja pelo fato do agente transitar embriagado e em velocidade acima da permitida na via, seja pelo que restou entendido pela Corte a quo no sentido de sua direção descuidada” (STJ: REsp 822517/DF, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 12.06.2007).

Art. 14. Diz-se o crime:

Crime consumado

I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

Tentativa

II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Pena de tentativa

Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

Iter criminis: O iter criminis ou “caminho do crime” corresponde às etapas percorridas pelo agente para a prática de um fato previsto em lei como infração penal. Compreende duas fases: uma interna e outra externa. A fase interna é representada pela cogitação. A fase externa se divide em outras três: preparação, execução e consumação. O exaurimento não integra o iter criminis.

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Fase interna – cogitação: A cogitação repousa na mente do agente, nela se formando a ideia de enveredar pela empreitada criminosa. Seu propósito ilícito encontra-se preso em um claustro psíquico. É sempre interna, não se revelando em atos externos. Por se tratar de mera ideia, sem qualquer possibilidade de ofensa ao bem jurídico, não pode ser alcançada pelo Direito Penal. Não é punível: inexiste crime, ainda que na forma tentada. De fato, conduta penalmente relevante é somente aquela praticada por seres humanos e projetada no mundo exterior. Já no Direito Romano proclamava Ulpiano: cogitationis poenam nemo patitur, isto é, ninguém pode ser punido exclusivamente pelos seus pensamentos. É possível a divisão da cogitação em três momentos distintos: 1º) Idealização: o sujeito tem a ideia de cometer uma infração penal; 2º) Deliberação: o agente sopesa as vantagens e desvantagens de seu eventual comportamento contrário ao Direito Penal; e 3º) Resolução: o sujeito se decide pelo cometimento da infração penal.37

Fase externa:

Preparação ou atos preparatórios: Corresponde aos atos indispensáveis à prática da infração penal, municiando-se o agente dos elementos necessários para a concretização da sua conduta ilícita. Precisa ir além do simples projeto interno (mínimo), sem que se deva, contudo, iniciar a imediata realização tipicamente relevante da vontade delitiva (máximo).38 Os atos preparatórios, geralmente, não são puníveis, nem na forma tentada, uma vez que não se iniciou a realização do núcleo do tipo penal. De fato, o art. 14, II, do CP vinculou a tentativa à prática de atos executórios. Em casos excepcionais, é possível a punição de atos preparatórios nas hipóteses em que a lei optou por incriminá-los de forma autônoma. São os chamados crimes-obstáculo.

Execução ou atos executórios: É aquela em que se inicia a agressão ao bem jurídico, por meio da realização do núcleo do tipo penal. O agente começa a realizar o verbo (núcleo do tipo) constante da definição legal, tornando o fato punível. É o caso da conduta de efetuar disparos de arma de fogo contra uma pessoa. Há incidência do Direito Penal, configurando no mínimo um crime tentado. Com efeito, o art. 14, II, do CP vinculou a tentativa ao início da execução do crime, ou seja, à prática de atos executórios. O ato de execução deve ser idôneo e inequívoco. Ato idôneo é o que se reveste de capacidade suficiente para lesar o bem jurídico penalmente tutelado. Essa idoneidade deve ser constatada no caso concreto, e não em abstrato. Por sua vez, ato inequívoco é o que se direciona ao ataque do bem jurídico, almejando a consumação da infração penal e fornecendo certeza acerca da vontade ilícita. Conclui-se, pois, que um ato de execução deve, obrigatoriamente, possuir essas características, simultaneamente. Não basta apenas uma delas. Também não é suficiente, em face da rejeição da teoria subjetiva – notadamente pela insegurança por ela proporcionada –, a vontade firme e consciente de cometer uma infração penal, quando não exteriorizado um ato idôneo e inequívoco.

Transição dos atos preparatórios para os atos executórios: Um dos mais árduos problemas do Direito Penal é diferenciar, com precisão, um ato preparatório de um ato executório. Não é simples estabelecer o momento exato em que se opera a transição de uma fase para outra do iter criminis, em face do caráter fronteiriço de tais atos. E, como ainda não se construiu um método infalível para distinguir entre uns e outros, nos casos de irredutível dúvida sobre se o ato constitui um ataque ao bem jurídico ou apenas uma predisposição para esse ataque, o magistrado deverá pronunciar o non liquet, a falta de provas, negando a existência da tentativa. Inúmeras teorias apresentam propostas para a solução do impasse. Dividem-se inicialmente em subjetiva e objetiva. Esta última se ramifica em diversas outras. Vejamos cada uma delas:

1)Teoria subjetiva: não há transição dos atos preparatórios para os atos executórios. O que interessa é o plano interno do autor, a vontade criminosa, existente em quaisquer dos atos que compõem o iter criminis. Destarte, tanto a fase da preparação como a fase da execução importam na punição do agente.

2)Teoria objetiva: os atos executórios dependem do início de realização do tipo penal. O agente não pode ser punido pelo seu mero “querer interno”. É imprescindível a exteriorização de atos idôneos e inequívocos para a produção do resultado lesivo. Essa teoria, todavia, se divide em outras:

2.1)Teoria da hostilidade ao bem jurídico: atos executórios são aqueles que atacam o bem jurídico, enquanto os atos preparatórios não caracterizam afronta ao bem jurídico, mantendo inalterado o “estado de paz”. Foi idealizada por Max Ernst Mayer e tem como principais partidários Nélson Hungria e José Frederico Marques.

2.2)Teoria objetivo-formal ou lógico-formal: ato executório é aquele em que se inicia a realização do verbo contido na conduta criminosa. Exige tenha o autor concretizado efetivamente uma parte da conduta típica, penetrando no núcleo do tipo. Exemplo: em um homicídio, o sujeito, com golpes de punhal, inicia a conduta de “matar alguém”. Surgiu dos estudos de Franz von Liszt. É a preferida pela doutrina pátria.

2.3)Teoria objetivo-material: atos executórios são aqueles em que se começa a prática do núcleo do tipo, e também os imediatamente anteriores ao início da conduta típica, de acordo com a visão de terceira pessoa, alheia aos fatos. O juiz deve se valer do critério do terceiro observador para impor a pena. Exemplo: aquele que está no alto de uma escada, portando um pé de cabra, pronto para pular um muro e ingressar em uma residência, na visão de um terceiro observador, iniciou a execução de um crime de furto. Essa teoria foi criada por Reinhart Frank, e adotada pelo art. 22 do Código Penal Português.

2.4)Teoria objetivo-individual: atos executórios são os relacionados ao início da conduta típica, e também os que lhe são imediatamente anteriores, em conformidade com o plano concreto do autor. Portanto, diferencia-se da anterior por não se preocupar com o terceiro observador, e sim com a prova do plano concreto do autor, independentemente de análise externa. Exemplo: “A”, com uma faca em punho, aguarda atrás de uma moita a passagem de “B”, seu desafeto, para matá-lo, desejo já anunciado para diversas pessoas. Quando este se encontra a 200 metros de distância, “A” fica de pé, segura firme a arma branca e aguarda em posição de ataque seu adversário. Surge a polícia e o aborda. Para essa teoria, poderia haver a prisão em flagrante, em face da caracterização da tentativa de homicídio, o que não se dá na teoria objetivo-formal. Essa teoria, que remonta a Hans Welzel, tem como principais defensores Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli.

Consumação: Dá-se a consumação, também chamada de crime consumado ou summatum opus, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (art. 14, I, do CP). É, por isso, um crime completo ou perfeito, pois a conduta criminosa se realiza integralmente. Verifica-se quando o autor concretiza todas as elementares descritas pelo preceito primário de uma norma penal incriminadora.

A consumação nas diversas espécies de crimes: Nos delitos materiais, ou causais (aí se inserindo os culposos e omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão), aperfeiçoa-se a consumação com a superveniência do resultado naturalístico. De seu turno, nos crimes formais, de resultado cortado ou de consumação antecipada, e nos crimes de mera conduta ou de simples atividade, a consumação ocorre com a prática da conduta. Nos crimes qualificados pelo resultado, incluindo os preterdolosos, a consumação se verifica com a produção do resultado agravador, doloso ou culposo. Os crimes de perigo concreto se consumam com a efetiva exposição do bem jurídico a uma probabilidade de dano. Já os crimes de perigo abstrato ou presumido se consumam com a mera prática da conduta definida pela lei como perigosa. Em relação aos crimes permanentes, a consumação se arrasta no tempo, com a manutenção da situação contrária ao Direito, autorizando a prisão em flagrante a qualquer momento, enquanto não encerrada a permanência. Por outro lado, nos crimes habituais a consumação se dá com a reiteração de atos que revelam o estilo de vida do agente, pois cada um deles, isoladamente considerado, representa um indiferente penal.

Exaurimento: Também chamado de crime exaurido ou crime esgotado, é o delito em que, posteriormente à consumação, subsistem efeitos lesivos derivados da conduta do autor. É o caso do recebimento do resgate no crime de extorsão mediante sequestro, desnecessário para fins de tipicidade, eis que se consuma com a privação da liberdade destinada a ser trocada por indevida vantagem econômica. Por guardar estreita relação com os crimes formais, é chamado por Zaffaroni e Pierangelli de consumação material.39 No terreno da tipicidade, o exaurimento não compõe o iter criminis, que se encerra com a consumação. Influi, contudo, na dosimetria da pena, notadamente na aplicação da pena-base, pois o art. 59, caput, do CP erigiu as consequências do crime à condição de circunstância judicial. Em alguns casos, o exaurimento pode funcionar como qualificadora, como se dá na resistência (art. 329, § 1º, do CP), ou como causa de aumento da pena, a exemplo do que se verifica na corrupção passiva (art. 317, § 1º, do CP).

Tentativa: Como bem define o art. 14, II, do CP, tentativa é o início de execução de um crime que somente não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Destarte, o ato de tentativa é, necessariamente, um ato de execução. Exige-se tenha o sujeito praticado atos executórios, daí não sobrevindo a consumação por forças estranhas ao seu propósito, o que acarreta em tipicidade não finalizada, sem conclusão. A tentativa também é conhecida por outros rótulos: conatus, crime imperfeito, ou, na preferência de Zaffaroni, crime incompleto,40 em oposição ao crime consumado, reconhecido como completo ou perfeito.

Elementos: Três elementos compõem a estrutura da tentativa: 1) início da execução do crime; 2) ausência de consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente; e 3) dolo de consumação. O dolo da tentativa é igual ao dolo da consumação. O CP foi peremptório nesse sentido, ao dizer que o crime somente não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente: tinha a intenção de alcançar a consumação, mas por circunstâncias alheias à sua vontade não conseguiu atingir seu objetivo. A resolução do indivíduo é idêntica no crime consumado e no crime tentado. Este último, em verdade, é perfeito na esfera subjetiva do agente, embora imperfeito no campo objetivo, relacionado ao resultado que deveria ser produzido com a conduta criminosa.

Natureza jurídica da tentativa: O art. 14, II, do CP não goza de autonomia, pois a tentativa não existe por si só, isoladamente. Sua aplicação reclama a realização de um tipo incriminador, previsto na Parte Especial do CP ou pela legislação penal especial. O CP e a legislação extravagante não preveem, para cada crime, a figura da tentativa, nada obstante a maioria deles seja com ela compatível. Utiliza-se a definição do crime consumado em conjunto com a regra prevista no art. 14, II. A tentativa de furto, nesses termos, é a combinação de “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” com “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Portanto, furto tentado é: art. 155, caput, c/c o art. 14, II, ambos do CP. A adequação típica de um crime tentado é de subordinação mediata, ampliada ou por extensão, já que a conduta não se enquadra prontamente na lei penal incriminadora, reclamando-se, para complementar a tipicidade, a interposição do dispositivo contido no art. 14, II, do CP. Consequentemente, a norma definidora da tentativa é uma norma de extensão ou de ampliação da conduta. Opera-se uma ampliação temporal da figura típica, pois com a utilização da regra prevista no art. 14, II, do CP, o alcance do tipo penal não se limita apenas ao momento da consumação do crime, mas também a períodos anteriores. Antecipa-se a tutela penal para abarcar os atos executórios prévios à consumação.

Teorias sobre a punibilidade da tentativa: Dentre as diversas teorias que buscam fundamentar a punibilidade da tentativa, quatro se destacam:

1)Teoria subjetiva, voluntarística ou monista: ocupa-se exclusivamente da vontade criminosa, que pode se revelar tanto na fase dos atos preparatórios como também durante a execução. O sujeito é punido por sua intenção, pois o que importa é o desvalor da ação, sendo irrelevante o desvalor do resultado.

2)Teoria sintomática: idealizada pela Escola Positiva de Ferri, Lombroso e Garofalo, sustenta a punição em razão da periculosidade subjetiva, isto é, do perigo revelado pelo agente. Possibilita a punição de atos preparatórios, pois a mera manifestação de periculosidade já pode ser enquadrada como tentativa, em consonância com a finalidade preventiva da pena.41

3)Teoria objetiva, realística ou dualista: a tentativa é punida em face do perigo proporcionado ao bem jurídico tutelado pela lei penal. Sopesamse o desvalor da ação e o desvalor do resultado: a tentativa deve receber punição inferior à do crime consumado, pois o bem jurídico não foi atingido integralmente.

4)Teoria da impressão ou objetivo-subjetiva: representa um limite à teoria subjetiva, evitando o alcance desordenado dos atos preparatórios. A punibilidade da tentativa só é admissível quando a atuação da vontade ilícita do agente seja adequada para comover a confiança na vigência do ordenamento normativo e o sentimento de segurança jurídica dos que tenham conhecimento da conduta criminosa.42

Teoria adotada pelo CP: A punibilidade da tentativa é disciplinada pelo art. 14, parágrafo único. Nesse campo, o CP acolheu como regra a teoria objetiva, realística ou dualista, ao determinar que a pena da tentativa deve ser correspondente à pena do crime consumado, diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Como o desvalor do resultado é menor quando comparado ao do crime consumado, o conatus deve suportar uma punição mais branda. Excepcionalmente, entretanto, é aceita a teoria subjetiva, voluntarística ou monista, consagrada pela expressão “salvo disposição em contrário”. Há casos, restritos, em que o crime consumado e o crime tentado comportam igual punição: são os delitos de atentado ou de empreendimento. Podem ser citados, como exemplos: 1) evasão mediante violência contra a pessoa (art. 352 do CP), em que o preso ou indivíduo submetido à medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa, recebe igual punição quando se evade ou tenta evadir-se do estabelecimento em que se encontra privado de sua liberdade; e 2) Lei 4.737/1965 – Código Eleitoral, art. 309, no qual se sujeita a igual pena o eleitor que vota ou tenta votar mais de uma vez, ou em lugar de outrem.

Critério para diminuição da pena: A tentativa constitui-se em causa obrigatória de diminuição da pena. Incide na terceira fase de aplicação da pena privativa de liberdade, e sempre a reduz. A liberdade do magistrado repousa unicamente no quantum da diminuição, balizando-se entre os limites legais, de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Deve reduzi-la, podendo somente escolher o montante da diminuição. E, para navegar entre tais parâmetros, o critério decisivo é a maior ou menor proximidade da consumação, é dizer, a distância percorrida do iter criminis.

Tentativa e crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais: Em caso de crime tentado, para analisar se o seu responsável deve ou não ser processado e julgado no Juizado Especial Criminal, isto é, para verificar o enquadramento ou não no conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, a causa de diminuição de pena deve ser aplicada em sua fração mínima sobre a pena máxima cominada. Se o resultado daí advindo for superior a dois anos, o Juizado não é o competente para o julgamento da causa.

Tentativa e diminuição da pena no Código Penal Militar: O Código Penal Militar (Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969) orienta-se, também no tocante à punibilidade da tentativa, pela teoria objetiva. Admite, todavia, uma exceção ao critério da obrigatória diminuição da pena do crime tentado, ao dispor em seu art. 30, parágrafo único: “Pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime, diminuída de um a dois terços, podendo o juiz, no caso de excepcional gravidade, aplicar a pena do crime consumado”.

Espécies de tentativa: A tentativa comporta a seguinte divisão: a) Tentativa branca ou incruenta: o objeto material não é atingido pela conduta criminosa. Recebe essa denominação ao relacionar-se com a tentativa de homicídio em que não se produzem ferimentos na vítima, não acarretando no derramamento de sangue; b) Tentativa cruenta ou vermelha: o objeto material é alcançado pela atuação do agente; c) Tentativa perfeita, acabada ou crime falho: o agente esgota todos os meios executórios que estavam à sua disposição, e mesmo assim não sobrevém a consumação por circunstâncias alheias à sua vontade. Pode ser cruenta ou incruenta; e d) Tentativa imperfeita, inacabada ou tentativa propriamente dita – o agente inicia a execução sem, contudo, utilizar todos os meios que tinha ao seu alcance, e o crime não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade.

Tentativa e crimes de ímpeto: Crimes de ímpeto são os cometidos sem premeditação, como decorrência de reação emocional repentina. Há argumentos no sentido de que o ímpeto do agente afasta a viabilidade de análise do iter criminis, pois a sua atuação repentina impossibilita o fracionamento dos atos executórios. O acesso excessivo de emoção ou paixão não seria compatível com o propósito de praticar determinado crime. Veja-se o exemplo do homem que, ao chegar a sua casa, encontra sua esposa mantendo relações sexuais com terceira pessoa. Revoltado, saca sua arma de fogo e efetua disparos contra a adúltera, não a acertando, embora desejasse matá-la. Para aqueles que não aceitam o conatus nos crimes de ímpeto, seria impossível estabelecer, no plano concreto, se o traído não matou sua mulher por erro na pontaria ou pelo fato de não desejar alvejá-la efetivamente.

Tentativa e dolo eventual: Orienta-se a doutrina pelo cabimento da tentativa nos crimes cometidos com dolo eventual, equiparado pelo art. 18, I, do CP, no tocante ao seu tratamento, ao dolo direto. A dificuldade de prova do início da execução de um crime que não se consuma por circunstâncias alheias ao consentimento do agente é questão de natureza processual, em nada interferindo na tipicidade do fato. Todavia, existem posições pela inadmissibilidade da tentativa nos crimes praticados com dolo eventual, com fundamento na redação do art. 14, II, do CP: se o legislador definiu o crime tentado como aquele em que, “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”, limitou o instituto ao dolo direto, para o qual adotou a teoria da vontade (art. 18, I, 1ª parte), excluindo-a do alcance do dolo eventual, em que se acolheu a teoria do consentimento ou do assentimento (art. 18, I, in fine).43

Inadmissibilidade da tentativa: Em geral, os crimes dolosos são compatíveis com a tentativa, pouco importando sejam materiais, formais ou de mera conduta. De fato, a admissibilidade ou não da tentativa tem a ver com o caráter plurissubsistente do delito, isto é, com a composição da conduta em diversos atos executórios, podendo, consequentemente, ser fracionada. Crimes formais e de mera conduta comportam o conatus, desde que sejam plurissubsistentes. A regra, portanto, é a compatibilidade dos crimes com o conatus. Algumas espécies de infrações penais, todavia, não admitem a tentativa:

1)Crimes culposos: o resultado naturalístico é involuntário, contrário à intenção do agente. Por corolário, seria no mínimo contraditório admitir-se, em um crime não desejado pelo seu autor, o início da execução de um delito que somente não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade. Essa regra se excepciona no que diz respeito à culpa imprópria, compatível com a tentativa, pois nela há a intenção de se produzir o resultado. Cuida-se, em verdade, de dolo, punido por razões de política criminal a título de culpa, em face de ser a conduta realizada pelo agente com amparo em erro inescusável quanto à ilicitude do fato;

2)Crimes preterdolosos: nestes crimes o resultado agravador é culposo, não desejado pelo agente. Por esse motivo, não se compactuam com a tentativa;

3)Crimes unissubsistentes: são aqueles em que a conduta é exteriorizada mediante um único ato, suficiente para alcançar a consumação. Não é possível a divisão do iter criminis, razão pela qual é incabível a tentativa;

4)Crimes omissivos próprios ou puros: ingressam no grupo dos crimes unissubsistentes. Em uma omissão de socorro (art. 135 do CP), por exemplo, o sujeito tem duas opções: ou presta assistência ao necessitado, e não há crime, ou deixa de prestá-la, e o crime estará consumado. Os crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, de seu turno, admitem a tentativa;

5)Crimes de perigo abstrato ou presumido: também se enquadram no bloco dos crimes unissubsistentes. No porte ilegal de arma de fogo, ou o agente porta a arma de fogo em situação irregular, e o crime estará consumado, ou não o faz, e o fato será atípico. Os crimes de perigo concreto, por sua vez, comportam a tentativa;

6)Contravenções penais: não se pune a tentativa por expressa previsão legal (art. 4º do Decreto-lei 3.688/1941 – LCP);

7)Crimes condicionados: são aqueles cuja punibilidade está sujeita à produção de um resultado legalmente exigido, tal qual a participação em suicídio (art. 122 do CP), em que só há punição se resultar morte ou lesão corporal de natureza grave;

8)Crimes subordinados à condição objetiva de punibilidade: tal como ocorre em relação aos falimentares (art. 180 da Lei 11.101/2005 – Lei de Falências), pois se o próprio delito completo não é punível se não houver aquela condição, muito menos o será a sua tentativa;44

9)Crimes de atentado ou de empreendimento: não há tentativa, uma vez que a figura tentada recebe igual pena destinada ao crime consumado. É o que se dá, por exemplo, no delito tipificado pelo art. 352 do CP;

10)Crimes com tipo penal composto de condutas amplamente abrangentes: é impossível dissociar, no caso concreto, a tentativa da consumação. Veja-se o exemplo do crime de parcelamento ou desmembramento irregular do solo para fins urbanos, tipificado pelo art. 50, I, da Lei 6.766/1979: “Dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios”. A expressão “de qualquer modo”, na prática, inviabiliza a tentativa, pois qualquer que seja a conduta adotada pelo agente, implicará na consumação;

11)Crimes habituais: são aqueles compostos pela reiteração de atos que demonstram um estilo de vida do agente. Cada ato, isoladamente considerado, representa um indiferente penal. É o caso do curandeirismo (art. 284, I, do CP), em que o ato de prescrever, uma única vez, qualquer substância é conduta atípica, pois a lei reclama a habitualidade. Mirabete faz uma adequada ressalva, suscitando divergência: há tentativa do crime previsto no art. 282 do CP na conduta do sujeito que, sem ser médico, instala um consultório e é detido quando de sua primeira “consulta”.45 Não se devem confundir crimes habituais, entretanto, com crimes permanentes, nos quais a tentativa é perfeitamente cabível; e

12)Crimes-obstáculo: são os que retratam atos preparatórios tipificados de forma autônoma pelo legislador, a exemplo do crime de substância destinada à falsificação (art. 277 do CP). De fato, não há sentido em punir a preparação de um crime – que normalmente não é punível – como delito autônomo prevendose para este também a figura do conatus. Haveria incompatibilidade lógica de punir a tentativa de preparação de crime que somente é objeto de punição porque, excepcionalmente, o legislador construiu um tipo penal específico. Exemplificativamente, ter em depósito substância destinada à falsificação de um produto medicinal, não fosse a figura típica do art. 277, representaria conduta penalmente irrelevante, não podendo ser considerada ato executório do crime previsto no art. 273, pois trata-se de mera fase preparatória. Como se sabe, o intérprete não pode ampliar a exceção criada pelo legislador.

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Crimes punidos apenas na forma tentada: A regra vigente no sistema penal brasileiro é a punição dos crimes nas modalidades consumada e tentada. Mas em algumas situações não se admite o conatus – seja pela natureza da infração penal, seja em obediência a determinado mandamento legal –, razão pela qual apenas é possível a imposição de sanção penal para a forma consumada do delito ou da contravenção penal. É o que se verifica, a título ilustrativo, nos crimes culposos (salvo na culpa imprópria) e nos crimes unissubsistentes. Entretanto, em hipóteses raríssimas somente é cabível a punição de determinados delitos na forma tentada, pois nesse sentido orientou-se a previsão legislativa quando da elaboração do tipo penal. Exemplos disso encontram-se nos arts. 9º e 11 da Lei 7.170/1983 – Crimes contra a Segurança Nacional.

Jurisprudência selecionada:

Adequação típica mediante – concurso de pessoas: “O art. 29, caput, do Código Penal, não se relaciona somente ao aspecto da dosimetria da pena, mas influencia na tipicidade da conduta, na medida em que se trata de norma de extensão, que permite a adequação típica de subordinação mediata” (STJ: REsp 944.676/RS, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 21.06.2011).

Consumação – extorsão mediante sequestro – crime formal: “Cuidando-se de crime formal, sequestrada a vítima e exigido o resgate, ocorre a consumação, ainda que não se tenha conseguido a vantagem econômica almejada (Súmula 96/STJ)” (STJ: HC 86.127/RJ, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, j. 21.12.2008).

Início dos atos de execução: “Pretensão de absolvição do paciente ao argumento de que sua conduta se restringiu aos preparatórios do roubo, não havendo falar em tentativa. Matéria que esbarra na impossibilidade de se proceder, na via eleita do habeas corpus, ao revolvimento das provas já examinadas pelas instâncias ordinárias. O Tribunal de origem, de forma fundamentada, concluiu, na espécie, ter o paciente dado início, juntamente com os demais corréus, aos atos executórios do crime de roubo, que somente não se consumou em razão da pronta intervenção policial” (STJ: HC 112.639/RS, rel. Min. Og Fernandes, 6a Turma, j. 25.08.2009).

Tentativa – competência do Juizado Especial Criminal: “Em caso de crime tentado, para verificar se ele deve ser julgado no Juizado Especial Criminal, a causa de diminuição de pena deve ser aplicada em sua fração mínima de diminuição sobre a pena máxima cominada. Se o resultado daí advindo for superior a dois anos, o Juizado não é o competente para o julgamento da causa. (Inteligência do parágrafo único do artigo 2º da Lei 10.259/2001)” (STJ: HC 94.927/SP, rel. Min. Jane Silva – desembargadora convocada do TJ/MG, 6ª Turma, j. 01.04.2008).

Tentativa – diminuição da pena – “iter criminis”: “A redução constante do parágrafo único do art. 14 do Código Penal é de ser equacionada de acordo com o iter criminis percorrido pelo agente. No caso, as instâncias competentes assentaram que o delito de roubo não se consumou, dando-se que a ação delitiva ‘ficou entre um extremo e outro’. Pelo que se revela acertada a decisão que deu pela redução de metade da pena” (STF: HC 95.960/PR, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, j. 14.04.2009). No mesmo sentido: STJ: HC 75.332/GO, rel. Min. Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), 5ª Turma, j. 04.10.2007.

Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Art. 15. O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.

Introdução: Desistência voluntária e arrependimento eficaz são formas de tentativa abandonada, assim rotulados porque a consumação do crime deixa de ocorrer em razão da vontade do agente, que não chega ao resultado inicialmente desejado por interromper o processo executório do delito ou, esgotada a execução, emprega diligências eficazes para impedir o resultado. Diferem-se, portanto, da tentativa ou conatus, em que, iniciada a execução do delito, a consumação não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Fundamento: O fundamento político-criminal da desistência voluntária e do arrependimento eficaz é o estímulo ao agente para evitar a produção do resultado de um crime cuja execução já se iniciou, em relação ao qual lhe é perfeitamente possível alcançar a consumação. Por esse motivo, Franz von Liszt a eles se referia como a “ponte de ouro” do Direito Penal, isto é, a forma capaz de se valer o agente para retornar à seara da licitude. Os institutos têm origem no direito premial, pelo qual o Estado concede ao criminoso um tratamento penal mais favorável em face da vedação voluntária do resultado.

Natureza jurídica: Há três correntes sobre a natureza jurídica da desistência voluntária e do arrependimento eficaz: 1) Causa pessoal de extinção da punibilidade: embora não prevista no art. 107 do CP, a desistência voluntária e o arrependimento eficaz retiram o ius puniendi estatal no tocante ao crime inicialmente desejado pelo agente. É a posição de Nélson Hungria, E. Magalhães Noronha, Aníbal Bruno e Eugenio Raúl Zaffaroni, entre outros; 2) Causa de exclusão da culpabilidade: se o agente não produziu, voluntariamente, o resultado inicialmente desejado, afasta-se em relação a este o juízo de reprovabilidade. Responde, entretanto, pelo crime mais brando cometido. Comungam desse entendimento Hans Welzel e Claus Roxin; 3) Causa de exclusão da tipicidade: para essa vertente, afasta-se a tipicidade do crime inicialmente desejado pelo agente, subsistindo apenas a tipicidade dos atos já praticados. A ela se filiaram José Frederico Marques, Heleno Cláudio Fragoso, Basileu Garcia e Damásio E. de Jesus.

Desistência voluntária: Na desistência voluntária, o agente, por ato voluntário, interrompe o processo executório do crime, abandonando a prática dos demais atos necessários e que estavam à sua disposição para a consumação. É compatível, portanto, com a tentativa imperfeita ou inacabada, compreendida como aquela em que não se esgotaram os meios de execução que o autor tinha a seu alcance. Conforme a clássica fórmula de Frank, a desistência voluntária se caracteriza quando o responsável pela conduta diz a si próprio: “posso prosseguir, mas não quero”. Estaremos diante da tentativa, entretanto, se o raciocínio for outro: “quero prosseguir, mas não posso”. Em regra, caracteriza-se por uma conduta negativa, pois o agente desiste da execução do crime, deixando de realizar outros atos que estavam sob o seu domínio. Nos crimes omissivos impróprios, todavia, a desistência voluntária reclama uma atuação positiva, um fazer, pelo qual o autor de um delito impede a produção do resultado. A desistência voluntária não é admitida nos crimes unissubsistentes, pois, se a conduta não pode ser fracionada, exteriorizando-se por um único ato, é impossível desistir da sua execução, que já se aperfeiçoou com a atuação do agente.

Arrependimento eficaz: No arrependimento eficaz, ou resipiscência,46 depois de já praticados todos os atos executórios suficientes à consumação do crime, o agente adota providências aptas a impedir a produção do resultado. O arrependimento eficaz é compatível com a tentativa perfeita ou acabada, na qual o agente esgota os meios de execução que se encontravam à sua disposição. O art. 15 do CP revela ser o arrependimento eficaz possível somente no tocante aos crimes materiais, pela análise da expressão “impede que o resultado se produza”. Esse resultado, naturalístico, é exigido somente para a consumação dos crimes materiais. Além disso, nos crimes formais a realização da conduta implica na automática consumação do delito, aperfeiçoando-se a tipicidade do fato, muito embora, no caso concreto, seja possível, porém dispensável para a consumação, a produção do resultado naturalístico. Nos crimes de mera conduta, por sua vez, jamais ocorrerá o resultado naturalístico, motivo pelo qual não se admite a sua interrupção. Além disso, com a simples atividade o delito já estará consumado, com a tipicidade concluída e imutável.

Requisitos: Os requisitos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz são a voluntariedade e a eficácia. Ambos devem ser voluntários, isto é, livres de coação física ou moral, pouco importando sejam espontâneos ou não. A iniciativa pode emanar de terceira pessoa ou mesmo da própria vítima, bastando o pensamento “posso prosseguir, mas não quero”. Com efeito, a espontaneidade reclama tenha sido a ideia originada da mente do agente, como fruto de sua mais honesta vontade. Exige-se, ainda, a eficácia, ou seja, é necessário seja a atuação do agente capaz de evitar a produção do resultado. Se, embora o agente tenha buscado impedir sua ocorrência, ainda assim o resultado se verificou, subsiste a sua responsabilidade pelo crime consumado. Incide, todavia, a atenuante genérica prevista no art. 65, III, “b”, 1ª parte, do CP.

Motivos: São irrelevantes os motivos que levaram o agente a optar pela desistência voluntária ou pelo arrependimento eficaz. O CP se contenta com a voluntariedade e a eficácia para a exclusão da tipicidade.

Efeito: Na desistência voluntária e no arrependimento eficaz o efeito é o mesmo: o agente não responde pela forma tentada do crime inicialmente desejado, mas somente pelos atos já praticados.

Incompatibilidade com os crimes culposos: A desistência voluntária e o arrependimento eficaz são incompatíveis com os crimes culposos, salvo na culpa imprópria. O motivo é simples: nessa modalidade de delito o resultado naturalístico é involuntário, não sendo lógico imaginar, portanto, um resultado que o agente desejava produzir para, em seguida, abandonar a execução que a ele conduziria ou impedir a sua produção.

Adiamento da prática do crime: Prevalece o entendimento de que há desistência voluntária no adiamento da empreitada criminosa, com o propósito de repeti-la em ocasião mais adequada. Não existe desistência voluntária, porém, na hipótese de execução retomada, em que a pessoa deseja dar sequência, no futuro, à atividade criminosa que precisou adiar, utilizando-se dos atos anteriormente praticados.

Comunicabilidade da desistência voluntária e do arrependimento eficaz no concurso de pessoas: Há duas correntes sobre o assunto: 1) Heleno Cláudio Fragoso e Costa e Silva, sustentando o caráter subjetivo dos institutos, defendem a manutenção da responsabilidade do partícipe no tocante à tentativa abandonada pelo autor; 2) Nélson Hungria apregoa o caráter misto – objetivo e subjetivo – da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, com a consequente aplicação da regra prevista no art. 30 do CP, excluindo a responsabilidade penal do partícipe. Essa última posição é dominante, pois a conduta do partícipe é acessória, dependendo sua punição da prática de um crime, consumado ou tentado, pelo autor, responsável pela conduta principal. E se este não comete nenhum crime, impossível a punição do partícipe. Na hipótese de o partícipe desistir da empreitada criminosa, sua atuação, embora voluntária, será inútil se ele não conseguir impedir a consumação do delito. Exige-se, assim, que o partícipe convença o autor a não consumar a infração penal, pois, em caso contrário, responderá pelo delito, em face da ineficácia de sua desistência.

Tentativa qualificada: A tentativa é chamada de qualificada quando contém, em seu bojo, outro delito, de menor gravidade, já consumado. Na desistência voluntária e no arrependimento eficaz opera-se a exclusão da tipicidade do crime inicialmente desejado pelo agente. Resta, contudo, a responsabilidade penal pelos atos já praticados, os quais configuram um crime autônomo e já consumado. Daí falar-se em tentativa qualificada (exemplo: “A” efetua um tiro em “B”, que cai ao solo. Em seguida, com mais cartuchos no tambor do revólver, desiste de matá-lo, razão pela qual responderá unicamente pela lesão corporal, e não pela tentativa de homicídio). É possível, ainda, que os atos já praticados pelo agente não configurem crime autônomo, situação em que ficará impune, como no exemplo em que o larápio, depois de apropriar-se da coisa móvel, desiste voluntariamente de furtá-la.

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Jurisprudência selecionada:

Arrependimento eficaz – desistência voluntária – distinção: “Crime tentado: arrependimento eficaz (CP, art. 15): consequências jurídico-penais. Diversamente do que pode suceder na ‘desistência voluntária’ – quando seja ela mesma o fator impeditivo do delito projetado ou consentido -, o ‘arrependimento eficaz’ é fato posterior ao aperfeiçoamento do crime tentado, ao qual, no entanto, se, em concreto, impediu se produzisse o resultado típico, a lei dá o efeito de elidir a punibilidade da tentativa e limitá-la à consequente aos atos já praticados” (STF: HC 84.653/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 02.08.2005).

Desistência voluntária – Tribunal do Júri – quesitação – incompatibilidade com a tentativa: “A resposta afirmativa dos jurados à indagação sobre a ocorrência de tentativa afasta automaticamente a hipótese de desistência voluntária. Essa a conclusão da 2ª Turma ao denegar habeas corpus impetrado – em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 121, § 2º, I e IV, c/c o art. 14, II, do CP – com base em suposto cerceamento de defesa, em virtude da falta de quesitação específica requerida pela defesa. Esclareceu-se que o conselho de sentença, após responder positivamente ao primeiro quesito, inerente à autoria, também o fizera de forma assertiva quanto ao segundo, a fim de reconhecer a prática de homicídio tentado. Reputou-se que, assim, fora rejeitada a tese de desistência voluntária. Inferiu-se que, no caso, a ausência de quesito específico relativo à matéria não inquinaria de nulidade o julgamento do tribunal do júri” (STF: HC 1.12.197/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 05.06.2012, noticiado no Informativo 669).

Arrependimento posterior

Art. 16. Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

Introdução: Arrependimento posterior é a causa pessoal e obrigatória de diminuição da pena que ocorre quando o responsável pelo crime praticado sem violência à pessoa ou grave ameaça, voluntariamente e até o recebimento da denúncia ou queixa, restitui a coisa ou repara o dano provocado por sua conduta. Com o propósito de distinguir o arrependimento posterior do arrependimento eficaz, disciplinado pelo art. 15 do CP, o legislador foi infeliz ao tratar do instituto no âmbito da teoria do crime. O assunto deveria ter sido disciplinado na seara da teoria da pena, por influir na sua dosagem, em nada alterando a adequação típica do fato concreto, ao contrário do que se dá no arrependimento eficaz.

Natureza jurídica: Trata-se de causa pessoal e obrigatória de diminuição da pena. Tem incidência, portanto, na terceira fase de aplicação da pena privativa de liberdade.

Extensão do benefício: O arrependimento posterior alcança qualquer crime que com ele seja compatível, e não apenas os delitos contra o patrimônio. Raciocínio diverso levaria à conclusão de que essa figura penal deveria estar prevista no título dos crimes contra o patrimônio, e não na Parte Geral do CP. Basta, em termos genéricos, que exista um “dano” causado em razão da conduta penalmente ilícita. Prevalece o entendimento de que a reparação do dano moral enseja a aplicação do arrependimento posterior.

Fundamentos: O arrependimento posterior tem raízes em questões de política criminal, fundadas em duplo aspecto: 1) proteção da vítima, que deve ser amparada em relação aos danos sofridos; e 2) fomento do arrependimento por parte do agente, que se mostra mais preocupado com as consequências de seu ato, reduzindo as chances de reincidência.

Requisitos: O arrependimento posterior depende dos seguintes requisitos cumulativos:

a)Natureza do crime: O crime deve ter sido praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa. A violência contra a coisa não exclui o benefício. Em caso de violência culposa, é cabível o arrependimento posterior. Não houve violência na conduta, e sim no resultado. No tocante aos crimes perpetrados com violência imprópria, duas posições se destacam: 1) é possível o arrependimento posterior, pois a lei só o excluiu no que diz respeito à violência própria. Se quisesse afastá-lo, o teria feito expressamente, tal como no art. 157, caput, do CP; e 2) não se admite o benefício pois violência imprópria é violência dolosa, e nela a vítima é reduzida à impossibilidade de resistência. A situação é tão grave que a subtração de coisa alheia móvel assim praticada deixa de ser furto e se torna roubo, crime muito mais grave.

b)Reparação do dano ou restituição da coisa: Deve ser voluntária, pessoal e integral. Voluntária, no sentido de ser realizada sem coação física ou moral. Pode se dar, assim, em razão de orientação de familiares, do advogado, ou mesmo por receio de suportar rigorosa sanção penal. Não se exige, contudo, espontaneidade. É prescindível tenha a ideia surgido livremente na mente do agente. Pessoal, salvo na hipótese de comprovada impossibilidade, ou seja, não pode advir de terceiros, exceto em situações que justifiquem a impossibilidade de ser feita diretamente pelo autor do crime. Por óbvio, também não pode ser resultante da atuação policial ao apreender o produto do crime, pois essa circunstância excluiria a voluntariedade. Integral, pois a reparação ou restituição de modo parcial não se encaixa no conceito apresentado pelo art. 16 do CP. A completude, entretanto, deve ser analisada no caso concreto, ficando ao encargo da vítima, principalmente, a sua constatação. O STF, todavia, já admitiu o arrependimento posterior na reparação parcial do dano. Nessa linha de raciocínio, o percentual de diminuição da pena (um a dois terços) existe para ser sopesado em razão da extensão da reparação (ou do ressarcimento) e da presteza com que ela ocorre.

c)Limite temporal: Deve ser efetuada até o recebimento da denúncia ou da queixa. Se a reparação do dano for concretizada após o recebimento da denúncia ou da queixa, mas antes do julgamento, aplica-se a atenuante genérica prevista no art. 65, III, “b”, parte final, do CP.

Comunicabilidade do arrependimento posterior no concurso de pessoas: A reparação do dano ou restituição da coisa tem natureza objetiva, comunicando-se aos demais coautores e partícipes do crime, na forma definida pelo art. 30 do CP. Nas infrações penais em que a reparação do dano ou restituição da coisa por um dos agentes inviabiliza igual atuação por parte dos demais, a todos se estende o benefício.

Critério para redução da pena: A redução da pena dentro dos parâmetros legais (um a dois terços) deve ser calculada com base na celeridade e na voluntariedade da reparação do dano ou da restituição da coisa. Quanto mais rápida e mais verdadeira, maior será a diminuição.

Recusa do ofendido em aceitar a reparação do dano ou a restituição da coisa: Seja qual for o motivo que leve a vítima a agir dessa forma, o agente não pode ser privado da diminuição da pena se preencher os requisitos legalmente previstos para a concessão do benefício. Pertinente, assim, a entrega da coisa à autoridade policial, que deverá lavrar auto de apreensão, para remessa ao juízo competente e posterior entrega ao ofendido, ou ainda, em casos extremos, o depósito em juízo, determinado em ação de consignação em pagamento.

Dispositivos especiais acerca da reparação do dano: a) Peculato culposo: no peculato culposo, a reparação do dano, se anterior à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade, e, se lhe for posterior, reduz de metade a pena imposta (art. 312, § 3º, do CP). Essa regra, de caráter especial, afasta a incidência do art. 16 do Código Penal em relação ao peculato culposo. Ver comentários ao art. 312; b) Juizados Especiais Criminais: A composição dos danos civis entre o autor do fato e o ofendido, em se tratando de crimes de ação penal privada ou ação penal pública condicionada à representação, acarreta na renúncia ao direito de queixa ou de representação, com a consequente extinção da punibilidade (art. 74, parágrafo único, da Lei 9.099/1995); c) Apropriação indébita previdenciária: No crime tipificado pelo art. 168-A do CP, estará extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declarar, confessar e efetuar o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e prestar as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal (§ 2º).

Súmula 554 do STF: “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”. A interpretação a contrario sensu deste enunciado deixa claro que o pagamento de cheque sem provisão de fundos, até o recebimento da denúncia, impede o prosseguimento da ação penal. A súmula, criada anteriormente à Lei 7.209/1984, para o crime previsto no art. 171, § 2º, VI, do CP, perdeu eficácia com a redação conferida ao art. 16 pela Reforma da Parte Geral do CP. A jurisprudência atual, todavia, é dominante no sentido de considerá-la válida, com a justificativa de não se referir ao arrependimento posterior, e sim à falta de justa causa para a denúncia, por ausência de fraude. É o atual entendimento do STJ, que limita a sua aplicação exclusivamente ao crime de estelionato na modalidade emissão de cheque sem fundos (art. 171, § 2º, VI, do CP).

Jurisprudência selecionada:

Arrependimento posterior – natureza jurídica – requisitos: “O arrependimento posterior é causa de diminuição de pena objetiva, bastando para a sua configuração seja voluntário e realizado antes do recebimento da denúncia, mediante a devolução ou reparação integral do bem jurídico lesado. Na hipótese, observa-se, mormente da leitura do termo de declarações prestado pela própria vítima, que o recorrente, voluntariamente e logo após os fatos narrados na denúncia, restituiu, relativamente ao crime de estelionato, os bens havidos de forma indevida e fraudulenta” (STJ: RHC 20.051/RJ, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 05.12.2006).

Arrependimento posterior – reparação parcial do dano – admissibilidade – diminuição da pena: “A incidência do arrependimento posterior, contido no art. 16 do CP (‘Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços’) prescinde da reparação total do dano e o balizamento, quanto à diminuição da pena decorrente da aplicação do instituto, está na extensão do ressarcimento, bem como na presteza com que ele ocorre. Essa a conclusão prevalente da 1ª Turma que, diante do empate, deferiu habeas corpus impetrado em favor do paciente – condenado pela prática dos crimes capitulados nos artigos 6º e 16 da Lei 7.492/1986 e no art. 168, § 1º, III, do CP –, para que o juízo de 1º grau verifique se estão preenchidos os requisitos necessários ao benefício e o aplique na proporção devida” (STF: HC 98.658/PR, rel. orig. Min. Cármen Lúcia, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, j. 09.11.2010, noticiado no Informativo 608).

Circunstância objetiva – art. 30 do CP – comunicabilidade no concurso de pessoas: “Uma vez reparado o dano integralmente por um dos autores do delito, a causa de diminuição de pena do arrependimento posterior, prevista no art. 16 do CP, estende-se aos demais coautores, cabendo ao julgador avaliar a fração de redução a ser aplicada, conforme a atuação de cada agente em relação à reparação efetivada. De fato, trata-se de circunstância comunicável, em razão de sua natureza objetiva. Deve-se observar, portanto, o disposto no art. 30 do CP, segundo o qual ‘não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime’” (STJ: REsp 1.187.976/SP, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 07.11.2013, noticiado no Informativo 531).

Emissão dolosa de cheque sem fundos – reparação do dano – extinção da punibilidade: “A ação penal não há de ir para a frente em caso que tal, mesmo que o pagamento do cheque se tenha verificado após o recebimento da denúncia. Ainda em caso tal, bem como em casos assemelhados, é lícito entender que se extingue a punibilidade pelo pagamento da dívida (por exemplo, RHC 21.489). Segundo o Relator, lícito ainda é se invoque o princípio da insignificância diante da reparação do dano, de modo que se exclua da tipicidade penal fatos penalmente insignificantes” (STJ: HC 93.893/SP, rel. Min. Nilson Naves, 6ª Turma, j. 20.05.2008).

Furto de energia elétrica – pagamento do valor devido – extinção da punibilidade: “Furto de energia elétrica (art. 155, § 3º, do Código Penal). Acordo celebrado com a concessionária. Parcelamento do valor correspondente à energia subtraída. Adimplemento. Possibilidade de aplicação analógica das Leis 9.249/1995 e 10.684/2003. Extinção da punibilidade. (…) Se o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia enseja a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, o mesmo entendimento deve ser adotado quando há o pagamento do preço público referente à energia elétrica ou a água subtraídas, sob pena de violação ao princípio da isonomia” (STJ: HC 252.802/SE, rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 17.10.2013).

Crime impossível

Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

Conceito: O art. 17 do CP traz o conceito de crime impossível: é o que se verifica quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, jamais ocorrerá a consumação.

Natureza jurídica: O crime impossível guarda afinidade com o instituto da tentativa. Em ambos, o agente inicia, em seu plano interno, a execução da conduta criminosa que não alcança a consumação. As diferenças, entretanto, são nítidas. Na tentativa é possível atingir a consumação, pois os meios empregados pelo agente são idôneos, e o objeto material contra o qual se dirige a conduta constitui-se em bem jurídico suscetível de sofrer lesão ou perigo de lesão. Há, portanto, exposição do bem a dano ou perigo. No crime impossível, por sua vez, o emprego de meios ineficazes ou o ataque a objetos impróprios inviabilizam a produção do resultado, inexistindo situação de perigo ao bem jurídico penalmente tutelado. A redação do art. 17 do CP causa confusão acerca da natureza jurídica do crime impossível transmitindo a impressão equivocada de tratar-se de causa de isenção de pena no crime tentado. Na verdade, o crime impossível é causa de exclusão da tipicidade, eis que o fato praticado pelo agente não se enquadra em nenhum tipo penal. Entretanto, em razão da aparente similaridade entre os institutos, a doutrina convencionou também chamá-lo de tentativa inadequada, tentativa inidônea47 ou tentativa impossível. No regime da Parte Geral do CP de 1940, antes da reforma pela Lei 7.209/1984, falava-se em quase crime, pois os arts. 76, parágrafo único, e 94, III, impunham ao autor do crime impossível a medida de segurança de liberdade vigiada. No atual sistema, convém não mais usar essa expressão como sinônima de crime impossível, embora parcela doutrinária ainda o faça.

Teorias sobre o crime impossível:

1)Teoria objetiva: Apregoa que a responsabilização de alguém pela prática de determinada conduta depende de elementos objetivos e subjetivos (dolo e culpa). Elemento objetivo é, no mínimo, o perigo de lesão para bens jurídicos penalmente tutelados. E quando a conduta não tem potencialidade para lesar o bem jurídico, seja em razão do meio empregado pelo agente, seja pelas condições do objeto material, não se configura a tentativa. É o que se chama de inidoneidade, que, conforme o seu grau, pode ser de natureza absoluta ou relativa. Inidoneidade absoluta é aquela em que o crime jamais poderia chegar à consumação; relativa, por seu turno, aquela em que a conduta poderia ter consumado o delito, o que somente não ocorreu em razão de circunstâncias estranhas à vontade do agente. Essa teoria se subdivide em outras duas: objetiva pura e objetiva temperada.

1.1)Teoria objetiva pura: Para essa vertente, o Direito Penal somente pode proibir condutas lesivas a bens jurídicos, devendo apenas se preocupar com os resultados produzidos no mundo fenomênico. Portanto, quando a conduta é incapaz, por qualquer razão, de provocar a lesão, o fato há de permanecer impune. Essa impunidade ocorrerá independentemente do grau da inidoneidade da ação, pois nenhum bem jurídico foi lesado ou exposto a perigo de lesão. Assim, seja a inidoneidade do meio ou do objeto absoluta ou relativa, em nenhum caso estará caracterizada a tentativa.

1.2)Teoria objetiva temperada ou intermediária: Para a configuração do crime impossível, e, por corolário, para o afastamento da tentativa, os meios empregados e o objeto do crime devem ser absolutamente inidôneos a produzir o resultado idealizado pelo agente. Se a inidoneidade for relativa, haverá tentativa. Foi a teoria consagrada pelo art. 17 do CP.

2)Teoria subjetiva: Leva em conta a intenção do agente, manifestada por sua conduta, pouco importando se os meios por ele empregados ou o objeto do crime eram ou não idôneos para a produção do resultado. Assim, seja a inidoneidade absoluta ou relativa, em qualquer hipótese haverá tentativa, pois o que vale é a vontade do agente, seu aspecto psíquico.

3)Teoria sintomática: Preocupa-se com a periculosidade do autor, e não com o fato praticado. A tentativa e o crime impossível são manifestações exteriores de uma personalidade temerária do agente, incapaz de obedecer às regras jurídicas a todos impostas. Destarte, justifica-se, em qualquer caso, a aplicação de medida de segurança.

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Espécies de crime impossível: Há duas espécies de crime impossível:

1)Crime impossível por ineficácia absoluta do meio: A palavra “meio” se refere ao meio de execução do crime. Dá-se a ineficácia absoluta quando o meio de execução utilizado pelo agente é, por sua natureza ou essência, incapaz de produzir o resultado, por mais reiterado que seja seu emprego. A inidoneidade do meio deve ser analisada no caso concreto, e jamais em abstrato. Se a ineficácia for relativa, a tentativa estará presente.

2)Crime impossível por impropriedade absoluta do objeto: Objeto, para o CP, é o objeto material, compreendido como a pessoa ou a coisa sobre a qual recai a conduta criminosa. O objeto material é absolutamente impróprio quando inexistente antes do início da execução do crime, ou ainda quando, nas circunstâncias em que se encontra, torna impossível a sua consumação, tal como nas situações em que se tenta matar pessoa já falecida, ou se procura abortar o feto de mulher que não está grávida. A mera existência do objeto material é suficiente, por si só, para configurar a tentativa. O conatus estará ainda presente no caso de impropriedade relativa do objeto.

Momento adequado para aferição da inidoneidade absoluta: A ineficácia absoluta do meio e a impropriedade absoluta do objeto devem ser analisadas depois da prática da conduta com a qual se deseja consumar o crime. Uma vez realizada a conduta, e só então, deve ser diferenciada a situação em que tal conduta caracteriza tentativa punível ou crime impossível. A regra não pode ser estabelecida em abstrato, previamente, e sim no caso concreto, após a realização da conduta.

Aspectos processuais inerentes ao crime impossível: A comprovação do crime impossível acarreta a ausência de tipicidade do fato. Em verdade, não há crime. Consequentemente, o Ministério Público deve requerer o arquivamento do inquérito policial. Se não o fizer, oferecendo denúncia, deve esta ser rejeitada, com fulcro no art. 395, III, do CPP, pois o fato evidentemente não constitui crime, faltando condição para o exercício da ação penal. Se a denúncia for recebida, com a instauração do processo penal, o juiz deve ao final absolver o réu, nos termos do art. 386, III, do CPP, pelo motivo de o fato não constituir infração penal. Em se tratando de crime da competência do Tribunal do Júri, ao final da primeira fase (judicium accusationis), deverá o acusado ser absolvido sumariamente, em conformidade com o art. 415, inciso III, do CPP, em face de o fato não constituir infração penal. O habeas corpus não é instrumento adequado para trancamento de ação penal que tenha como objeto um crime impossível, pois nessa ação constitucional não é cabível a produção de provas para demonstrar a ineficácia absoluta do meio ou a impropriedade absoluta do objeto. Excetua-se essa regra em hipóteses teratológicas. Exemplo: denúncia de homicídio pelo fato de alguém ter matado um boneco.

Crime putativo e crime impossível: Crime putativo, também chamado de imaginário ou erroneamente suposto, é o que existe apenas na mente do agente, que acredita violar a lei penal, quando na verdade o fato por ele concretizado não possui adequação típica, ou seja, não encontra correspondência em um tipo penal. São três as espécies de crime putativo:

1)Crime putativo por erro de tipo: É o crime imaginário que se verifica quando o autor acredita ofender uma lei penal incriminadora efetivamente existente, mas à sua conduta faltam elementos da definição típica. Exemplo: “A” acredita praticar tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei 11.343/2006) ao vender um pó branco, que reputa ser cocaína, mas na verdade é farinha.

2)Crime putativo por erro de proibição ou “delito de alucinação”: A equivocada crença do agente recai sobre a ilicitude do fato, pois supõe violar uma lei penal que não existe. Exemplo: “B”, cidadão comum, perde o controle de seu automóvel que dirigia em excesso de velocidade, vindo a se chocar com outro automóvel que estava estacionado. Foge em seguida, com receio de ser preso em flagrante pela prática de dano culposo, não tipificado como infração penal pela legislação comum.48

3)Crime putativo por obra do agente provocador (crime de ensaio, crime de experiência ou flagrante provocado): Verifica-se quando alguém, insidiosamente, induz outra pessoa a cometer uma conduta criminosa, e, simultaneamente, adota medidas para impedir a consumação. A consumação deve ser absolutamente impossível, sob pena de configuração da tentativa. Compõe-se de dois atos: um de indução, pois o agente é provocado por outrem a cometer o delito, e outro de impedimento, eis que a pretensa vítima adota providências aptas a obstar a consumação. Como exemplo, podemos ilustrar com a situação da patroa que, desconfiada de furtos supostamente praticados por sua empregada doméstica, simula sua saída de casa e o esquecimento de cédulas de dinheiro sobre um móvel, atraindo a suspeita a subtraí-los. Ao mesmo tempo, instala uma câmera de filmagem no local e solicita a presença de policiais militares para acompanharem a atuação da serviçal. Quando ela se apodera do dinheiro e o coloca em sua bolsa, os milicianos prontamente ingressam na residência e efetuam a prisão em flagrante. Caracterizado o crime putativo por obra do agente provocador, o fato resta impune, pois o seu autor por nada responde, nem mesmo pela tentativa. Aplica-se analogicamente a regra prevista no art. 17 do CP, pois a situação em muito se assemelha ao crime impossível. Sobre o assunto, o STF editou a Súmula 145: “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

Distinção entre crime putativo por obra do agente provocador e flagrante esperado: Deve ser feita a distinção entre essa modalidade de crime putativo, também conhecido como flagrante preparado, e o flagrante esperado: No primeiro, a iniciativa do delito é do agente provocador. A vontade do provocado é viciada, o que contamina de nulidade toda a conduta e sequer existe tentativa. No flagrante esperado, a deflagração do processo executório do crime é responsabilidade do agente, razão pela qual é lícito. É válido quando a polícia, informada sobre a possibilidade de ocorrer um delito, dirige-se ao local, aguardando a sua execução. Iniciada esta, a pronta intervenção dos agentes policiais, prendendo o autor, configura o flagrante.49

Diferença entre crime impossível e crime putativo: Crime impossível é a situação em que o autor, com a intenção de cometer o delito, não consegue fazê-lo por ter se utilizado de meio de execução absolutamente ineficaz, ou então em decorrência de ter direcionado a sua conduta a objeto material absolutamente impróprio. Portanto, o erro do agente recai sobre a idoneidade do meio ou do objeto material. De seu turno, crime putativo é aquele em que o agente, embora acredite praticar um fato típico, realiza um indiferente penal, seja pelo fato de a conduta não encontrar previsão legal (crime putativo por erro de proibição), seja pela ausência de um ou mais elementos da figura típica (crime putativo por erro de tipo), ou, ainda, por ter sido induzido à prática do crime, ao mesmo tempo em que foram adotadas providências eficazes para impedir sua consumação (crime putativo por obra do agente provocador).

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Jurisprudência selecionada:

Crime impossível – flagrante preparado – tráfico de drogas – crime permanente: “Não configura situação de flagrante preparado o contexto em que a Polícia, tendo conhecimento prévio do fato delituoso, vem a surpreender, em sua prática, o agente que, espontaneamente, iniciara o processo de execução do iter criminis. A ausência, por parte dos organismos policiais, de qualquer medida que traduza, direta ou indiretamente, induzimento ou instigação à pratica criminosa executada pelo agente descaracteriza a alegação de flagrante preparado, não obstante sobrevenha a intervenção ulterior da Polícia – lícita e necessária – destinada a impedir a consumação do delito. Precedentes” (STF: HC 70.076/SP, rel. Min. Celso de Mello – decisão monocrática), Informativo 448 – 2006). No mesmo sentido: STJ: HC 89.398/SP, rel. Min. Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), 6ª Turma, j. 08.11.2007.

Crime impossível – prisão em flagrante pelo segurança do estabelecimento comercial – não caracterização: “Cinge-se a controvérsia à configuração ou não de crime impossível na hipótese em que o agente, ao tentar sair do estabelecimento comercial com produtos pertencentes a este, é detido por seguranças, em decorrência da suspeita de funcionários da empresa. No caso dos autos, o fato de o agente ter sido vigiado pelo segurança do estabelecimento não ilide, de forma absolutamente eficaz, a consumação do delito de furto, pois existiu o risco, ainda que mínimo, de que o agente lograsse êxito na consumação do furto e causasse prejuízo à vítima, restando frustrado seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade. Desta maneira, não se pode reconhecer, nesta situação, a configuração de crime impossível pela absoluta ineficácia do meio empregado, mas sim a tentativa de furto. O crime impossível somente se caracteriza quando o agente, após a prática do fato, jamais poderia consumar o crime pela ineficácia absoluta do meio empregado ou pela absoluta impropriedade do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal” (STJ: AgRg no REsp 911.756/RS, rel. Min. Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), 6ª Turma, j. 17.04.2008).

Crime impossível – roubo – ausência de bens em poder da vítima – não caracterização: “Tratando-se o crime de roubo de delito complexo, tem-se por iniciada a execução tão logo praticada a violência ou grave ameaça à vítima. O fato de inexistir bens materiais em poder da vítima, não desnatura a ocorrência do crime em sua modalidade tentada” (STJ: REsp 897.373/SP, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 03.04.2007).

Crime impossível – sistema de vigilância – não caracterização: “O sistema de vigilância instalado nos estabelecimentos comerciais, seja eletrônico, seja mediante fiscais de prevenção e perda, não se mostra infalível a prevenir delitos de furto, pois a despeito de dificultar a ocorrência da inversão da posse quanto ao bem jurídico protegido pela lei penal, não é capaz de impedir, por si só, a ocorrência do fato delituoso” (STJ: HC 181.138/MG, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 08.11.2011).

Crime impossível – tentativa – distinção: “O crime impossível somente se caracteriza quando o agente, após a prática do fato, jamais poderia consumar o crime pela ineficácia absoluta do meio empregado ou pela absoluta impropriedade do objeto material, nos termos do art. 17 do Código Penal. A ação externa alheia à vontade do agente, impedindo a consumação do delito após iniciada a execução, caracteriza a tentativa (art. 14, II, do CP)” (STJ: HC 45.616/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 09.08.2007).

Art. 18. Diz-se o crime:

Crime doloso

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Crime culposo

II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Crimes dolosos: O dolo, no sistema finalista de conduta, integra a conduta e, consequentemente, o fato típico. Destarte, pode ser conceituado como o elemento subjetivo do tipo. É implícito e inerente a todo crime doloso. Dentro de uma concepção causal, por outro lado, funciona como elemento da culpabilidade. Em consonância com a orientação finalista, por nós adotada, o dolo consiste na vontade e consciência de realizar os elementos do tipo penal.

Teorias do dolo: Existem três teorias acerca do dolo: 1) Teoria da representação: A configuração do dolo exige apenas a previsão do resultado. Privilegia o lado intelectual, não se preocupando com o aspecto volitivo, pois pouco importa se o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Basta que o resultado tenha sido antevisto pelo sujeito. Em nosso sistema penal tal teoria deve ser afastada, por confundir o dolo com a culpa consciente; 2) Teoria da vontade: Se vale da teoria da representação, ao exigir a previsão do resultado. Além da representação, reclama ainda a vontade de produzir o resultado; 3) Teoria do assentimento (teoria do consentimento ou da anuência): Há dolo não somente quando o agente quer o resultado, mas também quando realiza a conduta assumindo o risco de produzi-lo.

Teorias adotadas pelo CP: O art. 18, I, do CP, revela que foram adotadas duas teorias – a da vontade (“quis o resultado”) e a do assentimento (“assumiu o risco de produzi-lo”). Dolo é, sobretudo, vontade de produzir o resultado. Mas não é só. Também há dolo na conduta de quem, após prever e estar ciente de que pode provocar o resultado, assume o risco de produzi-lo.

Elementos do dolo: O dolo é composto por consciência e vontade. A consciência é seu elemento intelectual, ao passo que a vontade desponta como elemento volitivo. Tais elementos se relacionam em três momentos distintos e sucessivos. Em primeiro lugar, opera-se a consciência da conduta e do resultado. Depois, o sujeito manifesta sua consciência sobre a relação de causalidade entre a conduta a ser praticada e o resultado que em decorrência dela será produzido. Por fim, o agente exterioriza a vontade de realizar a conduta e produzir o resultado. Basta, para a verificação do dolo, que o resultado se produza em conformidade com a vontade esboçada pelo agente no momento da conduta. No tocante ao nexo causal, não é preciso que o iter criminis transcorra na forma idealizada pelo agente. Subsiste o dolo se o objetivo almejado for alcançado, ainda que de modo diverso (aberratio causae). O dolo deve englobar todas as elementares e circunstâncias do tipo penal. Se restar constatada a sua ausência acerca de qualquer parte do crime, entra em cena o instituto do erro de tipo.

Dolo natural e dolo normativo: A divisão do dolo em natural e normativo relaciona-se à teoria adotada para definição da conduta. Na teoria clássica, causal ou mecanicista, o dolo (e a culpa) estava alojado no interior da culpabilidade, a qual era composta por três elementos: imputabilidade, dolo (ou culpa) e exigibilidade de conduta diversa. O dolo ainda abrigava em seu bojo a consciência da ilicitude do fato. Esse dolo, revestido da consciência da ilicitude do fato, era chamado de dolo normativo. Com o surgimento do finalismo penal, o dolo foi transferido da culpabilidade para a conduta. Passou a integrar o fato típico. A culpabilidade continuou a ser composta de três elementos, embora distintos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. O dolo, portanto, abandonou a culpabilidade para residir no fato típico. A consciência da ilicitude, que era atual, passou a ser potencial e deixou de habitar o interior do dolo, para ter existência autônoma como elemento da culpabilidade. Tal dolo, livre da consciência da ilicitude, é chamado de dolo natural. Em síntese, o dolo normativo vincula-se à teoria clássica da conduta, ao passo que o dolo natural se liga ao finalismo penal.

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Espécies de dolo:

a)Dolo direto e dolo indireto:Dolo direto (determinado, intencional, imediato ou incondicionado) é aquele em que a vontade do agente é voltada a determinado resultado. Dirige sua conduta a uma finalidade precisa. É o caso do assassino profissional que, desejando a morte da vítima, dispara contra ela um único tiro, certeiro e fatal. Dolo indireto ou indeterminado, por sua vez, é aquele em que o agente não tem a vontade dirigida a um resultado determinado. Subdivide-se em dolo alternativo e em dolo eventual. Dolo alternativo é o que se verifica quando o agente deseja, indistintamente, um ou outro resultado. Sua intenção se destina, com igual intensidade, a produzir um entre vários resultados previstos como possíveis. É o caso do sujeito que atira contra o seu desafeto, com o propósito de matar ou ferir. Se matar, responderá por homicídio. Se ferir, responderá por tentativa de homicídio – em caso de dolo alternativo, o agente sempre responderá pelo resultado mais grave. Justifica-se esse raciocínio pelo fato de o CP ter adotado a teoria da vontade (art. 18, I). Se teve a vontade de praticar um crime mais grave, por ele deve responder, ainda que na forma tentada. Dolo eventual é a modalidade em que o agente não quer o resultado, por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. É possível a sua existência em decorrência do acolhimento pelo CP da teoria do assentimento, na expressão “assumiu o risco de produzi-lo” (art. 18, I). O dolo eventual é admitido por todos os crimes que com ele sejam compatíveis. Há casos, entretanto, em que o tipo penal exige expressamente o dolo direto. Afasta-se, então, o dolo eventual (art. 180, caput, do CP – utiliza a expressão “coisa que sabe ser produto de crime”, indicativa de dolo direto). Alguns autores criticam o dolo eventual, dizendo ser inócuo, pois a sua prova residiria exclusivamente na mente do autor. Não procedem tais alegações, pois o dolo eventual, assim como o dolo direto, não tem a sua comprovação limitada ao psiquismo interno do agente. Extrai-se, ao contrário, das circunstâncias do caso concreto, tais como os meios empregados, a apreciação da situação precedente, o comportamento do agente posteriormente ao crime e sua personalidade, entre tantos outros que somente a vida real pode esgotar. O dolo eventual não tem, por si só, reprovabilidade inferior ao dolo direto. O CP os colocou em idêntica posição jurídica. A pena-base será fixada levando-se em conta as circunstâncias judiciais previstas no art. 59, não se incluindo nesse rol a modalidade do dolo.

Dolo eventual e os crimes de trânsito: A jurisprudência posiciona-se no sentido de existir dolo eventual na conduta do agente responsável por graves crimes praticados na direção de veículo automotor. Esta escolha fundamenta-se nas diversas campanhas educativas realizadas nas últimas décadas, demonstrando os inúmeros riscos da direção ousada e perigosa, como se dá no racha e no excesso de velocidade em via pública. Tais advertências são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de tais comportamentos, bem como dos resultados danosos que, em razão delas, são rotineiramente produzidos. E, se mesmo assim o condutor de veículo automotor continua a agir de forma temerária, revela inequivocamente sua indiferença com a vida e a integridade corporal alheia, devendo responder pelo crime doloso a que der causa. No tocante ao homicídio cometido na direção de veículo automotor, encontrando-se o condutor em estado de embriaguez, a análise da situação concreta é fundamental para a tipificação da conduta. Com efeito, a conclusão pelo dolo (direto ou eventual) acarreta na incidência do crime definido no art. 121 do CP, ao passo que a presença da culpa resulta no delito previsto no art. 302 da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro.

b)Dolus bonus e dolus malus: Essa divisão diz respeito aos motivos do crime, que podem aumentar a pena, como no caso do motivo torpe, ou diminuí-la, tal como se dá no motivo de relevante valor social ou moral.

c)Dolo de propósito e dolo de ímpeto (ou repentino):Dolo de propósito (ou refletido) é o que emana da reflexão do agente, ainda que pequena, acerca da prática da conduta criminosa. Verifica-se nos crimes premeditados. Dolo de ímpeto (ou repentino) é o que se caracteriza quando o autor pratica o crime motivado por paixão violenta ou excessiva perturbação de ânimo. Não há intervalo entre a cogitação do crime e a execução da conduta penalmente ilícita. Ocorre geralmente nos crimes passionais.

d)Dolo genérico e dolo específico: Essa classificação ganhou destaque no sistema clássico do Direito Penal (teoria causalista da conduta). Falava-se em dolo genérico quando a vontade do agente se limitava à prática da conduta típica, sem nenhuma finalidade específica, tal como no crime de homicídio, em que é suficiente a intenção de matar alguém, pouco importando o motivo para a configuração da modalidade básica do crime. Por outro lado, o dolo específico existia nos crimes em que a referida vontade era acrescida de uma finalidade especial. No caso da injúria, por exemplo, não basta a atribuição à vítima de uma qualidade negativa. Exige-se também tenha a conduta a finalidade de macular a honra subjetiva da pessoa ofendida. Atualmente, com a superveniência da teoria finalista, utiliza-se o termo dolo para referir-se ao antigo dolo genérico. A expressão dolo específico, por sua vez, foi substituída por elemento subjetivo do tipo ou, ainda, elemento subjetivo do injusto.

e)Dolo presumido: também conhecido como dolo in re ipsa, seria a espécie que dispensa comprovação no caso concreto. Não pode ser admitido no Direito Penal moderno, incompatível com a responsabilidade penal objetiva.

f)Dolo de dano e dolo de perigo:Dolo de dano ou de lesão é o que se dá quando o agente quer ou assume o risco de lesionar um bem jurídico penalmente tutelado. É exigido para a prática de um crime de dano. Na lesão corporal, por exemplo, exigem-se a consciência e a vontade de ofender a saúde ou a integridade corporal de outrem. Dolo de perigo é o que ocorre quando o agente quer ou assume o risco de expor a perigo de lesão um bem jurídico penalmente tutelado. No crime tipificado pelo art. 130 do CP, exemplificativamente, o dolo do agente se circunscreve à exposição de alguém, por meio de relações sexuais ou de ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado.

g)Dolo de primeiro grau e dolo de segundo grau: O dolo de primeiro grau consiste na vontade do agente, direcionada a determinado resultado, efetivamente perseguido, englobando os meios necessários para tanto. Há a intenção de atingir um único bem jurídico. Exemplo: o matador de aluguel que persegue e mata, com golpes de faca, a vítima indicada pelo mandante. Dolo de segundo grau ou de consequências necessárias é a vontade do agente dirigida a determinado resultado, efetivamente desejado, em que a utilização dos meios para alcançá-lo inclui, obrigatoriamente, efeitos colaterais de verificação praticamente certa. O agente não deseja imediatamente os efeitos colaterais, mas tem por certa a sua superveniência, caso se concretize o resultado pretendido. Exemplificativamente, é o que se verifica no tocante ao assassino que, desejando eliminar a vida de determinada pessoa que se encontra em lugar público, instala ali uma bomba, a qual, quando detonada, certamente matará outras pessoas ao seu redor. Mesmo que não queira atingir essas outras vítimas, tem por evidente o resultado se a bomba explodir como planejado.50

h)Dolo geral, por erro sucessivo, dolus generalis ou aberratio causae:Dolo geral, por erro sucessivo ou “aberratio causae” é o engano no tocante ao meio de execução do crime, relativamente à forma pela qual se produz o resultado inicialmente desejado pelo agente. Ocorre quando o sujeito, acreditando ter produzido o resultado almejado, pratica nova conduta com finalidade diversa, e ao final se constata que foi esta última que produziu o que se buscava desde o início. Cuida-se de erro sobre a relação de causalidade. Inexiste erro quanto às elementares do tipo, bem como no tocante à ilicitude do fato. Esse erro, de natureza acidental, é irrelevante no Direito Penal, pois o que importa é que o agente queria um resultado e o alcançou. O dolo é geral e envolve todo o desenrolar da ação típica, do início da execução até a consumação. Exemplo: “A”, desejando matar “B”, oferece-lhe uma bebida, misturada com veneno. “B” ingere o líquido e, em seguida, cai ao solo, acreditando o autor que ele está morto. Com o propósito de ocultar o cadáver, “A” coloca o corpo de “B” em um saco plástico e o lança ao mar. Dias depois, o cadáver é encontrado e verifica-se que a morte ocorreu por força de asfixia provocada pelo afogamento. Nesse caso, o autor deve responder por homicídio consumado, incidindo a qualificadora do uso do veneno.

i)Dolo antecedente, dolo atual e dolo subsequente:Dolo antecedente (inicial ou preordenado) é o que existe desde o início da execução do crime. É suficiente para fixar a responsabilidade penal do agente. Dolo atual (ou concomitante) é aquele em que persiste a vontade do agente durante todo o desenvolvimento dos atos executórios. Dolo subsequente (ou sucessivo) é o que se verifica quando o agente, depois de iniciar uma ação com boa-fé, passa a agir de forma ilícita e, por corolário, pratica um crime, ou ainda quando conhece posteriormente a ilicitude de sua conduta e, ciente disso, não procura evitar suas consequências. A diferença entre dolo antecedente e dolo subsequente é relevante para a distinção dos crimes de apropriação indébita (CP, art. 168) e estelionato (CP, art. 171). Na apropriação indébita, o agente comporta-se como proprietário de uma coisa da qual tinha a posse ou detenção. Recebeu o bem licitamente, de boafé, mas posteriormente surge o dolo e ele não mais restitui a coisa, como se seu dono fosse. O dolo é subsequente. Já no estelionato o agente desde o início tem a intenção de obter ilicitamente para si o bem, utilizando-se de meio fraudulento para induzir a vítima a erro, alcançando vantagem pessoal em prejuízo alheio. O dolo é inicial.

O dolo nas contravenções penais: O art. 3º do Decreto-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais, com a rubrica “Voluntariedade. Dolo e culpa”, estabelece: “Para a existência da contravenção basta a ação ou omissão voluntária. Deve-se, todavia, ter em conta o dolo ou a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico”. A primeira parte do dispositivo revela a íntima ligação entre a LCP com a teoria clássica ou causal da conduta. De fato, o diploma legal foi promulgado na década de 1940, mesma época em que entrou em vigor o CP. Entretanto, a Lei 7.209/1984 modificou substancialmente a Parte Geral do CP, a ele conferindo uma sensível orientação finalista. A LCP, por sua vez, foi mantida, e com ela a concepção clássica então reinante. Por tal motivo, consta do texto de lei ser suficiente para a existência da contravenção a ação ou omissão voluntária. Como se sabe, na teoria clássica o dolo e a culpa figuravam como elementos da culpabilidade. Por corolário, para a conduta seria suficiente a ação ou omissão. Mas a regra deve ser interpretada levando-se em conta que as contravenções penais são, geralmente, infrações penais de mera conduta, sem produção de resultado naturalístico. Assim, basta efetivamente a ação ou omissão voluntária, pois o dolo, em consonância com o art. 18 do CP, ocorre quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. E, diz a segunda parte do dispositivo, deve-se ter em conta o dolo ou a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico. Destarte, quando a contravenção penal não se enquadrar como de mera conduta, aí sim a lei exige expressamente o dolo e a culpa. Conclui-se, assim, que o dispositivo não consagra a responsabilidade penal objetiva. Quando se fala em ação ou omissão voluntária, referese à vontade, elemento da conduta e, também, do dolo. Não há, assim, diferença entre o tipo subjetivo do crime e o tipo subjetivo da contravenção penal. Nos dois casos exige-se o dolo, ainda que sem apontá-lo expressamente, mas chamando-o apenas de “ação ou omissão voluntária”, consistente na vontade de realizar os elementos do tipo, colocando-se o sujeito consciente e deliberadamente em situação ilícita.

Crimes culposos: Dentro da concepção finalista, a culpa é o elemento normativo da conduta, pois a sua aferição depende da valoração do caso concreto. Somente após minucioso juízo de valor poderá o intérprete afirmar se ela ocorreu ou não. Os crimes culposos, em regra, são previstos por tipos penais abertos, pois a lei não diz expressamente no que consiste o comportamento culposo, reservando tal missão ao magistrado na apreciação da lide posta à sua análise. Geralmente, o tipo penal descreve a modalidade dolosa, e, quando a ele também atribui variante culposa menciona expressamente a fórmula: “se o crime é culposo”. Nada impede, entretanto, a definição de um crime culposo em um tipo penal fechado, tal como ocorre na receptação (CP, art. 180, § 3º). A opção legislativa pela descrição de crimes culposos por meio de tipos fechados seria indiscutivelmente mais segura e precisa. De outro lado, essa escolha logo se revelaria insuficiente, pois seria impossível à lei prever, antecipadamente, todas as situações culposas que podem ocorrer na vida cotidiana.

Fundamento da punibilidade da culpa: No passado, diversos autores se manifestaram pela inutilidade da aplicação da pena ao crime culposo. Na Itália, Puglia e Vanini sustentavam que essa modalidade de delito não provém de um impulso contrário ao Direito e, consequentemente, a pena se mostraria ineficaz, já que a sua função seria a de afastar temporariamente do convívio social os indivíduos que revelam periculosidade, fator inexistente no sujeito que praticou uma lesão por não tê-la previsto, quando a deveria prever. Com o advento da Escola Positiva, a punição da culpa passou a ser reclamada por necessidade social, por ser a sanção penal uma reação constante e independente da vontade. O homem seria responsável tanto pelo crime culposo como pelo crime doloso, porque vive em sociedade. Atualmente, encontra-se encerrada a discussão acerca da obrigatoriedade de punição do crime culposo. O interesse público impõe consequências penais àqueles que agem culposamente, visando a preservação de bens indispensáveis ou relevantes à vida em sociedade. Em respeito ao menor desvalor da conduta, porém, os crimes culposos são apenados de modo mais brando do que os dolosos.

Conceito de crime culposo: Crime culposo é o que se verifica quando o agente, deixando de observar o dever objetivo de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia, realiza voluntariamente uma conduta que produz resultado naturalístico, não previsto nem querido, mas objetivamente previsível, e excepcionalmente previsto e querido, que podia, com a devida atenção, ter evitado.

Elementos do crime culposo: O crime culposo possui, em regra, os seguintes elementos:

a)Conduta voluntária: No crime culposo, a vontade do agente se limita à prática de uma conduta perigosa, por ele aceita e desejada.51 É importante destacar que a vontade do agente circunscreve-se à realização da conduta, e não à produção do resultado naturalístico. Se desejar concretizar o resultado, a hipótese será de crime doloso. O crime culposo pode ser praticado por ação ou omissão.

b)Violação do dever objetivo de cuidado: A vida em sociedade retira do homem o direito de fazer tudo o que desejar, quando e onde o desejar. Os interesses de terceiras pessoas e da própria comunidade lhe impõem barreiras instransponíveis. Nesse diapasão, o dever objetivo de cuidado é o comportamento imposto pelo ordenamento jurídico a todas as pessoas, visando o regular e pacífico convívio social. No crime culposo, tal dever é desrespeitado pelo agente com a prática de uma conduta descuidada, a qual, fundada em injustificável falta de atenção, emana de sua imprudência, negligência ou imperícia (modalidades de culpa).

Imprudência: É a forma positiva da culpa (in agendo), consistente na atuação do agente sem observância das cautelas necessárias. É a ação intempestiva e irrefletida. Tem, pois, forma ativa. Desenvolve-se sempre de modo paralelo à ação, ou seja, surge e se manifesta enquanto o seu autor pratica a conduta. Exemplificativamente, o motorista que dirige seu veículo automotor respeitando as leis de trânsito pratica conduta correta. A partir do momento em que passa a dirigir em excesso de velocidade, surge a imprudência. E, quanto mais ele insistir e agravar essa conduta, mais duradoura e perceptível será essa modalidade de culpa.

Negligência: É a inação, a modalidade negativa da culpa (in omitendo), consistente na omissão em relação à conduta que se devia praticar. Negligenciar é, pois, omitir a ação cuidadosa que as circunstâncias exigem. Ocorre previamente ao início da conduta. É o caso do agente que deixa a arma de fogo municiada em local acessível a menor de idade, inabilitado para manuseá-la, que dela se apodera, vindo a matar alguém. O responsável foi negligente, e depois da sua omissão e em razão dela a conduta criminosa foi praticada.

Imperícia: É também chamada de culpa profissional, pois somente pode ser praticada no exercício de arte, profissão ou ofício. Ocorre sempre no âmbito de uma função na qual o agente, em que pese autorizado a desempenhá-la, não possui conhecimentos práticos ou teóricos para fazê-la a contento. Toda profissão, arte ou ofício é regida por princípios e regras que devem ser do conhecimento e do domínio de todos que a elas se dedicam. Se tais pessoas ultrapassarem os seus limites, conscientes ou inconscientes de sua incapacidade, violam a lei e respondem pelas consequências. Se a imperícia acontecer fora do exercício de arte, profissão ou ofício deverá ser tratada, sob o ponto de vista jurídico, como imprudência ou negligência. Assim, por exemplo, se um médico, realizando um parto, causa a morte da gestante, será imperito. Entretanto, se a morte for provocada pelo parto mal efetuado por um curandeiro, não há falar em imperícia, mas em imprudência. Os erros cometidos no desempenho de arte, profissão ou ofício não serão sempre frutos da imperícia, pois podem ser ordenados por negligência ou imprudência. A lei, ao determinar os requisitos necessários ao exercício de determinada atividade, não pode exigir de todas as pessoas o mesmo talento, igual cultura ou idêntica habilidade.

Distinção entre imperícia e erro profissional: A imperícia não se confunde com o erro profissional. Erro profissional é o que resulta da falibilidade das regras científicas. O agente conhece e observa as regras da sua atividade, as quais, todavia, por estarem em constante evolução, mostram-se imperfeitas e defasadas para a solução do caso concreto. Destarte, o erro profissional exclui a culpa, uma vez que o resultado ocorre não em razão da conduta do agente, e sim pelas deficiências da própria ciência.

c)Resultado naturalístico involuntário: No crime culposo, o resultado naturalístico funciona como elementar do tipo penal. Em consequência, todo crime culposo integra o grupo dos crimes materiais. O sistema penal brasileiro não admite crimes culposos de mera conduta, ao contrário do que ocorre em outros países, como na Itália.52 O resultado naturalístico é, obrigatoriamente, involuntário, salvo na culpa imprópria. Conclui-se, assim, ser o crime culposo incompatível com a tentativa – ou o resultado se produz, e o crime está consumado, ou da conduta perigosa não sobrevém o resultado, e o fato é um irrelevante penal, ao menos para a tipificação do crime culposo.53

d)Nexo causal: Por se tratar de crime material, a perfeição do crime culposo depende da produção do resultado naturalístico. E, como ocorre nos demais crimes materiais, exige-se o nexo causal, isto é, a relação de causa e efeito entre a conduta voluntária perigosa e o resultado involuntário. Em consonância com a teoria da conditio sine qua non (equivalência dos antecedentes), adotada pelo art. 13, caput, do CP, deve ser provado, por exemplo, que a morte da vítima foi produzida pela conduta do agente. No âmbito jurídico, a afirmação da causalidade deve estar respaldada em elementos empíricos que demonstrem que o resultado não ocorreria, com um grau de probabilidade nos limites da certeza, se a ação devida fosse efetivamente evitada ou realizada, tal como o contexto o determinava. Não demonstrada empiricamente essa relação, é de se negar a causalidade.

e)Tipicidade: Como também é elemento do fato típico nos crimes materiais consumados, a tipicidade precisa estar presente para a configuração do crime culposo. Reclama-se, assim, o juízo de subsunção, de adequação entre a conduta praticada pelo agente no mundo real e a descrição típica contida na lei penal para o aperfeiçoamento do delito culposo.

f)Previsibilidade objetiva: É a possibilidade de uma pessoa comum, com inteligência mediana, prever o resultado. Esse indivíduo comum, de atenção, diligência e perspicácia normais à generalidade das pessoas é o que se convencionou chamar de homem médio (homo medius) ou homem standard. Não se trata de pessoa brilhante e genial, nem de um ser humano indolente e desleixado. É uma pessoa normal, de comportamento padrão quando comparado aos indivíduos em geral. Existe a previsibilidade do resultado quando, mediante um juízo de valor, se conclui que o homem médio, nas condições em que se encontrava o agente, teria antevisto o resultado produzido. Por ser a culpa o elemento normativo do tipo penal, o magistrado deve valorar a situação, inserindo hipoteticamente o homem médio no lugar do agente no caso concreto. Se concluir que o resultado era previsível àquele, estará configurada a previsibilidade a este. Daí falar-se em previsibilidade objetiva, por levar em conta o fato concreto e um elemento padrão para a sua aferição, e não o agente. Embora existam valiosos entendimentos nesse sentido, deve ser refutada a proposta de apreciar a previsibilidade de forma subjetiva, isto é, sob o prisma subjetivo do autor do fato, a qual leva em consideração os dotes intelectuais, sociais, econômicos e culturais do agente. O Direito Penal não pode ficar submisso aos interesses de pessoas incautas e despreparadas para o convívio social. Ademais, a previsibilidade subjetiva fomentaria a impunidade, pois, por se cuidar de questão que habita o aspecto interno do homem, jamais poderia ser fielmente provada a compreensão do agente acerca do resultado que a sua conduta era capaz de produzir.

g)Ausência de previsão: Em regra, o agente não prevê o resultado objetivamente previsível. Não enxerga aquilo que o homem médio conseguiria ver. Excepcionalmente, todavia, há previsão do resultado (culpa consciente).

Espécies de culpa:

1)Culpa inconsciente e culpa consciente: Essa divisão tem como fator distintivo a previsão do agente acerca do resultado naturalístico provocado pela sua conduta. Culpa inconsciente, sem previsão ou ex ignorantia é aquela em que o agente não prevê o resultado objetivamente previsível. Culpa consciente, com previsão ou ex lascivia é a que ocorre quando o agente, após prever o resultado objetivamente previsível, realiza a conduta acreditando sinceramente que ele não ocorrerá. Representa o estágio mais avançado da culpa, pois se aproxima do dolo eventual. Dele, todavia, se diferencia. Na culpa consciente, o sujeito não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente ser capaz de evitá-lo, o que apenas não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual o agente não somente prevê o resultado naturalístico, como também, apesar de tudo, o aceita como uma das alternativas possíveis. O CP dispensa igual tratamento à culpa consciente e à culpa inconsciente. A previsão do resultado, por si só, não representa maior grau de reprovabilidade da conduta.

2)Culpa própria e culpa imprópria: Essa classificação se baseia na intenção de produzir o resultado naturalístico. Culpa própria é a que se verifica quando o agente não quer o resultado nem assume o risco de produzi-lo. É, por assim dizer, a culpa propriamente dita. Culpa imprópria, por extensão, por equiparação ou por assimilação é aquela em que o sujeito, após prever o resultado, e desejar sua produção, realiza a conduta por erro inescusável quanto à ilicitude do fato. O resultado vem, então, a ser concretizado. O agente incide em erro inescusável, inaceitável, injustificável quanto à ilicitude do fato. Supõe uma situação fática que, se existisse, tornaria a sua ação legítima. Como, entretanto, esse erro poderia ter sido evitado pelo emprego da prudência inerente ao homem médio, responde a título de culpa, se o crime admitir a modalidade culposa. Na verdade, cuida-se de dolo, eis que o agente quer a produção do resultado. Por motivos de política criminal, no entanto, o CP aplica a um crime doloso a punição correspondente a um crime culposo. O erro quanto à ilicitude do fato, embora inescusável, proporciona esse tratamento diferenciado. E, diante do caráter misto ou híbrido da culpa imprópria (dolo tratado como culpa), revela-se como a única modalidade de crime culposo que comporta a tentativa.

3)Culpa mediata ou indireta: É a espécie que ocorre quando o sujeito produz o resultado indiretamente a título de culpa. É o caso, por exemplo, da vítima que acabara de ser torturada no interior de um veículo, parado no acostamento de movimentada via pública. Quando conseguiu fugir, buscou atravessar a pista, foi atropelada e morreu. O agente responde pela tortura e também pelo homicídio, provocado indiretamente por sua atuação culposa, pois lhe era objetivamente previsível a fuga da pessoa torturada na direção da via pública. Deve-se atentar que a culpa mediata punível consiste em fato com relação estreita e realmente eficiente no tocante ao resultado naturalístico, não se podendo confundi-la com a mera condição ou ocasião do ocorrido.

4)Culpa presumida: Também denominada de culpa in re ipsa, tratava-se de modalidade de culpa admitida pela legislação penal existente no Brasil antes da entrada em vigor do CP de 1940, e consistia na simples inobservância de uma disposição regulamentar. Foi abolida do sistema penal pátrio, por constituir-se em verdadeira responsabilidade penal objetiva, retrocesso a tempos pretéritos em que o homem pagava pelo que fizera, sem nenhuma preocupação com o elemento subjetivo. Não se presume a culpa. Ao contrário, sempre deve ser provada por quem alega sua ocorrência.

Graus de culpa: No passado, buscou-se distinguir a culpa, quanto à sua intensidade, em grave, leve e levíssima. A culpa grave, ou lata, ocorreria quando qualquer pessoa fosse capaz de prever o resultado, enquanto a culpa leve estaria presente somente nos casos em que um homem de inteligência mediana pudesse antever o resultado. Finalmente, a culpa levíssima seria aquela em que o resultado se afigurasse perceptível somente às pessoas de excepcional cautela e inteligência, aproximando-se bastante do caso fortuito. O Direito Penal brasileiro refuta a divisão da culpa em graus. Ou há culpa, e está configurada a responsabilidade do agente, ou não existe culpa, e o fato é penalmente irrelevante. De fato, o art. 59, caput, do CP não elenca os graus de culpa como circunstâncias judiciais que influem na dosimetria da pena.

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Compensação de culpas: Não se admite a compensação de culpas no Direito Penal, uma vez que prevalece o caráter público da sanção penal como fundamento para a sua proibição. Nesses termos, a culpa do agente não é anulada pela culpa da vítima. A compensação de culpas tem incidência apenas no direito privado, com a função de reduzir ou excluir o valor da indenização pelo ilícito praticado. No âmbito penal, vale ressaltar que a culpa da vítima, embora não afaste a culpa do agente, funciona como circunstância judicial favorável ao acusado, a ser sopesada pelo magistrado por ocasião da dosimetria da pena-base. É o que se extrai do art. 59, caput, do CP. Por último, se é correto afirmar que não há compensação de culpas no Direito Penal, também é certo dizer que a culpa exclusiva da vítima exclui a culpa do agente. Basta a mera interpretação literal da expressão em destaque para concluir que, se a culpa é exclusiva da vítima, certamente o agente atuou de forma correta, é dizer, livre de imprudência, negligência ou imperícia.

Concorrência de culpas: É o que se verifica quando duas ou mais pessoas concorrem, contribuem culposamente para a produção do resultado naturalístico. Todos os envolvidos que tiveram atuação culposa respondem pelo resultado produzido. Fundamenta-se essa posição na teoria da conditio sine qua non, acolhida pelo art. 13, caput, do CP. Se o resultado foi provocado pela pluralidade de condutas culposas, por ele respondem aqueles que as realizaram.

Caráter excepcional do crime culposo: O art. 18, parágrafo único, do CP consagrou o princípio da excepcionalidade do crime culposo. Salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. A modalidade culposa de um crime deve ser expressamente declarada pela lei. No silêncio desta quanto ao elemento subjetivo, sua punição apenas se verifica a título de dolo. No campo dos crimes contra o patrimônio tipificados pelo CP, anote-se que o único delito punido a título de culpa é a receptação (art. 180, § 3º). O dano culposo é fato atípico, embora encontre previsão no Código Penal Militar.

Exclusão da culpa: Exclui-se a culpa nos seguintes casos:

1)Caso fortuito e força maior: São acontecimentos imprevistos, imprevisíveis e inevitáveis, que escapam do controle da vontade do homem. Se não há previsibilidade, e também não existe vontade, elemento indispensável à conduta, não há falar em culpa nos resultados que deles se originam.

2)Erro profissional: A culpa pelo resultado naturalístico não é do agente, mas da ciência, que se mostra inapta para enfrentar determinadas situações. Não se confunde com a imperícia, uma vez que nesta a falha é do próprio agente, que deixa de observar as regras recomendadas pela profissão, arte ou ofício.

3)Risco tolerado: Karl Binding, ao estudar o crime culposo, dizia que, quanto mais imprescindível for um tipo de comportamento humano, maior será o risco que em relação a ele se deverá enfrentar, sem que disso possa resultar qualquer espécie de reprovação jurídica. Delimita-se, dessa forma, a linha divisória entre o crime culposo e os fatos impuníveis resultantes do risco juridicamente tolerado. O médico que opera um doente em estado grave em condições precárias sabe que poderá causar-lhe a morte. E ainda que o resultado venha a ocorrer, não terá agido com culpa, pois a sua intervenção cirúrgica, na situação em que foi realizada, era indispensável como a única forma para tentar salvar a vida do paciente. A modernidade fomenta ainda mais o risco tolerado como exclusão da culpa. Por diversas maneiras, necessárias para a evolução do homem e da própria humanidade, podem ser efetuadas atividades que proporcionam riscos calculados para bens jurídicos penalmente protegidos. Exemplificativamente, o piloto que testa pela primeira vez uma aeronave certamente é colocado em risco de vida, mas a possibilidade de morte é tolerada e aceita para colaborar com o progresso da ciência aeronáutica, indispensável na sociedade atual.

4)Princípio da confiança: Como o dever objetivo de cuidado se dirige a todas as pessoas, pode-se esperar que cada um se comporte de forma prudente e razoável, necessária para a coexistência pacífica em sociedade. E, por se presumir a boa-fé de todo indivíduo, aquele que cumpre as regras jurídicas impostas pelo Direito pode confiar que o seu semelhante também agirá de forma acertada. Assim agindo, não terá culpa nos crimes eventualmente produzidos pela conduta ilícita praticada por outrem.

Jurisprudência selecionada:

Compensação de culpas – impossibilidade: “A análise da culpa da vítima que, supostamente, teria contribuído para a ocorrência de acidente de trânsito resultando em sua morte implicaria, necessariamente, no reexame do material probatório dos autos, o que é vedado pelo enunciado da Súmula 7/STJ. Ainda que se admitisse a possibilidade de análise de eventual conduta culposa por parte da vítima, nenhum benefício traria ao recorrente, pois em sede criminal não há que se falar em compensação de culpas” (STJ: AgRg no REsp 881.410/MT, rel. Min. Carlos Fernando Mathias – juiz convocado do TRF 1ª Região, 6ª Turma, j. 13.11.2007).

Crime culposo – elementos – relação de causalidade: “Para que o agente seja condenado pela prática de crime culposo, são necessários, dentre outros requisitos: a inobservância do dever de cuidado objetivo (negligência, imprudência ou imperícia) e o nexo de causalidade. No caso, a denúncia imputa ao paciente a prática de crime omissivo culposo, no forma imprópria. A teor do § 2º do art. 13 do Código Penal, somente poderá ser autor do delito quem se encontrar dentro de um determinado círculo normativo, ou seja, em posição de garantidor. A hipótese não trata, evidentemente, de uma autêntica relação causal, já que a omissão, sendo um não agir, nada poderia causar, no sentido naturalístico da expressão. Portanto, a relação causal exigida para a configuração do fato típico em questão é de natureza normativa. Da análise singela dos autos, sem que haja a necessidade de se incursionar na seara fático-probatória, verifico que a ausência do nexo causal se confirma nas narrativas constantes na própria denúncia. Diante do quadro delineado, não há falar em negligência na conduta do paciente (engenheiro naval), dado que prestou as informações que entendia pertinentes ao êxito do trabalho do profissional qualificado, alertando-o sobre a sua exposição à substância tóxica, confiando que o contratado executaria a operação de mergulho dentro das regras de segurança exigíveis ao desempenho de sua atividade, que mesmo em situações normais já é extremamente perigosa. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta do acusado e a morte do mergulhador, à luz da teoria da imputação objetiva, seria necessária a demonstração da criação pelo paciente de uma situação de risco não permitido, não ocorrente, na hipótese. Com efeito, não há como asseverar, de forma efetiva, que engenheiro tenha contribuído de alguma forma para aumentar o risco já existente (permitido) ou estabelecido situação que ultrapasse os limites para os quais tal risco seria juridicamente tolerado” (STJ: HC 68.871/PR, rel. originário Min. Maria Thereza de Assis Moura, rel. para acórdão Min. Og Fernandes, 6ª Turma, j. 06.08.2009).

Culpa presumida – responsabilidade penal objetiva – inadmissibilidade: “A responsabilidade penal é de caráter subjetivo, impedindo o brocardo nullun crimen sine culpa que se atribua prática de crime a presidente de clube social e esportivo pela morte, por afogamento, de menor que participava de festa privada de associada e mergulhou em piscina funda com outros colegas e com pessoas adultas por perto. Inobservância de eventual disposição regulamentar que não se traduz em causa, mas ocasião do evento lesivo” (STJ: RHC 11.397/SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, j. 11.09.2001).

Dolo – elementos – crime culposo: “A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, ainda que eventual, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica. Se o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, conclui-se que a denúncia limitou-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade). A análise cuidadosa da denúncia finaliza o posicionamento de que não há descrição do elemento volitivo consistente em ‘assumir o risco do resultado’, em aceitar, a qualquer custo, o resultado, o que é imprescindível para a configuração do dolo eventual. A comparação entre a narrativa ministerial e a classificação jurídica dela extraída revela a submissão do paciente a flagrante constrangimento ilegal decorrente da imputação de crime hediondo praticado com dolo eventual. Afastado elemento subjetivo dolo, resta concluir que o paciente pode ter provocado o resultado culposamente. O tipo penal culposo, além de outros elementos, pressupõe a violação de um dever objetivo de cuidado e que o agente tenha a previsibilidade objetiva do resultado, a possibilidade de conhecimento do resultado, o ‘conhecimento potencial’ que não é suficiente ao tipo doloso. Considerando que a descrição da denúncia não é hábil a configurar o dolo eventual, o paciente, em tese, deu causa ao resultado por negligência. Caberá à instrução criminal dirimir eventuais dúvidas acerca dos elementos do tipo culposo, como, por exemplo, a previsibilidade objetiva do resultado” (STJ: HC 44.015/SP, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 13.12.2005).

Dolo eventual – análise do caso concreto: “A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente. Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. (...) A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte, verbis: (‘Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo’ – grifei). A notória periculosidade dessas práticas de competições automobilísticas em vias públicas gerou a edição de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in verbis: ‘Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:’. O art. 308 do CTB é crime doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio, progride para os crimes dos artigos 129 ou 121, em sua forma dolosa, porquanto seria um contrassenso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do advento de um resultado mais grave. (...) É cediço na Corte que, em se tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência do chamado ‘racha’, a conduta configura homicídio doloso” (STF: HC 101.698/RJ, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 18.10.2011).

Dolo eventual – crimes de trânsito: “Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de ‘racha’, em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate. O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável. O tráfego é atividade própria de risco permitido. O ‘racha’, no entanto, é – em princípio – anomalia que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada” (STJ: REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 05.04.2001).

Dolo eventual – desrespeito às regras de navegação – embriaguez: “Resta configurado o denominado dolo eventual quando o condutor da embarcação teve um prognóstico da possibilidade real da ocorrência do acidente e não empenhou-se ao ponto de evitá-lo, assumindo, portanto, o risco de produzi-lo, não podendo, pois, ser aplicada a figura da culpa objetiva e nem a culpa consciente, pois, nestas subespécies da figura culposa, o agente prevê o resultado mas repudia que isto possa acontecer, ou seja, tem ele a confiança que o resultado não vai ocorrer. Resta concluído pela prova testemunhal, bem como pela prova técnica, que o réu desrespeitou as regras de navegação, existindo ainda no processo laudo pericial constatando estado de embriaguez alterado, de ordem a se perceber haver ele tolerado, aquiescido, à produção do resultado, agindo o mesmo com indiferença na oportunidade do fatídico evento. Nesta espécie do gênero dolo o sujeito não tem o objetivo consciente e predeterminado de praticar um resultado danoso e antijurídico à vítima, mas na sua forma de agir, diante de uma situação que se apresenta, não se importa com o resultado final, tratando o fato com indiferença e descaso” (STF: RE 559.649/ES, decisão monocrática rel. Min. Carlos Britto, j. 14.03.2008).

Dolo eventual – embriaguez preordenada: “A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo” (STF: HC 107.801/SP, rel. orig. Min. Cármen Lúcia, red. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 06.09.2011).

Dolo eventual – qualificadoras do homicídio – compatibilidade: “São compatíveis, em princípio, o dolo eventual e as qualificadoras do homicídio. É penalmente aceitável que, por motivo torpe, fútil, etc., assuma-se o risco de produzir o resultado. A valoração dos motivos é feita objetivamente; de igual sorte, os meios e os modos. Portanto estão motivos, meios e modos cobertos também pelo dolo eventual. Inexistência, na hipótese, de antinomia entre o dolo eventual e as qualificadoras do motivo torpe e de recurso que dificultou a defesa das vítimas” (STJ: HC 58.423/DF, rel. Min. Nilson Naves, 6ª Turma, j. 24.04.2007).

Dolo eventual – “racha” – culpa consciente – distinção: “O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o corréu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou ‘pega’ ou ‘racha’, em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente” (STF: HC 91.159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, j. 02.09.2008).

Dolo eventual – surpresa como qualificadora do homicídio – incompatibilidade: “São incompatíveis o dolo eventual e a qualificadora da surpresa prevista no inciso IV do § 2º do art. 121 do CP (‘§ 2º Se o homicídio é cometido: ... IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido’). Com base nesse entendimento, a 2ª Turma concedeu habeas corpus para determinar o restabelecimento da sentença de pronúncia, com exclusão da mencionada qualificadora. Na espécie, o paciente fora denunciado pela suposta prática dos crimes previstos no art. 121, § 2º, IV, c/c o art. 18, I, ambos do CP, e no art. 306 da Lei 9.503/1997 porque, ao conduzir veículo em alta velocidade e em estado de embriaguez, ultrapassara sinal vermelho e colidira com outro carro, cujo condutor viera a falecer. No STJ, dera-se provimento a recurso especial, interposto pelos assistentes de acusação, e submetera-se a qualificadora da surpresa (art. 121, § 2º, IV) ao tribunal do júri. Considerou-se que, em se tratando de crime de trânsito, cujo elemento subjetivo teria sido classificado como dolo eventual, não se poderia, ao menos na hipótese sob análise, concluir que tivesse o paciente deliberadamente agido de surpresa, de maneira a dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima” (STF: HC 111.442/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 28.08.2012, noticiado no Informativo 677).

Exclusão da culpa – caso fortuito ou força maior: “O crime acidental não se contém no gênero homicídio culposo – já que no homicídio culposo o disparo deverá decorrer de imprudência, negligência ou imperícia e no disparo acidental, de circunstâncias que não estão incluídas nesses conceitos, mas no caso fortuito ou força maior” (STF: RHC 79.975/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ acórdão Min. Nelson Jobim, 2ª Turma, j. 23.05.2000).

Responsabilidade penal subjetiva: “Se, em relação ao resultado mais grave, não ocorreu dolo ou culpa, ele não pode ser atribuído ao acusado” (STJ: REsp 285.560/SP, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 11.06.2002).

Agravação pelo resultado

Art. 19. Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.

Crime qualificado pelo resultado: Crime qualificado pelo resultado é aquele que possui uma conduta básica, definida e apenada como delito de forma autônoma, nada obstante ainda ostente um resultado que o qualifica, majorando-lhe a pena por força de sua gravidade objetiva, desde que exista entre eles relação causal física e subjetiva. Física, por guardar vínculo de causa e efeito com a primeira, e subjetiva, por referir-se ao mesmo agente. Todo crime qualificado pelo resultado representa um único crime, e complexo, pois resulta da junção de dois ou mais delitos. Em face da proibição da responsabilidade penal objetiva, pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.

Espécies de crime qualificado pelo resultado: O crime qualificado pelo resultado é gênero, que comporta quatro espécies, de acordo com o elemento subjetivo presente na conduta antecedente e no resultado agravador:

a)Dolo na conduta antecedente e dolo no resultado agravador (dolo no antecedente e dolo no consequente): O crime-base é doloso, bem como o resultado agravador. Como exemplo pode ser indicado o crime de latrocínio (CP, art. 157, § 3º, in fine, do CP) em que o roubo é doloso e a morte sobrevém a título de dolo.

b)Dolo na conduta antecedente e culpa no resultado agravador – preterdolo (dolo no antecedente e dolo no consequente): O crime-base é doloso, e o resultado agravador, culposo. Utilizando como exemplo o latrocínio (CP, art. 157, § 3º, in fine, do CP), o crime será preterdoloso se houver dolo na conduta do roubo e sobrevier morte a título de culpa.

c)Culpa na conduta antecedente e culpa no resultado agravador (culpa no antecedente e culpa no consequente): A conduta básica e o resultado mais gravoso são legalmente previstos na forma culposa. É o caso dos crimes culposos de perigo comum, resultando lesão corporal grave ou morte (art. 258, in fine, do CP).

d)Culpa na conduta antecedente e dolo no resultado agravador (culpa no antecedente e dolo no consequente): O fato original é tipificado culposamente, ao contrário do resultado agravador, de natureza dolosa. Veja-se o crime tipificado pelo art. 303, parágrafo único, da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro – na hipótese em que o motorista de veículo automotor, em excesso de velocidade, atropela um pedestre, ferindo-o culposamente e, em seguida, dolosamente deixa de prestar socorro à vítima, quando era possível fazê-lo sem risco pessoal.

Crime preterdoloso: Preterdolo emana do latim praeter dolum, ou seja, além do dolo. Destarte, crime preterdoloso, ou preterintencional é o que se verifica quando a conduta dolosa acarreta a produção de um resultado mais grave do que o desejado pelo agente. O propósito do autor era praticar um crime doloso mas, por culpa, sobreveio resultado mais gravoso. O crime preterdoloso é uma figura híbrida. Há dolo do antecedente (minus delictum) e culpa no consequente (majus delictum). Nesse tipo de delito, o agente produz resultado diverso do pretendido. Há, pois, divergência entre a sua vontade e o resultado maior produzido. Exemplo típico é apresentado pelo art. 129, § 3º, do CP (lesão corporal seguida de morte), no qual o legislador, após definir o crime de lesão corporal no caput, lhe adiciona um resultado agravador, a morte da vítima, produzida a título de culpa. O dolo em relação ao resultado agravador, direto ou eventual, afasta o caráter preterdoloso do crime.

Relação entre dolo e culpa: Em decorrência do misto de dolo e culpa, o preterdolo é classificado como elemento subjetivo-normativo do tipo penal. Com efeito, o dolo é o elemento subjetivo do tipo, enquanto a culpa é entendida como elemento normativo, pois a sua constatação depende de um prévio juízo de valor. Em face da proibição da responsabilidade penal objetiva, pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente. Destarte, o resultado mais grave deve ser objetivamente previsível, ou seja, previsível ao homem médio.

Crime preterdoloso e reincidência: O reincidente em crime preterdoloso deve receber idêntico tratamento destinado ao reincidente em crime doloso, pois antes de sobrevir o resultado culposo, mais grave, já havia se aperfeiçoado um delito menos grave, de natureza dolosa.

Versari in re illicita: A culpa que agrava especialmente o resultado deve ser provada. Não se presume, seja de forma absoluta (iuris et de iure), seja de forma relativa (iuris tantum), cabendo o ônus da prova a quem alega sua ocorrência. Não se admite a figura da versari in re illicita, originária do direito canônico e que serviu como ponto de transição entre a responsabilidade penal objetiva e a responsabilidade penal subjetiva. Proclamava o brocardo: Qui in re illicita versatur tenetur etiam pro casu, isto é, quem se envolve com coisa ilícita é responsável também pelo resultado fortuito. Na hipótese de lesão corporal seguida de morte, não é porque o agente desejou produzir ferimentos na vítima que, automaticamente, deve responder por sua morte. O resultado mais grave precisa ser derivado de culpa, a ser demonstrada no caso concreto.

Erro sobre elementos do tipo

Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.

Descriminantes putativas

§ 1º É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

Erro determinado por terceiro

§ 2º Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.

Erro sobre a pessoa

§ 3º O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.

Introdução: Na redação original do CP, datada de 1940, o art. 17, caput, cuidava do erro de fato: “É isento de pena quem comete o crime por erro quanto ao fato que o constitui, ou quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”. Esse dispositivo era muito menos abrangente, pois se referia unicamente aos elementos objetivos do tipo penal. Com a reforma da Parte Geral pela Lei 7.209/1984, o erro de fato foi substituído pelo erro de tipo que, além dos elementos objetivos, engloba também os elementos subjetivos e normativos eventualmente descritos na conduta criminosa. A expressão “tipo legal de crime” (art. 20, caput, do CP) deixa claro que o legislador somente se preocupou com o tipo penal incriminador, isto é, aquele que define uma conduta criminosa, cominando-lhe a pena respectiva.

Erro e ignorância – distinção e tratamento: Erro é a falsa percepção da realidade ou o falso conhecimento de determinado objeto. Por seu turno, ignorância é o completo desconhecimento da realidade ou de algum objeto. O CP trata de forma idêntica o erro e a ignorância. Ambos podem ensejar a aplicação do instituto do erro de tipo. Destarte, quando fala em “erro”, utiliza essa palavra em sentido amplo, compreendendo o erro propriamente dito e a ignorância.

Conceito: Erro de tipo é a falsa percepção da realidade acerca dos elementos constitutivos do tipo penal. Extrai-se essa conclusão do art. 20, caput, do CP, que somente menciona as elementares. É o chamado erro de tipo essencial. Exemplo: “A”, no estacionamento de um shopping center, aperta um botão inserido na chave do seu automóvel, com a finalidade de desativar o alarme. Escuta o barulho, abre a porta do carro, coloca a chave na ignição, liga-o e vai para casa. Percebe, posteriormente, que o carro não lhe pertencia, mas foi confundido com outro, de propriedade de terceira pessoa. Nesse caso, “A” não praticou o crime de furto, assim definido: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Reputava sua a coisa móvel pertencente a outrem. Errou, portanto, sobre a elementar “alheia”, pois o instituto impede o agente de compreender o aspecto ilícito do fato por ele praticado. Para Damásio E. de Jesus, contudo, erro de tipo é o que incide sobre elementares e circunstâncias da figura típica, tais como qualificadoras e agravantes genéricas.54

Erro de tipo e crimes omissivos impróprios: Nos crimes omissivos impróprios, também chamados de crimes omissivos espúrios ou comissivos por omissão, o dever de agir, disciplinado no art. 13, § 2º, do CP, funciona como elemento constitutivo do tipo. Destarte, nada impede a incidência do erro de tipo em relação ao dever de agir para evitar o resultado, levando-se em conta a relação de normalidade ou perigo do caso concreto. Em síntese, é cabível o erro de tipo na seara dos crimes omissivos impróprios. Exemplo: O salva-vidas avista um banhista se debatendo em águas rasas de uma praia e, imaginando que ele não estava se afogando (e sim dançando, brincando com outra pessoa etc.), nada faz. Posteriormente, tal banhista é retirado do mar sem vida por terceiros. Nessa hipótese, é possível o reconhecimento do instituto previsto no art. 20, caput, do CP, aplicando-se os efeitos que lhe são inerentes.

Espécies: O erro de tipo essencial pode ser escusável ou inescusável. a) Escusável, inevitável, invencível ou desculpável: é a modalidade de erro de tipo que não deriva de culpa do agente, ou seja, mesmo que ele tivesse agido com a cautela e a prudência de um homem médio, ainda assim não poderia evitar a falsa percepção da realidade sobre os elementos constitutivos do tipo penal; b) Inescusável, evitável, vencível ou indesculpável: é a espécie de erro de tipo que provém da culpa do agente, é dizer, se ele empregasse a cautela e a prudência do homem médio poderia evitá-lo, uma vez que seria capaz de compreender o caráter criminoso do fato. A natureza do erro (escusável ou inescusável) deve ser aferida na análise do caso concreto, levando-se em consideração as condições em que o fato foi praticado.

Efeitos: O erro de tipo, seja escusável ou inescusável, sempre exclui o dolo. De fato, como o dolo deve abranger todas as elementares do tipo penal, resta afastado pelo erro de tipo, pois o sujeito não possui a necessária vontade de praticar integralmente a conduta tipificada em lei como crime ou contravenção penal. Por essa razão, Zaffaroni denomina o erro de tipo de “cara negativa do dolo”.55 Nada obstante, os efeitos variam conforme a espécie do erro de tipo. O escusável exclui o dolo e a culpa, acarretando na impunidade total do fato, enquanto o inescusável exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei (excepcionalidade do crime culposo). Nesse último, o sujeito age de forma imprudente, negligente ou imperita, ao contrário do que faz no primeiro. Excepcionalmente, todavia, pode acontecer de o erro de tipo, ainda que escusável, não excluir a criminalidade do fato. Esse fenômeno ocorre quando se opera a desclassificação para outro crime. O exemplo típico é o do particular que ofende um indivíduo desconhecendo a sua condição de funcionário público. Em face da ausência de dolo quanto a essa elementar, afasta-se o crime de desacato (art. 331 do CP), mas subsiste o de injúria (art. 140 do CP), pois a honra do particular também é tutelada pela lei penal.

Erro de tipo e crime putativo por erro de tipo – diferenças: No erro de tipo o indivíduo, desconhecendo um ou vários elementos constitutivos do tipo penal, não sabe que pratica um fato descrito em lei como infração penal, quando na verdade o faz. Já o crime putativo por erro de tipo, ou delito putativo por erro de tipo, é o crime imaginário ou erroneamente suposto, que existe exclusivamente na mente do agente. Ele quer praticar um crime, mas, por erro, acaba por cometer um fato penalmente irrelevante. Exemplo: “A” deseja praticar o crime de tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33, caput), mas por desconhecimento comercializa talco.

Descriminantes putativas: Descriminante é a causa que exclui o crime, retirando o caráter ilícito do fato típico praticado por alguém. Essa palavra é sinônima, portanto, de causa de exclusão da ilicitude. Putativa provém de parecer, aparentar. É algo imaginário, erroneamente suposto. É tudo aquilo que parece, mas não é o que aparenta ser. Logo, descriminante putativa é a causa de exclusão da ilicitude que não existe concretamente, mas apenas na mente do autor de um fato típico. É também chamada de descriminante erroneamente suposta ou descriminante imaginária. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. O art. 23 do CP prevê as causas de exclusão da ilicitude e em todas elas é possível que o agente as considere presentes por erro plenamente justificado pelas circunstâncias: estado de necessidade putativo, legítima defesa putativa, estrito cumprimento de dever legal putativo e exercício regular do direito putativo. Basta que, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, o agente suponha situação de fato que, se existisse, tornaria a sua ação legítima.

Espécies: As descriminantes putativas relacionam-se intrinsecamente com a figura do erro, e podem ser de três espécies: a) erro relativo aos pressupostos de fato de uma causa de exclusão da ilicitude: É o caso daquele que, ao encontrar seu desafeto, e notando que tal pessoa coloca a mão no bolso, saca de seu revólver e o mata. Descobre, depois, que a vítima fora acometida por cegueira, por ele desconhecida, e não poderia sequer ter visto o seu agressor. Ausente, portanto, um dos requisitos da legítima defesa, qual seja, a “agressão injusta”; b) erro relativo à existência de uma causa de exclusão da ilicitude: Imagine-se o sujeito que, depois de encontrar sua mulher com o amante, em flagrante adultério, mata a ambos, por crer que assim possa agir acobertado pela legítima defesa da honra. Nessa situação, o agente errou quanto à existência desta descriminante, não acolhida pelo ordenamento jurídico em vigor; c) erro relativo aos limites de uma causa de exclusão da ilicitude: Temos como exemplo o fazendeiro que reputa adequado matar todo e qualquer posseiro que invada a sua propriedade. Cuida-se da figura do excesso, pois a defesa da propriedade não permite esse tipo de reação desproporcional.

Natureza jurídica: A grande celeuma repousa na natureza jurídica das descriminantes putativas. No tocante às duas últimas hipóteses – erro relativo à existência de uma causa de exclusão da ilicitude e erro relativo aos limites de uma causa de exclusão da ilicitude –, é pacífico o entendimento de que se trata de uma modalidade de erro de proibição. Cuida-se do denominado erro de proibição indireto. Fala-se, então, em descriminante putativa por erro de proibição. Subsiste o dolo e também a culpa, excluindo-se a culpabilidade, se o erro for inevitável ou escusável. Caso o erro seja evitável ou inescusável, não se afasta a culpabilidade, e o agente responde por crime doloso, diminuindo-se a pena de um sexto a um terço (art. 21, caput, do CP). Com efeito, no sistema finalista o dolo é natural, ou seja, não aloja em seu bojo a consciência da ilicitude, funcionando esta última como elemento da culpabilidade. E, em relação à primeira hipótese – erro relativo aos pressupostos de fato de uma causa de exclusão da ilicitude –, a natureza jurídica da descriminante putativa depende da teoria da culpabilidade adotada.56 Para a teoria limitada da culpabilidade, constitui-se em erro de tipo permissivo. Surgem então as descriminantes putativas por erro de tipo. No exemplo acima indicado (item “a”), se escusável o erro, exclui-se o dolo e a culpa, acarretando na atipicidade do fato, pois no finalismo tais elementos compõem a estrutura da conduta. Sem eles não há conduta, e sem conduta o fato é atípico. Mas, se inescusável o erro, afasta-se o dolo, subsistindo a responsabilidade por crime culposo, se previsto em lei (art. 20, § 1º, do CP). Filiam-se a essa posição, entre outros, Damásio E. de Jesus57 e Francisco de Assis Toledo.58 O item 19 da Exposição de Motivos da Parte Geral do CP acolheu esta concepção. De outro lado, para a teoria normativa pura da culpabilidade, em sua vertente extrema ou estrita, trata-se também de hipótese de erro de proibição. Logo, constitui descriminante putativa por erro de proibição, com todos os seus efeitos: subsiste o dolo, e também a culpa, excluindo-se a culpabilidade se o erro for inevitável ou escusável. Se evitável ou inescusável o erro, não se afasta a culpabilidade, e o agente responde por crime doloso, diminuindo-se a pena (art. 21, caput, do CP). Partilham desse entendimento, que consagra em sede de descriminantes putativas a teoria unitária do erro, Cezar Roberto Bitencourt59 e Guilherme de Souza Nucci,60 entre outros. Enfim, a natureza jurídica das descriminantes putativas varia conforme a teoria da culpabilidade adotada.

Descriminante putativa

Teoria limitada
da culpabilidade

Teoria normativa pura
da culpabilidade

Erro relativo aos pressupostos de fato de uma causa de exclusão da ilicitude

Erro de tipo

Erro de proibição
(teoria unitária do erro)

Erro relativo à existência de uma causa de exclusão da ilicitude

Erro de proibição

Erro de proibição

Erro relativo aos limites de uma causa de exclusão da ilicitude

Erro de proibição

Erro de proibição

Erro determinado por terceiro: É a hipótese na qual quem pratica a conduta tem uma falsa percepção da realidade no que diz respeito aos elementos constitutivos do tipo penal em decorrência da atuação de terceira pessoa, chamada de agente provocador. O agente não erra por conta própria (erro espontâneo), mas de forma provocada, isto é, determinada por outrem. O erro provocado pode ser doloso ou culposo, dependendo do elemento subjetivo do agente provocador. Quando o provocador atua dolosamente, a ele deve ser imputado, na forma dolosa, o crime cometido pelo provocado. Exemplo: “A”, apressado para não perder o ônibus, pede na saída da aula para “B” lhe arremessar seu aparelho de telefone celular que esquecera na mesa. “B”, dolosamente, entrega o telefone pertencente a “C”, seu desafeto. O provocado (que no caso seria “A”), nesse caso, ficará impune, sendo escusável seu erro. Mas, se o seu erro for inescusável, responderá por crime culposo, se previsto em lei. No exemplo acima, escusável ou inescusável o erro, nenhum crime seria imputado a “A”, em face da inexistência do crime de furto culposo. Se o provocador agir culposamente (por imprudência, negligência ou imperícia), a ele será imputado o crime culposo praticado pelo provocado, se previsto em lei. Exemplo: Sem tomar maiores cautelas, o vendedor entrega para teste um veículo sem freios que ainda estava na oficina mecânica da concessionária. O pretenso comprador, ao dirigir o automóvel, atropela e mata um transeunte. Nessa situação, o provocado também poderá responder pelo crime culposo, desde que o seu erro seja inescusável. Ao contrário, tratando-se de erro escusável, permanecerá impune.

Erro determinado por terceiro e concurso de pessoas: É possível que o agente provocador e o provocado pelo erro atuem dolosamente quanto à produção do resultado. Imagine-se o seguinte exemplo: “A” pede emprestado a “B” um pouco de açúcar para adoçar excessivamente o café de “C”. Entretanto, “B”, desafeto de “C”, entrega veneno no lugar do açúcar, com a intenção de matá-lo. “A”, famoso químico, percebe a manobra de “B”, e mesmo assim coloca veneno no café de “C”, que o ingere e morre em seguida. Ambos respondem por homicídio qualificado (art. 121, § 2º, III, do CP): “A” como autor, e “B” na condição de partícipe. E se, no exemplo acima, “A” age dolosamente e “B”, culposamente? Não há erro provocado, pois “A” atuou dolosamente. E também não há participação culposa por parte de “B”, pois inexiste participação culposa em crime doloso. Enfim, não há concurso de pessoas.

Erro de tipo acidental: Erro de tipo acidental é o que recai sobre dados diversos dos elementos constitutivos do tipo penal, ou seja, sobre as circunstâncias (qualificadoras, agravantes genéricas e causas de aumento da pena) e fatores irrelevantes da figura típica. A infração penal subsiste íntegra, e este erro não afasta a responsabilidade penal. Pode ocorrer nas seguintes situações:

1)Erro sobre a pessoa ou error in persona: É o que se verifica quando o agente confunde a pessoa visada, contra a qual desejava praticar a conduta criminosa, com pessoa diversa. Exemplo: “A”, com a intenção de matar “B”, efetua disparos de arma de fogo contra “C”, irmão gêmeo de “B”, confundindo-o com aquele que efetivamente queria matar. Esse erro é irrelevante. O art. 121 do CP protege o bem jurídico “vida humana”, independentemente de se tratar de “B” ou de “C”. O crime consiste em “matar alguém” e, no exemplo mencionado, a conduta de “A” eliminou a vida de uma pessoa. De acordo com a regra do art. 20, § 3º, do CP, deve-se levar em conta, para a aplicação da pena, as condições da vítima virtual, isto é, aquela que o sujeito pretendia atingir, mas que no caso concreto não sofreu perigo algum, e não a vítima real, que foi efetivamente atingida. Nesses termos, se no exemplo acima “A” queria matar seu pai, mas acabou causando a morte de seu tio, incide a agravante genérica relativa ao crime praticado contra ascendente (art. 61, II, “e”, do CP), embora não tenha sido cometido o parricídio.

2)Erro sobre o objeto: o sujeito crê que a sua conduta recai sobre um determinado objeto, mas na verdade incide sobre objeto diverso. Exemplo: O agente acredita subtrair um relógio Rolex, quando realmente furta uma réplica de tal bem. Esse erro é irrelevante, e não interfere na tipicidade penal. O art. 155, caput, do CP tipifica a conduta de “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, e, no exemplo, houve a subtração do patrimônio alheio, pouco importando o seu efetivo valor. A coisa alheia móvel saiu da esfera de vigilância da vítima para ingressar no patrimônio do ladrão.

3)Erro sobre as qualificadoras: O sujeito age com falsa percepção da realidade no que diz respeito a uma qualificadora do crime. Exemplo: O agente furta um carro depois de conseguir, por meio de fraude, a chave verdadeira do automóvel. Acredita praticar o crime de furto qualificado pelo emprego de chave falsa (art. 155, § 4º, III, do CP), quando na verdade não incide a majorante por se tratar de chave verdadeira. Esse erro não afasta o dolo nem a culpa.61 Desaparece a qualificadora, mas se mantém intacto o tipo fundamental, o qual deve ser imputado ao seu responsável.62

4)Erro sobre o nexo causal ou aberratio causae: Também chamado de dolo geral ou por erro sucessivo, é o engano no tocante ao meio de execução do crime, que efetivamente determina o resultado desejado pelo agente. Ocorre quando o sujeito, acreditando ter produzido o resultado almejado, pratica nova conduta com finalidade diversa, e ao final se constata que foi esta última que produziu o que se buscava desde o início. Cuida-se de erro sobre a relação de causalidade. Inexiste erro quanto às elementares do tipo, bem como no tocante à ilicitude do fato. Esse erro é irrelevante no Direito Penal, de natureza acidental, pois o importante é que o agente queria um resultado naturalístico e o alcançou. O dolo é geral e envolve todo o desenrolar da ação típica, do início da execução até a consumação. Exemplo: “A” encontra “B”, seu desafeto, em uma ponte. Após conversa enganosa, oferece-lhe uma bebida, misturada com veneno. “B”, inocente, ingere o líquido. Em seguida, cai ao solo, e o autor acredita estar ele morto. Com o propósito de ocultar o cadáver, “A” coloca o corpo de “B” em um saco plástico e o lança ao mar. Dias depois, o cadáver é encontrado em uma praia, e, submetido a exame necroscópico, conclui-se ter ocorrido a morte por força de asfixia provocada por afogamento. O agente deve responder por homicídio qualificado consumado (emprego de veneno). Queria a morte de “B” e a ela deu causa. Há perfeita congruência entre a sua vontade e o resultado naturalístico produzido. No tocante à qualificadora, deve ser considerado o meio de execução que o agente desejava empregar para a consumação (veneno), e não aquele que, acidentalmente, permitiu a eclosão do resultado naturalístico. Essa posição é amplamente dominante, mas há entendimentos em sentido contrário. Com base no princípio do desdobramento, sustenta-se a cisão do elemento volitivo, devendo ao agente ser imputados dois crimes distintos. No exemplo acima, “A” responderia por tentativa de homicídio qualificado (ministrar veneno), em concurso material, pois se trata de duas condutas, com homicídio culposo (lançar a vítima ao mar, causando sua morte, que não era mais desejada).63

5)Erro na execução ou aberratio ictus: É a aberração no ataque, em relação à pessoa a ser atingida pela conduta criminosa. O agente não se engana quanto à pessoa que desejava atacar, mas age de modo desastrado, errando o seu alvo e acertando pessoa diversa. Ver comentários ao art. 73 do CP.

6)Resultado diverso do pretendido, aberratio delicti ou aberratio criminis: Por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido. Em outras palavras, o agente desejava cometer um crime, mas por erro na execução acaba por cometer delito diverso. Ver comentários ao art. 74 do CP.

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Erro sobre a ilicitude do fato

Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.

Erro de proibição: Falava-se, no Direito Romano, em erro de direito para se referir à ignorância ou falsa interpretação da lei. Essa opção foi acolhida pela redação original do CP de 1940 que, sob a rubrica “ignorância ou erro de direito”, dispunha: “A ignorância ou a errada compreensão da lei não eximem de pena”. Com a Reforma da Parte Geral do CP, promovida pela Lei 7.209/1984, o panorama mudou: o erro de direito, então tratado pelo art. 16, cedeu espaço ao erro sobre a ilicitude do fato, disciplinado pelo art. 21 e doutrinariamente denominado de erro de proibição, mais técnico e diverso da mera ignorância ou errada compreensão da lei.

Desconhecimento da lei ( ignorantia legis): Dispõe o art. 21, caput, 1ª parte, do CP: “O desconhecimento da lei é inescusável”. Em igual sentido, estabelece o art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942): “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Em princípio, o desconhecimento da lei é irrelevante no Direito Penal. Com efeito, para possibilitar a convivência de todos em sociedade, com obediência ao ordenamento jurídico, impõe-se uma ficção: a presunção legal absoluta acerca do conhecimento da lei. Considera-se ser a lei de conhecimento geral com a sua publicação no Diário Oficial. Mas a ciência da existência da lei é diferente do conhecimento do seu conteúdo. Aquela se obtém com a publicação da norma escrita; este, inerente ao conteúdo lícito ou ilícito da lei, somente se adquire com a vida em sociedade. E é justamente nesse ponto que entra em cena o instituto do erro de proibição. Há duas situações diversas: desconhecimento da lei (inaceitável) e desconhecimento do caráter ilícito do fato, capaz de afastar a culpabilidade, isentando o agente de pena. Como define Cezar Roberto Bitencourt: “A ignorantia legis é matéria de aplicação da lei, que, por ficção jurídica, se presume conhecida por todos, enquanto o erro de proibição é matéria de culpabilidade, num aspecto inteiramente diverso. Não se trata de derrogar ou não os efeitos da lei, em função de alguém conhecê-la ou desconhecê-la. A incidência é exatamente esta: a relação que existe entre a lei, em abstrato, e o conhecimento que alguém possa ter de que seu comportamento esteja contrariando a norma legal. E é exatamente nessa relação – de um lado a norma, em abstrato, plenamente eficaz e válida para todos, e, de outro lado, o comportamento concreto e individualizado – que se estabelecerá ou não a consciência da ilicitude, que é matéria de culpabilidade, e nada tem que ver com os princípios que informam a estabilidade do ordenamento jurídico”.64 Embora estabeleça o art. 21, caput, do CP, ser inescusável o desconhecimento da lei, o elevado número de complexas normas que compõem o sistema jurídico permite a sua eficácia em duas hipóteses no campo penal: a) atenuante genérica, seja escusável ou inescusável o desconhecimento da lei (art. 65, II, do CP); e b) autoriza o perdão judicial nas contravenções penais, desde que escusável (art. 8º da Lei das Contravenções Penais – Decreto-lei 3.688/1941).

Conceito de erro de proibição: O erro de proibição foi disciplinado pelo art. 21, caput, do CP, que o chama de “erro sobre a ilicitude do fato”. Varia a natureza jurídica do instituto em razão da sua admissibilidade: funciona como causa de exclusão da culpabilidade, quando escusável, ou como causa de diminuição da pena, quando inescusável. O erro de proibição pode ser definido como a falsa percepção do agente acerca do caráter ilícito do fato típico por ele praticado, de acordo com um juízo profano, isto é, possível de ser alcançado mediante um procedimento de simples esforço de sua consciência. O sujeito conhece a existência da lei penal (presunção legal absoluta), mas desconhece ou interpreta mal seu conteúdo, ou seja, não compreende adequadamente seu caráter ilícito. A simples omissão, ou mesmo conivência do Poder Público no que diz respeito ao combate da criminalidade não autoriza o reconhecimento do erro de proibição.

Efeitos – erro escusável e inescusável: Na redação original da Parte Geral do CP, o erro de direito era considerado uma mera atenuante genérica. Atualmente, porém, o erro de proibição relaciona-se com a culpabilidade, podendo ou não excluí-la, se for escusável ou inescusável. Erro de proibição escusável, inevitável, ou invencível: o sujeito, ainda que no caso concreto tivesse se esforçado, não poderia evitá-lo. O agente, nada obstante o emprego das diligências ordinárias inerentes à sua condição pessoal, não tem condições de compreender o caráter ilícito do fato. Nesse caso, exclui-se a culpabilidade, em face da ausência de um dos seus elementos, a potencial consciência da ilicitude. Nos termos do art. 21, caput: “O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena”. Erro de proibição inescusável, evitável, ou vencível: poderia ser evitado com o normal esforço de consciência por parte do agente. Se empregasse as diligências normais, seria possível a compreensão acerca do caráter ilícito do fato. Subsiste a culpabilidade, mas a pena deve ser diminuída de um sexto a um terço, em face da menor censurabilidade da conduta. O grau de reprovabilidade do comportamento do agente é o vetor para a maior ou menor diminuição. Embora o art. 21, caput, disponha que o juiz “poderá” diminuir a pena, a redução é obrigatória, pois não se pode reconhecer a menor censurabilidade e não diminuir a sanção.65

Critério para aferição da escusabilidade ou inescusabilidade do erro de proibição: É o perfil subjetivo do agente, e não a figura do homem médio. De fato, em se tratando de matéria inerente à culpabilidade, levamse em conta as condições particulares do responsável pelo fato típico e ilícito (cultura, localidade em que reside, inteligência e prudência etc.), com a finalidade de se alcançar sua responsabilidade individual, que não guarda relação com um standard de comportamento desejado pelo Direito Penal. Lembre-se: quando se fala em fato típico e ilicitude, e em todos os institutos a eles relacionados, considera-se a posição do homem médio, pois se analisa o fato (típico ou atípico, ilícito ou lícito). Já o tema “culpabilidade”, e todas as matérias a ele ligadas, considera a figura concreta do responsável pelo fato típico e ilícito, para o fim de aferir se ele, com base em suas condições pessoais, é ou não merecedor de uma pena.

Erro de proibição escusável e potencial consciência da ilicitude: A aplicação da pena ao autor de uma infração penal somente é justa e legítima quando ele, no momento da conduta, era dotado ao menos da possibilidade de compreender o caráter ilícito do fato praticado. Exige-se, pois, tivesse o autor o conhecimento, ou, no mínimo, a potencialidade de entender o aspecto criminoso do seu comportamento, isto é, os aspectos relativos ao tipo penal e à ilicitude. A potencial consciência da ilicitude é afastada pelo erro de proibição escusável (CP, art. 21, caput).

Parâmetros legais para identificação da escusabilidade ou inescusabilidade do erro de proibição: O caráter escusável ou inescusável do erro de proibição deve ser calculado com base na pessoa do agente. O parágrafo único do art. 21 do CP consagra esse entendimento, ao estabelecer que “considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência”. Esse é o erro de proibição inescusável. A contrario sensu, conclui-se que o erro de proibição escusável, em consonância com o legislador, é aquele em que o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando não lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. Há critérios mais seguros e específicos para a identificação do erro de proibição, fornecidos por Francisco de Assis Toledo66: 1) O agente atua com uma “consciência profana” acerca do caráter ilícito do fato; 2) O agente atua sem a mencionada consciência profana, quando lhe era fácil atingi-la, nas circunstâncias em que se encontrava, isto é, com o próprio esforço de inteligência e com os conhecimentos hauridos da vida comunitária de seu próprio meio; 3) O agente atua sem a “consciência profana” sobre o caráter ilícito do fato, por ter, na dúvida, deixado propositadamente de informar-se para não ter que evitar uma possível conduta proibida; e 4) O agente atua sem essa consciência por não ter procurado informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de atividades regulamentadas.

ERRO DE PROIBIÇÃO INESCUSÁVEL, VENCÍVEL OU EVITÁVEL

1) O agente atua com uma “consciência profana” acerca do caráter ilícito do fato.

2) O agente atua sem a mencionada consciência profana, quando lhe era fácil atingi-la, nas circunstâncias em que se encontrava, isto é, com o próprio esforço de inteligência e com os conhecimentos hauridos da vida comunitária de seu próprio meio.

3) O agente atua sem a “consciência profana” sobre o caráter ilícito do fato, por ter, na dúvida, deixado propositadamente de informar-se para não ter que evitar uma possível conduta proibida.

4) O agente atua sem essa consciência por não ter procurado informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de atividades regulamentadas.

Espécies de erro de proibição: O erro de proibição pode ser direto, indireto e mandamental. No erro de proibição direto, o agente desconhece o conteúdo de uma lei penal proibitiva, ou, se o conhece, interpreta-o de forma equivocada. No erro de proibição indireto, também chamado de descriminante putativa por erro de proibição, o agente conhece o caráter ilícito do fato, mas, no caso concreto, acredita erroneamente estar presente uma causa de exclusão da ilicitude, ou se equivoca quanto aos limites de uma causa de exclusão da ilicitude efetivamente presente. Finalmente, no erro de proibição mandamental, o agente, envolvido em uma situação de perigo a determinado bem jurídico, erroneamente acredita estar autorizado a livrar-se do dever de agir para impedir o resultado, nas hipóteses previstas no art. 13, § 2º, do CP. Só é possível nos crimes omissivos impróprios.

Erro de proibição e crime putativo por erro de proibição: Tais institutos não se confundem. No erro de proibição o sujeito age acreditando na licitude do seu comportamento, quando na verdade pratica uma infração penal, por não compreender o caráter ilícito do fato. Já no crime putativo por erro de proibição, também conhecido como delito putativo por erro de proibição ou delito por alucinação, o agente atua acreditando que seu comportamento constitui crime ou contravenção penal, mas, na realidade, é penalmente irrelevante.

Diferença entre erro de tipo e erro de proibição: No erro de tipo, disciplinado pelo art. 20 do CP, o sujeito desconhece a situação fática que o cerca, não constatando em sua conduta a presença das elementares do tipo penal. Exemplo: “A” leva para casa, por engano, um livro de “B”, seu colega de faculdade. Por acreditar que o bem lhe pertencia, desconhecendo a elementar “coisa alheia móvel”, não comete o crime de furto (CP, art. 155). O erro de tipo, escusável ou inescusável, exclui o dolo. Mas, se inescusável, subsiste a punição por crime culposo, se previsto em lei. No erro de proibição o sujeito conhece perfeitamente a situação fática em que se encontra, mas desconhece a ilicitude do seu comportamento. Consequentemente, não afeta o dolo (natural). Quanto aos seus efeitos, o erro de proibição, se escusável, exclui a culpabilidade, diante da ausência da potencial consciência da ilicitude, um dos seus elementos. E, se inescusável, subsiste o crime, e também a culpabilidade, incidindo uma causa de diminuição da pena, de um sexto a um terço (CP, art. 21, caput).

 

Erro de tipo

Erro de proibição

Causa

O agente desconhece a situação fática, o que lhe impede o conhecimento de um ou mais elementos do tipo penal. Não sabe o que faz.

O agente conhece a realidade fática, mas não compreende o caráter ilícito da sua conduta. Sabe o que faz, mas não sabe que viola a lei penal.

Efeitos

Escusável: exclui o dolo e a culpa; e

Inescusável: exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.

Escusável: exclui a culpabilidade; e

Inescusável: não afasta a culpabilidade, mas permite a diminuição da pena, de 1/6 a 1/3.

O erro de tipo que incide sobre a ilicitude do fato: O erro sobre a ilicitude do fato caracteriza erro de proibição, relacionando-se com o terreno da culpabilidade. Essa é a regra adotada pelo CP. Excepcionalmente, todavia, o preceito primário de um tipo penal inclui na descrição da conduta criminosa elementos normativos de índole jurídica, ou mesmo palavras ou expressões atinentes à ilicitude. É o que se dá, exemplificativamente, nos crimes de violação de correspondência (art. 151 do CP: “indevidamente”), divulgação de segredo, violação do segredo profissional, abandono material e abandono intelectual (arts. 153, caput, e § 2º, 154, 244, caput, e 246, todos do CP: “sem justa causa”). Em tais hipóteses, o erro sobre a ilicitude do fato caracteriza erro de tipo, com todos os seus efeitos, e não erro de proibição, porque a ilicitude funciona como elemento do tipo penal. O erro, portanto, incide sobre os elementos do tipo.

Jurisprudência selecionada:

Erro de proibição – casa de prostituição – inadmissibilidade: “A simples manutenção de espaço destinado à prática de prostituição traduz-se em conduta penalmente reprovável, sendo que a possível condescendência dos órgãos públicos e a localização da casa comercial não autoriza, por si só, a aplicação da figura do erro de proibição, com vistas a absolver o réu” (STJ: REsp 870.055/SC, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 27.02.2007).

Coação irresistível e obediência hierárquica

Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.

Culpabilidade – introdução: No sistema clássico do Direito Penal, com a concepção causalista, causal ou mecanicista da conduta, dolo e culpa se alojam no interior da culpabilidade. Destarte, com a finalidade de evitar a responsabilidade penal objetiva, a culpabilidade é elemento do crime. Portanto, no sistema clássico (e também no neoclássico), o conceito analítico do crime é necessariamente tripartido: “Fato típico e ilícito, praticado por agente culpável”. Em uma ótica finalista, por outro lado, o dolo e a culpa foram retirados da culpabilidade (“culpabilidade vazia”) e transferidos para o interior da conduta. Esse fenômeno possibilitou analisar o crime, no campo analítico, por dois critérios distintos: tripartido e bipartido. No conceito tripartido, crime é também o fato típico e ilícito, praticado por agente culpável. A culpabilidade continua a constituir-se em elemento do crime. Diferese, todavia, da visão clássica, porque agora o dolo e a culpa, vale repetir, encontram-se na conduta, e não mais na culpabilidade. Por sua vez, de acordo com o conceito bipartido, crime é o fato típico e ilícito. A culpabilidade deixa de funcionar como elemento constitutivo do crime, e passa a ser compreendida como pressuposto de aplicação da pena. Logo, no sistema finalista o crime pode ser definido como: 1) Conceito tripartido: fato típico e ilícito, praticado por agente culpável; ou 2) Conceito bipartido: fato típico e ilícito, funcionando a culpabilidade como pressuposto para aplicação da pena. Fica claro, pois, que somente para a teoria finalista da conduta o conceito analítico de crime pode ser tripartido ou bipartido. Para os seguidores do sistema clássico ou causal, o crime deve ser analisado, obrigatoriamente, em um conceito tripartido, sob pena de configuração da responsabilidade penal objetiva.

Conceito de culpabilidade: Culpabilidade é o juízo de censura, o juízo de reprovabilidade que incide sobre a formação e a exteriorização da vontade do responsável por um fato típico e ilícito, com o propósito de aferir a necessidade de imposição da pena.

Culpabilidade pelo fato: Em um Estado Democrático de Direito deve imperar um direito penal do fato, e jamais um direito penal do autor. Com efeito, o Direito Penal precisa se preocupar com a punição de autores de fatos típicos e ilícitos, e não em rotular pessoas. Assim sendo, o juízo de culpabilidade recai sobre o autor para analisar se ele deve ou não suportar uma pena em razão do fato cometido, isto é, como decorrência da prática de uma infração penal. O agente é punido em razão do comportamento que realizou ou deixou de realizar, e não pela condição de ser quem ele é.

Fundamento da culpabilidade: É a culpabilidade que diferencia a conduta do ser humano normal e apto ao convívio social, dotado de conhecimento do caráter ilícito do fato típico livremente cometido, do comportamento realizado por portadores de doenças mentais, bem como de pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e também dos atos de seres irracionais ou de pessoas que não possuem consciência do caráter ilícito do fato típico praticado ou não têm como agir de forma diversa. Aqueles devem ser punidos, pois tinham a possibilidade de respeitar o sistema jurídico e evitar resultados ilícitos; estes não. Consequentemente, a análise da presença ou não da culpabilidade leva em conta o perfil subjetivo do agente, e não a figura do homem médio, reservado ao fato típico e à ilicitude.

Evolução do conceito de culpabilidade: O Código Penal não apresenta e jamais apresentou o conceito de culpabilidade. Essa tarefa é da doutrina, que ao longo dos tempos formulou diversas teorias:

a)Teoria psicológica: Idealizada por Franz von Liszt e Ernst von Beling e intimamente relacionada ao desenvolvimento da teoria clássica da conduta. Para esta teoria, o pressuposto fundamental da culpabilidade é a imputabilidade, compreendida como a capacidade do ser humano de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. A culpabilidade, que tem como pressuposto a imputabilidade, é definida como o vínculo psicológico entre o sujeito e o fato típico e ilícito por ele praticado. Esse vínculo pode ser representado tanto pelo dolo como pela culpa. Dolo e culpa são espécies da culpabilidade, pois são as formas concretas pelas quais pode se revelar o vínculo psicológico entre o autor e a conduta praticada. Além disso, o dolo é normativo, ou seja, guarda em seu interior a consciência da ilicitude. E se a imputabilidade é pressuposto da culpabilidade, somente se analisa a presença do dolo ou da culpa se o agente for imputável, isto é, maior de 18 anos de idade e mentalmente sadio. Essa teoria somente é aplicável no sistema clássico, em que o dolo e a culpa integram a culpabilidade. Dentre as principais críticas a ela endereçadas podem ser destacadas a impossibilidade de resolver as situações de inexigibilidade de conduta diversa, notadamente a coação moral irresistível e a obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal. Nesses casos o sujeito age com dolo, mas o crime não pode ser a ele imputado, pois somente é punido o autor da coação ou da ordem (CP, art. 22). Também não consegue explicar a culpa inconsciente (sem previsão), pois aqui não existe nenhum vínculo psicológico entre o autor e o fato por ele praticado, que sequer foi previsto. Essa teoria não é atualmente aceita, pois a culpabilidade não pode ser um mero e frágil vínculo psicológico.

b)Teoria normativa ou psicológico-normativa: Surge em 1907, com a proposta de Reinhart Frank, relacionando a culpabilidade com a exigibilidade de conduta diversa. A culpabilidade deixa de ser um fenômeno puramente natural, de cunho psicológico, pois a ela se atribui um novo elemento, estritamente normativo, inicialmente chamado de normalidade das circunstâncias concomitantes, e, posteriormente, de motivação normal, atualmente definido como exigibilidade de conduta diversa. O conceito de culpabilidade assume um perfil complexo, constituído por elementos naturalísticos (vínculo psicológico, representado pelo dolo ou pela culpa) e normativos (normalidade das circunstâncias concomitantes ou motivação normal). Sua estrutura passa a ser composta por três elementos: imputabilidade, dolo ou culpa e exigibilidade de conduta diversa. A imputabilidade deixa de ser pressuposto da culpabilidade, para funcionar como seu elemento. Em resumo, somente é culpável o agente maior de 18 anos de idade e mentalmente sadio (imputabilidade) que atua com dolo ou culpa e que, no caso concreto, podia comportar-se em conformidade com o Direito. Afastase a culpabilidade quando não se podia exigir do sujeito um comportamento conforme o ordenamento jurídico. Nesse sentido, a culpabilidade pode ser definida como o juízo de reprovabilidade que recai sobre o autor de um fato típico e ilícito que poderia ter sido evitado. Essa teoria não eliminou da culpabilidade o vínculo psicológico (dolo ou culpa) que une o autor imputável ao fato por ele praticado. Mas a reforçou com a exigibilidade de conduta diversa. O dolo permanece normativo: aloja em seu bojo a consciência da ilicitude, isto é, o conhecimento acerca do caráter ilícito do fato. Essa teoria representou, à época, um grande avanço frente à teoria psicológica. Soçobrou com a superveniência da teoria finalista, que a fulminou por duas razões principais: 1) manutenção do dolo e da culpa como elementos da culpabilidade; e 2) tratamento do dolo normativo, possuindo em seu interior a consciência atual da ilicitude. Sua aplicação é restrita ao âmbito do sistema neoclássico, mas ainda com acolhimento da teoria causal (causalista ou mecanicista) da conduta, pois nela o dolo e a culpa compõem a culpabilidade. De fato, como houve uma profunda alteração na estrutura da culpabilidade, e, consequentemente, do conceito analítico de crime, a teoria normativa ou psicológico-normativa inaugurou o sistema neoclássico no Direito Penal, substituindo o sistema clássico caracterizado principalmente pela teoria psicológica da culpabilidade.67

c)Teoria normativa pura, extrema ou estrita:68 Surge nos idos de 1930, com o finalismo penal de Hans Welzel, e dele é inseparável. A adoção da teoria normativa pura da culpabilidade somente é possível em um sistema finalista. É chamada de normativa pura porque os elementos psicológicos (dolo e culpa) que existiam na teoria psicológico-normativa da culpabilidade, inerente ao sistema causalista da conduta, com o finalismo penal foram transferidos para o fato típico, alojando-se no interior da conduta. Dessa forma, a culpabilidade se transforma em um simples juízo de reprovabilidade que incide sobre o autor de um fato típico e ilícito. O dolo passa a ser natural, isto é, sem a consciência da ilicitude. Com efeito, o dolo é levado para a conduta, deixando a consciência da ilicitude na culpabilidade. Aquele vai para o fato típico, esta permanece onde estava. Além disso, a consciência da ilicitude, que no sistema clássico era atual, isto é, deveria estar efetivamente presente no caso concreto, passa a ser potencial, ou seja, bastava tivesse o agente, na situação real, a possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato praticado, com base em um juízo comum.

d)Teoria limitada: Na teoria limitada, a culpabilidade é composta pelos mesmos elementos que integram a teoria normativa pura: 1) imputabilidade; 2) potencial consciência da ilicitude; e 3) exigibilidade de conduta diversa. Cuida-se, portanto, de uma variante da teoria normativa pura. A distinção entre tais teorias repousa unicamente no tratamento dispensado às descriminantes putativas. Nas descriminantes putativas, o agente, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação fática ou jurídica que, se existisse, tornaria sua ação legítima. De acordo com a teoria normativa pura, em sua vertente extrema ou estrita, as descriminantes putativas sempre caracterizam erro de proibição. Por sua vez, para a teoria limitada, as descriminantes putativas são dividas em dois blocos: 1) de fato, tratadas como erro de tipo (art. 20, § 1º, do CP); 2) de direito, disciplinadas como erro de proibição (art. 21 do CP).

Teoria adotada pelo CP: Nenhuma teoria foi expressamente adotada pelo Código Penal. Entretanto, o tratamento do erro (arts. 20 e 21) autoriza a conclusão pelo acolhimento da teoria limitada.69 Confira-se, a propósito, o item 19 da Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal: “Repete o Projeto as normas do Código de 1940, pertinentes às denominadas ‘descriminantes putativas’. Ajusta-se, assim, o Projeto à teoria limitada da culpabilidade, que distingue o erro incidente sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação do que incide sobre a norma permissiva.” (grifamos).

Coculpabilidade: Todo ser humano atua em sociedade em circunstâncias determinadas, e com limites de comportamento também determinados. Como há desigualdades sociais, a personalidade do agente é moldada em consonância com as oportunidades oferecidas a cada indivíduo para orientar-se ou não em sintonia com o ordenamento jurídico. Entra em cena a chamada coculpabilidade, assim definida por Zaffaroni e Pierangeli: “Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento de reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar”.70 Para esses autores, essa carga de valores sociais negativos deve ser considerada, em prol do réu, como atenuante genérica inominada, na forma prevista no art. 66 do CP. Com efeito, a teoria da coculpabilidade aponta a parcela de responsabilidade social do Estado pela não inserção social e, portanto, devendo também suportar o ônus do comportamento desviante do padrão normativo por parte dos atores sociais sem cidadania plena que possuem uma menor autodeterminação diante das concausas socioeconômicas da criminalidade urbana e rural. O art. 66 do CP brasileiro dá ao juiz uma ferramenta para atenuar a resposta penal à desigualdade social de oportunidades (“a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”).71

Graus de culpabilidade: A maior ou menor culpabilidade do autor da infração penal constitui-se em circunstância judicial, destinada à dosimetria da pena (art. 59, caput, do CP). Influem, portanto, na quantidade da pena a ser concretamente aplicada.

Dirimentes: São assim chamadas as causas de exclusão da culpabilidade, que podem ser sintetizadas pelo gráfico abaixo:

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Exigibilidade de conduta diversa: A exigibilidade de conduta diversa é o elemento da culpabilidade consistente na expectativa da sociedade acerca da prática de uma conduta diversa daquela que foi deliberadamente adotada pelo autor de um fato típico e ilícito. Em síntese, é necessário tenha o crime sido cometido em circunstâncias normais, isto é, o agente podia comportar-se em conformidade com o Direito, mas preferiu violar a lei penal. Destarte, quando o caso concreto indicar a prática da infração penal em decorrência de inexigibilidade de conduta diversa, estará excluída a culpabilidade, pela ausência de um dos seus elementos. Atribui-se a Reinhart Frank a inserção da exigibilidade de conduta conforme ao Direito no juízo da culpabilidade, ao desenvolver, em 1907, sua teoria da normalidade das circunstâncias concomitantes,72 criando a teoria psicológico-normativa da culpabilidade. No CP de 1940, com a Parte Geral alterada pela Lei 7.209/1984, o tratamento normativo da culpabilidade restou manifesto nos institutos da coação moral irresistível e da obediência hierárquica, causas legais de exclusão da culpabilidade motivadas pela inexigibilidade de conduta diversa.

Coação moral irresistível: Embora o dispositivo legal use a expressão “coação irresistível”, refere-se exclusivamente à coação moral irresistível. Na coação moral, o coator, para alcançar o resultado ilícito desejado, ameaça o coagido, e este, por medo, realiza a conduta criminosa. Essa intimidação recai sobre sua vontade, viciando-a, de modo a retirar a exigência legal de agir de maneira diferente. Exclui-se a culpabilidade, em face da inexigibilidade de conduta diversa. Por sua vez, na coação física irresistível elimina-se por completo a vontade do coagido. Seu aspecto volitivo não é meramente viciado, mas suprimido, e ele passa a atuar como instrumento do crime a serviço do coator. Exclui-se a conduta, e, consequentemente, o próprio fato típico praticado pelo coagido. Justifica-se a excludente porque a lei não pode impor às pessoas o dever de atuar de modo heroico. Destarte, se presente uma ameaça séria, grave e irresistível, não é razoável exigir o cumprimento literal pelo coagido do direito positivo, sob pena de suportar riscos que o Direito não será hábil a reparar.

Requisitos: A coação moral irresistível depende dos seguintes requisitos cumulativos:

1)Ameaça do coator, ou seja, promessa de mal grave e iminente, o qual o coagido não é obrigado a suportar: se o mal é atual, com maior razão estará excluída a culpabilidade. Essa ameaça deve ser direcionada à pessoa do coagido ou ainda a indivíduos com ele intimamente relacionados. Se for dirigida a pessoa estranha, pode até ser excluída a culpabilidade, em face de causa supralegal fundada na inexigibilidade de conduta diversa. Se não bastasse, essa ameaça precisa ser séria e ligada a ofensa certa. Em suma, deve ser passível de realização, pouco importando se o coator realmente deseja ou não concretizá-la.

2)Inevitabilidade do perigo na posição em que se encontra o coagido: se o perigo puder por outro meio ser evitado, seja pela atuação do próprio coagido, seja pela força policial, não há falar na dirimente.

3)Caráter irresistível da ameaça: além de grave, o mal prometido deve ser irresistível. A gravidade e a irresistibilidade da ameaça devem ser aferidas no caso concreto, levando em conta as condições pessoais do coagido. Cuida-se, em verdade, de instituto relacionado com a culpabilidade, razão pela qual não se considera a figura imaginária do homem médio, voltada ao fato típico e ilícito, mas o perfil subjetivo do agente, que será então considerado culpável ou não. Nada obstante, há entendimentos no sentido de que a gravidade e a irresistibilidade da coação devem ser calculadas com base nas características do homo medius.

4)Presença de ao menos três pessoas envolvidas: devem estar presentes o coator, o coagido e a vítima do crime por este praticado. Admite-se, contudo, a configuração da dirimente em análise com apenas duas pessoas envolvidas: coator e coagido. Nesse caso, o coator funcionaria também como vítima.

Efeitos: A coação moral irresistível afasta a culpabilidade do coagido (autor de um fato típico e ilícito). Não há, contudo, impunidade: pelo crime responde somente o coator. Trata-se de manifestação da autoria mediata, pois o coator valeu-se de pessoa sem culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa) para realizar a infração penal. O coator responde – além do crime praticado pelo coagido – pelo delito de tortura (art. 1º, I, “b”, da Lei 9.455/1997), em concurso material. Inexiste concurso de pessoas entre coator e coagido, em face da ausência de vínculo subjetivo. Não há, por parte do coagido, a intenção de contribuir para o crime praticado pelo coator. Se, entretanto, a coação moral for resistível, remanesce a culpabilidade do coagido, operando-se autêntico concurso de agentes entre ele e o coator. Na coação moral resistível a pena do coator será agravada (CP, art. 62, II) e a do coagido será atenuada (CP, art. 65, III, “c”, 1ª parte).

Temor reverencial: É o fundado receio de decepcionar pessoa a quem se deve elevado respeito. Exemplo: filho que falsifica as notas lançadas no boletim da faculdade com o propósito de esconder as avaliações negativas do conhecimento dos pais, que arduamente custeiam seus estudos. Não se equipara à coação moral. Não há ameaça, mas apenas receio. Além disso, na seara do Direito Civil o temor reverencial sequer permite a anulação dos negócios jurídicos, não podendo, no campo criminal, elidir a culpabilidade.

Obediência hierárquica: Obediência hierárquica é a causa de exclusão da culpabilidade, fundada na inexigibilidade de conduta diversa, que ocorre quando um funcionário público subalterno pratica uma infração penal em decorrência do cumprimento de ordem, não manifestamente ilegal, emitida pelo superior hierárquico. Essa regra se fundamenta em dois pilares: 1º) impossibilidade, no caso concreto, de conhecer a ilegalidade da ordem; e 2º) inexigibilidade de conduta diversa.

Requisitos: A caracterização da dirimente em apreço depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:

1)Ordem não manifestamente ilegal: É a de aparente legalidade, em face da crença de licitude que tem um funcionário público subalterno ao obedecer ao mandamento de superior hierárquico, colocado nessa posição em razão de possuir maiores conhecimentos técnicos ou por encontrar-se há mais tempo no serviço público. É usual dizer que a obediência hierárquica representa uma fusão do erro de proibição (acarreta no desconhecimento do caráter ilícito do fato) com a inexigibilidade de conduta diversa (não se pode exigir do subordinado comportamento diferente). Se a ordem for legal, não há crime, seja por parte do superior hierárquico, seja por parte do subalterno. Em verdade, a atuação deste último estará acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, do CP).

2)Ordem originária de autoridade competente: O mandamento deve emanar de funcionário público legalmente competente para fazê-lo. O cumprimento de ordem advinda de autoridade incompetente pode, no caso concreto, resultar no reconhecimento de erro de proibição invencível ou escusável.

3)Relação de Direito Público: A posição de hierarquia que autoriza o reconhecimento da excludente da culpabilidade somente existe no Direito Público. Não é admitida no campo privado, por falta de suporte para punição severa e injustificada àquele que descumpre ordem não manifestamente ilegal emanada de seu superior. Essa hierarquia, exclusiva da área pública, é mais frequente entre os militares. O descumprimento de ordem do superior na seara castrense caracteriza motivo legítimo para prisão disciplinar, ou, até mesmo, crime tipificado pelo art. 163 do Código Penal Militar.

4)Presença de três pessoas: O mandante da ordem (superior hierárquico), seu executor (subalterno) e a vítima do crime por este praticado.

5)Cumprimento estrito da ordem: O executor não pode ultrapassar, por conta própria, os limites da ordem que lhe foi endereçada, sob pena de afastamento da excludente.

Efeitos: O estrito cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico exclui a culpabilidade do executor subalterno, com fulcro na inexigibilidade de conduta diversa. O fato, contudo, não permanece impune, pois por ele responde o autor da ordem. Inexiste concurso de pessoas entre o mandante e o executor da ordem não manifestamente ilegal, por falta da unidade de elemento subjetivo relativamente à produção do resultado. Se, entretanto, a ordem for manifestamente ilegal, mandante e executor respondem pela infração penal, pois se caracteriza o concurso de agentes. Ambos sabem do caráter ilícito da conduta e contribuem para o resultado. Para o superior hierárquico, incide a agravante genérica descrita pelo art. 62, III, 1ª parte, do CP. Quanto ao subalterno, aplica-se a atenuante genérica delineada pelo art. 65, III, “c” (em cumprimento de ordem de autoridade superior), do CP. Na análise da legalidade ou ilegalidade da ordem, deve ser considerado o perfil subjetivo do executor, e não os dados comuns ao homem médio, porque se trata de questão afeta à culpabilidade.

Causas supralegais de exclusão da culpabilidade: Modernamente tem sido sustentada a possibilidade de formulação de causas excludentes da culpabilidade não previstas em lei, ou seja, supralegais e distintas da coação moral irresistível e da obediência hierárquica. Essas causas supralegais se fundamentam em dois pontos: 1) a exigibilidade de conduta diversa constitui-se em princípio geral da culpabilidade, que dela não pode se desvencilhar. Em verdade, não se admite a responsabilização penal de comportamentos inevitáveis; e 2) a aceitação se coaduna com a regra nullum crimen sine culpa, acolhida pelo art. 19 do Código Penal. Na precisa lição de Francisco de Assis Toledo: “A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito”.73 São cabíveis nos crimes culposos e também nos dolosos, nada obstante sejam mais frequentes nos primeiros. Exemplificativamente, a mãe viúva que deixa em casa, sozinho, o filho de pouca idade para trabalhar, pois não tem pessoas de confiança para cuidar do menino e não pode contar com o serviço público de creche – que se encontra em greve –, sabe que a criança fatalmente subirá em móveis, abrirá armários e praticará outras atividades perigosas, sendo previsível que, em virtude da sua ausência, venha a se machucar. Ainda que se fira gravemente, não deverá a mãe ser responsabilizada pela lesão corporal culposa, em face da inexigibilidade de conduta diversa. Com efeito, seria inadequado impor a ela comportamento diverso, pois em tal caso poderiam faltar os recursos mínimos necessários para o sustento e a sobrevivência própria e de sua prole.

Jurisprudência selecionada:

Coação moral irresistível – não caracterização: “Nesse sentir, é inconcebível falar-se em cometimento delituoso sob o efeito de coação moral irresistível, se o agente poderia livremente recusar o cumprimento de tarefa manifestamente ilegal, porquanto não era ele hierarquicamente subalterno dos coautores mandantes e financiadores dos crimes de homicídio e, evidentemente, não seria moralmente obrigado a cumprir-lhes as ordens, mormente se comprovado, nos autos, que ele próprio, tornando-se desafeto gratuito de uma das vítimas, não escondia o seu propósito de vê-la morta, só não o fazendo pessoalmente por não possuir coragem para tanto” (STF: RE 487.450/PB, decisão monocrática do Min. Marco Aurélio, j. 15.03.2007).

Culpabilidade – elementos: “A culpabilidade se determina pela imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e possibilidade do conhecimento do injusto” (STF: HC 73.097/MS, rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, j. 17.11.1995).

Culpabilidade – pressuposto de aplicação da pena: “Embora tenha por relevantes as alegações constantes da petição em epígrafe, penso que o incidente de insanidade mental, previsto no art. 149 do Código de Processo Penal, não se aplica aos processos de extradição. Isso porque a verificação sobre a imputabilidade do agente é matéria afeta à culpabilidade, não prejudicando em nada a tipicidade do delito, esta, sim, imprescindível ao deferimento do pedido extradicional” (STF: Ext 932/Itália, decisão monocrática do Min. Joaquim Barbosa, j. 18.03.2005).

Inexigibilidade de conduta diversa – causa supralegal de exclusão da culpabilidade – Tribunal do Júri – tese de defesa – quesitação: “A exigibilidade de conduta diversa, apesar de apresentar muita polêmica, é, no entendimento predominante, elemento da culpabilidade. Por via de consequência, sem adentrar na questão dos seus limites, a tese da inexigibilidade de conduta diversa pode ser apresentada como causa de exclusão da culpabilidade. Especificada e admitida a forma de inexigibilidade, aos jurados devem ser indagados os fatos ou as circunstâncias fáticas pertinentes à tese (Precedentes)” (STJ: HC 16.865/PE, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 09.10.2001).

Obediência hierárquica – exclusão da culpabilidade: “Humildes servidores representados por agentes de segurança e policiais de baixa patente não podem ser incriminados como coautores, por terem agido por temor do patrão e chefe de hierarquia superior” (STJ: APn 266/RO, rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, j. 01.06.2005).

Exclusão de ilicitude

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Excesso punível

Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Conceito de ilicitude: Ilicitude é a contrariedade entre o fato típico praticado por alguém e o ordenamento jurídico, capaz de lesionar ou expor a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados. O juízo de ilicitude é posterior e dependente do juízo de tipicidade, de forma que todo fato penalmente ilícito também é, necessariamente, típico.

Ilicitude formal e ilicitude material: Ilicitude formal é a mera contradição entre o fato praticado pelo agente e o sistema jurídico em vigor. É a característica da conduta que se coloca em oposição ao Direito. Ilicitude material, ou substancial, é o conteúdo material do injusto, a substância da ilicitude, que reside no caráter antissocial do comportamento, na sua contradição com os fins colimados pelo Direito, na ofensa aos valores necessários à ordem e à paz no desenvolvimento da vida social.74 Em sede doutrinária, prevalece o entendimento de que a ilicitude é formal, pois consiste no exame da presença ou ausência das suas causas de exclusão. Nesses termos, o aspecto material se reserva ao terreno da tipicidade. Cumpre ressaltar, porém, que somente a concepção material autoriza a criação de causas supralegais de exclusão da ilicitude. De fato, em tais casos há relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico, sem, contudo, revelar o caráter antissocial da conduta.

Concepção unitária: Com o escopo de encerrar a discussão acerca do caráter formal ou material da ilicitude, surgiu uma concepção unitária, inicialmente na Alemanha, que depois se irradiou para fora dela, apregoando ser a ilicitude uma só. Nesse diapasão, um comportamento humano que se coloca em relação de antagonismo com o sistema jurídico não pode deixar de ofender ou expor a perigo de lesão bens jurídicos protegidos por esse mesmo sistema jurídico. Na lição de Francisco de Assis Toledo: “Pensar-se em uma antijuridicidade puramente formal – desobediência à norma – e em outra material – lesão ao bem jurídico tutelado por essa mesma norma – só teria sentido se a primeira subsistisse sem a segunda.(...) Correta, pois, a afirmação de BETTIOL de que a contraposição dos conceitos em exame – antijuridicidade formal e material – não tem razão de ser mantida viva, “porque só é antijurídico aquele fato que possa ser considerado lesivo a um bem jurídico. Fora disso, a antijuridicidade não existe”.75

Terminologia: Muitos autores utilizam ambos os termos ilicitude e antijuridicidade como sinônimos. Com o devido respeito aos entendimentos em contrário, este raciocínio desponta como incorreto. Com efeito, no universo da teoria geral do direito, a infração penal (crime e contravenção penal) constitui-se em um fato jurídico, já que a sua ocorrência provoca efeitos no campo jurídico. Logo, é incoerente imaginar que um crime (fato jurídico) seja revestido de antijuridicidade. A contradição é óbvia: um fato jurídico seria, ao mesmo tempo, antijurídico. Por tal razão, mais acertado falar-se em ilícito e em ilicitude, em vez de antijurídico e antijuridicidade. Foi a opção preferida pelo legislador pátrio.

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Ilícito e injusto: O ilícito é a oposição entre um fato típico e o ordenamento jurídico. A relação é lógica e de mera constatação, não comportando graus. Injusto é o antagonismo entre o fato típico e a compreensão social acerca da justiça. Por corolário, um fato típico pode ser ilícito, mas considerado justo e quiçá admitido pela sociedade. O injusto se reveste de graus, vinculados à intensidade de reprovação social causada pelo comportamento penalmente ilícito.

Ilicitude genérica e ilicitude específica: Ilicitude genérica é a que se posiciona externamente ao tipo penal incriminador. O fato típico se encontra em contradição com o ordenamento jurídico. No homicídio, por exemplo, é típica a conduta de “matar alguém”, não autorizada pelo Direito, salvo se presente uma causa de justificação. A ilicitude se situa fora do tipo penal. De fato, em um sistema finalista o dolo é natural, isto é, para sua caracterização bastam consciência e vontade, independentemente do caráter ilícito do fato. Na ilicitude específica, por sua vez, o tipo penal aloja em seu interior elementos atinentes ao caráter ilícito do comportamento do agente. É o que se dá, exemplificativamente, nos crimes de violação de correspondência (CP, art. 151 – “indevidamente”), divulgação de segredo e violação do segredo profissional (CP, arts. 153 e 154 – “sem justa causa”), e exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345 – “salvo quando a lei o permite”). Em tais hipóteses, unem-se no mesmo juízo a tipicidade e a ilicitude, pois esta última situa-se no corpo do tipo penal, funcionando como elemento normativo do tipo, cujo significado pode ser obtido por um procedimento de valoração do intérprete da lei penal. Consequentemente, as causas de exclusão da ilicitude afastam a tipicidade. Em sentido contrário, Cezar Roberto Bitencourt emprega as expressões “antijuridicidade genérica” e “antijuridicidade específica” para distinguir a ilicitude penal da ilicitude extrapenal.76

Ilicitude objetiva e ilicitude subjetiva: Essa classificação diz respeito ao caráter da ilicitude. Para a ilicitude subjetiva, a proibição ou o mandamento da lei penal dirige-se apenas às pessoas imputáveis, eis que somente elas têm capacidade mental para compreender as vedações e as ordens emitidas pelo legislador. Essa teoria peca ao confundir ilicitude e culpabilidade: basta a prática de um fato típico e ilícito para a configuração de uma infração penal, reservando-se à culpabilidade o juízo de reprovabilidade para a imposição de uma pena. Para a ilicitude objetiva, é suficiente a contrariedade entre o fato típico praticado pelo autor da conduta e o ordenamento jurídico, apto a causar dano ou expor a perigo bens jurídicos penalmente protegidos. As notas pessoais do agente, especialmente sua imputabilidade ou não, em nada afetam a ilicitude, a qual se mantém independentemente da culpabilidade, analisada em momento posterior. Em nosso sistema penal, a ilicitude é claramente objetiva: os inimputáveis, qualquer que seja a causa da ausência de culpabilidade, praticam condutas ilícitas.

Ilicitude penal e ilicitude extrapenal: Essa divisão se relaciona intimamente com o caráter fragmentário do Direito Penal, pelo qual todo ilícito penal também é um ato ilícito perante os demais ramos do Direito, mas nem todo ato ilícito também guarda esta natureza no campo penal. Exemplificativamente, a sonegação fiscal calcada em fraude para exclusão do tributo é crime definido pela Lei 8.137/1990 e também ato ilícito perante o Direito Tributário. Contudo, o mero inadimplemento de um tributo, não admitido perante o direito fiscal, é fato penalmente atípico.

Causas de exclusão da ilicitude: Em face do acolhimento da teoria da tipicidade como indício da ilicitude, uma vez praticado o fato típico, presume-se o seu caráter ilícito. A tipicidade não constitui a ilicitude, apenas a revela indiciariamente.77 Essa presunção é relativa, iuris tantum, pois um fato típico pode ser lícito, desde que o seu autor demonstre ter agido acobertado por uma causa de exclusão da ilicitude. Presente uma excludente da ilicitude, estará excluída a infração penal. Crime e contravenção penal deixam de existir, pois o fato típico não é contrário ao Direito. Várias são as denominações empregadas pela doutrina para se referir às causas de exclusão da ilicitude, destacando-se: causas de justificação, justificativas, descriminantes, tipos penais permissivos e eximentes.

Espécies de excludentes da ilicitude: O CP possui em sua íntegra causas genéricas e específicas de exclusão da ilicitude. Causas genéricas, ou gerais, são as previstas na Parte Geral do CP. Aplicam-se a qualquer espécie de infração penal, e encontram-se no art. 23 e seus incisos: I – estado de necessidade (art. 24); II – legítima defesa (art. 25); III – estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito. Analisaremos as duas últimas nos comentários a este artigo. Quanto ao estado de necessidade e à legítima defesa, ver comentários ao art. 24 e 25, respectivamente. Causas específicas, ou especiais, podem ser definidas como as previstas na Parte Especial do CP, com aplicação unicamente a determinados crimes, ou seja, somente àqueles delitos a que expressamente se referem. Estão delineadas pelos arts. 128 (aborto), 142 (injúria e difamação), 146, § 3º, I (constrangimento ilegal), 150, § 3º, I e II (violação de domicílio) e 156, § 2º (furto de coisa comum). Há, finalmente, excludentes da ilicitude contidas em leis de cunho extrapenal, tais como: a) art. 10 da Lei 6.538/1978: exercício regular de direito, consistente na possibilidade de o serviço postal abrir carta com conteúdo suspeito; b) art. 1.210, § 1º, do CC: legítima defesa do domínio, pois o proprietário pode retomar o imóvel esbulhado logo em seguida à invasão; e c) art. 37, I, da Lei 9.605/1998: estado de necessidade, mediante o abatimento de um animal protegido por lei para saciar a fome do agente ou de sua família. Essa relação legal, contudo, não impede a formulação de causas supralegais de exclusão da ilicitude, analisadas um pouco adiante.

Elementos objetivos e subjetivos das causas de exclusão da ilicitude: Discute-se em doutrina se o reconhecimento de uma causa de exclusão da ilicitude depende somente dos requisitos legalmente previstos, relacionados ao aspecto exterior do fato, ou se está condicionado também a um requisito subjetivo, atinente ao psiquismo interno do agente, que deve ter consciência de que age sob a proteção da justificativa. Pensemos na seguinte situação hipotética: “A” efetua disparos de arma de fogo contra “B”, seu desafeto, com o propósito de eliminar sua vida por vingança. Descobre-se, posteriormente, que naquele exato instante “B” iria acionar uma bomba e lançá-la em direção à casa de “C”, para matá-lo. Vejamos agora cada uma das propostas doutrinárias, com a respectiva solução para o caso apresentado. A concepção objetiva, mais antiga, alega que o direito positivo não exige a presença do requisito subjetivo. A esse entendimento aderiram, dentre outros, José Frederico Marques e E. Magalhães Noronha. Logo, no caso narrado estaria configurada a legítima defesa de terceiro, com a exclusão do crime de “A”. Essa posição, entretanto, foi aos poucos perdendo espaço para uma concepção subjetiva, pela qual o reconhecimento de uma causa de exclusão da ilicitude reclama o conhecimento da situação justificante pelo agente. Filiamse a ela, dentre outros, Heleno Cláudio Fragoso, Julio Fabbrini Mirabete, Francisco de Assis Toledo e Damásio E. de Jesus. Sob essa ótica, no caso apresentado estaria excluída a legítima defesa de terceiro, e “A” responderia pelo homicídio praticado contra “B”.

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Estrito cumprimento de dever legal: Ao contrário do que fez em relação ao estado de necessidade (art. 24) e à legítima defesa (art. 25), o CP não apresentou o conceito de estrito cumprimento de dever legal, nem seus elementos característicos. Pode-se defini-lo, contudo, como a causa de exclusão da ilicitude que consiste na prática de um fato típico, em razão de cumprir o agente uma obrigação imposta por lei, de natureza penal ou não.

Fundamento: Seria despropositado a lei impor a determinadas pessoas a prática de um ato, e, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em face de seu cumprimento, a uma sanção penal em razão de consistir o seu mandamento em um fato descrito em lei como crime ou contravenção penal. Na eximente em apreço a lei não determina apenas a faculdade, a escolha do agente em obedecer ou não a regra por ela estabelecida. Há, em verdade, o dever legal de agir. É o caso, por exemplo, do cumprimento de mandado de busca domiciliar em que o morador ou quem o represente desobedeça à ordem de ingresso na residência, autorizando o arrombamento da porta e a entrada forçada (art. 245, § 2º, do CPP). Em decorrência do estrito cumprimento do dever legal, o funcionário público responsável pelo cumprimento da ordem judicial não responde pelos crimes de dano ou de violação de domicílio.

Dever legal: O dever legal engloba qualquer obrigação direta ou indiretamente resultante de lei, em sentido genérico, isto é, preceito obrigatório e derivado da autoridade pública competente para emiti-lo. Pode também originar-se de atos administrativos, desde que de caráter geral, pois, se tiverem caráter específico, o agente não estará atuando sob o manto da excludente do estrito cumprimento de dever legal, e sim protegido pela obediência hierárquica (causa de exclusão da culpabilidade), se presentes os requisitos exigidos pelo art. 22 do CP. Destarte, o cumprimento de dever social, moral ou religioso, ainda que estrito, não autoriza a aplicação dessa excludente da ilicitude.

Destinatários da excludente: Para Julio Fabbrini Mirabete, a excludente pressupõe no executor um funcionário público ou agente público que age por ordem da lei.78 Prevalece, contudo, o entendimento de que o estrito cumprimento de dever legal como causa de exclusão da ilicitude também se estende ao particular, quando atua no cumprimento de um dever imposto por lei. Nesse sentido, não há crime de falso testemunho na conduta do advogado que se recusa a depor sobre fatos que tomou conhecimento no exercício da sua função, acobertados pelo sigilo profissional (Lei 8.906/1994 – Estatuto da OAB, arts. 2º, § 3º, e 7º, XIX).

Limites da excludente: O cumprimento deve ser estritamente dentro da lei, ou seja, há de obedecer à risca os limites a que está subordinado. De fato, todo direito apresenta duas características fundamentais: é limitado e disciplinado em sua execução. Fora dos limites traçados pela lei, surge o excesso ou o abuso de autoridade. O fato torna-se ilícito, e, além de livrar do cumprimento aquele a quem se dirigia a ordem, abre-lhe ainda espaço para a utilização da legítima defesa.

Estrito cumprimento de dever legal e crime culposo: A excludente é incompatível com os crimes culposos. A situação, geralmente, é resolvida pelo estado de necessidade.

Comunicabilidade da excludente da ilicitude: Em caso de concurso de pessoas, o estrito cumprimento de dever legal configurado em relação a um dos agentes estende-se aos demais envolvidos no fato típico, sejam eles coautores ou partícipes.

Exercício regular de direito: O direito é um só e a sua repartição em diversos ramos tem fins essencialmente didáticos. Dessa forma, um ato lícito para qualquer área do direito não pode ser ilícito perante o Direito Penal, e vice-versa, evitandose a contradição e a falta de unidade sistemática do ordenamento jurídico. A palavra “direito” é utilizada em sentido amplo pelo art. 23, III, do CP. Quem está autorizado a praticar um ato, reputado pela ordem jurídica como o exercício de um direito, age licitamente. Exemplificativamente, ao particular que, diante da prática de uma infração penal, corajosamente efetua a prisão em flagrante de seu autor, não pode ser imputado o crime de constrangimento ilegal, em razão da permissão contida no art. 301 do CPP.

Limites da excludente: Essa causa de exclusão da ilicitude, assim como todas as demais, deve obedecer aos limites legais. Quem tem um direito, dele não pode abusar. O excesso ou abuso enseja, além do afastamento da excludente, a utilização da legítima defesa por parte do prejudicado pelo exercício irregular e abusivo do direito. Além disso, pode ocorrer até mesmo a prática de um crime. Exemplificativamente, os arts. 1.566, IV, e 1.634, I, do CC, preceituam ser dever dos pais a educação dos filhos, facultando-lhes o uso de meios moderados para correção e disciplina, quando necessário. O abuso ou excesso desse direito, entretanto, tipificará o crime de maus-tratos, delineado pelo art. 136 do CP. Anote-se ainda que quando o exercício regular de um direito tem seu nascedouro no Direito Penal, o fato pode ser ilícito na seara extrapenal, nada obstante não configure infração penal. É o caso do advogado que, durante debates em audiência judicial, ofende um colega, em razão de suas funções. Não há injúria, por força do art. 7º, § 2º, da Lei 8.906/1994 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, o que não obsta a sua punição administrativa pela violação da ética profissional. Essa atuação, todavia, deve respeitar os limites legais, sob pena de configuração do excesso.

Costume: É a reiteração uniforme de uma conduta, em face da convicção de sua obrigatoriedade. Não se trata de direito assegurado em lei, mas de prática consagrada em determinada coletividade, por ser considerada cogente. Predomina o entendimento de que o direito, cujo exercício regular autoriza a exclusão da ilicitude, deve estar previsto em lei. José Frederico Marques, contudo, sustenta a possibilidade de o fato típico ser justificado pelo direito consuetudinário. São suas palavras: “O ‘costume’ legitima também certas ações ou fatos típicos. É disto um exemplo o trote acadêmico em que as violências, injúrias e constrangimentos que os veteranos praticam contra os noviços, não se consideram atos antijurídicos em face do direito penal, porque longo e reiterado costume consagra o ‘trote’ como instituição legítima”.79

Distinções entre estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito: A primeira diferença diz respeito à natureza das causas legais de exclusão da ilicitude – no estrito cumprimento de dever legal, de natureza compulsória, o agente está obrigado a cumprir o mandamento legal, enquanto no exercício regular de direito, de natureza facultativa, o ordenamento o autoriza a agir, mas a ele pertence a opção entre exercer ou não o direito assegurado. A segunda diferença reside na origem: no estrito cumprimento de dever legal o dever de agir tem origem na lei, exclusivamente, enquanto o exercício regular de direito tem seu exercício autorizado por lei, regulamentos e, para alguns, até mesmo nos costumes.

Lesões em atividades esportivas: A prática de determinadas atividades esportivas pode resultar em lesões corporais, e, excepcionalmente, até mesmo na morte de seus praticantes. É o que ocorre em vários esportes, tais como futebol, boxe, artes marciais etc. O fato típico decorrente da realização de um esporte, desde que respeitadas as regras regulamentares emanadas de associações legalmente constituídas e autorizadas a emitir provisões internas, configura exercício regular de direito, afastando a ilicitude, porque o esporte é uma atividade que o Estado não somente permite, mas incentiva a sua prática. Todavia, se o fato típico cometido pelo agente resultar da violação das regras esportivas, notadamente por ultrapassar seus limites, o excesso implicará na responsabilidade pelo crime, doloso ou culposo.

Intervenções médicas ou cirúrgicas: A atividade médica ou cirúrgica é indispensável para a sociedade, e, por esse motivo, regulamentada pelo Poder Público, exigindo-se habilitação técnica, atestada por órgãos oficiais, para o seu adequado exercício. Para caracterização da excludente, é indispensável o consentimento do paciente, ou, quando incapaz ou impossibilitado de fazê-lo, de quem tenha qualidade para representá-lo, sob pena de constrangimento ilegal (art. 146 do CP). No caso de cirurgia para salvar o paciente de iminente risco de vida, estará o médico resguardado tanto pelo exercício regular de direito como pelo estado de necessidade, dispensando-se, nesse último caso, o consentimento da pessoa submetida ao serviço cirúrgico. Flávio Augusto Monteiro de Barros explica que a intervenção médica ou cirúrgica caracteriza estado de necessidade em duas hipóteses: 1) quando o leigo, na ausência absoluta do médico, realiza ato de medicina, para salvar a vida ou saúde de outrem de perigo atual e inevitável; e 2) quando o médico executa a medicina contra a vontade do paciente ou de seu representante legal para salvá-lo de iminente perigo de vida (art. 146, § 3º, I, do CP).80

A questão das testemunhas de Jeová: No tocante às pessoas que se filiam à religião “testemunhas de Jeová”, e analisando a questão sob o prisma estritamente jurídico, é legítima a atuação do médico que, independentemente de autorização judicial, efetua a transmissão de sangue para salvar a vida do paciente, ainda que sem a sua autorização (se consciente e plenamente capaz) ou contra a vontade de seus familiares (se inconsciente ou incapaz). Com efeito, o direito à vida deve sobrepor-se às posições religiosas.

Ofendículas: Também chamadas de ofendículos ou ofensáculas, têm origem nos práticos do Direito que utilizaram a palavra para indicar a prevenção de qualquer ordem apta para ofender. Apontam-se comumente alguns engenhos mecânicos, como o arame farpado, a cerca elétrica e cacos de vidro sobre muros. Cuida-se de meios defensivos utilizados para a proteção da propriedade e de outros bens jurídicos, tais como a segurança familiar e a inviolabilidade do domicílio. O titular do bem jurídico prepara previamente o meio de defesa, quando o perigo ainda é remoto e incerto, e o seu funcionamento somente se dá em face de uma agressão atual ou iminente. Devem ser visíveis: funcionam como meio de advertência, e não como forma oculta para ofender terceiras pessoas. Há duas posições em doutrina acerca da espécie de excludente configurada pelas ofendículas: 1) Sebastián Soler, Vicenzo Manzini, Giuseppe Bettiol e Aníbal Bruno se filiam à tese que sustenta tratar-se de exercício regular de direito. Nesse sentido, é importante destacar o art. 1.210, § 1º, do Código Civil: “O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”; 2) José Frederico Marques, Magalhães Noronha e Costa e Silva situam o assunto como legítima defesa preordenada, alegando o último que, se o aparelho está disposto de modo que só funcione no momento necessário e com a proporcionalidade a que o proprietário era pessoalmente obrigado, nada impede a aplicação da legítima defesa.81

Meios mecânicos predispostos de defesa da propriedade: São assim compreendidos os aparelhos ocultos que possuem a mesma finalidade das ofendículas. Exemplo: espingarda com barbante ligando seu gatilho à fechadura de uma porta, a qual, se aberta, acarreta no disparo da arma de fogo. Por serem escondidos, normalmente acarretam em excesso punível, doloso ou culposo.

Exercício regular de direito e utilização de cadáver para estudos e pesquisas científicas: A Lei 8.501/1992 permite a utilização de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas para estudos e pesquisas científicas, desde que respeitados os requisitos por ela previstos: deve ter transcorrido o prazo mínimo de 30 dias entre a data da morte e a do pedido de uso; a utilização do cadáver deve ser realizada por escolas de medicina; o cadáver não pode resultar de ação criminosa; e o cadáver não pode ter qualquer tipo de documentação, ou, quando identificado, não existirem informações sobre parentes ou responsáveis legais. Nesse caso, estará afastado eventual crime de vilipêndio ou destruição de cadáver por parte dos responsáveis pelas escolas de medicina, bem como dos estudiosos, em razão do exercício regular de direito.

Causas supralegais de exclusão da ilicitude: Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que as causas de exclusão da ilicitude não se limitam às hipóteses previstas em lei, se estendendo também àquelas que necessariamente resultam do direito em vigor e das suas fontes. Seria impossível exigir do legislador a regulamentação expressa e exaustiva de todas as causas de justificação, seja porque algumas delas resultam de novas construções doutrinárias, seja porque derivam de valores ético-sociais, cujas modificações constantes podem acarretar no desenho de novas causas ainda não previstas em lei, mas que em determinada sociedade se revelam imprescindíveis à adequada e justa aplicação da lei penal. E como essas eximentes não fundamentam nem agravam o poder punitivo estatal – operando exatamente em sentido contrário –, a criação de causas supralegais não ofende o princípio da reserva legal, inseparável do Direito Penal moderno. Para quem admite essa possibilidade, a causa supralegal de exclusão da ilicitude por todos aceita é o consentimento do ofendido.82 Anote-se, porém, ser vedado o reconhecimento de causas supralegais para os partidários do caráter formal da ilicitude: se esta é compreendida como a mera contrariedade entre o fato praticado e o ordenamento jurídico (posição legalista), somente esse mesmo ordenamento jurídico pode, taxativamente, afastar a ilicitude legalmente configurada.

Consentimento do ofendido: Três teorias buscam fundamentar o consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude: 1) Ausência de interesse: não há interesse do Estado quando o próprio titular do bem jurídico, de cunho disponível, não tem vontade na aplicação do Direito Penal. Essa teoria é criticada por não se poder outorgar o poder de decisão a uma pessoa que pode se equivocar acerca do seu real interesse; 2) Renúncia à proteção do Direito Penal: em algumas situações, excepcionais, o sujeito passivo de uma infração penal pode renunciar, em favor do sujeito ativo, a proteção do Direito Penal. Essa teoria entra em manifesto conflito com o caráter público desse ramo do ordenamento jurídico; 3) Ponderação de valores: trata-se da teoria mais aceita no direito comparado. O consentimento funciona como causa de justificação quando o Direito concede prioridade ao valor da liberdade de atuação da vontade frente ao desvalor da conduta e do resultado causado pelo delito que atinge bem jurídico disponível.

Aplicabilidade: O consentimento do ofendido como tipo penal permissivo tem aplicabilidade restrita aos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce e que pode livremente dele dispor. De uma maneira geral, estes delitos podem ser incluídos em quatro grupos diversos: a) delitos contra bens patrimoniais; b) delitos contra a integridade física; c) delitos contra a honra; e d) delitos contra a liberdade individual.83 Nos crimes contra o patrimônio, por óbvio, somente se aceita a disponibilidade se não houver o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça durante a execução do delito. E, nos crimes contra a integridade física, nas hipóteses em que a lei condiciona a persecução penal à iniciativa do ofendido ou de quem o represente, seja com o oferecimento de representação, seja com o ajuizamento de queixa-crime. Em síntese, é cabível unicamente em relação a bens jurídicos disponíveis. Se indisponível o bem jurídico, há interesse privativo do Estado e o particular dele não pode renunciar. O consentimento do ofendido somente pode afastar a ilicitude nos delitos em que o titular do bem jurídico tutelado pela lei penal é uma pessoa, física ou jurídica. Não tem o condão de excluir o crime quando se protegem bens jurídicos metaindividuais, ou então pertencentes à sociedade ou ao Estado.

Requisitos: Para ser eficaz, o consentimento do ofendido: (a) deve ser expresso, pouco importando sua forma (oral ou por escrito, solene ou não); (b) não pode ter sido concedido em razão de coação ou ameaça, nem de paga ou promessa de recompensa (há de ser livre); (c) deve ser moral e respeitar os bons costumes; (d) deve ser manifestado previamente à consumação da infração penal; e (e) o ofendido deve ser plenamente capaz para consentir, ou seja, deve ter completado 18 anos de idade e não padecer de nenhuma anomalia suficiente para retirar sua capacidade de entendimento e autodeterminação. No campo dos crimes contra a dignidade sexual, especificamente no tocante aos delitos previstos nos arts. 217-A, 218, 218-A e 218-B, todos do CP, a situação de vulnerabilidade funciona como instrumento legal de proteção à liberdade sexual da pessoa menor de 14 anos de idade, em face de sua incapacidade volitiva, sendo irrelevante o consentimento do vulnerável para a formação do crime sexual. Não produz efeitos o consentimento prestado pelo representante legal de um menor de idade ou incapaz.

Consentimento do ofendido e crimes culposos: Não há obstáculo à exclusão da ilicitude nos crimes culposos como decorrência do consentimento do ofendido. Evidentemente, assim como nos crimes dolosos, o bem jurídico deve ser disponível. Ademais, o consentimento refere-se não ao resultado naturalístico, por ser involuntário, mas à conduta imprudente, negligente ou imperita. No crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (Lei 9.503/1997, art. 303), por exemplo, afasta-se a ilicitude quando a vítima aquiesce ao excesso de velocidade do motorista, daí resultando um acidente e a produção dos ferimentos.

Consentimento presumido: A doutrina alemã aceita, paralelamente ao consentimento expresso, o consentimento presumido, nos casos urgentes em que o ofendido ou seu representante legal não possam prestar a anuência, mas seria razoável esperar que, se possível, agiriam dessa forma. Apontam-se os exemplos do aborto necessário, para salvar a vida da gestante, bem como a amputação de um membro de um ferido de guerra desacordado, para preservar partes relevantes de seu corpo e até mesmo livrá-lo da morte. O CP português também disciplina expressamente o consentimento presumido. No Brasil, todavia, tais hipóteses se ajustam com perfeição ao estado de necessidade, dispensando-se, por isso, a insegurança jurídica do consentimento presumido.

Consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da tipicidade: Na hipótese de bem jurídico disponível, é possível que o consentimento do ofendido afaste a tipicidade da conduta relativamente aos tipos penais em que se revela como requisito, expresso ou tácito, que o comportamento humano se realize contra ou sem a vontade do sujeito passivo. É o que ocorre nos crimes de sequestro ou cárcere privado (CP, art. 148), violação de domicílio (CP, art. 150) e estupro (CP, art. 213), entre outros.

Causas de exclusão da ilicitude e aspectos processuais: Se restar suficientemente comprovada a presença de uma causa de exclusão da ilicitude, estará ausente uma condição da ação penal, e o Ministério Público deverá requerer o arquivamento dos autos do inquérito policial. Se não o fizer no tocante aos crimes diversos dos dolosos contra a vida, o magistrado poderá rejeitar a denúncia, com fundamento no art. 395, II, do CPP. Na hipótese de a denúncia ter sido recebida, o juiz poderá, após a apresentação da resposta escrita, absolver sumariamente o acusado, em face da existência manifesta da causa de exclusão da ilicitude do fato, nos moldes do art. 397, I, do CPP. Se assim não agir, restará, por ocasião da sentença, absolvê-lo com fulcro no art. 386, VI, do CPP. Por outro lado, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, o magistrado não poderá pronunciar o réu. Deverá absolvê-lo sumariamente, com fulcro no art. 415, IV, do CPP, diante da existência de circunstância que exclui o crime.

Prisão provisória e as inovações promovidas pela Lei 12.403/2011: A Lei 12.403/2011, responsável pela alteração de diversos dispositivos do CPP no tocante à prisão provisória, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares, gerou reflexos no tocante às causas de exclusão da ilicitude. A primeira questão a ser analisada diz respeito ao art. 310, parágrafo único, do CPP, que impõe ao juiz a obrigação de, tão logo receba o auto de prisão em flagrante, conceder liberdade provisória ao agente que praticou o fato (típico) em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito. Este dispositivo há de ser interpretado com cautela. Sua incidência limita-se às situações em que o magistrado, compulsando o auto de prisão em flagrante, concluir pela fundada suspeita (probabilidade) da prática do fato típico sob o manto de alguma causa excludente da ilicitude. Nesses casos, como medida de cautela, é prudente a concessão da liberdade provisória, visando uma dupla finalidade: (a) o agente responde em liberdade à ação penal; e (b) abre-se espaço para apuração a fundo, durante a instrução criminal, da presença ou não da eximente.84 Com efeito, se o juiz se deparar com um quadro fático de certeza acerca da prática do fato amparado por uma causa de exclusão da ilicitude, deverá relaxar a prisão em flagrante, em face da sua ilegalidade, com fulcro no art. 5º, LXV, da CF, e no art. 310, I, do CPP. Sem dúvida alguma, a ilegalidade da prisão em flagrante repousa na ausência de crime. Igual raciocínio deve ser empregado na interpretação do art. 314 do CPP, relacionado à prisão preventiva.

Excesso: Excesso é a desnecessária intensificação de um fato típico inicialmente amparado por uma causa de justificação. Pressupõe, portanto, uma excludente da ilicitude, a qual desaparece em face de o agente desrespeitar os seus limites legalmente previstos, suportando a punição pelas abusivas e inúteis lesões provocadas ao bem jurídico penalmente tutelado. Depois de apresentar as causas de exclusão da ilicitude, estatui o art. 23 do CP, em seu parágrafo único, que o agente, em qualquer das hipóteses previstas neste dispositivo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. Assim, quando o agente ultrapassar as barreiras necessárias na prática do fato típico, cuja ilicitude a eximente apaga, há excesso, seja no tocante à situação de necessidade, à agressão repelida, ao dever legal, ou, ainda, ao exercício do direito. A expressão “em qualquer das hipóteses deste artigo” indica a penalização do excesso, doloso ou culposo, em todas as causas legais genéricas de exclusão da ilicitude. No estado de necessidade, o excesso recai na expressão “nem podia de outro modo evitar” (art. 24 do CP): age com excesso aquele que, para afastar a situação de perigo, utiliza meios dispensáveis e sacrifica bem jurídico alheio. Na legítima defesa, o excesso se consubstancia no emprego de meios desnecessários para repelir a injusta agressão, atual ou iminente, ou, quando necessários, os emprega imoderadamente. No estrito cumprimento do dever legal, o excesso resulta da não observância, pelo agente, dos limites determinados pela lei que lhe impõe a conduta consistente em um fato típico. No exercício regular de direito, finalmente, o excesso decorre do exercício abusivo do direito consagrado pelo ordenamento jurídico.

Espécies de excesso: 1) Doloso ou consciente – é o excesso voluntário e proposital. O sujeito quer ultrapassar os parâmetros legais, sabendo que assim agindo praticará um delito de natureza dolosa, e por ele responderá como crime autônomo. 2) Culposo ou inconsciente – é o excesso resultante de imprudência, negligência ou imperícia (modalidades de culpa). O agente responde pelo crime culposo praticado, se previsto em lei. 3) Acidental ou fortuito – é a modalidade que se origina de caso fortuito ou força maior, eventos imprevisíveis e inevitáveis. Cuida-se de excesso penalmente irrelevante.85 4) Exculpante – é o excesso decorrente da profunda alteração de ânimo do agente, ou seja, medo ou susto provocado pela situação em que se encontra. Encontra certa dose de rejeição pela doutrina e pela jurisprudência. Há entendimentos, contudo, no sentido de que o excesso exculpante exclui a culpabilidade, em razão da inexigibilidade de conduta diversa. A propósito, com a rubrica “excesso escusável”, dispõe o art. 45, parágrafo único, do Decreto-lei 1.001/1969 – Código Penal Militar: “Não é punível o excesso quando resulta de escusável surpresa ou perturbação de ânimo, em face da situação”. O art. 20, § 6º, do Código Penal Espanhol eleva o medo, dependendo da situação, à condição de causa de exclusão da culpabilidade.

Excesso intensivo e extensivo: Excesso intensivo ou próprio é o que se verifica quando ainda estão presentes os pressupostos das causas de exclusão da ilicitude. É o caso do agente que, no contexto de uma agressão injusta, defende-se de forma desproporcional. Há superação dos limites traçados pela lei para a justificativa, e o excesso assume um perfil ilícito. São desse posicionamento, a título ilustrativo, Francisco de Assis Toledo, Nélson Hungria e Alberto Silva Franco. Para os adeptos dessa corrente, o excesso extensivo é, em verdade, um crime autônomo, situado fora do contexto fático da excludente da ilicitude. A situação pode ser dividida em duas etapas: 1) aquela em que estavam presentes os pressupostos da justificativa; e 2) uma posterior, na qual a excludente já estava encerrada, na qual o agente pratica outro delito, desvencilhado da situação anterior. Excesso extensivo ou impróprio, ao contrário, é aquele em que não estão mais presentes os pressupostos das causas de exclusão da ilicitude: não mais existe a agressão ilícita, encerrou-se a situação de perigo, o dever legal foi cumprido e o direito foi regularmente exercido. Em seguida, o agente ofende bem jurídico alheio, respondendo pelo resultado dolosa ou culposamente produzido. Filiam-se a essa vertente, entre outros, E. Magalhães Noronha e Celso Delmanto.

Legítima defesa e excesso: Nada obstante seja admitido em relação a todas as causas genéricas de exclusão da ilicitude (CP, art. 23, parágrafo único), é mais comum a configuração do excesso na legítima defesa. E nessa eximente, com a adoção do excesso intensivo ou próprio, a intensificação desnecessária da conduta inicialmente justificada pode ocorrer em três hipóteses, a teor do previsto no art. 25 do Código Penal: 1) o agente usa meio desnecessário; 2) o agente usa imoderadamente o meio necessário; ou 3) o agente usa, imoderadamente, meios desnecessários.

Jurisprudência selecionada:

Exercício regular de direito – apropriação indébita – limites: “Hipótese em que o paciente foi denunciado pela prática do delito de apropriação indébita, porque teria recebido as quantias depositadas pela municipalidade, à titulo de indenização, por força da procuração outorgada por seus clientes, deixando de repassá-las aos mesmos, retendo-as injustificadamente. Se o Tribunal a quo ressalta que o contrato de honorários anexado aos autos previa dez por cento da indenização que viesse a ser apurada, pela atuação profissional, além dos honorários de sucumbência judicialmente fixados, nada referindo acerca de eventual direito de retenção das quantias depositadas, deve ser afastada a hipótese de que o paciente praticou o fato no exercício regular de um direito. Tem-se configurado, a princípio, o delito de apropriação indébita, pois, de acordo com a inicial acusatória e com o acórdão a quo, o paciente levantou as quantias depositadas, em ação expropriatória, pela Administração Pública à titulo de indenização dos seus clientes, retendo-as injustificadamente, agindo, portanto, com dolo específico de se apropriar de coisa alheia” (STJ: RHC 16.146/SP, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 23.06.2004).

Exercício regular de direito – exclusão da ilicitude: “A manifestação considerada ofensiva, feita com o propósito de informar possíveis irregularidades, sem a intenção de ofender, descaracteriza o tipo subjetivo nos crimes contra a honra, sobretudo quando o ofensor está agindo no estrito cumprimento de dever legal. Precedentes. As informações levadas ao Corregedor-Regional do Trabalho por ex-ocupante do mesmo cargo, ainda que deselegantes e com possíveis consequências graves, praticadas no exercício regular de um direito e sem a intenção de caluniar e injuriar o querelante, não podem ser consideradas típicas, daí porque ausente a justa causa para a ação penal” (STJ: Apn 348/PA, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Corte Especial, j. 18.05.2005).

Exercício regular de direito – imunidade judiciária – poderes relativos do advogado: “A imunidade judiciária contemplada no art. 133 da Constituição Federal e no art. 142, inciso I, do Código Penal, não alcança o crime de calúnia, mas tão somente a injúria e a difamação. Precedentes. Incabível acobertar a tese de exclusão da ilicitude com base no art. 23, inciso III, do Código Penal (estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito), ante a consideração sufragada por doutrina e jurisprudência, de não serem absolutos e incontestáveis os poderes do causídico na sua esfera de atuação profissional, sendo, evidentemente, puníveis os eventuais excessos e abusos perpetrados. Tendo sido o Magistrado ofendido em seu âmbito profissional, de funcionário público, justifica-se o exercício da ação penal pelo Ministério Público Estadual, na forma do art. 145, parágrafo único, do CP” (STJ: RHC 11.324/SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, j. 02.10.2001).

Estado de necessidade

Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

§ 1º Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

§ 2º Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

Conceito: Estado de necessidade é a causa de exclusão da ilicitude que depende de uma situação de perigo caracterizada pelo conflito de interesses lícitos, ou seja, uma colisão entre bens jurídicos pertencentes a pessoas diversas que se soluciona, com a autorização conferida pelo ordenamento jurídico, com o sacrifício de um deles para a preservação do outro.

Natureza jurídica: O art. 23, I, do CP deixa claro tratar-se de causa de exclusão da ilicitude. Com efeito, não há crime quando o agente pratica o fato (típico) em estado de necessidade. A doutrina diverge, contudo, acerca da essência do estado de necessidade: direito ou faculdade. Para Nélson Hungria, cuida-se de faculdade. Aníbal Bruno entende tratar-se de um direito, a ser exercido não contra aquele que suporta o fato necessitado, mas frente ao Estado, que tem o dever de reconhecer a exclusão da ilicitude, e, por corolário, o afastamento do crime. Com o devido respeito, a questão deve ser encarada sob outro enfoque, frente ao qual a doutrina é pacífica. O estado de necessidade constitui-se em faculdade entre os titulares dos bens jurídicos em colisão, uma vez que um deles não está obrigado a suportar a ação alheia, e, simultaneamente, em direito diante do Estado, que deve reconhecer os efeitos descritos em lei. Mais do que um mero direito, portanto, consiste em direito subjetivo do réu, pois o juiz não tem discricionariedade para concedê-lo. Presentes os requisitos legais, tem o magistrado a obrigação de decretar a exclusão da ilicitude.

Teorias: Sobre a natureza jurídica do estado de necessidade, existem as seguintes teorias:

1)Teoria unitária: o estado de necessidade é causa de exclusão de ilicitude, desde que o bem jurídico sacrificado seja de igual valor ou de valor inferior ao bem jurídico preservado. Exige, assim, somente a razoabilidade na conduta do agente. Foi a teoria adotada pelo CP. A análise conjunta do art. 24, caput e § 2º, autoriza um raciocínio bastante simples: se o bem em perigo é igual ou superior a outro, sacrifica-se este, e restará consagrada a licitude do fato. Nesse caso, há razoabilidade na conduta do agente, o qual, para preservar interesse próprio ou de terceiro, pode sacrificar interesse alheio, desde que igual ou menos valioso do que o preservado. Não há crime. Se, todavia, o interesse sacrificado for superior ao preservado, tanto que era razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, subsiste o crime, autorizando, no máximo, a diminuição da pena, de um a dois terços;

2)Teoria diferenciadora: derivada do direito penal alemão e alicerçada no princípio da ponderação de bens e deveres, diferencia o estado de necessidade justificante (excludente da ilicitude) do estado de necessidade exculpante (excludente da culpabilidade). Para essa teoria, há estado de necessidade justificante somente com o sacrifício de bem jurídico de menor relevância para a proteção de bens jurídicos de mais elevada importância. Nas hipóteses em que o bem jurídico sacrificado for de valor igual ou superior ao do bem jurídico protegido, haverá o estado de necessidade exculpante – causa supralegal de exclusão da culpabilidade, em face da inexigibilidade de conduta diversa. No Brasil, a teoria diferenciadora foi acolhida somente no Decreto-lei 1.001/1969 – Código Penal Militar –, em seu art. 39, o que não obsta, ainda, a previsão castrense do estado de necessidade como excludente da ilicitude (art. 43);

3)Teoria da equidade: originária de Immanuel Kant, prega a manutenção da ilicitude e da culpabilidade. A ação realizada em estado de necessidade não é juridicamente correta, mas não pode ser castigada por questões de equidade, calcadas na coação psicológica que move o sujeito86; e

4)Teoria da escola positiva: alicerçada nos pensamentos de Ferri e Florián, pugna também pela manutenção da ilicitude. Todavia o ato, extremamente necessário e sem móvel antissocial, deve permanecer impune por ausência de perigo social e de temibilidade do agente.87

Requisitos: O art. 24, caput, e seu § 1º, do CP, elencam requisitos cumulativos para a configuração do estado de necessidade como causa legal de exclusão da ilicitude. A análise dos dispositivos revela a existência de dois momentos distintos para a verificação da excludente:

1)Situação de necessidade: Existência de a) perigo atual; b) perigo não provocado voluntariamente pelo agente; c) ameaça a direito próprio ou alheio; e d) ausência do dever legal de enfrentar o perigo.

Perigo atual: Perigo é a exposição do bem jurídico a uma situação de probabilidade de dano. Sua origem pode vir de um fato da natureza (ex.: uma inundação, subtraindo o agente um barco para sobreviver), de seres irracionais (ex.: ataque de um cão bravio) ou mesmo de uma atividade humana (ex.: motorista que dirige em excesso de velocidade e atropela um transeunte, com o objetivo de chegar rapidamente a um hospital e socorrer um enfermo que se encontra no interior do veículo). A propósito, o perigo pode advir inclusive de conduta praticada pelo próprio agente, como no caso do suicida arrependido que, depois de se lançar ao mar, subtrai uma embarcação alheia para não morrer afogado. Deve ser efetivo ou real: a sua existência deve ter sido comprovada no caso concreto. O CP exige seja o perigo atual: deve estar ocorrendo no momento em que o fato é praticado. Sua presença é imprescindível. Em relação ao perigo iminente, aquele prestes a se iniciar, há controvérsia. Prevalece o entendimento de que equivale ao perigo atual, excluindo o crime. Há posições, porém, no sentido de que o perigo iminente não autoriza o estado de necessidade, pois, se fosse esta a vontade da lei, o teria incluído expressamente. O perigo remoto ou futuro, normalmente imaginário, ou seja, aquele que pode ocorrer em momento ulterior ao da prática do fato típico, bem como o perigo pretérito ou passado – que já se verificou e encontra-se superado –, não caracterizam o estado de necessidade.

Perigo não provocado voluntariamente pelo agente: Foi mencionado que a situação de perigo pode se originar de uma atividade humana, lícita ou não. O CP, contudo, é claro ao negar o estado de necessidade àquele que voluntariamente provocou o perigo. A discussão reside na extensão da palavra “voluntariamente”. Qual é o seu alcance? Abrange apenas o perigo provocado dolosamente? Ou também engloba o perigo causado pelo agente a título de culpa? O panorama é tranquilo sobre o perigo dolosamente provocado: não é possível invocar a causa de justificação em apreço. Em relação ao perigo culposamente criado pelo agente, entretanto, a doutrina revela divergências. Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Bento de Faria, Damásio E. de Jesus e Heleno Cláudio Fragoso aduzem ser a palavra “vontade” um sinal indicativo de dolo. Logo, aquele que culposamente provoca uma situação de perigo pode se valer do estado de necessidade para excluir a ilicitude do fato típico praticado. Na Alemanha, Claus Roxin informa ser unânime o entendimento no sentido de que a provocação culposa do perigo não afasta a possibilidade de invocar o estado de necessidade.88 Por outro lado, E. Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, José Frederico Marques e Nélson Hungria sustentam que a atuação culposa também é voluntária em sua origem: a imprudência, a negligência e a imperícia derivam da vontade do autor da conduta. Consequentemente, não pode suscitar o estado de necessidade a pessoa que culposamente produziu a situação perigosa. Esta segunda posição nos parece a mais adequada. Com efeito, além de a culpa também ser voluntária em sua origem (involuntário é somente o resultado naturalístico), o Direito não pode ser piedoso com os incautos e imprudentes, autorizando o sacrifício de bens jurídicos alheios, em regra de terceiros inocentes, para acobertar com o manto da impunidade fatos típicos praticados por quem deu causa a uma situação de perigo. Se não bastasse, o CP deve ser interpretado sistematicamente e, analisando o art. 13, § 2º, “c”, podemos concluir que, se quem cria a situação de perigo, dolosa ou culposamente, tem o dever jurídico de impedir o resultado, igual raciocínio deve ser utilizado no tocante ao estado de necessidade, é dizer, quem cria o perigo, dolosa ou culposamente, não pode invocar a causa de justificação.

Ameaça a direito próprio ou alheio: O perigo deve ser direcionado a bem jurídico pertencente ao autor do fato típico ou ainda a terceira pessoa. No Brasil, qualquer bem jurídico, próprio ou de terceiro, pode ser protegido quando enfrentar um perigo capaz de configurar o estado de necessidade (o art. 24, caput, do CP usa a expressão “direito próprio ou alheio”). Exige-se, todavia, a legitimidade do bem, que deve ser reconhecido e protegido pelo ordenamento jurídico. Para a proteção de bem jurídico de terceiro, a lei não reclama a existência de uma relação de parentesco ou intimidade, pois a eximente se funda na solidariedade que deve reinar entre os indivíduos em geral. Destarte, é possível o estado de necessidade para a defesa de bens jurídicos pertencentes a pessoas desconhecidas, e, inclusive, de pessoas jurídicas, que também são titulares de direitos.

Ausência do dever legal de enfrentar o perigo: Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo (CP, art. 24, § 1º). O fundamento da norma é evitar que pessoas que têm o dever legal de enfrentar situações perigosas se esquivem de fazê-lo injustificadamente. Aquele que, por mandamento legal, tem o dever de se submeter a situações de perigo, não está autorizado a sacrificar bem jurídico de terceiro, ainda que para salvar outro bem jurídico, devendo suportar os riscos inerentes à sua função. Essa regra, evidentemente, deve ser interpretada com bom senso: não se pode exigir do titular do dever legal de enfrentar o perigo, friamente, atitudes heroicas ou sacrifício de direitos básicos de sua condição humana. Quanto à expressão “dever legal de enfrentar o perigo”, há quem entenda que deve ser interpretada restritivamente. Portanto, “dever legal” abrange somente o dever decorrente da lei em sentido amplo (lei, medida provisória, decreto, regulamento, portaria etc.). É o entendimento de Nélson Hungria. Uma segunda corrente, por sua vez, afirma que a expressão há de ser interpretada extensivamente, compreendendo, além do dever legal, qualquer espécie de dever jurídico, tal como o dever contratual. É, entre outros, o entendimento de Bento de Faria, Costa e Silva e Galdino Siqueira. Essa última posição nos parece mais acertada. De fato, não pode invocar o estado de necessidade quem tem o dever jurídico de enfrentar o perigo. E, uma vez mais, nos socorremos do art. 13, § 2º, do CP. Em verdade, se quem tem o dever jurídico de agir responde pelo crime quando se omite, com maior razão não pode invocar estado de necessidade diante de sua inércia. O dever resultante de contrato e outros mais, como o decorrente da posição de garantidor e da situação de ingerência, foram previstos expressamente no art. 13, § 2º, do CP, merecendo ser tratados como deveres legais.

2)Fato necessitado: É o fato típico praticado pelo agente em face do perigo ao bem jurídico, que tem como requisitos: (a) inevitabilidade do perigo por outro modo; e (b) proporcionalidade. Preenchidos os requisitos anteriormente indicados, restando configurada a situação de necessidade, o agente pode praticar o fato necessitado, isto é, a conduta lesiva a outro bem jurídico. Esse fato, contudo, deve obedecer a dois outros requisitos: inevitabilidade do perigo por outro modo e proporcionalidade.

Inevitabilidade do perigo por outro modo: O fato necessitado deve ser absolutamente imprescindível para evitar a lesão ao bem jurídico. Se o caso concreto permitir o afastamento do perigo por qualquer outro meio (commodus discessus), a ser aferido de acordo com o juízo do homem médio e diverso da prática do fato típico, por ele deve optar o agente.

Proporcionalidade: diz respeito ao cotejo de valores, ou seja, à relação de importância entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico preservado no caso concreto. Não se pode, previamente, estabelecer um quadro de valores, salvo em casos excepcionais (ex: a vida humana, evidentemente, vale mais do que o patrimônio). Deve o magistrado decidir na situação real que lhe for apresentada, utilizando como vetor o juízo do homem médio. Em face da teoria unitária adotada pelo art. 24 do CP, o bem preservado no estado de necessidade justificante deve ser de valor igual ou superior ao bem jurídico sacrificado.

Causa de diminuição da pena (art. 24, § 2º): Cuida-se de causa de diminuição da pena que ocorre quando o agente, visando proteger bem jurídico próprio ou de terceiro, sacrifica outro bem jurídico de maior valor. Não há exclusão do crime. É mantida a tipicidade, mas é possível a diminuição da pena, dependendo das condições concretas em que o fato foi praticado. Essa norma só se aplica nos casos de estado de necessidade exculpante, desde que não tenha restado configurada uma situação de inexigibilidade de conduta diversa (excludente da culpabilidade).

Espécies de estado de necessidade: A divisão do estado de necessidade leva em conta diversos critérios:

Quanto ao bem sacrificado: a) Justificante: o bem sacrificado é de valor igual ou inferior ao preservado. Exclui a ilicitude. b) Exculpante: o bem sacrificado é de valor superior ao preservado. A ilicitude é mantida, mas, no caso concreto, pode afastar a culpabilidade, em face da inexigibilidade de conduta diversa.

Quanto à titularidade do bem jurídico preservado: a) Próprio: protege-se bem jurídico pertencente ao autor do fato necessitado; b) De terceiro: o autor do fato necessitado tutela bem jurídico alheio.

Quanto à origem da situação de perigo: a) Agressivo: é aquele em que o agente, para preservar bem jurídico próprio ou de terceira pessoa, pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente a terceiro inocente, ou seja, pessoa que não provocou a situação de perigo. O autor do fato necessitado, embora não seja responsável pelo perigo, deve indenizar o dano suportado pelo terceiro (art. 929 do CC), reservando-lhe, porém, ação regressiva contra o causador do perigo (art. 930, caput, do CC); b) Defensivo: é aquele em que o agente, visando à proteção de bem jurídico próprio ou de terceiro, pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente àquele que provocou o perigo. Obviamente, não há obrigação de ressarcir os danos causados, como se extrai da análise a contrario sensu do art. 929 do CC.

Quanto ao aspecto subjetivo do agente: a) Real: a situação de perigo efetivamente existe, e dela o agente tem conhecimento. Exclui a ilicitude; b) Putativo: não existe a situação de necessidade, mas o autor do fato típico a considera presente. O agente, por erro, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima (art. 20, § 1º, do CP).

Estado de necessidade recíproco: É perfeitamente admissível que duas ou mais pessoas estejam, simultaneamente, em estado de necessidade, umas contra as outras. É o que se convencionou chamar de estado de necessidade recíproco, hipótese em que deve ser afastada a ilicitude do fato, sem a interferência do Estado que, ausente, permanece neutro nesse conflito.

Casos específicos de estado de necessidade: Além da regra geral delineada pelo art. 24, o CP, em sua Parte Especial, prevê outros casos de estado de necessidade. É o que se dá no art. 128, I, permitindo o aborto necessário ou terapêutico praticado por médico quando não há outro meio para salvar a vida da gestante. De igual modo, o art. 146, § 3º, preceitua em seus incisos não configurar constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida, bem como a coação exercida para impedir suicídio. Em relação ao delito de violação de domicílio, é possível o estado de necessidade quando em seu interior algum crime está sendo praticado ou na iminência de o ser, e também na hipótese de desastre ou para socorrer alguém (art. 150, § 3º, II, do CP e art. 5º, XI, da CF). Aponta-se ainda o estado de necessidade, implicitamente, nos crimes de violação de correspondência, divulgação de segredo e violação de segredo profissional (arts. 151, 153 e 154 do CP), nas situações em que alguém pratica o fato típico para proteger direito próprio ou alheio.

Comunicabilidade do estado de necessidade: O estado de necessidade justificante exclui a ilicitude do fato típico, afastando, consequentemente, a infração penal. E, desaparecendo o crime ou a contravenção penal em relação a algum dos envolvidos, se comunica a todos os coautores e partícipes da infração penal, pois no tocante a eles o fato também será lícito.

Estado de necessidade e crimes permanentes e habituais: Em regra, não se aplica a justificativa no campo dos crimes permanentes e habituais, uma vez que, no fato que os integra, não há os requisitos da atualidade do perigo e da inevitabilidade do fato necessitado. A jurisprudência já reconheceu o estado de necessidade, contudo, no crime habitual de exercício ilegal de arte dentária (art. 282 do CP), em caso atinente à zona rural longínqua e carente de profissional habilitado.89

Estado de necessidade e erro na execução: O estado de necessidade é compatível com a aberratio ictus (art. 73 do CP), na qual o agente, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, atinge pessoa ou objeto diverso do desejado, com o propósito de afastar a situação de perigo a bem jurídico próprio ou de terceiro.

Estado de necessidade e dificuldades econômicas: Não se confundem. No estado de necessidade, o agente é compelido a praticar o fato típico, para afastar a situação de perigo atual ou iminente, involuntário e inevitável, capaz de afetar bem jurídico próprio ou de terceiro, cujo sacrifício é inexigível. Na dificuldade econômica supõe-se que o indivíduo deva conformar-se com a privação, porque não se cuida do suprimento de necessidade vital ou primária, ou, ainda que disso se trate, que lhe seja possível satisfazer a carência por meio de atividade lícita, em uma ou outra hipótese, não se justificando a lesão ao interesse de outrem. Destarte, a dificuldade econômica, inclusive com a miserabilidade do agente, não constitui estado de necessidade. Em casos excepcionais, admite-se a prática de um fato típico como medida inevitável, ou seja, para satisfação de necessidade estritamente vital que a pessoa, nada obstante seu empenho, não conseguiu superar de forma lícita. Portanto, se o agente podia laborar honestamente, ou então quando se apodera de bens supérfluos ou em quantidade exagerada, afasta-se a justificativa.

Jurisprudência selecionada:

Estado de necessidade – dificuldades financeiras – não caracterização: “A afetação da qualidade de vida, mesmo implicando em dificuldades financeiras, por si só, não preenche os requisitos do status necessitatis (art. 24 do CP)” (STJ: REsp 499.442/PE, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 24.06.2003).

Legítima defesa

Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Introdução: O instituto da legítima defesa é inerente à condição humana. Acompanha o homem desde o seu nascimento, subsistindo durante toda a sua vida, por lhe ser natural o comportamento de defesa quando injustamente agredido por outra pessoa. Em razão da sua compreensão como direito natural, a legítima defesa sempre foi aceita por praticamente todos os sistemas jurídicos, ainda que muitas vezes não prevista expressamente em lei, constituindo-se, dentre todas, na causa de exclusão da ilicitude mais remota ao longo da história das civilizações. De fato, o Estado avocou para si a função jurisdicional, proibindo as pessoas de exercerem a autotutela, impedindo-as de fazerem justiça pelas próprias mãos. Seus agentes não podem, contudo, estar presentes simultaneamente em todos os lugares, razão pela qual o Estado autoriza os indivíduos a defenderem direitos em sua ausência, pois não seria correto deles exigir a instantânea submissão a um ato injusto para, somente depois, buscar a reparação do dano perante o Poder Judiciário.

Natureza jurídica: Como se extrai do art. 23, II, do Código Penal, a legítima defesa é causa de exclusão da ilicitude. Destarte, o fato típico praticado em legítima defesa é lícito. Não configura crime.

Conceito: Está no art. 25 do Código Penal: trata-se da causa de justificação consistente em repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, usando moderadamente dos meios necessários.

Requisitos legais: A legítima defesa depende dos seguintes requisitos cumulativos: agressão injusta; atual ou iminente; direito próprio ou alheio; reação com os meios necessários; e uso moderado dos meios necessários.

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Agressão injusta: Agressão é toda ação ou omissão humana, consciente e voluntária, que lesa ou expõe a perigo de lesão um bem ou interesse consagrado pelo ordenamento jurídico. Cuida-se de atividade exclusiva do ser humano. Não pode ser efetuada por um animal, ou por uma coisa, por faltar-lhes a consciência e a voluntariedade ínsitas ao ato de agredir. Portanto, animais que atacam e coisas que oferecem riscos às pessoas podem ser sacrificados ou danificados com fundamento no estado de necessidade, e não na legítima defesa, reservada a agressões emanadas do homem. Nada impede, entretanto, a utilização de animais como instrumentos do crime, como nos casos em que são ordenados, por alguém, ao ataque de determinada pessoa. Funcionam como verdadeiras armas, autorizando a legítima defesa. A agressão pode emanar de um inimputável. O inimputável pratica conduta consciente e voluntária, apta a configurar a agressão. O fato previsto em uma lei incriminadora por ele cometido é típico e ilícito. Falta-lhe apenas a culpabilidade. A agressão é tomada em sentido meramente objetivo, não guardando vínculo nenhum com o subjetivismo da culpabilidade. É pacífico na doutrina, entretanto, que a condição de inimputável do agressor, se conhecida do agredido, impõe a este maior diligência no evitar, e maior moderação no repelir o ataque. Há posições em sentido contrário, a exemplo de Nélson Hungria, que equiparava os inimputáveis aos seres irracionais. A defesa contra o ataque deles originado, consequentemente, não caracterizava legítima defesa, mas estado de necessidade. Em regra, a agressão é praticada por meio de uma ação, mas nada impede a sua veiculação por omissão, quando esta se apresenta idônea a causar danos e o omitente tinha, no caso concreto, o dever jurídico de agir. Mezger fornece o exemplo do carcereiro que tem o dever de liberar o recluso cuja pena já foi integralmente cumprida. Com a sua omissão ilícita, inevitavelmente agride um bem jurídico do preso, autorizando a reação em legítima defesa.90 Além disso, a agressão deve ser injusta, que é a de natureza ilícita, contrária ao Direito. Pode ser dolosa ou culposa. É obtida com uma análise objetiva, consistindo na mera contradição com o ordenamento jurídico. Não se exige, para ser injusta, que a agressão seja prevista como infração penal. Basta que o agredido não esteja obrigado a suportá-la.

Agressão atual ou iminente: Não pode o homem de bem ser obrigado a ceder ao injusto. Seria equivocado exigir fosse ele efetivamente agredido para, somente depois, defender-se. Exemplificativamente, não está ele obrigado a ser atingido por um disparo de arma de fogo para, após, defender-se matando o seu agressor. Ao contrário, com a iminência da agressão é permitida a reação imediata contra o agressor, desde que presente o justo receio quanto ao ataque a ser contra ele perpetrado. Atual é a agressão presente, isto é, já se iniciou e ainda não se encerrou a lesão ao bem jurídico. Iminente é a agressão prestes a acontecer, ou seja, aquela que se torna atual em um futuro imediato. A agressão futura (ou remota) e a agressão passada (ou pretérita) não abrem espaço para a legítima defesa. O medo e a vingança não autorizam a reação, mas apenas a necessidade de defesa urgente e efetiva do interesse ameaçado. A agressão pretérita caracterizaria nítida vingança.

Agressão a direito próprio ou alheio: A agressão injusta, atual ou iminente, deve ameaçar bem jurídico próprio ou de terceiro. Qualquer bem jurídico pode ser protegido pela legítima defesa, pertencente àquele que se defende ou a terceira pessoa. Em compasso com o auxílio mútuo que deve reinar entre os indivíduos, o CP admite expressamente a legítima defesa de bens jurídicos alheios, com amparo no princípio da solidariedade humana. É possível o emprego da excludente para a tutela de bens pertencentes às pessoas jurídicas, inclusive do Estado, pois atuam por meio de seus representantes e não podem defender-se sozinhas. Veja-se o exemplo da pessoa que, percebendo uma empresa ser furtada, luta com o ladrão e o imobiliza até a chegada da força policial. Admite-se, também, a legítima defesa do feto. Deveras, o art. 2º do CC resguarda os direitos do nascituro, que podem ser defendidos por terceiros. É o caso do agente que, percebendo estar a gestante na iminência de praticar um autoaborto, a impede, internando-a posteriormente em um hospital para que o parto transcorra normalmente. Embora com alguma controvérsia, pode-se ainda falar em legítima defesa do cadáver. Nada obstante não seja titular de direitos, a utilização da causa justificativa encontra amparo no reconhecimento que o Estado lhe confere, em respeito à sociedade e aos seus familiares, criando, inclusive, crimes destinados a esse desiderato (arts. 211 e 212 do CP).91

Reação com os meios necessários: Meios necessários são aqueles que o agente tem à sua disposição para repelir a agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, no momento em que é praticada. A legítima defesa não é desforço desnecessário, mas medida que se destina à proteção de bens jurídicos. Não tem por fim punir, razão pela qual deve ser concretizada da forma menos lesiva possível. O calor do momento da agressão, todavia, impede sejam calculados os meios necessários de forma rígida e matemática. Seu cabimento deve ser analisado de modo flexível. A escolha dos meios deve obedecer aos reclamos da situação concreta de perigo, não se podendo exigir uma proporção mecânica entre os bens em conflito.92 O meio necessário, desde que seja o único disponível ao agente para repelir a agressão, pode ser desproporcional em relação a ela, se empregado moderadamente. Se o meio empregado for desnecessário, estará configurado o excesso, doloso, culposo ou exculpante (sem dolo ou culpa), dependendo das condições em que ocorrer. Ao contrário do que ocorre no estado de necessidade, a possibilidade de fuga ou o socorro pela autoridade pública não impedem a legítima defesa. Não se impõe o commodus discessus, isto é, o agredido não está obrigado a procurar a saída mais cômoda e menos lesiva para escapar do ataque injusto. O Direito não pode se curvar a uma situação ilícita. Ademais, lhe é vedado obrigar que alguém seja pusilânime ou covarde, fugindo de um ataque injusto quando pode legitimamente se defender.

Uso moderado dos meios necessários: Caracteriza-se pelo emprego dos meios necessários na medida suficiente para afastar a agressão injusta. Utiliza-se o perfil do homem médio, ou seja, para aferir a moderação dos meios necessários o magistrado compara o comportamento do agredido com aquele que, em situação semelhante, seria adotado por um ser humano de inteligência e prudência comuns à maioria da sociedade. Essa análise não é rígida, baseada em critérios matemáticos ou científicos. Comporta ponderação, a ser aferida no caso concreto, levando em conta a natureza e a gravidade da agressão, a relevância do bem ameaçado, o perfil de cada um dos envolvidos e as características dos meios empreendidos para a defesa. O art. 25 do CP não a exige expressamente, mas firmaramse doutrina e jurisprudência no sentido de que, assim como no estado de necessidade, a legítima defesa reclama também proporcionalidade entre os bens jurídicos em conflito. O bem jurídico preservado deve ser de valor igual ou superior ao sacrificado, sob pena de configuração do excesso.

Legítima defesa e vingança: Exige-se daquele que reage a vontade de defender-se. Seu ato deve ser uma resposta à agressão de outrem, e esse caráter de reação precisa estar presente nos dois momentos de sua atuação: o objetivo e o subjetivo. Entretanto, não exclui a legítima defesa a circunstância de o agente unir ao fim de defender-se uma finalidade diversa, tal como a vingança, desde que objetivamente não exceda os requisitos da necessidade (uso dos meios necessários) e da moderação (emprego moderado de tais meios).

Desafio e legítima defesa: Não há legítima defesa no desafio, no duelo, no convite para a luta. Os contendores respondem pelos crimes praticados.

Espécies de legítima defesa: A divisão da legítima defesa tem como parâmetros a forma de reação, a titularidade do bem jurídico protegido e o aspecto subjetivo daquele que se defende.

Quanto à forma de reação: a) Agressiva ou ativa – é aquela em que a reação contra a agressão injusta configura um fato previsto em lei como infração penal. Exemplo: provocar lesões corporais no agressor; b) Defensiva ou passiva – é a legítima defesa na qual aquele que reage limita-se a impedir os atos agressivos, sem praticar um fato típico. Exemplo: segurar os braços do agressor para que ele não desfira socos.

Quanto à titularidade do bem jurídico protegido: a) Própria é aquela em que o agente defende bens jurídicos de sua titularidade; b) De terceiro é aquela em que o agente protege bens jurídicos alheios.

Quanto ao aspecto subjetivo daquele que se defende: a) Real, em que se encontram todos os requisitos previstos no art. 25 do CP. Exclui a ilicitude do fato (art. 23, II, do CP); b) Putativa ou imaginária, em que o agente, por erro, acredita existir uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. O fato típico praticado permanece revestido de ilicitude (art. 20, § 1º, do CP); c) Subjetiva ou excessiva, em que o agente, por erro de tipo escusável, excede os limites da legítima defesa. É também denominada de excesso acidental.

Legítima defesa da honra: Há polêmica acerca da admissibilidade da legítima defesa da honra. A honra, direito fundamental do homem, é inviolável por expressa disposição constitucional (art. 5º, X). E como o art. 25 do CP não faz distinção entre os bens jurídicos, também pode ser alcançada pela legítima defesa. Mas a honra não pode ser isoladamente considerada. Deve ser analisada em determinado contexto, pois pode ser dividida em três aspectos distintos: respeito pessoal, liberdade sexual e infidelidade conjugal. O respeito pessoal, que engloba a dignidade e o decoro, é ofendido pelos crimes contra a honra: calúnia, difamação e injúria. Para a sua tutela, admite-se o emprego de força física, necessária e moderada, visando impedir a reiteração das ofensas. E, a propósito, no campo da injúria, a retorsão imediata, que consiste em outra injúria, é passível de perdão judicial (art. 140, § 1º, do CP). No âmbito da liberdade sexual (livre disposição do corpo para fins sexuais), também se autoriza a legítima defesa. É o caso da pessoa que pode ferir ou até mesmo matar quem tenta lhe estuprar. Há, finalmente, a infidelidade conjugal. Aí reside a maior celeuma, relativa à legítima defesa da honra na órbita do adultério. No passado, admitia-se a exclusão da culpabilidade para os crimes passionais motivados pelo adultério. Atualmente, depois de muita discussão, e, notadamente, com a evolução da sociedade e com o respeito aos direitos da mulher, prevalece o entendimento de que a traição conjugal não humilha o cônjuge traído, e sim o próprio traidor, que não se mostra preparado para o convívio familiar. Além disso, respeita-se o caráter fragmentário e a subsidiariedade do Direito Penal, que não deve ser chamado para resolver o impasse, pois o ordenamento jurídico prevê outras formas menos gravosas para essa finalidade. Com efeito, admite-se a separação, e também o divórcio litigioso, fundados na violação dos deveres do matrimônio. E ainda no campo civil, tem-se aceitado até mesmo a indenização por danos morais ao cônjuge prejudicado pela traição. Essa posição se reforça com a descriminalização do adultério, efetuada pela Lei 11.106/2005. Deveras, se não se admite sequer a responsabilidade penal de quem trai o seu cônjuge, com maior razão infere-se que o Direito Penal não autoriza a legítima defesa da honra, principalmente com o derramamento de sangue do traidor.

Legítima defesa presumida: A tipicidade funciona como indício da ilicitude. Portanto, todo fato típico presume-se ilícito. Inverte-se o ônus da prova: quem alega qualquer excludente da ilicitude, aí se inserindo a legítima defesa, deve provar a sua ocorrência. Por esse motivo, não se admite a legítima defesa presumida.

Legítima defesa sucessiva: Constitui-se na espécie de legítima defesa em que alguém reage contra o excesso de legítima defesa. Exemplo: “A” profere palavras de baixo calão contra “B”, o qual, para calá-lo, desfere-lhe um soco. Em seguida, com “A” já em silêncio, “B” continua a agredi-lo fisicamente, autorizando o emprego de força física pelo primeiro para defender-se. É possível essa legítima defesa, pois o excesso sempre representa uma agressão injusta.

Legítima defesa contra a multidão: Prevalece o entendimento pela sua admissibilidade, pois o instituto da legítima defesa reclama tão somente uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, emanada de seres humanos, pouco importando sejam eles individualizados ou não.93 Em sentido contrário a opinião de Vincenzo La Medica, para quem o comportamento de defesa contra a multidão configura estado de necessidade.94

Legítima defesa contra pessoa jurídica: É possível a legítima defesa contra pessoa jurídica, uma vez que esta exterioriza a sua vontade por meio da conduta de seres humanos, permitindo a prática de agressões injustas.95 Exemplo: O sistema de som de uma empresa está veiculando ofensas à honra de determinado funcionário. Nessa situação, ele estará autorizado a destruir a máquina, com a finalidade de proteger seu bem jurídico.

Legítima defesa nas relações familiares: Duas situações distintas podem ser visualizadas: 1) agressões dos pais contra os filhos; e 2) agressões entre os cônjuges. Na relação entre pais e filhos, os castigos moderados inserem-se no campo do exercício regular de direito, impedindo a intervenção de terceiras pessoas. Se, entretanto, os castigos forem imoderados e excessivos, caracterizam agressão injusta, autorizando a legítima defesa pelo descendente, por outro familiar ou mesmo por pessoa estranha. No tocante às relações entre os cônjuges, não tem qualquer deles mando ou hierarquia sobre o outro, em face da regra contida no art. 226, § 5º, da CF. Assim, se o marido agredir injustamente a mulher, ou vice-versa, será cabível a legítima defesa por qualquer deles, ou mesmo por outro familiar ou terceira pessoa.96

Legítima defesa e aberratio ictus: Se, repelindo uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, o agente atinge pessoa inocente, por erro no emprego dos meios de execução, subsiste em seu favor a legítima defesa. Incidirá ainda a justificativa se o agente atingir a pessoa almejada e também pessoa inocente. O art. 73 do CP é peremptório ao estabelecer que o crime considera-se praticado contra a pessoa visada, permitindo a conclusão de que essa regra aplica-se inclusive para efeito de exclusão da ilicitude.

Legítima defesa de terceiro e consentimento do ofendido: Quanto à necessidade do consentimento para o exercício da legítima defesa de terceiro, duas situações se colocam: 1) em se tratando de bem jurídico indisponível, será prescindível o consentimento do ofendido. Exemplo: um homem agride cruelmente sua esposa, com o propósito de matá-la. Aquele que presenciar o ataque poderá, sem a anuência da mulher, protegê-la, ainda que para isso tenha que lesionar ou mesmo eliminar a vida do covarde marido; 2) Se o bem jurídico for disponível, impõe-se o consentimento do ofendido, se for possível a sua obtenção. Exemplo: um homem ofende com impropérios a honra de sua mulher. Por mais inconformado que um terceiro possa ficar com a situação, não poderá protegê-la sem o seu assentimento. Não se olvide, porém, que mesmo no caso de bem jurídico disponível, estará caracterizada a legítima defesa putativa quando o terceiro atuar sem o consentimento do ofendido.

Diferença entre estado de necessidade e legítima defesa: Estado de necessidade e legítima defesa são causas legais de exclusão da ilicitude (art. 23, I e II, do CP) e têm em comum o perigo a um bem jurídico, próprio ou de terceiro. Contudo, não se confundem. Na legítima defesa, o perigo provém de agressão ilícita do homem, e a reação se dirige contra seu autor. Por outro lado, no estado de necessidade agressivo o perigo é originário da natureza, de seres irracionais ou mesmo de um ser humano, mas, para dele se safar, o agente sacrifica bem jurídico pertencente a quem não provocou a situação de perigo. No estado de necessidade defensivo o agente sacrifica bem jurídico de titularidade de quem causou a situação de perigo. Em alguns casos, contudo, a situação de perigo ao bem jurídico é provocada por uma agressão lícita do ser humano que atua em estado de necessidade. Como o ataque é lícito, eventual reação caracterizará estado de necessidade, e não legítima defesa.

Existência simultânea de legítima defesa e de estado de necessidade: É possível que uma mesma pessoa atue simultaneamente acobertada pela legítima defesa e pelo estado de necessidade, quando, para repelir uma agressão injusta, praticar um fato típico visando afastar uma situação de perigo contra bem jurídico próprio ou alheio. Exemplo: “A”, para defenderse de “B”, que injustamente desejava matá-lo, subtrai uma arma de fogo pertencente a “C” (estado de necessidade), utilizando-a para matar o seu agressor (legítima defesa).

Legítima defesa e relação com outras excludentes: Os requisitos previstos no art. 25 do CP revelam a admissibilidade da legítima defesa nos seguintes casos:

a)Legítima defesa real contra legítima defesa putativa: A legítima defesa real pressupõe uma agressão injusta. E essa agressão injusta estará presente na legítima defesa putativa, pois aquele que assim atua, atacando terceira pessoa, o faz de maneira ilícita, permitindo a reação defensiva. Exemplo: “A” caminha em área perigosa. De repente, visualiza “B” colocando a mão no interior de sua blusa, e, acreditando que seria assaltado, “A” saca uma arma de fogo para matar “B”. Este último, entretanto, que iria apenas pegar um cigarro, consegue se esquivar dos tiros, e, em seguida, mata “A” para se defender. A legítima defesa real é o revide contra agressão efetivamente injusta, enquanto a legítima defesa putativa é a reação imaginária, erroneamente suposta, pois existe apenas na mente de quem a realiza. No exemplo mencionado, “A” agiu em legítima defesa putativa, ensejando a legítima defesa real por parte de “B”. Esse raciocínio é também aplicável a todas as demais excludentes da ilicitude putativas (estado de necessidade, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal).

b)Legítima defesa putativa recíproca (legítima defesa putativa contra legítima defesa putativa): Ocorre na hipótese em que dois ou mais agentes acreditam, erroneamente, que um irá praticar contra o outro uma agressão injusta, quando na verdade o ataque ilícito não existe. Exemplo: “A” e “B”, velhos desafetos, encontram-se em local ermo. Ambos colocam as mãos nos bolsos ao mesmo tempo e, em razão disso, partem um para cima do outro, lutando até o momento em que desmaiam. Posteriormente, apura-se que “A” iria oferecer a “B” um cigarro, enquanto este, que havia perdido a fala em um acidente, entregaria àquele um pedido escrito de desculpas pelos desentendimentos pretéritos.

c) Legítima defesa real contra legítima defesa subjetiva: Legítima defesa subjetiva, ou excessiva, é aquela em que o indivíduo, por erro escusável, ultrapassa os limites da legítima defesa. Daí ser também chamada de excesso acidental. No momento em que se configura o excesso, a outra pessoa – que de agressor passou a ser agredido –, pode agir em legítima defesa real, uma vez que foi praticada contra ele uma agressão injusta. Exemplo: “A”, de porte físico avantajado, parte para cima de “B”, com o escopo de agredi-lo. Este, entretanto, consegue acertar um golpe violento, fazendo seu inimigo desistir da contenda. “B” não nota, todavia, que “A” já estava imóvel, e continua a atacá-lo, desnecessariamente. A partir daí, essa agressão se torna injusta, e “A” poderá agir em legítima defesa real contra o excesso de “B”.

d)Legítima defesa real contra legítima defesa culposa: Tal situação é possível, pois para a legítima defesa importa somente o caráter injusto da agressão, objetivamente considerado, independente do elemento subjetivo do agente. Exemplo: “A”, sem adotar maior cautela, confunde “B” com uma pessoa que havia prometido matá-lo tão logo o encontrasse, e passa a efetuar disparos de arma de fogo para atingi-lo. “B” poderá, contra essa agressão injusta culposamente perpetrada, agir acobertado pela legítima defesa real.

e)Legítima defesa contra conduta amparada por causa de exclusão da culpabilidade: Será sempre cabível a legítima defesa contra uma agressão que, embora injusta, esteja acobertada por qualquer causa de exclusão da culpabilidade. Exemplo: “A” chega ao Brasil vindo de um país em que não há proteção sobre a propriedade de bens móveis. Não possui, pois, conhecimento acerca do caráter ilícito da conduta de furtar (erro de proibição). Dirigese à residência de “B” para subtrair diversos de seus pertences. Assim agindo, autoriza “B” a repelir a agressão injusta em legítima defesa do seu patrimônio.

Legítima defesa e relação com outras excludentes – inadmissibilidade:

a)Legítima defesa real recíproca (legítima defesa real contra legítima defesa real): Não é cabível, pois o pressuposto da legítima defesa é a existência de uma agressão injusta. E, se a agressão de um dos envolvidos é injusta, automaticamente a reação do outro será justa, pois constituirá uma simples atitude de defesa. Consequentemente, apenas este último estará protegido pela causa de exclusão da ilicitude.

b)Legítima defesa real contra outra excludente real: Por idênticos motivos aos ligados à não aceitação da legítima defesa real recíproca, é inadmissível a relação da legítima defesa real com o estado de necessidade real, com o exercício regular de direito real, e, finalmente, com o estrito cumprimento de dever legal real. O fundamento é simples: se a outra excludente é real, não haverá a agressão injusta da qual depende a legítima defesa real.

Legítima defesa e desobediência civil – distinção: Desobediência civil é a resistência do cidadão à atividade estatal, em razão de reputá-la abusiva e contrária ao interesse público.97 No campo penal, consiste na prática de um fato típico contra bem jurídico pertencente ao Poder Público, como no exemplo daquele que destroi uma porta para transitar em prédio municipal fechado em razão de greve no setor público. Em nossa opinião, a desobediência civil não importa na configuração da legítima defesa. De fato, a todos é assegurado o direito de não se conformar com as posturas estatais, mas de forma pacífica e ordenada. A lesão a bens jurídicos, mediante a prática de condutas penalmente típicas, não pode ser tolerada, sob pena de acarretar em anarquia e desordem pública.

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1É o que sustentam GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, William Terra de. Nova Lei de Drogas comentada. São Paulo: RT, 2006. p. 126.

2No mesmo sentido: GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas anotada. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43.

3Com idêntica posição: BATTAGLINI, Giulio. Direito penal. Parte geral. Trad. Paulo José da Costa Jr. e Arminda Bergamini Miotto. São Paulo: Saraiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1973. v. 1, p. 339.

4JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. Trad. espanhola Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Granada: Comares, 2002. p. 239.

5TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 13. tir. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 109.

6BELING, Ernst von. Esquema de derecho penal. La doctrina del delito-tipo. Trad. de Sebástian Soler. Buenos Aires: Depalma, 1944. p. 59.

7ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 433.

8As Leis 1.521/1951 (crimes contra a economia popular), 7.492/1986 (crimes contra o sistema financeiro nacional) e 8.176/1991 (crimes contra a ordem econômica) cuidaram apenas da responsabilidade penal das pessoas físicas.

9“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”

10Atente-se para um dado interessante: o estupro, na redação original do Código Penal, era crime bipróprio, pois somente podia ser praticado por homem contra mulher; entretanto, após a entrada em vigor da Lei 12.015/2009, passou a ser delito bicomum, pois qualquer pessoa (homem ou mulher) pode figurar como seu sujeito ativo ou passivo.

11Há somente uma exceção a esta regra, consistente no crime de falsa perícia (CP, art. 342) praticado em concurso por dois peritos, contadores, tradutores ou intérpretes. Cuida-se de crime de mão própria cometido em coautoria.

12FOLCHI, Mário O. La importancia de la tipicidade en derecho penal. Buenos Aires: Depalma, 1960. p. 87.

13Há, contudo, posição específica da Justiça castrense, a qual coloca em destaque um critério processual. Nesse sentido, crime militar próprio é aquele cuja ação penal possa ser proposta somente em face de um militar. NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcelo. Apontamentos de direito penal militar. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1, p. 50.

14Lembre-se de que aos processos relativos a crimes funcionais afiançáveis aplica-se a regra prevista no art. 514 do Código de Processo Penal. E, com a entrada em vigor da Lei 12.403/2011, todos os crimes funcionais são afiançáveis, a teor da regra disciplinada no art. 323 do Código de Processo Penal.

15Importante ainda destacar a Tese 292 do Setor de Recursos Extraordinários e Especiais Criminais do Ministério Público do Estado de São Paulo: “Drogas – Consumo pessoal – Artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 – Inconstitucionalidade por ofensa aos princípios da igualdade, intimidade e vida privada – Inocorrência”.

16Ou também o fato praticado por pessoa jurídica, em relação aos crimes ambientais definidos pela Lei 9.605/1998, para quem admite essa possibilidade.

17É comum olvidar-se de Glaser, mencionando Von Buri e Stuart Mill como os idealizadores dessa teoria.

18Toda causa independente é capaz de produzir por si só o resultado. A diferença entre a qualidade de absoluta ou relativa refere-se exclusivamente à origem da causa.

19BAUMANN, Jürgen. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema. Trad. espanhola Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973. p. 126.

20BATTAGLINI, Giulio. A interrupção do nexo causal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. p. 102-104.

21FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2001. v. 1, p. 228.

22FRAGOSO, Heleno Cláudio. Conduta punível. São Paulo: José Bushatsky, 1961. p. 54-55.

23O art. 2º da Lei 9.605/1998 prevê, na esfera dos crimes ambientais, uma outra hipótese de dever de agir: “Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

24No mesmo sentido: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 150.

25ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 103.

26A análise das duas elementares traduz-se no que a doutrina denomina de causalidade normativa, em oposição à causalidade natural.

27CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2002. p. 70.

28GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 5-9.

29GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 25-27.

30ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 109-110.

31JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: RT, 2000. p. 38.

32JESUS, Damásio E. de Jesus. A imputação objetiva. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 46-47.

33GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 95.

34Os exemplos são de GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 109-125.

35Para um estudo aprofundado do assunto: GONDIM, Reno Feitosa. Epistemologia Quântica & Direito Penal. Fundamentos para uma Teoria da Imputação Objetiva do Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2005.

36GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 246.

37FRIAS CABALLERO, Jorge. El processo ejecutivo del delito. 2. ed. Buenos Aires: Bibliográfica Argentina, 1956. p. 18.

38MAURACH, Reinhart. Tratado de Derecho Penal. Trad. espanhola Juan Córdoba Roda. Barcelona: Ariel, 1962. v. 2, p. 168.

39ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Da tentativa. 4. ed. São Paulo: RT, 1995. p. 26.

40ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 809.

41PUGLIA, Fernando. Da tentativa. Trad. Octavio Mendes. 2. ed. Lisboa: Clássica, 1907. p. 116.

42ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 814.

43É, dentre outros, o entendimento de GRECO, Rogério. Curso de direito penal – Parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 263-267.

44NORONHA, E. Magalhães. Questões acerca da tentativa. Estudos de direito e processo penal em homenagem a Nélson Hungria. Rio de Janeiro: Forense, 1962. p. 247.

45MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 153.

46JESUS, Damásio E. de. Direito penal. Parte geral. 28. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 344.

47SAUER, GUILLERMO. Derecho Penal (Parte General). Trad. de Juan del Rosal. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1956. p. 173.

48O dano culposo é crime perante o Código Penal Militar (Decreto-lei 1.001/1969, art. 259 c/c o art. 266).

49BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 374.

50ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. espanhola Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remensal. Madrid: Civitas, 2006. p. 423-424.

51“Toda a culpa é culpa da vontade. Só aquilo contra o que o homem pode, do ponto de vista da vontade, alguma coisa, lhe pode ser censurado como culpa” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade. Culpa. Direito Penal. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 57-58).

52O art. 527 do Código Penal italiano prevê a modalidade culposa do crime de ato obsceno.

53Pode até concretizar-se um crime, mas sempre diferente do culposo que restaria caracterizado com a produção do resultado naturalístico. Exemplo: Aquele que dirige veículo automotor embriagado, expondo a perigo a incolumidade de outrem, responde pelo crime tipificado pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Se, em razão da imprudência ao volante, o agente matar alguém, estará tipificado o crime delineado pelo art. 302 do CTB (homicídio culposo na direção do veículo automotor), que absorve o de embriaguez ao volante.

54JESUS, Damásio E. de. Direito penal. Parte geral. 28. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 309.

55ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 532.

56DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 416.

57JESUS, Damásio E. de. Direito penal. Parte geral. 28. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 316-317.

58TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 13. tir. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 272-277.

59BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. Uma análise comparativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 101.

60NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 205-206.

61PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Concurso de leyes, error y participación en el delito. Madrid: Civitas, 1991. p. 78.

62Recorde-se que alguns autores, como Damásio E. de Jesus, consideram o erro sobre as qualificadoras como erro de tipo essencial.

63É o que informa, sem concordar com essa posição: PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito penal. Parte geral. Doutrina e jurisprudência: São Paulo: Método, 2008. v. 1, p. 531.

64BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. Uma análise comparativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 92-93.

65MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 201.

66TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 97.

67Embora esse período tenha se iniciado com os estudos de Reinhart Frank, em 1907, também se atribui grande importância aos trabalhos de Max Ernst Mayer e Edmund Mezger. A propósito, este último penalista alemão é apontado como o grande nome do sistema neoclássico, em face da publicação do seu “Tratado de Direito Penal”. Nesse sentido: Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. espanhola Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remensal. Madrid: Civitas, 2006. t. I, 9.198.

68As denominações “extrema” e “estrita” são utilizadas para acentuar a distinção com a teoria limitada da culpabilidade.

69TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 13. tir. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 230.

70ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. v. 1, p. 525.

71COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: volume 1 – parte geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 1.205-1.206.

72FRANK, Reinhart. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 28 e ss.

73TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. 13. tir. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 328.

74QUEIROZ FILHO, Antonio. Lições de direito penal. São Paulo: RT, 1966. p. 157.

75TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude penal e causas de sua exclusão. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 11.

76BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1, p. 296.

77REALE JÚNIOR, Miguel. Antijuridicidade concreta. São Paulo: José Bushatsky, 1974. p. 36.

78MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 185.

79MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1997. v. II, p. 179.

80BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 343.

81COSTA E SILVA, A. J. da. Código penal anotado. São Paulo: RT, 1943. v. I, p. 171-172.

82BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Op. cit., p. 310-312, apresenta outras causas supralegais: 1) Princípio da adequação social: ação realizada dentro do âmbito da normalidade admitida pelas regras de cultura; 2) Princípio do balanço dos bens: exclusão da ilicitude quando o sacrifício de um bem tem por fim preservar outro mais valioso. Assemelha-se ao estado de necessidade, mas dele se diferencia por não exigir, principal-mente, a atualidade do perigo; e 3) Princípio da insignificância ou da bagatela: atualmente compreendido, de forma praticamente unânime, como excludente da tipicidade, inclusive pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

83PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do delito. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 98.

84Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, a dúvida acerca da presença ou não das causas excludentes da ilicitude deve ser submetida ao Conselho de Sentença, juízo natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em sintonia com o mandamento veiculado pelo art. 5º, XXXVIII, d, da Constituição Federal.

85FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui; MARREY, Adriano. Teoria e prática do júri. 6. ed. São Paulo: RT, 1997. p. 489.

86GARCIA SOTO, Maria Paulina. El estado de necesidad en materia penal. Santiago: Jurídica Conosur, 1999. p. 76.

87GARCIA SOTO, Maria Paulina. Op. cit., p. 77.

88ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. espanhola Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remensal. Madrid: Civitas, 2006. t. I, p. 698.

89JESUS, Damásio E. de. Código Penal anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 112.

90MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Trad. espanhola José Arturo Rodrigues Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955. t. I, p. 453.

91É a posição de MANZINI, Vicenzo. Trattato di diritto penale italiano. 5. ed. Torino: Torinese, 1981. v. II, p. 388.

92Nesse sentido: LINHARES, Marcello Jardim. Legítima defesa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 344.

93LINHARES, Marcello Jardim. Legítima defesa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 166.

94LA MEDICA, Vincenzo. O direito de defesa. Trad. Fernando de Miranda. São Paulo: Saraiva: 1942. p. 48-49.

95MARSICO, Alfredo de. Diritto penale – Parte generale. Napoli: Jovene, 1937. p. 105.

96LA MEDICA, Vincenzo. O direito de defesa. Trad. Fernando de Miranda. São Paulo: Saraiva: 1942. p. 116-119.

97Para um estudo aprofundado do assunto: GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.